30/05/2009

Monge Enzo Bianchi

Assim o Deus do dinheiro engana os homens


O jornal La Repubblica, 28-05-2009, publicou o texto da palestra que Enzo Bianchi, prior do Mosteiro de Bose, na Itália, apresentou em Bolonha para o ciclo "Regina Pecunia". A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



Pecúnia, a prata, o dinheiro: o motor da economia? O meio de troca por excelência que se impôs como padrão universal? Medida não só para o mercado dos bens e dos serviços, mas também medida do mercado do trabalho? O dinheiro me leva a expressar o valor econômico mediante o adjetivo "caro" ("Este produto é mais ou menos caro..."), paralelamente ao efeito que induz a dizer a um outro "caro" ("Meu caro..."). Caro, cher, dear: uma mesma palavra para medir o dinheiro e para medir o afeto...

Mas o dinheiro é um meio ou um fim? Depende para quem. Certamente não é um fim para a economia, que busca a produção e a distribuição dos bens e dos serviços. Não é um fim nem para a empresa, que quer criar uma riqueza, algo útil. E para o indivíduo? O fim é a felicidade que depende do amar e do ser amado, do sentido encontrado no viver, de um certo bem-estar material, portanto também do dinheiro. Sim, para alguns o dinheiro é percebido como a chave para alcançar a felicidade.

Platão, nos Nomoi, e Aristóteles, na Politeia, pensam que é natural tirar vantagem da terra e dos animais, mas não enriquecer com o dinheiro. Do mesmo modo, os profetas de Israel, seguidos pelos Padres da Igreja, condenam os que emprestam dinheiro por interesse, criando dinheiro com o dinheiro.

Utilizamos a palavra "caro" para expressar o valor econômico e o valor afetivo: mas a única salvação está no amor pelo próximo.

Essa patologia da ligação com o dinheiro foi definida como "cobiça" e lida como a fonte de muitos males, de enormes desastres, econômicos, políticos e hoje também ecológicos.

Portanto, o dinheiro é um meio necessário; em si mesmo não é nem um bem nem um mal: é um instrumento que existe desde o século VI a.C. sob a forma de moeda, que está na ordem das mediações e, como tal, permite a troca (do mesmo modo que a linguagem, por exemplo), é "uma vitória sobre a distância" – afirma Georg Simmel na sua Filosofia do Dinheiro –, é um meio que permite abater as fronteiras sociais e geográficas. Por outro lado, o dinheiro, justamente pela sua qualidade representativa, pode ser um fim em si mesmo, um agente de acumulação das riquezas, capaz de possuir uma grandeza autônoma e uma força sedutora.

Lao Tze, o sábio chinês fundador do taoísmo (século VI a.C.), relata uma história paradigmática, a história de Tsi. Este era um homem seduzido pelo dinheiro, ávido por riqueza. Uma manhã, tendo ido ao mercado, viu um banco de câmbio, roubou o dinheiro e fugiu, mas foi logo preso por um guarda que lhe perguntou: "Como você pôde pensar em roubar esse dinheiro e fugir inobservado?". Tsi respondeu: "Enquanto eu roubava o dinheiro, eu não via as pessoas, via só o dinheiro!". Eis, portanto, o dinheiro exerce um tal fascínio que oculta a presença de outras pessoas e de outras coisas, um fascínio que concede até a força de roubar...

Sim, o dinheiro nos seduz, entra em nós como uma presença eficaz e contribui de modo surdo, mas real, na tessitura de nossas relações, das nossas relações com as coisas e com os homens. Eu possuo o dinheiro, mas o dinheiro também me possui. O dinheiro tem um lugar invasivo nos meus desejos, decide muitos dos meus desejos.

Por isso, no Antigo Testamento, o dinheiro é definido pela palavra "keseph", cuja raiz verbal (kasaph) indica o "desejar ardentemente", o verdadeiro "derreter-se" por alguma coisa. Torna-se então relativa a leitura do Evangelho, onde o dinheiro é personificado. Jesus declara que o dinheiro é uma potência, ou melhor, um deus: "Ninguém pode servir a dois senhores: ou odiará um e amará o outro, ou aderirá a um e desprezará o outro: não podeis servir a Deus e ao dinheiro". O termo "dinheiro" está em oposição a Deus, o amor pelo dinheiro exclui o amor por Deus. Esse é o radicalismo evangélico de Jesus. O dinheiro para ele não é simplesmente uma coisa que o homem pode possuir ou não: pode se tornar facilmente um deus, um ídolo ao qual sacrificamos facilmente a vida dos outros e alienamos a nós mesmos. O autor da Carta de São Tiago descreve o dinheiro como um verme que devora aqueles que o possuem, enganando-os e levando-os à destruição e, ao mesmo tempo, é fonte de injustiça: "Vós, ricos, chorai e gemei por causa das desgraças que sobre vós virão. Vossas riquezas apodreceram e vossas roupas foram comidas pela traça. Vosso ouro e vossa prata enferrujaram-se e a sua ferrugem dará testemunho contra vós e devorará vossas carnes como fogo. Entesourastes nos últimos dias! Eis que o salário, que defraudastes aos trabalhadores que ceifavam os vossos campos, clama, e seus gritos de ceifadores chegaram aos ouvidos do Senhor dos exércitos".

No cristianismo, além disso, a relação com o dinheiro deve ser lido no espaço da possível idolatria ("A cobiça é idolatria"), e "o ídolo, antes de ser um falso teológico, é um falso antropológico" (Adolphe Gesché), uma alienação do homem. Não nos esqueçamos, a propósito, que o termo "mammona" [dinheiro, em italiano] deriva da raiz hebraica "aman" (da qual vem "amém"), que contém a ideia da adesão com confiança, portanto da fé. O dinheiro, de fato, pede fé-confiança em si mesmo e se torna segurança, falsa segurança contra a morte, saturação das necessidades mais verdadeiras que habitam o coração do homem, presença poderosa que induz a ver só ele, o dinheiro, e a não ver os outros, a agir sem os outros e, se necessário, também contra os outros. Por isso, as palavras de Jesus são duras: "Não acumuleis para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e as traças corroem, onde os ladrões furtam e roubam [...] Porque onde está o teu tesouro, lá também está teu coração".

Eis a pergunta essencial: onde está o meu coração? Qual é a verdadeira riqueza para mim? O dinheiro, para mim, é instrumento de relação e de partilha, e portanto de comunhão com os outros, ou instrumento de egolatria? E atenção: Jesus não era um profeta pauperista que não tocava o dinheiro. Na sua comunidade havia uma "caixa comum", justamente do dinheiro colocado em comum, não submetido ao regime do "meu" e do "teu", mas destinado à "communitas", destinado também a quem tinha necessidades, de modo que a koinonia [comunhão eclesial] foi a norma do viver juntos. Compreendemos então como normativo para a comunidade cristã a descrição de Lucas da Igreja primitiva de Jerusalém, nascida do Pentecostes: "Todos aqueles que se tornavam fiéis [...] tinham todas as coisas em comum". "Tudo entre eles era comum [...] nem havia entre eles nenhum necessitado".

Na história do cristianismo, essa "utopia" foi ininterruptamente meditada e interpretada, e ainda hoje as exigências colocadas pelo Evangelho não perderam nada da sua atualidade e do seu valor inspirador e normativo para a práxis cristã. Seria preciso a honestidade de nos perguntarmos qual o motivo de termos nos tornado tão relutantes em escutar essas palavras, que soam incomuns aos ouvidos da maior parte dos cristãos: por que insistimos tanto em outros aspectos do agir moral, enquanto preferimos ser tépidos ou até calar sobre a necessidade da partilha material dos bens, via mestra para eliminar, ou pelo menos atenuar, a necessidade e a pobreza?

A "regina pecunia" [rainha pecúnia], o deus dinheiro, exige confiança, fidúcia, subtraindo-as de tal modo da relação com os outros. E neste tempo em que – como Luigi Zoja escreveu recentemente – não só Deus morreu, como o próximo também morreu, o dinheiro domina e seduz mais do que nunca. Na realidade, o único inimigo capaz de duelar contra a morte, o único capaz de vencê-la não é o dinheiro, mas o amor, o amor do outro e dos outros, é a comunicação, a partilha, a comunhão naquilo que for possível.

