30/06/2009

Nicole Sotelo

Não conte ao Papa

Artigo de Nicole Sotelo, autora de "Women Healing from Abuse: Meditations for Finding Peace" (Paulist Press), e coordenadora do sítio www.womenhealing.com. publicado no sítio National Catholic Reporter, 11-06-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



O Papa Bento XVI declarou o dia 19 de junho como o começo do Ano Sacerdotal. Ele proclamou que, "sem o ministério presbiteral, não haveria Eucaristia, não haveria missão e nem mesmo Igreja". Eu odeio ser a primeira pessoa a informá-lo, mas a Eucaristia, a missão e a Igreja já existiam bem antes do surgimento do sacerdócio.

De acordo com os Evangelhos, Jesus não era um padre, nem os seus discípulos. Vemos referências a Jesus como um padre na Carta aos Hebreus. O autor usa a palavra para se referir a Jesus como o novo e último "Sumo Sacerdote", encerrando uma grande sucessão de líderes judeus. O autor afirma que os padres não são mais necessários, porque não se precisa mais de sacrifícios. Jesus foi o sacrifício último e é o nosso sumo sacerdote último.

Talvez o Papa tenha esquecido que Jesus não estava focado no sacerdócio. Ele estava focado no ministério. Ele chamou as pessoas a ministrar junto com ele, independentemente de seu status na sociedade. Ele chamou pescadores e coletores de impostos e a mulher com sete demônios. Todos eram responsáveis pela edificação do reino de Deus.

Todos eram convidados a ministrar, e fizeram isso com vários títulos dados a eles pela comunidade, baseados em seus dons. Alguns eram chamados de profetas, outros, de mestres, e outros ainda de apóstolos. Foi apenas depois que se começou a ver a emergência de uma estrutura ministerial formal com uma terminologia correspondente, quando os seguidores de Jesus foram influenciados e integrados ao Império Romano. Até 215 d.C., não temos evidências de uma ordenação ritual de bispos, padres e diáconos.

O surgimento de uma estrutura clerical levou, eventualmente, à divisão da fé cristã em "clero" e "leigos". Nos primeiros anos do surgimento do cristianismo, porém, Paulo lembrou os seguidores de Jesus: "Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gálatas 3, 28).

Depois do surgimento da ordenação e do sacerdócio, desenvolveu-se uma ordem hierárquica entre os fiéis. A palavra "ordenação" deriva do latim "ordinare", que significa "criar ordem". Desenvolveu-se do uso romano da palavra "ordines", que se referia às classes de pessoas de Roma de acordo com a sua elegibilidade para as posições de governo.

Os leigos se tornaram "des-ordenados" do clero. A palavra "leigo" se origina da palavra "laikoi", que se refere àqueles que, na sociedade greco-romana, não eram "ordenados" no âmbito da estrutura política estabelecida. O termo "clero" vem da palavra "kleros", que significa "grupo separado".

Enquanto muitos cristãos continuaram a ministrar dentro da Igreja, e até algumas mulheres sustentavam os títulos de diaconisas, sacerdotisas e bispas, muitos dos que possuíam esses títulos faziam parte de um grupo limitado de homens pertencentes ao contexto de uma ordem sócio-política e religiosa particular.

Isso perdurou até 1964, quando o Concílio Vaticano II lembrou para a Igreja que o papel de ministro, ou padres, não estava limitado aos ordenados, mas era um chamado a todos os batizados. O documento "Lumen Gentium" proclamava que os leigos se tornavam " participantes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real de Cristo, e exercem, pela parte que lhes toca, a missão de todo o Povo cristão na Igreja se no mundo" (31).

O presbiterato, que deriva do fundamento dos ministérios primitivos dos seguidores de Jesus, voltou então para todos os cristãos. Todas as pessoas são novamente chamadas ao ministério. Todos os cristãos são chamados a participar dos papéis proféticos, soberanos e, sim, até mesmo sacerdotais dentro da missão da Igreja.

Portanto, enquanto o Papa exorta os padres ordenados a refletir neste Ano Sacerdotal, o chamado se dirige a todos nós para que reflitamos sobre como estamos vivendo o nosso ministério na Igreja e no mundo.

Eu não me preocuparia em contar ao Papa que a Eucaristia, a missão e a Igreja existiam bem antes do sacerdócio, nem que o Ano Sacerdotal deveria realmente ser um ano dedicado a todos os leigos. Pelo contrário, precisamos compreender isso por nós mesmos.

O Ano Sacerdotal é uma oportunidade para todos os fiéis cristãos refletirem sobre o ministério presbiteral e, fazendo isso, reivindicar o nosso próprio ministério.

29/06/2009

Cardeal Dionigi Tettamanzi

Solidariedade, sobriedade, justiça: os três deveres em tempos de crise


Em entrevista ao L'Osservatore Romano, o arcebispo de Milão, cardeal Dionigi Tettamanzi, fala de seu último livro – "Non c'è futuro senza solidarietà. La crisi economica e l'aiuto della Chiesa" [Não há futuro sem solidariedade. A crise econômica e a ajuda da Igreja, em tradução livre] – e da iniciativa que o fez nascer, ou seja, o Fundo Família-Trabalho, anunciado no Duomo no Natal, durante a missa do galo. A reportagem é de Alberto Manzoni, publicado no jornal do Vaticano, L'Osservatore Romano, 25-06-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Eminência, no livro, o senhor dedica um capítulo inteiro ao tema da sobriedade. Como é possível propor esse valor ao homem de hoje, imerso em uma mentalidade consumista?

Justiça, solidariedade e sobriedade formam um tema inseparável. Bento XVI, na sua homilia do dia 31 de dezembro de 2008, lançou um apelo: a crise "pede a todos mais sobriedade e solidariedade para ajudar sobretudo as pessoas e as famílias em dificuldades mais graves". A sobriedade é uma virtude que nasce e cresce por meio de um sábio e corajoso discernimento, que a mantém intimamente unida à sua finalidade: ser um caminho privilegiado que conduz à solidariedade, à partilha verdadeira e concreta de tudo o que é necessário para viver segundo a dignidade humana, que é de todos, sem nenhuma discriminação. É um desafio o que o Papa lança, para mudar de modo radical uma cultura dos estilos de vida construídos sobre o consumismo. A sobriedade é uma virtude não apreciada, talvez porque muitas vezes é mal-entendida e aplicada só à esfera econômica. A sobriedade é confundida com uma vivência que tem o sabor de economia minuciosa, de abstenção dos consumos. Mas a sobriedade autêntica é uma coisa bem diferente, é um estilo de vida complexo: sobriedade nas palavras, na exibição de si mesmo, no exercício do poder, na vivência cotidiana. Sobriedade significa curar o nosso comportamento cotidiano dos excessos, reconduzindo-o à "justa medida".

Portanto, há uma relação muito estreita entre sobriedade e solidariedade?

Não é possível ser solidário sem ser sóbrio: senão, se compartilharia só o que excede às necessidades pessoais. É preciso dar bem mais do que o supérfluo, segundo o exemplo da "viúva pobre" do capítulo 21 do Evangelho de Lucas, que soube compartilhar tudo. Só a partir dessas premissas é possível entender corretamente também a solidariedade, que não deve ser confundida com uma atitude voluntarista ou com a filantropia. A solidariedade encontra a sua origem no fato de estar totalmente ligada, "solidamente", pela mesma ligação que nos une no mesmo gênero humano. E temos uma prova disso no fato de que a solidariedade é um dos valores sobre os quais se funda a Constituição da República Italiana, que, no artigo 2, considera-a um "dever imprescindível". Viver a solidariedade é sobretudo e fundamentalmente um dever de justiça – eis a terceira palavra –, antes ainda que sinal de virtude.

Como o senhor julga, hoje, o andamento do fundo diocesano?

A coleta diocesana superou os quatro milhões e meio de euros. Ao um milhão de euros destinado inicialmente e proveniente em parte da cota de oito por mil [1] a ser destinada às obras de caridade, de ofertas que já haviam chegado, acrescentou-se um milhão de euros doado pela Fundação Cariplo. De contribuições individuais e das iniciativas das paróquias, somaram-se – no dia 15 de junho – outros dois milhões e meio de euros. Uma quantia não pequena. Mas a diocese é grande, a crise é forte, as necessidades que se mostram, enormes. Milhares de famílias já recebem um subsídio graças a esse fundo.

Além da conjuntura econômica atual, qual herança de valores e de compromisso poderia ser deixada nos próximos anos?

O dinheiro não é a única e nem mesmo a maior palavra que devemos e podemos levar. As comunidades cristãs, com a sua rede discreta, capilar e eficaz, podem interceptar e ajudar outras necessidades: as solidões, as angústias, os temores que essa crise está gerando. A palavra do Evangelho e o seu testemunho vivo são uma presença de esperança que vale mais do que um subsídio econômico. Poderemos sair dessa crise purificados nos estilos de vida se aprendermos a autêntica virtude da sobriedade, e reforçados, se soubermos renovar o laço da solidariedade.

Notas:

1. "Otto per mille" é uma norma pela qual o Estado italiano reparte 8‰ de tudo o que é recolhido no imposto de renda italiano, com base nas escolhas dos contribuintes, entre o Estado e as diversas confissões religiosas, para propósitos definidos pela lei.