28/05/2009

Religiosos pedem perdão por abuso sexual


Os Irmãos Cristãos, a ordem católica mais denunciada no informe sobre abusos a menores na Irlanda, afirmou que reconhece com “vergonha” a dor causada às vítimas e lamentou a “inadequada resposta” oferecida pela congregação “nos últimos anos”. Em um comunicado, os religiosos reconhecem que tem a “obrigação moral” de reparar o dano infligido aos menores que estiveram sob sua responsabilidade em instituições estatais e prometeram “revisar” os recursos disponíveis para ajudar os afetados. A reportagem é da Agência Efe, 26-05-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS


Não obstante, mencionaram na nota que afastam a possibilidade de voltar a negociar com o governo irlandês, os termos de um vantajoso acordo assinado em 2002, e que lhes outorgou imunidade em troca de uma quantia de dinheiro que agora se sabe que é insuficiente.

Como congregação, reconhecemos e aceitamos nossa culpabilidade e nossa obrigação moral com os antigos residentes, com as presentes e futuras gerações de crianças e com a sociedade em geral”, diz a carta.

Descartado, um aumento de aporte econômico acordada com o governo, os Irmãos Cristãos propõem estudar, através de “consultas com ex-residentes e o governo”, como podem utilizar os seus recursos “para compensar pelos abusos do passado e investir em educação”.

Como congregação – insiste a nota – queremos acertar as coisas e suplicar que nos perdoem. Nosso primeiro passo para isso será escutar com uma nova perspectiva aos antigos residentes, a seus familiares e aos grupos que os representam, um processo que começará imediatamente”.

As 18 ordens católicas responsáveis do abuso de milhares de menores na Irlanda já anunciaram que aumentarão os seus recursos, econômicos incluídos, para assistir as vítimas, mas reafirmam que não renegociarão o acordo de 2002, que fixa o máximo das indenizações em 127 milhões de euros.

Segundo a Conferencia de Religiosos da Irlanda (CORI), as congregações preferem “tratar diretamente” com os afetados e “usar todos os seus poderes para canalizar qualquer ajuda diretamente” às vítimas.

O governo irlandês já admitiu que carece de instrumentos legais para obrigar a Igreja Católica a pagar mais compensações às vítimas e que o restante do dinheiro destinado as indenizações será custeado pelo Estado que até o momento há contribuiu com quase 800 milhões de euros.

O acordo de 2002 oferecia imunidade a todos os membros de ordens religiosas denunciadas por abusos em troca de que as autoridades eclesiásticas transferissem ao Estado, em dinheiro, uma quantidade avaliada em 127 milhões de euros.

O acordo foi assinado pelo ministro da Educação, Michael Woods, no dia anterior à saída do cargo, convencido de que o total das indenizações não superariam 300 milhões de euros. Depois da publicação do informe sobre abusos a menores cometidos durante quase 70 anos em instituições estatais, administradas em sua maioria pela Igreja, se sabe agora que não apenas houve milhares de vítimas, mas sim que a fatura final poderá alcançar 1,3 bilhão de euros.

A posição das congregações contrasta com as do primado da Igreja irlandesa, o cardeal Seán Brady; do arcebipo de Dublín, Diarmuid Martin, e do bispo de Killaloe, Wilie Walsh, três das vozes mais críticas com os desmandos dos religiosos. Os três tem defendido a necessidade de revisão do citado acordo e tem pedido para as 18 congregações contribuam com mais dinheiro.

24/05/2009

Frei Thomas Doyle

Abusos na Irlanda exigem uma ação decisiva,afirma frei dominicano



Na quarta-feira, 20, o governo da Irlanda publicou um relatório de 2.600 páginas sobre uma investigação de nove anos das escolas e reformatórios administrados pela Igreja. O relatório foi publicado pela Comissão de Inquérito sobre Abuso Infantil e cobriu um período de 60 anos, de 1936 até o presente. O documento levantou sérias questões sobre as instituições católicas que permitiram e fomentaram ambientes de abusos contínuos realizados por padres e irmãs.

O frei dominicano norte-americano Thomas Doyle, advogado especializado em Direito Canônico que também defende os abusados por padres, oferece uma reflexão sobre o relatório. Ele atuou como consultor da comissão da arquidiocese de Dublin que tratou dos abusos sexuais cometidos por padres. O texto foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 22-05-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Até agora, a reação à publicação do Relatório da Comissão de Inquérito sobre Abuso Infantil foi muito consistente. Muitos dos que leram as notícias sobre o resumo executivo de 30 páginas expressaram choque, horror, nojo, raiva e outros sentimentos semelhantes. Presumindo-se que o resumo executivo é exatamente isso, um resumo a partir do qual é possível presumir que o relatório completo é mais do mesmo horror, exceto com mais detalhes.

Esse relatório foi o resultado final de uma longa investigação realizada por uma agência governamental e chefiada pela juíza Sean Ryan. A credibilidade do relatório, com efeito, o seu verdadeiro poder, jaz sobre essa fonte. A extensa investigação não foi um esforço privado e certamente não foi promovida pela Igreja Católica Romana. Se esse relatório não for suficientemente explosivo para as mentes e as almas, ele será seguido por um relatório, dentro de alguns meses, sobre o inquérito de abusos sexuais por padres da arquidiocese de Dublin.

A Igreja Católica Romana tem se enredado em cada faceta da vida da república da Irlanda. A Igreja controla a educação, o sistema de saúde e os sistemas de bem-estar social. Cada uma das instituições examinadas pela Comissão era dirigida por uma ordem religiosa católica, sendo as duas predominantes os Christian Brothers e as Irmãs da Misericórdia. Ambas as ordens tem sede em Roma e na Irlanda, e as atividades de cada uma estão sujeitas à supervisão e à autoridade dos bispos irlandeses. As jovens crianças que foram descritas no relatório como vítimas de todos os tipos de abusos espantosos são membros do que o Concílio Vaticano II se refere como "Povo de Deus".

A viciosa devastação sexual, física, emocional e espiritual infligida sobre essas crianças não foi acidental. Foi sistêmica. Fazia parte da vida cotidiana e era, de fato, profundamente arraigada na própria cultura do sistema de cuidado das crianças na Irlanda católica.

Os intelectos e as emoções das pessoas decentes, dos cristãos comprometidos e especialmente dos católicos devotos não podem processar verdadeiramente a inacreditável realidade apresentada nesse relatório. O mundo sádico dessas instituições não é o de uma ditadura secular insana. Não é o mundo de uma cultura tribal incivilizada que assolava os mais fracos em eras muito antigas. Esse relatório descreve um mundo criado e sustentado pela Igreja Católica Romana. Os horrores infligidos sobre essas crianças indefesas e encurraladas – estupros, espancamentos, moléstias sexuais, fome, isolamento – foram impostas por homens e mulheres que fizeram votos ao serviço das pessoas em nome do amor de Cristo.

O relatório da Comissão de Inquérito sobre Abuso Infantil não é único, mesmo que seja o exemplo mais chocante da realidade de uma cultura do mal. Nas últimas duas décadas, mais de duas dezenas de relatórios descreveram abusos físicos e sexuais de crianças e de adultos vulneráveis por padres e religiosas católicos. Entre os mais chocantes está uma série de relatórios submetidos ao Vaticano entre 1994 e 1998, que revela a exploração sexual de religiosas na África por padres africanos. Esses relatórios permaneceram amplamente desconhecidos até que foram trazidos à luz pelo National Catholic Reporter em 2001. Outros relatórios abriram as portas do mundo secreto do abuso sexual por padres nos EUA e em outros lugares. O relatório da Comissão Winter sobre o abuso sexual desenfreado em Mount Cashel, o orfanato dos Christian Brothers em Newfoundland, e o relatório da investigação do Grande Júri da Philadelphia são exemplos não apenas da depravação, mas também do acobertamento institucionalizado.

Todas as revelações das várias formas de abuso por religiosos e padres católicos têm elementos comuns. Da mesma forma, evocam respostas da liderança institucional que são comuns a todos os exemplos de abusos e consistentes em sua natureza. Mais perturbador é saber que os abusos, na Irlanda e em outros lugares, não são acidentais nem isolados e que nunca são desconhecidos pelas autoridades da Igreja. As autoridades da Igreja, desde o próprio Papa até os bispos locais e superiores religiosos, sabiam dessa cultura inacreditável de abusos e não fizeram nada.

O arcebispo Timothy Dolan se referiu à Igreja como uma "mãe amorosa", quando se pronunciou na sua missa de posse em Nova Iorque. À luz desses fatos revelados pelo relatório irlandês, assim como das informações reveladas sobre numerosos outros casos de abusos, uma descrição da Igreja como essa não é apenas absurda, mas também insulta as incontáveis pessoas cuja fé e confiança na hierarquia e no clero foram traídas.