Para ler mais:


25/06/2009

Monge Enzo Bianchi

Para um cristão, o estilo é a mensagem

Fonte: UNISINOS






Conjugar a exigência do Evangelho com a realidade na qual é dado viver sempre foi a preocupação e o desafio de toda geração de cristãos, chamados- para usar as próprias palavras de Jesus – “estar no mundo mas não ser do mundo”. É o tema escolhido pela Convenção nacional do dia 22 de junho em Lingotto, das Caritas diocesanas (isto é, dos organismos que se encarregam de testemunhar no cotidiano e em seu território a atenção da Igreja pelos “últimos”, dando corpo a um modo de viver a fé cristã que é imediatamente perceptível e legível também numa sociedade secularizada como a ocidental e mesmo por aquele que não compartilha daquela fé) indica muito bem a consciência da comunidade cristã: “Não vos conformeis com este mundo. Por um discernimento comunitário”. A primeira afirmação é uma admoestação de São Paulo aos cristãos de Roma no primeiro século depois de Cristo, exortação que é atualizada com um apelo à importância de operar um discernimento sobre o pensar, sobre o agir e sobre a necessidade que esta reflexão seja “comunitária”, isto é, fruto e também semente de uma comunidade viva e vital.

Esta concepção indica bem o difícil equilíbrio da presença cristã na sociedade: nenhuma “fuga do mundo”, nenhum enclausuramento numa cidadela de “puros”, mas também nenhuma concessão a uma mentalidade mundana que considera descontados ou privados de validade ética comportamentos lesivos da dignidade humana. Já o Antigo Testamento admoestava, de resto, a “não seguir a maioria para praticar o mal?” (Ex 23, 2). Na vivência cotidiana há escolhas que a fé cristã impõe e inspira, certamente deixando aos pastores da Igreja, às figuras representativas institucionais a tarefa de agir no terreno profético, pré-político, pré-econômico, pré-jurídico, mas assinalando aos fiéis, aos leigos cristãos o encargo de uma realização de tais instâncias sob sua responsabilidade mediada pela sua consciência. Parece-me que estes comportamentos capazes de mostrar a diferença cristã possam ser reassumidos em algumas opções de fundo.

O “mandamento novo”, isto é, último e definitivo, deixado por Jesus aos seus discípulos é: “Amai-vos como eu vos amei” (Jo 13,34), amai-vos até despender a vida pelos outros, até doá-la pelos irmãos. Ora, este mandamento que narra a especificidade do cristianismo requer que o cristão não ame somente o próximo, não ame somente os seus familiares, mas ame todos os outros que encontra, e entre estes privilegie os últimos, os sofredores, os necessitados. Ao observar este mandamento, o cristão não pode, pois, pensar na forma política a dar à igualdade, à solidariedade, à justiça social. Se não houvesse também uma epifania política do amor pelo último, da atenção ao necessitado, faltaria à polis algo decisivo nas relações sociais e teria certamente evadido uma grave responsabilidade cristã. Não esqueçamos que, segundo as palavras de Jesus, o juízo para a vida ou para a morte será feito precisamente sobre a relação que houve na vida e na história, aqui e agora, com o homem em necessidade, faminto, sedento, estrangeiro, nu, doente, prisioneiro.

À mesma evangelização da Igreja pertence também a tarefa de indicar o ser humano e sua dignidade como critério primário e essencial à humanização, a um caminho de autêntica plenitude de vida. Isto requer que os cristãos saibam, acima de tudo, dar um testemunho com sua vida, mas saibam também tornar eloqüentes as suas convicções sobre as exigências de respeito, salvaguarda, defesa da vida humana. Diante da guerra que, não obstante as experiências vividas, continua atraindo os poderes políticos e os seres humanos, os cristãos devem saber manifestar sua contrariedade e sua condenação, na convicção de que não pode existir uma guerra justa, como profeticamente indicou o magistério de João XXIII, retomado por João Paulo II por ocasião da segunda Guerra do Golfo.

Os cristãos devem saber manifestar de modo eloqüente sua opção em favor do respeito da vida dos povos e das pessoas, ameaçados também por possíveis catástrofes ecológicas. Devem promover o respeito da vida de cada ser humano individual que, por certo, nasce de um homem e de uma mulher, mas, na visão de fé é sobretudo querido, pensado, amado por Deus que o chama à vida; o respeito de cada homem e cada mulher, dos quais tem sentido não só a vida, mas também o sofrimento até a morte. São necessárias hoje, da parte dos crentes, a criatividade, a fadiga de investigar e de pensar, a capacidade de expressar-se em termos que sejam compreensíveis também pelos não cristãos, termos antropológicos, portanto, e não teológicos ou dogmáticos.

Esta ação na polis – não me cansarei de repeti-lo – não deve nunca prescindir do estilo de comunicação e de práxis: também esta é uma instância fundamental, porque o estilo tem sido importante quanto ao conteúdo da mensagem, principalmente para não cristãos. Sim, o estilo com o qual o cristão está na companhia dos homens é determinante: dele depende a própria fé, porque não se pode anunciar um Jesus que narra Deus na mansidão, na humildade, na misericórdia, e o faz com estilo arrogante, com tons fortes ou até mesmo com atitudes que pertencem à militância mundana! E, precisamente para salvaguardar o estilo cristão é preciso resistir à tentação de exibir-se, de fazer-se falar, de mostrar os músculos... A fé não é questão de números, mas de convicção profunda e de grandeza de ânimo, de capacidade de não ter medo do outro, do diverso, mas de sabê-lo escutar com doçura, discernimento e respeito. Do testemunho cotidiano dos cristãos no mundo depende a recepção do Evangelho como boa ou má comunicação, e portanto, boa ou má notícia.

[grifos do blog]

Para ler mais:



23/06/2009

Nota Pública da CPT






Quem é o responsável por estas mortes?

Abiner José da Costa, de 49 anos, pai de 5 filhos e Edeuton Rodrigues do Nascimento, 48 anos, pai de 5 filhos foram mortos a tiros, no dia 17 de junho, quando participavam do Bloqueio da BR 158, à altura do km 340, município de Bom Jesus do Araguaia (MT), exigindo solução para as centenas de famílias acampadas às margens da rodovia depois de terem sido retiradas, por decisão judicial, da Fazenda Bordolândia, desapropriada pela presidente da República, em 2004.

Quem foi o responsável por mais estas mortes de trabalhadores da terra? Ainda não estão claras as informações a respeito de quem teria cometido o duplo assassinato. A Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Prelazia de São Félix do Araguaia, porém, afirmam que este é mais um caso de mortes anunciadas. Apesar de todas as denúncias feitas ao Incra e inclusive ao Gabinete da Presidência da República e de todos os apelos, não foram tomadas as medidas cabíveis e necessárias e se deixou que a situação chegasse a este desfecho. Nos primeiros dias de junho a Prelazia de São Félix divulgou manifesto sobre o clima de tensão que se gerou na área e a Coordenação da CPT enviou carta ao Presidente do Incra pedindo providências.

Depois da desapropriação da área, o INCRA, em 2005, foi imitido na posse da mesma. A partir daí, o vai e vem de recursos na justiça, ora tem assegurado ao INCRA a posse da terra, ora a tem devolvido à empresa proprietária (Agropecuária Santa Rosa LTDA., devedora da União). Em 18 de outubro de 2007, o Incra novamente foi imitido na posse do imóvel e as famílias foram conduzidas pelo Incra para as terras da fazenda. Desde a entrada das famílias na fazenda foram feitas denúncias da presença de grupos cujos integrantes não correspondiam ao perfil de famílias beneficiárias da reforma agrária. Era visível que pretendiam aproveitar-se apenas da madeira ali existente e para tanto destruíam o meio ambiente. As denúncias foram encaminhadas principalmente ao Ministério Público Federal no estado do Mato Grosso. Solicitava-se uma investigação local destas denúncias.

Numa das vezes em que esteve na presidência do INCRA, o Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, Dom Leonardo Ulrich Steiner, alertou, verbalmente, que a seleção das famílias a serem assentadas deveria ser acompanhada por agentes da polícia federal para impedir que grupos estranhos, com outros interesses, impedissem o bom andamento do procedimento. Isso não aconteceu.

Sem terem sido tomadas as devidas providências, o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual ingressaram na Justiça com Ação Cautelar por danos ao meio ambiente e o Juízo da Primeira Vara Federal da Seção Judiciária de Mato Grosso determinou, no final de março, a retirada de todos os ocupantes da fazenda, inclusive das famílias cadastradas pelo INCRA, que tinham iniciado os procedimentos para a regularização de seus assentamentos e que já haviam plantado roças e aguardavam suas colheitas.

As famílias acabaram acampando novamente em barracos, expostas ao sol, à poeira, às intempéries do tempo, sem água potável. Como não se apresentava a elas qualquer solução, apelaram para o bloqueio da BR como forma de pressão. Neste contexto aconteceram as mortes.
A CPT e a Prelazia exigem que o Incra assuma a responsabilidade por estas mortes por seu marasmo e omissão na resolução do conflito e por não ter tomado todas as cautelas exigidas no caso. As famílias sem terra encontravam-se na fazenda por iniciativa do Estado, responsável pela solução definitiva do caso, bem como pela proteção à sua integridade física e à sua dignidade de pessoas humanas. Cabia ao Ministério Público zelar por estes valores, porém, propôs a retirada de todas as famílias, cadastradas e não cadastradas, como forma de defender o meio ambiente, não levando em conta os princípios constitucionais que consagram a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho como princípios fundantes da República Federativa brasileira.

Este é mais um dos conflitos na grande Amazônia brasileira. Só nos primeiros meses deste ano, a CPT registrou o assassinato de nove trabalhadores em conflitos no campo. Oito destas mortes na Amazônia, onde ocorre o maior número de assassinatos, 253 dos 365 registrados nos últimos dez anos. Quando os direitos dos pobres, especificamente dos sem terra, serão respeitados?

Quando o governo quer e se empenha consegue em pouco tempo aprovar medidas mesmo que não estejam em consonância com a Consituição.

O sangue destes trabalhadores mais uma vez clama por Justiça!


Goiânia e São Félix do Araguaia, 22 de junho de 2009.


Dom Leonardo Ulrich Steiner
Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia

Dom Ladislau Biernaski
Presidente da Comissão Pastoral da Terra

19/06/2009

NOTA DA CNBB sobre a corrupção na política

Para CNBB, corrupção leva ao descrédito generalizado

A corrupção e a impunidade são grandes ameaças ao sistema democrático, por afastar a população da participação política, levando-a ao descrédito generalizado não só pelos políticos, mas também pelas instituições. Este é o tom da nota divulgada ontem pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em repúdio às "repetidas acusações de corrupção nas instâncias dos poderes constituídos". A notícia é do jornal Valor, 19-06-2009.
Fonte: UNISINOS

Em meio à crise enfrentada pelo Senado, com uma série de denúncias de corrupção e mau uso dos recursos públicos, a CNBB protestou contra as irregularidades nos poderes. "A superação da corrupção exige pessoas e partidos com perfil íntegro para o exercício do mandado público", afirmou a confederação da Igreja Católica. Os bispos defenderam que os políticos tenham "virtudes sociais, como competência, retidão, transparência e espírito de serviço".

A corrupção, disse a entidade, trai a "justiça e a ética social", compromete o funcionamento do Estado e aumenta as desigualdades sociais, a miséria, a fome e a pobreza. Os bispos criticaram o fato de serem raras restituição dos recursos e bens públicos usurpados, por meio de desvios nos poderes.

A CNBB defendeu a realização de uma reforma política para "sanar os males da corrupção" e convocou a população para se mobilizar e fazer com que as eleições de 2010 sejam baseadas em princípios éticos e fortaleçam " a participação" e "a credibilidade dos processos democráticos".

Entre as propostas de mobilização está o projeto de lei de iniciativa popular sobre a Vida Pregressa dos Candidatos a eleições, também conhecido como Projeto Ficha Limpa.

A atuação da imprensa também foi criticada pela entidade. A CNBB afirmou que os meios de comunicação têm divulgado a prática de corrupção nos meios políticos "como um círculo vicioso, um hábito enraizado na inversão dos meios e do fim da ´coisa pública". E contestou ações da mídia por "semear na opinião pública a idéia da inutilidade do Congresso, desvalorizando a democracia". A nota foi assinada pelo presidente da confederação, Dom Geraldo Lyrio Rocha (Arcebispo de Mariana), pelo vice-presidente da entidade, Dom Luiz Soares Vieira (Arcebispo de Manaus) e pelo secretário-geral da CNBB, Dom Dimas Lara Barbosa (Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro).


A SUPERAÇÃO DA CORRUPÇAO NA POLÍTICA:
SALVAGUARDA DA ÉTICA E DA DEMOCRACIA

Na verdade, a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tm 6,10).

Nós, membros do Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, reunidos em Brasília, DF, nos dias 16 a 18 de junho de 2009, manifestamos indignação diante das repetidas acusações de corrupção nas instâncias dos Poderes constituídos. A corrupção e a decorrente impunidade constituem grandes ameaças ao sistema democrático.

A corrupção aumenta o fosso das desigualdades sociais, como também a miséria, a fome e a pobreza. Além de ferir gravemente o princípio do destino universal dos bens, raramente se tem notícias sobre a restituição dos recursos e bens públicos usurpados. A corrupção trai a justiça e a ética social, compromete o funcionamento do Estado, decepciona e afasta o povo da participação política, levando-o ao desprezo, perplexidade, cansaço, revolta, e ao descrédito generalizado, não somente pelos políticos, mas também pelas Instituições Públicas.

A imprensa nacional e os órgãos públicos competentes têm divulgado a prática de comprovada corrupção nos meios políticos como um círculo vicioso, um hábito enraizado na inversão dos meios e do fim da “coisa pública”. Ao mesmo tempo em que a mídia funciona como caixa de ressonância, denunciando os males presentes na vida política, muitas vezes pode semear na opinião pública a idéia da inutilidade do Congresso, desvalorizando a democracia.

Diversas instâncias da sociedade civil já se manifestaram em favor da reforma política para, entre outros objetivos, sanar os males da corrupção sedimentados na vida pública. A Igreja quer contribuir para o bem comum, lembrando as exigências éticas do Evangelho. A política é um serviço ao bem comum, na construção da sociedade justa, fraterna e solidária. Os políticos sejam pessoas dotadas de virtudes sociais, como competência, retidão, transparência e espírito de serviço, sendo os primeiros responsáveis pela ordem justa na sociedade. A superação da corrupção exige pessoas e partidos com perfil íntegro para o exercício do mandado público.

Convocamos a todos para que, através do Projeto de Lei de Iniciativa Popular sobre a Vida Pregressa dos Candidatos (Projeto Ficha Limpa), da Reforma Política e outras mobilizações, possamos garantir eleições regidas pela ética em 2010, fortalecendo a participação e garantindo a credibilidade dos processos democráticos. Nesse sentido, a Igreja oferece, por meio das escolas de Fé e Política, uma concreta e valiosa contribuição.

Que Nossa Senhora Aparecida, serva de Deus e da humanidade, ajude o povo brasileiro a combater a corrupção, criando condições para uma sociedade justa e plenamente democrática.

Dom Geraldo Lyrio Rocha
Arcebispo de Mariana
Presidente da CNBB

Dom Luiz Soares Vieira
Arcebispo de Manaus
Vice-Presidente da CNBB

Dom Dimas Lara Barbosa
Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro
Secretário-Geral da CNBB

Fonte: CNBB

18/06/2009

Pe. Luiz Augusto Ramos Vieira

Bangladesh: terra de um mar de gente

É a nação com mais densidade populacional do mundo. É como colocar toda a população do Brasil dentro do Estado de São Paulo
Fonte: Missionários Xaverianos do Brasil


Com uma população de cerca 150 milhões de habitantes, o Bangladesh é hoje a nação com mais densidade populacional do mundo. O país tem uma extensão geográfica mais ou menos como o Estado do Paraná. É como se colocássemos toda a população do Brasil dentro do Estado de São Paulo. Façam uma idéia de como seja grande, entre essa multidão de gente, a procura pela terra. Somente para dar um exemplo cerca de 85% das causas judiciais aqui são por problemas que envolvem a terra. A grande maioria do povo, por volta de 98%, é bengalês e os outros 2% são aborígines e tribais. Com relação à religião, quase 90% são muçulmanos, 8% hinduístas e cerca de 2% entre budistas, cristãos e religiões tradicionais.

A vida aqui é predominantemente rural, por isso 75% da mão de obra é empregada no cultivo do arroz e de outros produtos como a juta e vegetais vários. Infelizmente, os bengaleses vivem ainda num sistema de castas, isto é de divisão social, mesmo se as vezes isso é mascarado. Originalmente, as castas eram apenas quatro: os brâmanes (religiosos e nobres), os xatrias (guerreiros), os vaixas (camponeses e comerciantes) e os sudras (escravos). À margem dessa estrutura social havia os párias, sem-casta ou intocáveis. Com o passar do tempo, vêm acontecendo centenas de subdivisões que não param de se multiplicar. Nós missionários xaverianos estamos trabalhando com as pessoas consideradas sem casta.

Geralmente, os bengaleses se sentem orgulhosos da pátria deles, de sua língua e sua cultura, mas certamente não são tão felizes de viver neste sistema excludente e opressor. Sentem vergonha, na própria pele, do duro peso que o “destino” reservou para eles, sobretudo os sudras e os intocáveis que fazem trabalhos considerados indignos, como coveiro ou curtumeiro, e outros empregos que os mantêm em constante contato com aquilo que o resto da sociedade considera desagradável. Eles são considerados individualmente sujos, e assim não podem ter contato físico com os “puros”, da sociedade. Vivem separados do resto das pessoas. Ninguém pode interferir em sua vida social, pois os intocáveis são os últimos, são considerados menos que humanos e não são considerados parte do sistema de castas.