A reação oficial é previsível. Negação, minimização, redirecionamento da culpa e finalmente o conhecimento limitado seguidos pelas "desculpas" cuidadosamente sutilizadas têm sido o padrão. Em nenhum momento a liderança de alguma parte da Igreja institucional confessou qualquer responsabilidade sistêmica. As respostas padrões são totalmente inaceitáveis porque são desonestas e irrelevantes. Aqueles que ainda sustentam a Igreja institucional como sua fonte de segurança emocional podem urrar contra o anticatolicismo, o sensacionalismo da mídia e o exagero do que eles consideram uma aberração. Essas respostas não têm sentido, mas são muito piores, porque infligem mais dor às milhares de pessoas cujas vidas foram violentadas.

A Igreja não pode e não irá se consertar por si mesma. A própria realidade dos abusos contínuos nas instituições irlandesas (assim como em outros lugares) revela uma profunda displicência pelas pessoas por parte daqueles que são encarregados de guiar a Igreja. Há um abandono dos valores fundamentais que supostamente devem vivificar a Igreja, se, de fato, esses valores foram alguma vez internalizados por muitos dos que estão nas posições de poder. Há algo radicalmente errado com a Igreja católica institucional. Isso é dolorosamente óbvio, porque ela permite que os abusos sistêmicos e a desonestidade radical coexistam com a sua identidade autoproclamada de Reino de Deus na terra.

A Igreja institucional está mudando defensivamente a sua atitude com relação aos abusos sistêmicos de uma forma extremamente lenta e só porque ela é forçada a fazer isso pelas forças externas que não pode controlar. A comissão governamental irlandesa é uma coisa, a o sistema legal norte-americano é outro. Nenhuma quantidade de programas burocráticos, de desculpas piedosas, de contorcionismos retóricos e de promessas efusivas de mudanças no futuro vai fazer a diferença. O problema é mais do que o próprio abuso difundido. Punir os criminosos é não ver a floresta que está por trás das árvores. A cultura clerical vinculada à instituição precisa ser examinada sem medo e desmantelada da forma como a conhecemos. Ela já causou muita destruição e matou muitas almas para que seja tolerada por mais uma geração.

Os católicos têm uma profunda obrigação na caridade e na justiça para com as inumeráveis vítimas de todas as formas de abuso. Eles têm uma obrigação para com os crentes de todos os tipos em todos os lugares. Eles precisam fazer incessantemente tudo o que pode ser feito para libertar a comunidade cristã/católica do controle tóxico da estrutura institucional clericalizada, para que a Igreja, mais uma vez, seja identificada não com o anacronismo e a monarquia egocêntrica, mas com o Corpo de Cristo.

Para ler mais:



Irlanda. Um trauma terrível


O escritor irlandês Joseph Victor O'Connor, ex-jornalista do The Sunday Tribune e da revista Esquire, em artigo para o jornal La Repubblica, 22-05-2009, comenta os casos de padres pedófilos na Irlanda. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS

A Irlanda, nestes dias, está vivendo um trauma inverossímil e terrível. Depois de ter percorrido a última década em uma camada de autocomplacência em razão de nossos sucessos econômicos, encontramo-nos diante de uma realidade completamente diferente, da qual se depreende que aquele boom foi ilusório.

Políticos corruptos, banqueiros ávidos e especuladores imobiliários quase arruinaram o nosso país, e, como se não fosse suficiente, a notícia oficial destes dias a respeito dos maus tratos e da violência de padres sobre crianças confiadas a eles confirma o que sabemos há muito tempo no fundo dos nossos corações. Em outros países, os pedófilos se escondem: na Irlanda, se escondem em plena vista.

Na maioria dos casos, não se acreditou nas crianças vítimas de abusos e de violências. Ninguém lhes deu confiança, nem as suas famílias. Como as revelações das violências e abusos sistemáticos de crianças irlandesas chegam nesta fase da nossa história, é inevitável que gerem raiva e cólera profundas. Em parte, essa reação se deve aos relatos, tão terríveis, tão cheios de episódios cruéis que fazem com que lágrimas saiam dos olhos de quem os lê. Em parte, porém, deve-se também ao fato de que já é quase evidente que, durante décadas, a organização mais poderosa e rica da Irlanda, a Igreja católica, nas suas múltiplas denominações, fez tudo o que foi possível para silenciar as suas vítimas. As desculpas – se alguma vez existiram – foram equivocadas e ambíguas.

Levantaram-se multidões de advogados, encarregados de contestar as acusações. Quando, pela pressão das associações de violentados e de uma opinião pública sempre mais feroz, conseguiu-se obter um programa de ressarcimento de natureza financeira da Igreja, as suas condições se revelaram de tal modo generosas com relação aos culpados que muitos julgaram o comportamento do governo, em poucas palavras, como inadequado.

Do meu ponto de vista, no entanto, existe um contexto mais amplo capaz de explicar a ira do povo irlandês. Sabemos que a responsabilidade é de muitos: a culpa não é só da Igreja católica, nem só de uma sequência de governos irlandeses injustificáveis, mas da própria sociedade, de cada um de seus elementos. É justamente isso que faz com que a Irlanda se sinta tão profundamente incomodada. Quase todos estavam conscientes dos padres pedófilos e violentos. Não estou exagerando: uma das organizações de sobreviventes desses abomináveis crimes se chama One in Four [um em quatro], porque foi provado estatisticamente que cerca de um quarto das crianças irlandesas sofreu maus tratos físicos ou violência sexual, em sua própria casa, na escola, em qualquer lugar em que, pelo contrário, deveria ter se sentido protegida. Há quem tenha virado os olhos, há quem tenha tapado os ouvidos. As crianças foram tratadas com uma irrelevância sobre-humana na Irlanda, uma sociedade que, para defender um padre, estaria disposta a se virar de cabeça para baixo em uma contorção moral, mas que, por uma criança vítima de estupro, não moveria nem um dedo.

Meu pai, crescido em uma quadra da classe operária na parte antiga de Dublin, recebeu a única instrução dos Christian Brothers: apesar de não ter sofrido maus tratos, nem ter sido molestado sexualmente, e, mesmo que fale com respeito dos responsáveis que se ocupam das crianças mais pobres, viveu sempre com medo na escola. Certamente, refiro-me aos anos 40, quando os métodos de ensino talvez eram totalmente autoritários e brutais. Mas um amigo meu da mesma idade que eu, que freqüentou a mesma escola que eu nos anos 80, falava-me do seu terror nos bancos escolares, dia após dia. O pânico o assaltava logo que ultrapassava os portões da escola e se desfazia apenas quando voltava para casa. Ainda hoje, ele nunca voltou para visitar a sua escola, até se mantém distante da rua onde ela se encontra, exatamente como um vizinho meu que contou à minha esposa que não pode ver, nem mesmo de longe, o edifício em que estudou, o mesmo instituto gerido pelos Christian Brothers. Neste ponto, é inevitável perguntar-se: onde estavam os inspetores do governo? Onde estavam os funcionários? E os burocratas? Como se pôde permitir que tudo isso acontecesse?

Devo destacar que a contribuição dada pela jornalista irlandesa Mary Raftery no canal de televisão nacional RTE foi determinante para pôr fim à espiral do silencio. A liderança audaz e corajosa da qual o jornalista Colm O'Gorman deu prova – ele mesmo vítima de violência sexual e maus tratos pelos padres – foi fundamental para obrigar as autoridades a olhar nos olhos da verdade.

Pessoas como eles se recusaram a ser silenciadas, mesmo tendo encontrado na sua busca de justiça um número verdadeiramente irrisório de aliados. Agora penso que sei o porquê. O comportamento de alguns padres e de algumas freiras foi seguramente delinquente, na acepção plena do termo. Mas nada foi feito para freá-los. A Irlanda, já aflita pelo sentimento de culpa pelos insucessos financeiros, agora também está aflita por esses casos de maus tratos e violências sobre menores.

Entramos em um vértice de recriminações, uma espiral na qual os inocentes são punidos com os culpados. É compreensível. Alguns expoentes do clero seguramente merecem ser objeto de estigmas, mas o meu aviso é que essa é uma outra forma de equívoco moral. Para evitar as acusações é preciso estar chocado, ou pelo menos fingir estar. Só assim consegue-se interpor uma distância entre si mesmo e os fatos obscenos semelhantes. Há ainda um dado, nu e cru, que não é possível não se levar em consideração: não podemos esquecer o pouco que o Estado fez para proteger os pobres irlandeses e em que medida as crianças irlandesas pobres, mais vulneráveis e frágeis, confiadas a instituições de crueldade dickensiana, foram literalmente abandonadas à santidade dos subúrbios morais.

Trata-se de uma velha história, uma história terrível. Quando apontarem um dedo para acusar, estejam conscientes de que três dedos da sua mão apontam contra vocês.