Em contrapartida, as pessoas aqui pensam e agem sempre em grupo. Pelo menos tinha sido assim até pouco tempo. Todavia hoje com a globalização a idéia de individualismo começa a surgir também no meio deles. De qualquer modo, para exemplificar, não dizem quase nunca “o meu país”, “o meu vilarejo”, “a minha casa”, etc., mas preferem dizer “o nosso país”, “o nosso vilarejo”, “a nossa casa”. A ação de um indivíduo pode refletir diretamente sobre a vida do grupo. Um ato de maldade difama todo o grupo e, ao contrário, uma ação boa concede a todos que fazem parte do grupo uma boa reputação. Talvez aqui encontramos a raiz do fato que o conceito de privacidade para eles seja um tanto diferente do nosso. Por isso, logo no inicio nos assustam com suas perguntas que parecem violar nossa intimidade. Por exemplo, uma das frequentes perguntas que fazem quando lhe vêm pela primeira vez é o que veio fazer no Bangladesh, se você é casado, se tem filhos, qual o seu salário, etc.

A Igreja ensina que os missionários “para poderem dar frutuosamente este testemunho de Cristo, unam-se a esses homens com estima e caridade, considerem-se a si mesmos como membros dos agrupamentos humanos em que vivem, e participem na vida cultural e social através dos vários intercâmbios e problemas da vida humana; familiarizem-se com as suas tradições nacionais e religiosas; façam assomar à luz, com alegria e respeito, as sementes do Verbo nelas adormecidas;” (Concílio Vaticano II, Decreto Ad Gentes, 11). Somente se estivermos livres de julgamentos precipitados, conseguiremos perceber as sementes do Evangelho já presentes no Bangladesh antes mesmo da chegada dos primeiros missionários portugueses há 400 anos. Quando entramos numa nova realidade compreendemos melhor o que significa tirar as sandálias dos pés, porque o lugar no qual estamos pisando é sagrado (cf. Ex 3,4b). Resta-nos, então, confiar em Deus que nos chamou para a missão, ter humildade suficiente para saber que somos apenas instrumentos d’Ele e é Ele quem faz e age em nós.

16/06/2009

Entrevista - Rosino Gibellini

Karl Rahner, o primeiro teólogo católico moderno

Rosino Gibellini é doutor em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e doutor em filosofia pela Universidade Católica de Milão. Dirige as coleções Giornale di Teologia e Biblioteca de teologia contemporânea da Editora Queriniana de Brescia, Itália. O estudioso é autor, entre outros livros, de A teologia do século XX (Edições Loyola, 1998). Ele já concedeu várias entrevistas para a revista IHU On-Line.
Fonte: UNISINOS



IHU On-Line – Quais eram, para Rahner, os principais desafios e as principais possibilidades da modernidade para a vida de fé?

Rosino Gibellini – Karl Rahner compreendeu os sentidos dos desafios da modernidade para a teologia cristã, assim como, em seu tempo, Schleiermacher as tinha compreendido. Na análise da situação cultural e teológica – a qual era possível diagnosticar já nos anos 50 do século XX –, Rahner identificava três elementos característicos:

a) vivemos numa sociedade secular e pluralista, em que os enunciados da fé perderam a sua obviedade;

b) justamente com o pluralismo, é preciso registrar um aumento dos conhecimentos em todas as áreas do saber, o que torna particularmente difícil fazer sínteses;

c) a essas dificuldades modernas da anunciação cristã e do fazer teologia, deve-se acrescentar uma espécie de enrijecimento (Fixierung) e de incrustação (Verkrustung) de conceitos teológicos que, permanecendo imutáveis no decorrer dos séculos, não correspondem mais à situação transformada da vida e da cultura do homem moderno. Daí a sua tentativa de uma reforma metodológica da teologia católica.

IHU On-Line – Como avaliar as ideias de Rahner, claramente em diálogo com a modernidade, quando alguns pensadores afirmam que já estamos vivendo na pós-modernidade? Rahner estaria superado?

Rosino Gibellini – Poder-se-ia dizer que Rahner é o primeiro teólogo católico moderno. A modernidade é caracterizada pela racionalidade crítica (Descartes, Kant), e Rahner introduziu na teologia católica o exercício da racionalidade crítica, que iria substituir a racionalidade metafísica da neoescolástica e da prática católica. A grande teologia francesa visava principalmente uma reforma do tomismo na linha de Maritain e Gilson. A tentativa de Rahner é mais ousada.

E o dever do exercício da racionalidade crítica na teologia permanece também no tempo da pós-modernidade, que é interpretada como “modernidade tardia” (Habermas) ou como “nova modernidade” (Robert Schreiter): o exercício da racionalidade crítica deverá unir-se, no tempo da pós-modernidade, à atenção aos temas que foram esquecidos ou desvalorizados pelo projeto moderno (David Tracy).

IHU On-Line – Por que Rahner teve tanta importância nos debates do Concílio Vaticano II? Quais foram as circunstâncias que possibilitaram que ele tivesse essa relevância nos debates?

Rosino Gibellini – O Concílio Vaticano II (1962-1965) – anunciado de surpresa por João XXIII há 50 anos, no dia 25 de janeiro de 1959 – propôs uma “atualização” da igreja, para torná-la mais correspondente à sua missão pastoral. A teologia de Rahner estava em sintonia com esse programa. Justamente em 1959 – ano da proposta do Concílio – Rahner publicou “Missão e Graça”, que inicia com um significativo ensaio intitulado “Significado teológico do cristão no mundo moderno” (de 1954), em que ilustra a passagem do regime da cristandade para uma situação na qual a igreja existe como minoria no interior das nações; e no qual sustenta que tal situação não deve ser suportada, e sim assumida como “imperativo histórico de salvação” e afrontada como uma renovação dos métodos da práxis eclesiástica. Nota-se, então, que a teologia de Rahner estava em sintonia com o grande projeto inovador do Concílio.

IHU On-Line – Como Rahner se posicionava nas polarizações conceituais e políticas do Concílio? Frente a quais ideias e teólogos Rahner se posicionou contra ou a favor?

Rosino Gibellini – Com o Concílio já anunciado, Rahner foi atingido por uma “censura preventiva” para excluí-lo completamente do evento. Mas acabou chegando a Roma como perito pessoal do cardeal König, de Viena, presidente da Conferência Episcopal Austríaca. Introduziu-se nas comissões com cautela. Escreverá na “Breve correspondência do período do Concílio” publicada em 1986: “Pode ser que Alfredo Ottaviani, então prefeito do Santo Ofício, tenha notado que sou um teólogo completamente inofensivo e normal. E, dessa forma, aquele decreto romano (da censura preventiva), foi simplesmente esquecido”. Mas trabalhou com afinco, a ponto de tornar-se um dos teólogos mais célebres justamente durante o Concílio. Deve-se reconhecer, porém, que a verdadeira estrela do Concílio era Joseph Ratzinger, na época docente de teologia fundamental em Bonn e consultor oficial do cardeal Frings de Colônia, presidente da Conferência Episcopal Alemã. Escreveu Rahner (1962): “Com Ratzinger, me entendo bem. Ele é muito estimado por Frings”.

Rahner colocava-se na linha da renovação e nas polarizações se ocupava em lançar uma ponte entre tradicionalistas e progressistas. Suas maiores contribuições são em sede eclesiológica, mas também, e principalmente, sobre a doutrina católica da revelação e sobre uma compreensão mais profunda da vontade de salvação universal. Mas é no pós-Concílio que os caminhos se dividem. Para Rahner, o Concílio é o início de um caminho de reforma a dar continuidade para uma “transformação estrutural da Igreja”, como diz o título de um seu volume programático de 1972. O teólogo Ratzinger estará longe desse programa e insistirá sempre num retorno aos textos do Concílio, dos quais somente resulta o espírito do evento Conciliar. Se Rahner ressalta a descontinuidade operada pelo Concílio, Ratzinger interpretará o Concílio no sentido da continuidade.

IHU On-Line – Quais foram as contribuições de Rahner para o diálogo inter-religioso e o ecumenismo?

Rosino Gibellini – O maior ecumenista católico no Concílio era o teólogo francês Congar, mas a solução católica mais avançada para o problema ecumênico no pós-Concílio foi dada por Karl Rahner e por Heinrich Fries, que assinaram o mediato e corajoso texto “União das Igrejas – Possibilidade real” (1984), que aparecia como nº 100 da célebre Biblioteca Herderiana Quaestiones Disputatae”. Livro e projeto que o teólogo Ratzinger criticou.

Rahner também deu sua contribuição à teologia das religiões com a sua tese dos “cristãos anônimos”, que lhe permitia ver as religiões não-cristãs como “vias legítimas de salvação”, na dependência de “todo o verdadeiro e o bom do cristianismo”, como a monografia completa de Doris Ziebritzki sobre o tema publicada na Coleção “Innsbrucker theologische Studien” reconstruiu.

A contribuição de Rahner deve ser agora criticamente integrada a uma grande bibliografia, católica e ecumênica, que se desenvolveu nas últimas duas, três décadas. Resumo a passagem desta forma: “Do cristianismo anônimo a um cristianismo relacional”.

IHU On-Line – Frente aos atuais problemas de governo da Igreja, Rahner ainda oferece respostas? Como Ratzinger vê Rahner?

Rosino Gibellini – Rahner e Ratzinger são duas grandes figuras da teologia da época moderna. O teólogo jesuíta espanhol Santiago Madrigal dedicou uma recente monografia ao confronto entre os dois teólogos: duas grandes personalidades que colaboraram na realização do Concílio, mas que depois se diferenciaram na concreta aplicação deste, até entrar, sob certos aspectos, como teólogos, em contraste entre si, mas convergentes sobre a dificuldade do dever, assim expresso por Rahner: “Com certeza passará muito tempo até que a igreja, que recebeu de Deus a graça do Concílio Vaticano II, seja a igreja do Concílio Vaticano”.

IHU On-Line – Como Rahner é visto hoje na teologia? Quais são seus principais discípulos nos debates teológicos atuais?

Rosino Gibellini – Rahner é o protagonista da virada antropológica na teologia católica, que mantém “o ouvinte da Palavra“ sempre presente na proposição da verdade cristã, e se confronta, portanto, com a cultura moderna. Essa é uma das maiores linhas da teologia do século XX, que se diferencia (sem se contrapor) das teologias da identidade católica, representadas pelas figuras de Von Balthasar e Ratzinger.

Rahner fez escola e teve numerosos discípulos, dos quais o mais criativo, que, partindo de Rahner foi além de Rahner, é Johann Baptist Metz, em cujo pensamento a racionalidade crítica se concretiza com a racionalidade prática, que desenvolve as implicâncias históricas e sociais do pensamento cristão.

IHU On-Line – Passados 25 anos de sua morte, qual é a principal herança que Rahner deixou para a Igreja?

Rosino Gibellini – Vinte e cinco anos após sua morte (30 de março de 1984), está em fase de avançada realização a edição crítica da Opera omnia do grande teólogo, que representará um seguro ponto de referência para o futuro da teologia. Recordo de ter participado, com Gustavo Gutiérrez (que se encontrava naquele mês em Roma) dos solenes funerais do teólogo alemão em Innsbruck, onde havia se retirado nos últimos anos. Nos funerais também estavam presentes Metz, Lehmann, Kasper e Schillbeeckx. Aos participantes, foi distribuído o Boletim informativo dos Jesuítas da província da Alemanha meridional (datado em München, abril 1984/2), dedicado à figura de Rahner. Sempre o conservei e comentei várias vezes com os jovens teólogos a sua última entrevista ali reproduzida. O entrevistador perguntava: “Como se pode transmitir a fé à nova geração?” Rahner respondia: “Antes de tudo deve-se pregar bem. Para pregar bem, deve-se primeiro estudar bem teologia. Mas, para pregar bem, devem existir homens vivos, devotos, radicalmente cristãos, que possam pregar. Naturalmente também deve existir uma certa liberdade no exercício de uma atividade apostólica ou pastoral”. A teologia, portanto, é um instrumento do anúncio e da missão.

O teólogo evangélico Wolfhart Pannenberg identificou bem o maior legado de Karl Rahner, vendo na teologia rahneriana uma das tentativas mais consistentes do nosso tempo de manter aberta a racionalidade reduzida da cultura secular ao mais vasto horizonte de uma racionalidade que reconhece também o mistério de Deus “enquanto ele nos ensinou a ver em cada tema teológico, aquilo que é universalmente humano”, introduzindo-se assim no vasto sulco da mais autêntica teologia cristã: “A aliança com a razão pertence desde o início á dinâmica missionária do Evangelho”.

Para ler mais:


Religiões vigilantes frente aos desvios eugenistas

Convictas da sua capacidade de "interrogar as consciências" sobre os efeitos da pesquisa médica, as correntes religiosas tentam, cada uma a seu modo, fazer sentir a sua voz nas discussões ligadas às revisões das leis de bioética. Baseado em uma doutrina clara e em uma vontade decisiva de ter um peso nos debates, o trabalho realizado pela Igreja católica é, de longe, o mais completo. A reportagem é de Stéphanie Le Bars, publicada no jornal Le Monde, 10-06-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


De maneira inédita, os bispos franceses aproveitaram os Estados Gerais de bioética para afinar a sua estratégia de comunicação e de "diálogo" sobre temas em que as posições da Igreja e do Vaticano parecem tradicionalmente cristalizadas. Um blog aberto em fevereiro no sítio da Conferência Episcopal Francesa (CEF), segundo os seus iniciadores, foi visitado por 20 mil internautas por mês. Foram propostos cursos de formação para o clero e para os leigos. Foi amplamente difundido um livro sob o título "Bioéthique, propos pour un dialogue" (Editora (Lethielleux).

Mas, mesmo havendo adotado um novo tom e, sem dúvida, melhor argumentado para defender as suas convicções, a Igreja francesa continua sobre posições doutrinais lembradas pelo Vaticano em dezembro de 2008 com a instrução "Dignitas personae". "A dignidade da pessoa humana deve ser reconhecida a todo ser humano desde a sua concepção até a sua morte natural", especifica o texto assinado pelo Papa Bento XVI.

A propósito da procriação, o texto também é claro: "A origem da vida humana, por outro lado, tem o seu contexto autêntico no matrimônio e na família". As técnicas de procriação assistida são condenadas no seu conjunto.

Para promover essas posições, a Igreja pretende "sacudir os pesquisadores", alguns dos quais, asseguram os responsáveis católicos, compartilham de suas interrogações. "Por que existe o diagnóstico pré-implantatório?", pergunta Dom Pierre d'Ornellas, arcebispo de Rennes, que se tornou especialista desses temas na CEF. "Por que as pessoas são colocadas diante de perguntas desse tipo: querem conservar este ou aquele embrião? O que devemos fazer com os embriões congelados de vocês?", questiona o bispo, que, no livro da CEF, considera que é preciso ser encorajada "a pesquisa sobre doenças sobre as quais se fala, em vez da extirpação das doenças por meio da seleção pré-natal de massa".

A Igreja vê nos métodos de diagnóstico pré-implantatório ou pré-natal (DPI e DPN) um desvio "eugenista" da sociedade. "Não se suporta nem mesmo a ideia de anomalia", deplora Dom d'Ornellas, que deseja que a voz dos familiares das crianças com necessidades especiais seja ouvida.

Do mesmo modo, a Igreja reafirma a sua oposição à pesquisa com células-tronco embrionárias, preferindo a pesquisa com células-tronco adultas ou umbilicais. "O desenvolvimento de tratamentos a curto prazo a partir de células-tronco embrionárias não é medicamente pensável no estado atual do conhecimento. Coloca graves problemas éticos, já que a sua utilização supõe a destruição de embriões".

De sua parte, os responsáveis judeus organizaram conferências sobre temas discutidos durante os Estados Gerais. Mas se a lei judaica coloca princípios, a prática rabínica prevê uma grande adaptação das respostas caso por caso. Na França, os responsáveis muçulmanos, ainda pouco formados sobre esses problemas, fazem referência a regras gerais, que adaptam também elas aos casos particulares.

Nem o protestantismo, atravessado por correntes muito diversas, propõe uma doutrina única. A Federação Protestante Francesa (FPF) a recém publicou algns "elementos de reflexão". Por exemplo sobre o embrião, alguns protestantes consideram que, "sem um projeto parental, ele não poderá se tornar um ser humano sob todos os efeitos" e justificam, assim, a sua utilização para "fins de pesquisa". Outros, para os quais "o embrião nunca existe sem relação humana ou divina", veem nessa utilização "uma reificação inadmissível". Com a Igreja católica, a FPF deseja que se dê privilégio à pesquisa com células-tronco umbilicais e adultas.

No judaísmo, o embrião é só um "projeto de vida, uma vida em potencial", e admitem-se pesquisas regulamentadas. No islã, não há consenso com relação ao momento em que a vida inicia – desde a concepção, no 40º dia ou no 120º dia –, e uma interrupção de gravidez pode ser admitida antes do quarto mês em caso de diagnose de uma deficiência.

Com relação à reprodução medicamente assistida, o protestantismo, o islã e o judaísmo são mais flexíveis do que a Igreja católica e autorizam a fecundação in vitro com os gametas dos dois genitores. A mesma divisão aparece com relação à DPN e à DPI, que são aceitas para fins terapêuticos, caso não levem a um desvio eugenista. Pelo contrário, todos estão de acordo ao recusar a gestação de aluguel.

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12/06/2009

Dom Dominique You

‘Na Amazônia, denunciar a exploração sexual representa um perigo de vida'

Dominique You, bispo da diocese de Conceição do Araguaia, no Pará, que está na região amazônica desde 2002, deplora os numerosos abusos sexuais de que são vítimas os jovens desta região de migrações. A entrevista foi concedida a Claire Lesegretain e está publicada no jornal francês La Croix, 08-06-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS


Qual é a situação de sua diocese?


A diocese abrange uma área de 52.000 km2, ao sul do Estado do Pará, em uma região completamente desmatada. Para atender as nossas 10 paróquias, nós dispomos apenas de cinco padres diocesanos e 15 religiosos; destes 20 padres, 10 são estrangeiros. Até o momento, as terras eram destinadas sobretudo à pecuária, mas as companhias de minério (norte-americanas, australianas, mas também japonesas e chinesas) começam a se instalar para a extração de ferro, níquel, manganês e ouro.