[grifos do blog]


22/05/2009

Isabella Bossi Fedrigotti,

Os casais recasados, a Igreja e a corrente a ser destruída


Faz bem ao coração ler as palavras do cardeal Carlo Maria Martini e do padre Luigi Verzé, retiradas do livro que escreveram juntos. "Siamo tutti sulla stessa barca" [Estamos todos no mesmo barco, em tradução livre]]: palavras de compreensão, de abertura e de caridade cristã das quais há muito tempo se sentia uma grande necessidade. A análise é de Isabella Bossi Fedrigotti, publicada no jornal Corriere della Sera, 20-05-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


E o pensamento de que ambos estão muito velhos e que um dos dois também está muito doente deveria, em certo sentido, tranquilizar os fiéis mais tradicionalistas e, por isso, talvez, perturbados, senão até mesmo escandalizados, pelas suas teorias: entre todos os homens da Igreja, eles já não seriam talvez os mais próximos de Deus e, por isso, capazes, quem sabe, de melhor entender a sua voz?

Esses fiéis podem se tranquilizar duplamente porque, talvez mais no imaginário comum um pouco estereotipado do que na realidade dos seus corações, um sempre foi considerado mais de esquerda, e o outro, mais de direita: dois homens, por isso, que seriam considerados de ideias contrastantes em tudo ou em quase tudo.

Se só o cardeal Martini tivesse falado, alguém pensaria: o padre comunista de sempre. Se, ao invés, só o Pe. Verzé tivesse falado, algum outro raciocinaria: o que não se faz para ir ao encontro do Presidente do Conselho. Pelo contrário, ambos concordaram em desejar que a Igreja se decida, enfim, a conceder os sacramentos também aos divorciados casados novamente. Portanto, aqui está toda a pedra de escândalo, a pequena grande revolução que numerosas pessoas em todo o mundo esperam há tempos, muitas vezes também no sofrimento mais profundo e, o que é pior, insolúvel.

Habituados a escutar confessores que, como condição para se aproximarem da Eucaristia, propõem-lhes que vivam em castidade, senão, até mesmo, que voltem para o primeiro marido ou a primeira mulher, talvez por sua vez amplamente casados de novo, é com compreensível alívio e gratidão que eles irão acolher as palavras dos dois ilustres e idosos sacerdotes.

O pensamento se dirige particularmente àqueles fiéis que, abandonados pelo companheiro, veem-se obrigados, para poder continuar recebendo os sacramentos – uma consolação no desconforto do fracasso sentimental –, a uma perspectiva de perene solidão, excluídos da festa e condenados por causa de um divórcio repentino, por uma culpa que não cometeram, segundo uma justiça que tem dificuldade em se reconhecer como divina.

Com esse pronunciamento, Pe. Verzé e o cardeal Martini enfrentaram uma questão delicada sobre a qual, em geral, a hierarquia eclesiástica não se mostra muito possibilista: simplificando ao máximo se o homem é feito para a religião ou a religião para o homem. E optaram, assim parece, pela segunda hipótese.

Dado o grande número de afastamentos da prática eclesiástica e dadas também, no Brasil por exemplo, as muitas conversões a outras fés com regras menos rígidas do que a nossa católica, se poderia considerá-la, à primeira vista, uma escolha sugerida por uma realpolitik nua e crua. Porém, pensando na história dos dois homens, lendo os trechos das suas conversas e escutando o tom triste das suas vozes, tem-se mais a impressão de que o pedido comum é o fruto de uma reflexão baseada na necessidade urgente de que a Igreja – não apenas na teoria, mas também na prática – esteja verdadeiramente próxima das necessidades dos fiéis.

Portanto, uma escolha de compreensão humana, de indulgência e de caridade: não o homem para a religião, mas a religião para o homem. Com uma atenção inteligente à evolução da história e às mudanças dos tempos e dos costumes: que não se deve considerar necessariamente – como às vezes se tem a impressão de que a Igreja considere – como obra do diabo.

Siamo tutti nella stessa barca

O cardeal Carlo Maria Martini e dom Luigi Maria Verzé se encontraram por diversas vezes entre fevereiro e abril de 2009. Suas conversações, às quais assistiu Armando Torno como moderador, foram registradas, transcritas e enfim relidas por ambos. São dedicadas aos problemas mais relevantes do mundo contemporâneo e se referem tanto ao âmbito religioso quanto ao laico.

Com freqüência enfrentam argumentos delicados, outras vezes se detêm numa Igreja amada e servida, à qual oferecem continuamente sua completa dedicação. Jamais esquecem de sublinhar o amor de Cristo como a solução mais alta. O cardeal e o sacerdote falaram com muita liberdade, como pode ocorrer entre duas pessoas entendidas e competentes com décadas de vida na fé sobre seus ombros. O resultado é algo único: um diálogo sem fingimentos; ou melhor, uma série de conversações nas quais encontraram espaço críticas, aberturas, recordações, possibilidades, tentativas e muitíssimas esperanças e das quais todos podem participar: é uma proposta aberta que se transforma, entre uma pergunta e a subseqüente resposta, numa reflexão livre e profunda.

Nelas se encerra, embora entre argumentos aparentemente distantes, um convite contínuo à fé. O livro nascido destes diálogos que constituem o coração das visitas de dom Verzé ao cardeal Martini se intitula Estamos todos no mesmo barco [Siamo tutti nella stessa barca] (Editora San Raffaele, 96 pp). Por concessão dos autores antecipamos a parte inicial, onde o cardeal Martini descreve a sensação que experimenta no início das conversações, em seguida há uma pergunta e a subseqüente resposta, ambas tiradas da parte central do livro.

O texto foi publicado no jornal Corriere della Sera, 19-05-2009. A tradução é de Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS



Carlo Maria Martini – Não sei se estou acordado ou sonhando. Sei que me encontro completamente no escuro, enquanto um lento marulhar me faz pensar que estou numa barca que vai deslizando para dentro da água. Procuro às apalpadelas estabelecer melhor o lugar no qual me encontro e me dou conta que perto de mim está uma árvore, talvez fosse a árvore mestra da embarcação. Pouco a pouco me aproximo de modo a poder agarrar-me a ela com as mãos, para ter um pouco de segurança e de estabilidade nos sempre mais freqüentes movimentos da barca sobre as ondas.

Nesta tentativa encontro algo que me parece como uma mão de homem. Talvez seja outro passageiro que está procurando também ele apoiar-se na árvore mestra. Não sei quem seria, como eu mesmo não sei como cheguei a encontrar-me sobre esta barca. Mas o toque daquela mão me dá confiança: inclino-me para frente de modo a poder apertá-la e exprimir minha solidariedade com alguém naquela escuridão que dá calafrios.

Também gostaria de dizer algo, embora não saiba se meu companheiro de barca entende o italiano. Mas, nesse meio tempo ele começa a fazer-me uma breve pergunta, à qual respondo com satisfação. Trata-se de uma pessoa que eu não conhecia, mas da qual ouvira falar. Tocava-me seu interesse por mim naquele momento difícil, no qual qualquer um teria vontade de pensar somente em si mesmo. Dialogando, assim, na noite profunda, naquele momento de incerteza e também de perigo, viu-se pouco a pouco despontarem as primeiras luzes do amanhecer. Reconheci o lugar onde me encontrava: estávamos nós dois sozinhos na barca. E, usando alguns remos que encontramos no fundo dela, pusemo-nos a remar em direção à margem, parando de vez em quando para saborear a tranqüilidade do lago.

Dissemo-nos muitas coisas naquela hora. Veio claramente à luz durante a conversação que éramos bastante diversos um do outro. Mas, nos respeitávamos como pessoas e nos amávamos como filhos de Deus. O fato de nos encontrarmos na mesma barca também nos permitia compreender-nos e acolher-nos assim como éramos. Entre as primeiras coisas que nos dissemos há, naturalmente, um pouco de auto-apresentação. Assim, aprendi que meu interlocutor tinha nada menos que oitenta e nove anos, enquanto eu tinha oitenta e dois. Dom Luigi Verzé (tal aprendi depois ser o nome de quem viajava comigo) apresentava sua vida como a de alguém que vivera sessenta e um anos de sacerdócio.

(...)