Por causa da crise, esta atividade mineradora parou, mas logo ela será retomada. Eu procuro ajudar os jovens da região a se formar para conseguirem empregos nessas companhias estrangeiras. Porque as condições de vida aqui são muito duras. Eu propus a duas Congregações de ensino italianas para virem a Conceição e abrir um centro de aprendizagem profissional para rapazes.

Como você pretende financiar esse centro?

Nós não temos dinheiro. Com 10 paróquias pobres, a diocese é incapaz de se financiar... Eu não consigo nem pagar a formação dos meus 10 seminaristas em Belém (a 1.500 km de Conceição)! Eu solicitei às dioceses ricas do sul do país a possibilidade de financiarem três deles. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ajuda as 12 dioceses da Amazônia. Eu também gostaria de criar um centro para as equipes do movimento “Evangelização da Vida e do Amor” (Eva).

Assim como fiz na Bahia como padre de uma paróquia popular (1994-2002), depois como bispo auxiliar (2002-2006), eu criei equipes Eva semelhantes em Conceição. Dez jovens casais voluntários são formados pela diocese durante três meses, depois visitam toda a diocese durante cinco meses; em seguida, durante cinco meses, eles vão às escolas públicas e ao encontro dos jovens dos bairros pobres. Em 2008, essas equipes se reuniram com 30.000 jovens; em 2009, deverão chegar a 50.000.

O objetivo dessas equipes de evangelização é ajudar os adolescentes a descobrir a beleza e a dignidade da sexualidade e a se defender melhor contra aqueles que tentam abusar deles. Porque, além do problema dos sem terra, uma das “feridas” mais graves na Amazônia é a exploração sexual, especialmente dos adolescentes, moças e rapazes, que sofrem de abusos em sua família, mas também por professores, vereadores ou policiais.

Como explicar isso?

Desde a reforma agrária de 1970 – quando a Amazônia foi declarada “terra sem homens e homens sem terra” –, centenas de milhares de colonos desenraizados vieram para cá. Como frequentemente acontece em regiões de migração, a fragilidade das estruturas familiares e sociais deixa os mais jovens desprotegidos. No Brasil, há uma carência na transmissão dos valores humanos aos jovens.

Nós fizemos 10 audiovisuais. O primeiro é mostrado nas primeiras visitas das equipes Eva e fala da beleza da vida antes do nascimento. O segundo, que evoca explicitamente uma situação de exploração sexual, é utilizado como provocação para os adolescentes: um de cada três jovens foi ou se encontra nessa situação. Em seguida, propomos aos jovens conversas individuais, realizadas por seminaristas ou leigos formados para a escuta.

Ainda não podemos avaliar o resultado dessas missões escolares, mas elas são muito solicitadas pelas escolas públicas. Mais que a questão da terra, esta questão da exploração sexual provoca hoje as maiores tensões na Amazônia. Denunciar a exploração representa um perigo de vida.

É o seu caso?

Não, porque a minha ação ainda não é conhecida... Mas três dos doze bispos do Pará estão ameaçados de morte por esta razão. São eles: dom Erwin Krautler (Xingu), ameaçado também por sua luta pelos direitos das minorias indígenas, dom Flavio Giovenale (Abaetetuba), que sabe que sua vida corre perigo desde que denunciou o caso de uma menor de 15 anos que estava presa com homens adultos e odiosamente abusada por eles. Quanto a dom José Luis Azcona (Prelazia do Marajó), ele está sendo ameaçado desde que denunciou a exploração sexual pelas autoridades locais.

10/06/2009

Às vésperas da nova encíclica, Marx retorna da Alemanha

Faltando poucas semanas para a publicação da “Caritas in veritate”, o jurista católico alemão Ernst Wolfgang Böckenförde, muito estimado pelo papa, quer que seja a Igreja quem escreva o definitivo “manifesto” contra o capitalismo, que deve ser desarticulado a partir de seus fundamentos, enquanto desumano. A análise é de Sandro Magister, publicada em seu sítio Chiesa, 05-06-2009. A tradução é de Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS


Da encíclica econômico-social, que há tempo está em gestação, se conhecem as primeiras palavras latinas: “Caritas in veritate”. Prognostica-se que será subscrita pelo papa aos dois de junho e difundida no início do verão europeu. Sabe-se que ela passou por várias reelaborações, que até a última deixaram Bento XVI insatisfeito.

Diversamente da encíclica sobre a esperança, escrita pessoalmente pelo papa da primeira linha até a última, e diversamente da encíclica sobre a caridade, cuja primeira metade também foi toda de escrita papal, na “Caritas in veritate” trabalharam muitas mentes e muitas mãos. Mas, Bento XVI lhe deixará, em todo o caso, sua própria marca, já visível nas palavras do título que conjugam indissoluvelmente caridade e verdade.

Sobre qual será esta marca papal, a curiosidade é forte. Porque pouco se conhece do pensamento de Joseph Ratzinger em matéria de economia. Em toda sua interminável produção de ensaios, somente um resulta ser dedicado expressamente a este tema. É uma conferência em língua inglesa, de 1985, intitulada: “Market economy and ethics”.

Naquela conferência, Ratzinger sustentava que uma economia que se priva de qualquer fundamento ético e religioso é destinada ao colapso. Hoje que um colapso efetivamente existiu, esperam- se, portanto, de Bento XVI análises e propostas mais circunstanciadas.

Há poucos meses, respondendo à pergunta de um sacerdote de Roma, o papa se expressou assim:

É dever da Igreja denunciar os erros fundamentais que se mostraram hoje no desmoronamento dos grandes bancos americanos. A avareza humana é uma idolatria que vai contra o verdadeiro Deus e é uma falsificação da imagem de Deus com um outro deus, Mamona. Devemos denunciar isso com coragem, mas também concretamente, porque os grandes moralismos não ajudam se não são sustentadas pelo conhecimento da realidade, que ajuda a entender o que de concreto se pode fazer. A Igreja desde sempre não só denuncia os males, mas mostra os caminhos que conduzem à justiça, à caridade, à conversão dos corações. Também na economia a justiça só se constrói se houver os justos. E estes se formam com a conversão dos corações”.

Era o dia 26 de fevereiro de 2009 e a encíclica estava em fase de redação. Estas palavras do papa tiveram o efeito de aumentar a curiosidade.

* * *

Mas, a curiosidade se tornou ainda mais intensa desde que saiu, em maio, o artigo bomba de um estudioso alemão que Ratzinger sempre leu com interesse e com estima.

O estudioso é Ernst-Wolfgang Böckenförde, coetâneo do papa, católico, filósofo, insigne cientista político. Marcou época um ensaio seu no qual sustentava o que foi depois definido como “o paradoxo de Böckenförde: a tese segundo a qual “o Estado liberal secularizado vive de pressupostos que não pode garantir”.

Nessa tese se basearam, aos 19 de janeiro de 2004, o então cardeal Ratzinger e o filósofo francofortense Jürgen Habermas para um debate em Munique, na Baviera, sobre o tema: “Ética, religião e Estado liberal”.

Pois bem, num artigo para a Süddeutsche Zeitung, publicado em maio também na Itália pela revista dos religiosos devonianos de Bolonha Il Regno – e reproduzido integralmente mais abaixo – Böckenförde aplicou seu “paradoxo” também ao capitalismo, mas em termos muito mais devastadores.

A seu juízo, os princípios sobre os quais se fundamenta o sistema econômico capitalista não se sustentam mais. Seu desmoronamento atual é definitivo e pôs a descoberto as bases desumanas de tal sistema. A economia exige, por conseguinte, ser reconstruída a partir da base, sobre princípios não mais de egoísmo, mas de solidariedade. Toca aos Estados, in primis na Europa, assumir o controle da economia. E toca à Igreja, com sua doutrina social, recolher o testemunho de Marx, que havia enxergado corretamente.

Contra o “manifesto” anticapitalista de Böckenförde reagiram, na Itália, os economistas católicos mais acreditados junto à Igreja, entrevistados por Il Foglio: Luigi Campiglio, pro-reitor da Universidade Católica de Milão; Dario Antiseri, filósofo e cultor da escola econômica liberal de Viena; Flavio Felice, docente na Pontifícia Universidade Lateranense e presidente do Centro de Estudos Tocqueville-Acton; Ettore Gotti Tedeschi, banqueiro e comentador econômico para L’Osservatore Romano.

Em particular, Antiseri objeta que “revalidar hoje Marx é como continuar sendo ptolemaicos após Copérnico e Newton”; que “o individualismo é o oposto do coletivismo, não do solidarismo, e isto é possível somente quando se criam riquezas a compartilhar, como ocorre nas sociedades capitalistas”; e enfim, que de Bento XVI não se pode esperar que se afaste da “Centesimus annus” de João Paulo II e da “Rerum novarum” de Leão XIII com sua “defesa lúcida e apaixonada da propriedade privada”.

Flavio Felice contesta, em Böckenförde, a visão irreal de uma “economia angélica” alternativa a um capitalismo identificado com a pura cobiça do ganho. E, a propósito do controle salvífico do Estado sobre a economia faz notar que a encíclica de João Paulo II “Centesimus annus”, no parágrafo 25, põe em guarda precisamente em relação a esta utopia: “Quando os homens consideram possuir o segredo de uma organização social perfeita que torne impossível o mal, pensam também poder usar todos os meios, mesmo a violência ou a mentira, para realizá-la. A política torna-se, então, uma ‘religião secular’, que se ilude pensando poder construir o paraíso neste mundo”.