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Luigi Maria Verzé – Quanto mudou agora a avaliação ética eclesiástica com respeito àquela que era imposta nos tempos de minha infância. De outra parte, já que a moralidade é um imperativo categórico, o povo faz para si uma ética laica própria e a Igreja permanece com uma ética cristã incongruente porque não compartilhada pelos próprios devotos. Recordo, por exemplo, que em minha visita às favelas do Brasil frequentemente me encontrava com pobres mulheres sem marido com uma criança no seio, outra no braço e uma fila de outros que a seguiam, todos gerados por diversos maridos. Era forçoso concluir que a pílula anticoncepcional andava aconselhada e fornecida. O Brasil, totalmente católico até os anos oitenta, agora está disseminado por igrejas e pequenas igrejas semicristãs, organizadas, no entanto, segundo as necessidades até banais do povo. A Igreja católica está longe da realidade, e as multidões, quando chega o Papa, têm mais ou menos o valor dos carnavais e das festas para a deusa Iemanjá, a antiga Vênus à qual todos, incluindo o prefeito cristão, jogam tributos de flores. A Igreja, mais que viver, sobrevive sobre os ossos dos heróicos primeiros missionários.

E, já que estamos no tema de uma moral prática, o senhor diz da negação dos sacramentos aos devotíssimos divorciados? Eu penso que também aos sacerdotes deveria ser em breve retirada a obrigação do celibato, pois temo que para muitos o celibato seja um fingimento, uma ficção.

E não seria mais vantajoso que a consagração dos bispos ocorresse sob aclamação do povo de Deus, hoje tão estranha aos fatos da Igreja? Talvez ainda não se esteja maduro para tudo isto, mas o senhor não crê que sejam temas nos quais se deveria pensar invocando o Espírito?

Carlo Maria MartiniHoje há não poucas prescrições e normas que nem sempre são entendidas pelo simples fiel. Por isso, a Igreja parece um pouco distante da realidade. Realmente estou de acordo que as multidões que vão a manifestações religiosas nem sempre as vivem com profundidade. É preciso prepará-las e depois é necessário dar um seguimento de reflexão no âmbito da paróquia ou do grupo. Não creio, no entanto, que se possa dizer que em países como o Brasil a Igreja não vive, mas sobrevive somente sobre os ossos dos primeiros heróicos missionários. A Igreja vive lá também no meio de gente simples, humilde, que faz o próprio dever, que ama, que sabe compreender e perdoar. É esta a riqueza das nossas comunidades. Tantos leigos destas nações e também tantos leigos próximos a nós são sérios e empenhados.

Você me pergunta o que penso da negação dos sacramentos a devotíssimos divorciados. Eu me alegrei pela bondade com que o Santo Padre retirou a excomunhão a quatro bispos lefebvrianos. Penso, no entanto, com tantos outros, que há muitíssimas pessoas na Igreja que sofrem porque se sentem marginalizadas e que se precisaria pensar também neles. E me refiro, em particular, ao divorciados recasados. Não a todos, porque não devemos favorecer a negligência e a superficialidade, mas promover a fidelidade e a perseverança. Mas, há alguns que estão hoje em estado irreversível e não culposo. Quem sabe tenham assumido novos deveres para com os filhos havidos no segundo matrimônio, enquanto não há nenhum motivo para voltarem atrás; antes, não seria sábio este comportamento. Acho que a Igreja deva encontrar soluções para estas pessoas. Eu disse com freqüência e repito aos padres que eles são formados para construir o homem novo segundo o Evangelho. Mas, na realidade devem depois ocupar-se também em ajeitar ossos rompidos e salvar os náufragos. Estou contente que a Igreja mostre em alguns casos benevolência e mansidão, mas entendo que ela deveria existir com todas as pessoas que realmente o mereçam. São, todavia, problemas que um simples sacerdote não pode resolver e nem sequer um bispo. É necessário que toda a Igreja se ponha a refletir sobre estes casos e, guiada pelo Papa, encontre um caminho de saída.

Além disso, você menciona um problema muito importante, dizendo que aos sacerdotes fosse retirada a obrigação do celibato. É uma questão delicadíssima. Eu creio que o celibato seja um grande valor, que sempre permanecerá na Igreja: é um grande sinal evangélico. Nem por isso é necessário impô-lo a todos, e nas igrejas orientais católicas ele já não é exigido de todos os sacerdotes. Vejo que alguns bispos propõem conceder o ministério presbiteral a homens casados que já tenham certa experiência e maturidade (varões comprovadamente sérios). Não seria, no entanto, oportuno que fossem responsáveis por uma paróquia, para evitar um ulterior acréscimo do clericalismo. Parece-me muito mais oportuno fazer destes padres ligados à paróquia uma espécie de grupo que atua em rodízio.

Trata-se, em todo caso, de um problema grave. E creio que, quando a Igreja o enfrentar, terá diante de si anos realmente difíceis. Não faltarão aqueles que dirão ter aceito o celibato unicamente para chegar ao sacerdócio. De outra pare, estou certo que sempre haverá muitos que escolherão a via celibatária. Porque os jovens são idealistas e generosos. Além disso, há no mundo algumas situações particularmente difíceis, em particular em alguns continentes. Penso, no entanto, que caiba aos bispos daqueles países enfrentarem estas situações e encontrarem as soluções.

Você também pergunta se não seria mais vantajoso que a consagração dos bispos ocorresse sob aclamação do povo de Deus. A eleição dos bispos sempre tem sido um problema difícil na Igreja. Nas situações antigas nas quais o povo participava mais, verificavam-se litígios e muitas divisões. Hoje talvez tenha sido levada demasiadamente in altro loco [a outro lugar]. Recordo-me que um cardeal canonista interveio numa reunião para dizer que não era justo que a Santa Sé fizesse dois processos para a mesma pessoa: um deveria ser feito in loco e o segundo pelo Núncio.

Quanto à participação do povo, há algumas dioceses na Suíça e na Alemanha que o fazem, mas é difícil dizer que as coisas sem mais andem melhor. Em conclusão, trata-se de uma realidade muito complexa. Mas, o modo atual de eleger os bispos deve ser melhorado.

São temas sobre os quais se deveria refletir muito e falar ainda mais. Nos sínodos alguma coisa emergia, mas depois não era mais aprofundado. O problema, no entanto, existe e se deve poder fazer uma discussão pública a este propósito.
[grifos do blog]

Para ler mais:


21/05/2009

O sexo dos clérigos

Qual é o sentido de reprimir as expressões da sexualidade, não apenas entre os clérigos, mas também na vida diária? O que ganha a fé católica com isso?, pergunta Tomás Eloy Martinez, escritor e jornalista, em artigo publicado no jornal El País, 20-05-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS



Quase se perdem na memória os tempos em que a Igreja Católica enfrentou desafios tão duros quanto os dos últimos anos. O que acontece não tem a gravidade do cisma litúrgico do bispo Marcel Lefebvre, tampouco o fervor revisionista na interpretação dos Evangelhos que desembocaram na Teologia da Libertação, e sim as violações de uma obrigação que não é matéria de dogma, mas de continua perturbação: o sexo dos clérigos.

Primeiro foram os delitos de pedofilia que, em dezembro de 2002, provocaram a renúncia do cardeal de Boston, Bernard Law, de quem se suspeitou de ocultação; 450 demandas milionárias por décadas de abusos contra menores deixaram a arquidiocese à beira da falência.

Agora, mais uma vez, como costuma acontecer, o escândalo surge quando vem à tona algo que se tentava ocultar: a descendência do ex-bispo paraguaio Fernando Lugo, agora presidente do Paraguai. O bispo de Ciudad del Este, no Alto Paraná, Paraguai, Rogelio Livieres, disse que os seus colegas sabiam sobre Lugo faz tempo. “Não sei por que se mascaram os temas da Igreja e não se ventilam. Em nossa época (...) tudo se descobre no final”, afirmou Livieres.

E encontrou uma instantânea refutação oficial: "O Conselho Episcopal Permanente lamenta e rejeita as expressões do monsenhor Livieres, que dá a entender que houve encobrimento e cumplicidade dos bispos do Paraguai sobre a conduta moral do então membro do colegiado episcopal, monsenhor Fernando Lugo".

As palavras de Livieres lembram às que o argentino monsenhor Jerónimo Podestá, impulsor do Movimento Latino-americano de Sacerdotes Casados, escreveu, em 1990, ao então presidente do Episcopado Argentino, cardeal Raúl Primatesta: "Vejo com pena que, em geral, vocês tenham uma visão bastante alienada e tímida: não sabem o que pensam e sentem as pessoas no mundo de hoje. A Igreja é o Povo de Deus e vocês sabem disso, mas no fundo continuam pensando que vocês são a Igreja".

Quando era bispo de Avellaneda na província de Buenos Aires, Argentina, no final dos anos de 1960, Podestá converteu-se em um pesadelo para a ditadura do general Juan Carlos Onganía. Reunia multidões de até 1 milhão de pessoas para cerimônias religiosas que se transformavam em espontâneas manifestações políticas. Para o regime foi um alívio quando o bispo anunciou, em 1967, a decisão de se casar.

Podestá bateu várias vezes na porta do Vaticano sem conseguir que Paulo VI lhe retirasse a suspensão a divinis. Insistia em recordar que, se Jesus optou pelo celibato, não o impôs aos seus apóstolos, entre eles havia casados e solteiros. O ex-bispo de Avellaneda dizia que o celibato é um dom, não um mandato divino, e que nada impede de sentir a vocação sacerdotal ao estar privado dessa graça.

A maioria dos católicos ignora que os sacerdotes e os bispos não tinham proibido o casamento durante os primeiros 10 séculos de vida cristã. Além de São Pedro, outros seis papas eram casados e – o mais chamativo ainda – 11 papas foram filhos de outros papas ou de membros da Igreja. [grifo nosso].

Em 1073, Gregório VII impôs o celibato. Um dos seus teólogos, Pedro Damián, afirmou que o casamento dos sacerdotes era herético, porque os distraia do serviço ao Senhor e contrariava o exemplo de Cristo. Se a intenção do papa era restaurar a derrocada moral do clero e purificar a igreja com exemplos de castidade, dezenas de historiadores supõem que a decisão de impor o celibato também foi um meio para evitar que os bens dos bispos e dos sacerdotes casados fossem herdados pelos seus filhos e viúvas em vez de beneficiar à Igreja.

Qual é o sentido de reprimir as expressões da sexualidade, não apenas entre os clérigos, mas também na vida diária? O que ganha a fé católica com isso? Teme-se que o prazer distraia da oração, da relação com Deus, mas o desprezo pela mulher nos seminários e a contradição dos impulsos naturais do homem na realidade não fortalecem os vínculos entre a Igreja e o povo de Deus. Ao contrário, o celibato obrigatório costuma desanimar algumas vocações sacerdotais e provoca deserções no clero.

Pensava-se que "a vigente lei do sagrado celibato" devia seguir "unida firmemente o ministério eclesiástico", Paulo VI, atento aos clamores da modernização do Concílio Vaticano II, analisou as objeções em uma encíclica memorável, Sacerdotalis caelibatus, de 1967. Ali se perguntou: "Não terá chegado o momento de abolir o vínculo que, na Igreja, une o sacerdócio ao celibato? Não poderia ser facultativa esta difícil observância? Não sairia favorecido o ministério sacerdotal se fosse facilitada a aproximação ecumênica?"

Por acaso Deus não se preocupou com os deslizes do ex-bispo Lugo, porque a sua glória está além do que estabelecem os seres humanos. Mas a inflexibilidade da doutrina deixa entre os católicos a pergunta sobre o sentido e as normas criadas pela Igreja há 10 séculos, que não existiam antes e não teriam por que existir para sempre.

Jesus pregou a humildade, o amor a Deus e aos seus semelhantes. Suas lições de vida continuam sendo claras. Às vezes, no afã por interpretá-las, os seres humanos as escurecem. [grifo nosso].

Para ler mais:




19/05/2009

Pe. Juan Masiá Clavel

Equilíbrio ao debater sobre aborto


O padre jesuíta e teólogo moralista Juan Masiá Clavel, em seu blog Vivir y pensar en la frontera, propõe um decálogo de critérios éticos, para se evitar os posicionamentos extremistas pró ou contra o aborto. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



Sem cair na armadilha do dilema entre pró-vida e pro-choice, muitas pessoas (incluindo representantes com responsabilidades parlamentares de diferentes pertenças, confessional ou aconfessional, assim como de diferentes afiliações partidárias dentro do espectro político), preocupadas seriamente em proteger a vida, a dignidade e os direitos de cada ser humano, coincidem em buscar o caminho intermediário para debater serenamente. Com o desejo de apoiar seu discernimento, proponho o seguinte decálogo de critérios éticos:

1. Buscar a convergência pró-pessoa em posturas divergentes diante do aborto. Posturas opostas podem, no entanto, coincidir ao afirmar que o aborto não é desejável nem aconselhável, que é preciso unir forças para desenraizar suas causas, que ninguém deve sofrer coação para abortar contra a sua vontade, e que é preciso melhorar a educação sexual para prevenir o aborto.

2. Não confundir crime, mal e pecado. Rejeitar desde a própria consciência o mal moral do aborto pode ser compatível com admitir a possibilidade de que, em determinadas circunstâncias, as leis não o penalizem como crime. O apoio a essas descriminalizações não deve ser identificado necessariamente com o favorecimento do aborto superficialmente, nem com o fato de considerá-lo desejável para a mulher.

3. Não ideologizar o debate, nem política nem religiosamente. Evitar agressividade e violência contra qualquer uma das partes e não fazer bandeira ideológica dessa polêmica por razões políticas ou por razões religiosas. Ele não deixa de ser um mal moral quando a lei não o penaliza, nem a razão de considerá-lo um mal moral depende de uma determinação religiosa.

4. Deixar margem para exceções inéditas em situações conflitivas. As situações limite não deveriam ser formuladas como colisão de direitos entre mãe e feto, mas sim como conflito de deveres no interior da consciência dos que querem (incluindo a mãe) proteger as vidas de mãe e feto. Nos casos trágicos, não existem soluções pré-fabricadas. As campanhas de mau-gosto – em ambos os extremos, pró-abortistas e antiabortistas – não ajudam no debate.

5. Acompanhar pessoas antes de julgar os casos. Nem as religiões deveriam hastear bandeiras de excomunhão, nem as supostas defensoras da mulher deveriam jogar demagogicamente com a apelação a direitos ilimitados dela para decidir sobre seu corpo em suposto choque com a exigência de respeito por parte do feto. O aconselhamento moral ou religioso pode acompanhar as pessoas em suas tomadas de decisão, mas sem decidir em seu lugar nem condená-las.

6. Compreender a vida nascente como processo. A vida nascente em suas primeiras fases não está plenamente constituída a ponto de exigir o tratamento correspondente ao estatuto pessoal, mas isso não significa que o feto pode ser considerado como mera parte do corpo materno, nem como realidade parasitária alojada nele. A interação embriomaterna é decisiva para a constituição da nova vida nascente e merece o máximo respeito e cuidado: à medida que se aproxima o terceiro mês de gravidez, aumenta progressivamente a exigência de ajudar para que ela chegue ao final. Para evitar confusões ao falar de proteção da vida, tenha-se presente a distinção entre matéria viva da espécie humana (p.ex., o blastócito antes da nidação) e uma vida humana individual (p.ex., o feto, além da oitava semana).

7. Confrontar as causas sociais dos abortos não desejados. Não podem ser ignoradas as situações dramáticas de gestações de adolescentes, sobretudo quando são consequência de abusos. Sem generalizar, nem aplicar indiscriminadamente o mesmo critério para outros casos, deve-se reconhecer o problema social do aborto, como reprimir suas causas e como ajudar para a sua diminuição.

8. Enfrentar os problemas psicológicos dos abortos traumáticos. É importante prestar assistência psicológica e social àquelas pessoas às quais sua tomada de decisão deixou cicatrizes que precisam de cura. Não se deve confundir a contracepção de emergência com o aborto. Mas seria desejável que a administração de recursos de emergência, como a chamada pílula do dia seguinte, fosse acompanhada do oportuno aconselhamento médico-psicológico.

9. Questionar a mudança de mentalidade cultural em torno do aborto. Repensar a mudança que o ambiente favorável à permissividade do aborto supõe e o dano que isso causa em nossas culturas e sociedades.

10. Levar a contracepção a sério, mesmo reconhecendo suas limitações. Fomentar a educação sexual com boa pedagogia, ensinar o uso eficaz dos recursos anticoncepcionais e a responsabilidade do homem, sem que a carga do controle recaia só sobre a mulher. Sem levar a anticoncepção a sério, não há credibilidade para se opor ao aborto. Deve-se fomentar a educação sexual integral, que abranja desde a higiene e a psicologia, até implicações sociais e que inclua o conhecimento suficiente sobre recursos contraceptivos, interceptivos e contragestativos.

Para ler mais:



16/05/2009

Entrevista - Frei Ildo Perondi

O Capitulo das Esteiras. O carisma franciscano, hoje.