Ettore Gotti Tedeschi observa que Böckenförde se lança contra um capitalismo de matriz protestante, no qual dominam o egoísmo e a incapacidade humana de fazer o bem. Mas, não se dá conta que existe um capitalismo que concorda com a doutrina católica, do qual os papas, de Leão XIII a João Paulo II, denunciaram os erros, mas aceitaram a validez de fundo, ligada à propriedade privada e à liberdade de investir e de comercializar.

Num artigo em Il Sole 24 Ore – o cotidiano econômico mais difundido da Europa – Gotti Tedeschi sustentou que o atual desequilíbrio mundial não nasce dos excessos de avidez ou da falta de regras. Estes agravaram a crise, mas não a causaram. A verdadeira causa tem sido a redução dos nascimentos (?) e, portanto, daquele capital humano que é o único que podia assegurar o necessário crescimento de produção da riqueza.

O ataque frontal conduzido por Böckenförde ao capitalismo deverá, no entanto, ser mensurado com a resposta que a “Centesimus annus”, no parágrafo 42, dá à pergunta se o capitalismo seria um sistema que corresponde ao “verdadeiro progresso econômico e civil”.

A resposta da encíclica é a seguinte:
“Se com ‘capitalismo’ se indica um sistema econômico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da conseqüente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no setor da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de economia de empresa, ou de economia de mercado, ou simplesmente de economia livre”.

Em seu artigo, o estudioso alemão solicita, ao invés, à doutrina social da Igreja que se acorde de seu “sono de bela adormecida” e se aplique a uma “radical contestação” do capitalismo, tornada obrigatória por seu atual “evidente desmoronamento”.

Será, pois, interessante saber também como Böckenförde comentará a “Caritas in veritate”, quando for publicada.

Mas eis, entrementes, a seguir, seu artigo bomba, publicado na Itália em Il Regno n. 10 de 2009.

Para ler mais:


O HOMEM FUNCIONAL. CAPITALISMO, PROPRIEDADE, PAPEL DOS ESTADOS

Artigo "O homem funcional. Capitalismo, propriedade, papel dos Estados", de Ernst-Wolfgang Böckenförde, citado e comentado no "Às vésperas da nova encíclica, Marx retorna da Alemanha". A tradução é de Benno Dischinger. Fonte: UNISINOS

A crise bancária e consequentemente econômica que investiu contra nós e ainda está bem longe de terminar, levanta muitas questões. Foi ela causada pela irresponsabilidade e pela avidez de bancos desvairados, especialmente bancos de investimento? Ou então, pela falta de regras rígidas para os mercados financeiros internacionais, pelo não funcionamento do controle sobre bancos e finanças, pela separação e independência de uma economia financeira virtual (e acrobática), pela economia real da produção e dos bens? Provavelmente contribuíram para ela diversos fatores do gênero, ligados a uma ingênua confiança num mercado “livre” e sem regras.

Mas, a busca das causas unicamente nesta direção não nos leva longe. De fato, aquele sistema que se foi constituindo neste campo por décadas com sucesso e com amplos lucros materiais, mas também com uma crescente distância entre pobres e ricos, aquele “turbo-captialismo” (assim chamado por Helmut Schmidt) que, com a globalização mundial, atingiu uma nova qualidade, antes de provocar um desmoronamento, não pode ser definido e explicado fazendo referência somente a comportamentos errados de indivíduos isolados ou também de grupos.

Isso certamente pode ter contribuído, porém, mais globalmente se trata dos frutos de um sistema de interação consolidado e muito difundido, que segue uma lógica funcional própria, e a ela subordina todo o resto. Este sistema de interação se transformou num sistema de ação: o capitalismo moderno. Ele forja o comportamento econômico (e, em parte também não econômico) dos indivíduos e o integra no sistema. Estes são certamente os atores, mas, em seu comportamento não seguem tanto um impulso pessoal livre, senão antes os estímulos que derivam do sistema e de sua lógica funcional.

O caráter desumano do capitalismo

Mas, como se apresenta mais precisamente o capitalismo moderno enquanto sistema de ação? Nisso pode ajudar-nos um grande sociólogo humanista do século passado, Hans Freyer. Em seu livro “Theorie des gegenwärtigen Zeitalters [Teoria da época atual]” ele fala dos “sistemas secundários” como produtos específicos do mundo industrializado moderno e analisa com precisão sua estrutura [1].

Os sistemas secundários são caracterizados pelo fato de desenvolverem processos de ação que não se conectam a ordenamentos preexistentes, mas se baseiam em poucos princípios funcionais, a partir dos quais são construídos e extraem sua racionalidade. Estes processos de ação integram o homem não como pessoa em sua integralidade, mas somente com as forças motrizes e as funções que são requeridas pelos princípios e por sua atuação. O que as pessoas são ou devem ser fica de fora.

Os processos de ação deste tipo se desenvolvem e se consolidam num sistema difuso caracterizado por sua específica racionalidade funcional, que se sobrepõe – influenciando-a, modificando-a e modelando-a – à realidade social existente.

Eis a chave para a análise do capitalismo como sistema de ação. Ele se baseia em poucas premissas: liberdade geral do indivíduo e de associações de indivíduos em matéria de aquisições e contratos; plena liberdade em matéria de transferências de mercadorias, negócios e capitais fora dos limites nacionais; garantia e livre disposição da propriedade pessoal (incluindo o direito de sucessão), entendendo com propriedade a posse de bens e dinheiro, mas também de saber, tecnologia e capacidade.

O objetivo funcional é a liberação geral de um interesse lucrativo potencialmente ilimitado, bem como potencialidades de ganho e de produção, que atuam no livre mercado e entram em competição entre si. O impulso decisivo é dado por um individualismo egoísta que impele as pessoas envolvidas a adquirir, inovar e ganhar. Tal impulso constitui o motor, o princípio ativo; ele não persegue um objetivo conteudístico persistente, que fixe medida e limites, mas uma ilimitada dilatação de si, o crescimento e o enriquecimento. Por isso precisa eliminar ou acantonar todos os obstáculos e todos os regulamentos que não são requeridos pelas supracitadas premissas. O único princípio regulador deve ser o livre mercado.

O ponto de partida e a base da construção não são a satisfação das necessidades dos homens e seu crescente bem-estar; estes seguem o processo e seu progresso e são, por assim dizer, uma consequência do sistema em funcionamento. O direito e o Estado como seu tutor têm unicamente a tarefa de assegurar a possibilidade de desenvolvimento e o funcionamento deste sistema de ação; são uma variável funcional, não uma força pré-existente de ordenamento e limitação.

O dinamismo e a influência sobre os comportamentos de tal sistema são enormes. O próprio sistema se torna e é sujeito de comércio. Realização de lucros, crescimento de capital, aumento da produção e da produtividade, auto-afirmação e crescimento no mercado constituem o princípio motor e dominante, cuja racionalidade funcional integra e subordina todo o resto. Os trabalhadores só são tomados em consideração com base na função que desenvolvem e os custos que comportam, pelo que se reduzem ao menor número possível. Sua substituição, onde for possível, por máquinas ou tecnologias automatizadas para reduzir os custos parece não só racional, mas economicamente necessária.

A compensação para os problemas sociais e os licenciamentos que deles derivam não entram nesta lógica funcional, mas é exigida do Estado e de sua função de garantia, que precisamente por isso pode impor taxas e exigir tributos que, em todo o caso, ainda comportam custos para as empresas. O princípio estrutural não é a solidariedade com as pessoas e entre elas; ela só é tomada em consideração como reparação para bloquear e em parte compensar as conseqüências danosas e desumanas do sistema, que se desenvolve baseado em sua própria lógica interna.

Não podem ser postas em dúvida as extraordinárias realizações, em termos econômicos e de bem-estar, que o capitalismo assim estruturado produz não só em determinados países, mas hoje também em nível mundial, apesar de todas as suas falhas e deficiências. Nós próprios, habitantes do Ocidente, haurimos grandes lucros. Todavia, não se pode não ver que se trata de um processo em contínua progressão. Com base em sua própria dinâmica, ele procura continuamente estender-se e integrar em sua lógica funcional todos os âmbitos da vida, na medida em que os mesmos têm um lado econômico, com amplas repercussões também no campo da cultura e do estilo de vida pessoal. Resulta daqui a difusão do traço economicista em todos os aspectos da vida. Hoje nós o constatamos principalmente no sistema sanitário.

Marx tinha visto corretamente

Já há mais de 150 anos Karl Marx o havia claramente analisado e expresso e se fica impressionado pela atualidade de seu prognóstico: “Graças ao desfrutamento do mercado mundial, a burguesia tornou cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Privou a indústria de seu fundamento nacional. As antiqüíssimas indústrias nacionais foram e são diariamente aniquiladas. São substituídas por indústrias novas, cuja introdução se torna uma questão de vida ou de morte para todas as nações civis, indústrias que não trabalham mais matérias primas locais, e sim matérias primas importadas das zonas mais distantes e nas quais os produtos não são consumidos exclusivamente no país, mas por toda parte no mundo. [...] Em lugar da antiga auto-suficiência e do isolamento local e nacional entra um tráfico universal, uma dependência universal recíproca entre as nações. E, como na produção material, assim também na intelectual. Graças à célere melhoria de todos os instrumentos de produção, às comunicações tornadas extremamente mais ágeis, a burguesia leva a civilização a todas as nações. Os baixos preços de suas mercadorias são a artilharia pesada com que ela deita ao solo todas as muralhas chinesas, [...] constringe todas as nações a adotar, se não querem morrer, o modo de produção burguesa [2].