Frei Ildo Perondi concedeu entrevista, por e-mail, à IHU On-Line e fala dos desafios dos franciscanos e do cristianismo no mundo de hoje e como devemos enfrentar a crise institucional que estamos vivendo. Além disso, o frei capuchino analisa o encontro de três mil franciscanos em Assis, na Itália, para viver o Capítulo das Esteiras. “Foi um verdadeiro “kairós”: tempo da graça de Deus”, disse ele. Ildo Perondi é graduado em Filosofia pelo Instituto Popular de Assistência Social e em Teologia pelo Instituto Teológico Paulo VI e pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestre em Teologia Bíblica pela Pontificia Universitä Urbaniana, é, atualmente, professor da PUC-PR e do Seminário Maior Divino Mestre. Escreveu Me verás pelas costas. Curso Bíblico sobre o Antigo Testamento (São Leopoldo: Oikos, 2008), O filho do pai pródigo (São Leopoldo: Editora Oikos Ltda., 2007) e Caminhando com Clara e Francisco (Petrópolis: Família Franciscana do Brasil, 2000).
Fonte: UNISINOS

IHU On-Line – Diante dos problemas que o mundo enfrenta, para o senhor, quais são os desafios dos franciscanos, em especial, hoje?

Ildo Perondi – Os franciscanos são chamados hoje a viver e atualizar o carisma franciscano. Os franciscanos precisam se perguntar: o que é que Francisco de Assis faria se viesse hoje ao mundo e se vivesse no século XXI? O que é que ele gostaria que as Ordens Franciscanas e seus membros fizessem e vivessem para cativar e atrair as pessoas que buscam Deus e um mundo mais justo e mais fraterno.

É certo que Francisco de Assis teria mais dificuldades de viver o franciscanismo hoje do que no seu tempo. O mundo está fragmentarizado; em frequente mudança... Fico imaginando como viveria Francisco hoje! Certamente não como a maioria dos franciscanos. Francisco seria mais profeta da vida, da ecologia, da paz... Viveria mais o carisma e menos as instituições, como fez na sua época. Iria clamar pela salvação do planeta e radicalizar sua prática da Fraternidade Universal. Seria um moderno “cantor” das maravilhas e dos sonhos de Deus!

IHU On-Line – Como o senhor vê a situação atual do cristianismo no mundo?

Ildo Perondi – O cristianismo está em crise como toda a sociedade pós-moderna. O cristianismo deveria ser sempre uma fonte de esperança e de alegria, como foi no seu início, sinal de vivência do amor fraterno, testemunho de um jeito novo de viver a vida buscando o Reino de Deus como horizonte último. Mas o cristianismo tem dois mil anos de história. Se, por um lado, ele se tornou conservador, porque conservou o “depósito da fé” recebido e transmitiu a tradição de toda a sua história, por outro, infelizmente há também grupos conservadores que representam o atraso, o retrocesso, que caminham na contramão da história. O Papa Bento XVI tem o desejo de ver o cristianismo respondendo aos desafios do mundo moderno (creio que os erros deste Pontificado sejam mais das assessorias do que do Papa). Mas a Igreja como um todo anda devagar, sobretudo a moral e a ética. Ainda não captamos toda a riqueza do Concílio Vaticano II e já seria necessário um novo Concílio para atualizar a mensagem cristã para os novos tempos que estamos vivendo.

IHU On-Line – O que significa o Capítulo das Esteiras no momento atual?

Ildo Perondi – O Capítulo das Esteiras, realizado em Assis, de 15 a 18 de abril deste ano, foi a celebração e a memória dos 800 anos do carisma Franciscano. Foi um encontro de quase três mil irmãos, vindos de todas as partes do mundo, que pertencem às diversas famílias franciscanas. Foi um verdadeiro “kairós”: tempo da graça de Deus. Esperamos que o mesmo produza frutos, que contagie todos os franciscanos e franciscanas do mundo. E que toque também o coração de todas as pessoas que se sentem atraídas e simpatizantes desta dádiva, pois o carisma franciscano não é propriedade das instituições, mas ele é universal. Há tantas pessoas que vivem melhor o franciscanismo do que os franciscanos, isso é uma graça de Deus. Espero que o Capítulo das Esteiras seja esta fonte de água nascente que faça surgir um grande rio, cheio de vida e que irrigue o mundo com a bondade, a paz e ensine que há um jeito novo de viver e amar, mas também de organizar a sociedade e o mundo.

IHU On-Line – Como a vida e os ensinamentos de são Francisco de Assis podem nos ajudar a superar a crise institucional que impera na sociedade?

Ildo Perondi – Francisco de Assis foi alguém que soube inovar e se antecipar aos acontecimentos da história; ele sabia propor soluções concretas para os problemas do seu tempo. Acredito que um dos pontos mais importantes da sua mensagem é que se quisermos viver um mundo novo, precisamos entender que esta é uma tarefa coletiva e não individual. Uma nova ordem institucional mundial é necessária e esta pressupõe o fim do capitalismo selvagem, do domínio das grandes corporações e potências sobre os países mais pobres e o fim da exclusão de massas enormes de pessoas, e também a partilha dos bens e sobretudo dos alimentos.

Francisco de Assis propôs a fraternidade cósmica: devemos reconhecer que somos todos irmãos, não só entre os humanos, mas de todas as criaturas. Somos todos criaturas do Grande Criador. Por isso, devemos saber cuidar uns dos outros e cuidar da vida. Francisco nos ensina que há um novo modo de relacionamento: se tudo está interligado (por causa da origem comum que todos temos), então a vivência deve fraternal, interrelacional e não destruitiva e competitiva como é hoje. O cuidado exige responsabilidade com o outro e com todas as criaturas e sobretudo com a grande obra da Criação, nossa casa comum.

IHU On-Line – Como o senhor analisa a profecia dos franciscanos hoje?

Ildo Perondi – Eu entendo que o mundo deveria cobrar mais dos franciscanos. A Igreja deveria exigir mais dos franciscanos. Evitar que os franciscanos assumam estruturas diversas do seu carisma. Os franciscanos precisam ser empurrados para as periferias do mundo. Recentemente, quando houve o terremoto na Itália, os franciscanos foram ser solidários com os desabrigados. O Papa elogiou este gesto profético. Se São Francisco pudesse, com certeza pediria que os franciscanos saíssem mais dos conventos e fossem morar com os pobres, com os refugiados, com os excluídos. É uma pena que muitos jovens vocacionados de hoje se encantem tanto por São Francisco, mas depois querem viver uma cultura light.

A sociedade deve exigir que os franciscanos sejam mais profetas diante de uma natureza agredida, diante da vida ameaçada, das guerras, da fome, do comércio internacional de pessoas, etc. Creio que o franciscanismo peca porque está no lugar errado, institucionalizado demais, embora as instituições sejam necessárias para proteger o carisma. O profetismo só acontece no lugar certo, isto é, onde é preciso anunciar e denunciar. Na história, os franciscanos fizeram e continuam fazendo tanto bem. No entanto, continua vivo o convite hoje para sermos instrumentos de paz e de reconciliação para levar a bondade e o amor a todas as pessoas, sobretudo as que mais sofrem e são excluídas; levar perdão, luz alegria onde há brigas, trevas e tristeza.

IHU On-Line – O senhor ainda acha que as religiões estão em guerras e conflitos?

Ildo Perondi – As guerras mais estúpidas são as guerras religiosas, porque não acredito que Deus fique contente com alguma delas. Não sei de nenhuma guerra feita em nome do Diabo, mas muitas guerras foram feitas em nome de Deus (certo, sem o Seu beneplácito) e os resultados foram desastrosos. Religião, quer dizer “ re-ligar”. As religiões devem ser instrumentos de paz, de reatamento de relações rompidas. Infelizmente, no século XXI ainda temos o fanatismo religioso, onde se mata em nome de Deus, acreditando com isso agradar ao Criador. O problema é que as causas das guerras são políticas e econômicas e é mais cômodo dizer que é uma guerra religiosa.

Temos tantas guerras e conflitos religiosos. O fundamentalismo religioso é sempre um perigo; o proselitismo e a conquista de fiéis a qualquer custo; a manipulação da fé via MCS alienando o povo e com fins lucrativos, como fazem algumas seitas mediáticas hoje, explorando as doenças, a dor, a crise e a fragilidade das pessoas; a demonização das religiões afros e indígenas etc. São exemplos de como a fé pode ser usada para escravizar pessoas e enriquecer seus líderes.

O Papa em sua visita à Terra Santa e região propõe o diálogo, o intercâmbio e a tolerância religiosa. Entre nós, é importante cultivarmos uma cultura ecumênica que leve a reconhecer a beleza do que é diferente e trabalhar em torno daquilo que nos une e do tanto que temos em comum, e não brigar em torno daquilo que nos separa e nos divide.

IHU On-Line – Qual o papel que a família franciscana ainda tem que desempenhar no mundo?