Para nossa época é preciso acrescentar que, graças a uma perfeita organização em nível mundial do transporte de containeres via marítima, os custos do transporte de mercadorias e produtos são mínimos, pelo que as grandes distâncias não desencorajam mais, mas antes estimulam o comércio em nível mundial.

E não se situa fora do desenvolvimento, mas corresponde antes à sua lógica, o fato de que, na busca de possibilidades sempre novas de ganho, se difundam sempre mais, no campo dos mercados financeiros, os negócios baseados unicamente em capital fictício e em sua multiplicação, com a tendência de não serem tomados em conta os dados da economia real e de prejudicá-los. Karl Marx já vira também isto [3].

O Estado e o direito podem certamente fixar, do exterior, limites ao sistema do capitalismo e impor-lhe regras, limitar os excessos e as conseqüências inaceitáveis, na medida em que o ordenamento estatal, que de sua parte se vincula à promoção de uma economia favorável ao crescimento, tem a força para fazê-lo. E, em certa medida também o faz. No entanto, mesmo em caso de êxito, ela continua sendo uma correção marginal que deve ser extraída da lógica funcional do sistema, enquanto esta última visa sempre a maior desregulamentação possível.

Desmontar o capitalismo até seus fundamentos

De que mal sofre, portanto, o capitalismo? Não sofre apenas por causa dos seus excessos e da avidez e do egoísmo dos homens que nele operam. Sofre por causa do seu ponto de partida, do seu princípio funcional e da força que cria o sistema. Por isso, é impossível curar esta doença com remédios marginais; ela só pode ser curada mudando o ponto de partida.

É necessário substituir o extenso individualismo em matéria de propriedade, que toma como ponto de partida e princípio estruturador o lucro dos indivíduos potencialmente ilimitado, considerando ser ele um direito natural e não sujeito a alguma orientação conteudística, por um ordenamento normativo e uma estratégia de ação baseados no princípio segundo o qual os bens da terra, ou seja, a natureza e o ambiente, os produtos do solo, a água e as matérias primas não pertençam àqueles que por primeiro deles se apossam e os desfrutam, mas são destinados a todos os homens, para a satisfação de suas necessidades vitais e para a obtenção do bem-estar.

Este é um princípio radicalmente diverso; seu ponto de partida e de referência é a solidariedade dos homens em sua vida em comum e em competição. É daqui que é preciso deduzir as normas fundamentais, com base nas quais informar os processos de ação, tanto econômicos como também não econômicos [4].

A escolha de tal ponto de partida não é de todo nova. Ele se vincula a uma antiga tradição que só se perdeu no momento da passagem ao individualismo da propriedade e ao capitalismo. Tomás de Aquino, o grande teólogo e filósofo da Idade Média, afirma explicitamente que com base no direito natural, ou seja, no ordenamento da natureza querido por Deus, os bens terrenos são ordenados à satisfação das necessidades de todos os homens. A propriedade privada de cada um só existe no quadro desta destinação universal e a ele subordinada. Ela não pertence ao direito natural em si, mas é um acréscimo legislativo que se justifica por motivos práticos, porque cada um cuida acima de tudo daquilo que pertence a ele mesmo, antes do que a todos conjuntamente, por ser mais conforme ao objetivo que cada um possua e administre as coisas por si mesmo e, enfim, porque a propriedade privada favorece a paz entre os homens [5]. Depois, Tomás também distingue entre posse, administração e uso daquilo que se possui. Enquanto o primeiro diz respeito somente a cada indivíduo, o uso deve tomar em conta o fato de que os bens exteriores, com base em sua destinação originária, são comuns, pelo que, quem os possui deve compartilhá-los voluntariamente com os pobres [6]. Por isso, para Tomás, em caso de extrema necessidade, o furto não é pecado [7].

Aparece aqui um modelo que é contrário ao capitalismo. Um modelo que parte de outros princípios fundamentais e assim desmascara também o caráter desumano do capitalismo. A solidariedade não aparece mais como reparação para bloquear e compensar as conseqüências danosas de um individualismo desenfreado em matéria de propriedade, mas como princípio estruturante da convivência humana também em âmbito econômico.

Este ponto de partida opera de muitos modos: atribuição dos produtos do solo e das matérias primas naturais, relação com os bens de consumo e o ambiente, natureza, água e ar; papel diretivo daquilo que é trabalho em referência ao capital; limites à acumulação de propriedades e de capitais; reconhecimento dos outros seres humanos – também das futuras gerações – como sujeitos e parceiros no campo do uso, do comércio e da posse, ao invés de serem objetos de um possível desfrutamento.

Deste modo tem-se um quadro normativo, no interior do qual o sentido da posse e do uso pessoal e a garantia da propriedade podem e devem ter seu significado pragmático e sua função como forças motrizes do processo econômico e de seu progresso. Mas, permanecem ligados ao conceito prioritário da solidariedade, que oferece orientação conteudística e estabelece limites a uma expansão ilimitada.

Depois de Marx é a hora da igreja

Não é esta a sede para elaborar em detalhes tal modelo teórico e prático, inspirado pelo princípio de solidariedade. Os fundamentos para fazê-lo encontram-se na tradição da doutrina social cristã. Basta despertá-los de seu sono de bela adormecida no bosque e aplicar-se com decisão a traduzi-los em prática.

Esta doutrina social da Igreja assumiu amplamente, no que se refere ao capitalismo, impressionada por seus indiscutíveis êxitos, um comportamento antes defensivo. Ela o criticou sobre pontos específicos, em vez de po-lo em discussão enquanto tal. O evidente desmoronamento atual do capitalismo por causa de sua expansão ilimitada e quase desregulada pode e deveria permitir à doutrina social da Igreja uma contestação radical.

Para isso o magistério social pode referir-se simplesmente ao papa João Paulo II, o crítico mais lúcido e enérgico do capitalismo depois de Karl Marx. Já em sua primeira encíclica ele empreendeu uma avaliação do sistema enquanto tal, das estruturas e dos mecanismos que dominam a economia mundial no campo das finanças e do valor do dinheiro, da produção e do comércio. Em seu ponto de vista, eles se demonstraram incapazes de responder aos desafios e às exigências éticas do nosso tempo [8]. O homem “não pode tornar-se escravo das coisas, escravo dos sistemas econômicos, escravo da produção, escravo dos seus próprios produtos [9].

Mas, a nova orientação solidarista e a transformação de um extenso sistema econômico de ação que, como mostramos, não considera a natureza e a vocação do homem, e até as contradiz, não ocorre por si. Requer um poder estatal em condições de agir e decidir que ultrapasse a mera função de garantia do desenvolvimento do sistema econômico e de averiguação do paralelogramo das forças, mas assuma eficazmente a responsabilidade do bem comum mediante a limitação, a orientação e também a recusa da persecução do poder econômico, procurando continuamente reduzir ao mesmo tempo as desigualdades sociais.

É impossível realizar tal transformação com simples intervenções de coordenação. Mas, onde se encontra hoje tal estrutura social? Ante o tecido econômico mundial a força do Estado nacional não é mais suficiente, mas será sempre vencida pelas forças econômicas que operam em nível mundial. De outra parte, é impossível organizar uma estrutura estatal em nível mundial, sob a forma de Estado planetário. Isso se pode fazer somente para e em áreas limitadas, que estão relacionadas entre si e colaboram. O apelo é, pois, dirigido antes de tudo à Europa. Mas, terá ela a vontade e a força para fazê-lo?

Notas:

1. H. Freyer, “Theorie des gegenwârtigen Zeitalters“ [Teoria da época contemporânea], Deutsche Verlag-Anstalt, Stuttugart, 1956, p. 79 ss.
2. K. Marx, F. Engels, „Manifesto del partito comunista“, Marietti, Gênova, 1973, p. 60.
3. K. Marx, “Das Kapital”, vol. III, c. 25, Dietz-Verlag, Berlin, 1956, pp. 436-452.
4. Cf. E.-W. Böckenförde, „Ethische und politische Grundsatsfragen zur Zeit“ [Questões éticas e políticas fundamentais para a época], in Id., „Kirche und christlicher Gaube in den Herausforderungen der Zeit“ [Igreja e fé cristã nos desafios da época], Münster, 2007, pp. 362-366.
5. Tomás de Aquino, „Summa Theologiae“, IIa-IIae, q. 66, art. 2 e art. 7.
6. Ibidem, q. 66, art. 2, resp.
7. Ibidem, art. 7, resp.
8. Cf. João Paulo II, “Redemptor hominis”, 1979, n. 16. Cf. Tb.: Idem, “Laborem exercens”, 1981; Centesimus annus”, 1991.
9. João Paulo II, “Redemptor hominis”, 1979, n. 16.

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