Ildo Perondi – Vou procurar resumir, sem fechar questão, em sete pontos: Primeiro: é necessário que as instituições se convertam e se coloquem a serviço do carisma franciscano. Segundo: que escutem o chamado a viver o ideal franciscano que é belo e que agrada tanto ao mundo: o mundo precisa da alma e do perfume franciscano! Terceiro: que os franciscanos vão de encontro aos “leprosos” do nosso tempo como Francisco fez em sua época. Quarto: que a Família Franciscana seja interlocutora junto aos artistas para que o mundo da arte (música, filmes, literatura etc.) expresse a beleza da vida na sua simplicidade e alegria. Quinto: que os franciscanos façam parcerias com outras organizações que trabalham pela paz, ecologia e defesa da vida. Sexto: que influenciem junto aos que governam o mundo para um grande projeto de salvação do planeta e da vida. Sétimo: que a exemplo de Francisco, os franciscanos ajudem a “restaurar” a Igreja de Cristo, levando-a a ser sempre fiel à sua missão transmitida por Jesus Cristo.

IHU On-Line – E como a mulher franciscana faz diferença nesse contexto?

Ildo Perondi – Não podemos compreender Francisco sem Clara. O Franciscanismo tem o seu lado feminino. Na saudação “Pax et Bonum”, tão cara a São Francisco, a “paz” é feminina e o “bem” é masculino. No Cântico das Criaturas, Francisco contrapõe o masculino e o feminino: sol e lua; vento e água; fogo e terra... Clara de Assis precisa ser mais conhecida para dar a totalidade do carisma franciscano. As mulheres hoje exercem um papel diferente na sociedade do que aquele do tempo de Francisco, e por isso também são chamadas a viver e reinventar um mundo novo e possível. A ternura e o vigor, próprios do franciscanismo, estão mais presentes nas mulheres. O cuidado e a defesa da vida são características femininas, embora não exclusivas. A cultura da paz está mais presente nas mulheres. Mas penso também que a participação da mulher como sujeito da nova sociedade ajudará a construir novas relações, diferentes do machismo opressor típico da nossa sociedade.

Para ler mais:


Dom Sérgio da Rocha

Águas que falam
Fonte: Arquidiocese de Teresina


É tempo de inverno, é fim de inverno, com muita água que desce do céu, enche os rios, ameniza o calor, levando fertilidade para o sertão, esperança e alegria para o roçado. Águas que correm! Águas que falam! É tempo de ouvir as águas! As águas das chuvas que se transformam em águas do Poty e do Parnaíba, querem falar da beleza da vida, querem ser apenas berço da vida, fonte de alegria e esperança na cidade e no campo, fazendo germinar e florir, sem jamais destruir.

Entretanto, essas mesmas águas, conforme a canção, transformam-se em “lágrimas na inundação”. As águas do Poty e do Parnaíba que cantam e encantam nos questionam e interrogam, na inundação, revelando a face triste da miséria e da pobreza que se assentam às suas margens. Águas que denunciam com furor as condições precárias das habitações, a pobreza e miséria de nossa gente, a situação ameaçadora das áreas de risco. Águas que clamam pela preservação da natureza, denunciando a devastação ambiental e a poluição, destruindo a nossa casa comum, que deveria permanecer “planeta azul”.

Águas que gritam através das enchentes à espera de respostas traduzidas em políticas públicas de prevenção às enchentes, em gestos de compaixão e solidariedade, tornando o mundo mais humano e a sociedade justa e fraterna, segundo o querer de Deus. A situação que estamos vivendo no Piauí e em grande parte do Norte e Nordeste deve ser objeto de atenta análise e reflexão; seu caráter sócio-ambiental não permite que seja reduzida simplesmente a mais uma catástrofe natural.

Trata-se de um sinal a ser interpretado com consciência crítica, serenidade e responsabilidade, em seu múltiplo significado social, ambiental e ético, exigindo medidas que ultrapassam as iniciativas pessoais e emergenciais. Para diminuir o impacto dos fenômenos naturais é preciso prevenir e planejar. Ás águas das enchentes nos impelem a refletir e a agir, de modo a prevenir a sua ocorrência e diminuir o seu impacto social, por meio de políticas públicas que contemplem a justiça social, a ocupação urbana e a preservação ambiental, bem como, através de iniciativas da sociedade civil.

Diante dos sofrimentos causados por catástrofes naturais ou injustiças sociais, é preciso traduzir comoção em ação solidária. É tempo de um grande mutirão de solidariedade em favor das vítimas das enchentes. É tempo de parar para ouvir as águas. É preciso escutar! Responder é preciso! Para que as águas do Poty, assim como as águas do Parnaíba, conforme o Hino do Piauí, “rio abaixo, rio arriba, espalhem pelo sertão e levem pelas várzeas e chapadas” apenas “canto de exultação”.




14/05/2009

Frei Betto

Literatura e experiência de Deus
Fonte: Correio da Cidadania





Pela literatura, o verbo se faz carne. Embora a música seja, na minha opinião, a mais sublime das artes, a literatura é a mais sagrada. Deus a escolheu para, através dela, se revelar a nós. Escolheu uma escrita, a semítica, e um gênero próximo da ficção, pois em toda a Bíblia não há uma única aula de teologia, um ensaio doutrinário, um texto conceitual. É toda ela uma narrativa pictórica – vê-se o que se lê.

Os livros bíblicos reúnem uma sucessão de fatos históricos e alegóricos (parábolas, metáforas, aforismos), entremeados de genealogias, axiomas, provérbios, poemas (Cântico dos Cânticos e Salmos) e detalhes técnicos e ornamentais (a construção do Templo cf. 2 Crônicas).

Como frisa Herbert Schneidau, a Bíblia pode ser considerada "prosa de ficção historicizada". Historicizada porque se distancia do universo das lendas e dos mitos, embora haja matéria-prima lendária subjacente ao Gênesis no relato sobre Davi, na saga de Jó e em parte dos Livros dos Reis.

Os autores bíblicos se afastaram, deliberadamente, do gênero épico (Homero e Virgílio), o que se explica pela rejeição do politeísmo. O que impregna a escrita bíblica é o senso de historicidade. Ela rompe com a circularidade do mundo mitológico e apresenta-nos um Deus que tem história: Javé, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Nela a historicidade se faz presente na descrição dos cinco primeiros dias da Criação, antes do surgimento daquele que viria a ser considerado o protagonista do processo histórico: o ser humano. Há uma evolução, simbolizada na sucessão dos seis dias.

O que faz de nós imagem e semelhança de Deus é a capacidade de amar e a linguagem. Animais também amam, tanto que certos pássaros, como os pardais, se mantêm fiéis após se acasalarem. Mas somente o ser humano possui um nível de consciência que lhe permite ordenar e expressar sentimentos, emoções, intuições e afetos. Isso nos faz semelhança divina. Deus é amor e seu afeto por nós se manifesta na linguagem contida na narrativa bíblica e na epifania do Verbo que, entre nós, se fez carne.

A escrita é uma forma de tentar organizar o caos interior. Por isso, todo artista é clone de Deus. A escrita é terapêutica, libertadora. Hélio Pellegrino, psicanalista, atribuía a minha sanidade mental no decorrer de meus anos de prisão ao fato de eu ter literalizado a vida de cadeia. O meu mundo é recriado quando lanço mão de vocábulos e regras sintáticas para dar forma e expressão ao que penso e sinto. Assim, transubstancio a realidade, projeto-me em algo que, fora de mim, não sou eu e, no entanto, traduz o meu perfil interior de um modo que eu jamais conseguiria pela simples fala.

A escrita constitui uma forma de oração, como bem sabia o salmista. A experiência de Deus antecede e ultrapassa a escrita. No entanto, o pouco que dela se sabe é por meio da escrita; raras vezes por experiência pessoal. Grandes místicos, como Buda, Jesus e Maomé, nada escreveram. O que sabemos deles e de seus ensinamentos é graças a quem teve o trabalho de redigir.

Ainda que o próprio místico possa fazê-lo, como são exemplos Plotino, Mestre Eckhart e Charles de Foucauld, há um momento em que a experiência de Deus ultrapassa os limites da palavra. É inefável. Como diz Adélia Prado, "Se um dia puder, nem escrevo um livro" (Círculo). "Não me importa a palavra, esta corriqueira, / Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, / A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda / foi inventada para ser calada. / Em momentos de graça, infreqüentíssimos, / se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. / Puro susto e terror (Antes do nome).

João da Cruz, patrono dos poetas espanhóis, deixou três de seus quatro livros inacabados. Tomás de Aquino considerou, após seu êxtase em Nápoles, que toda a sua obra não passava de "palha". E não mais escreveu.

Há no enfoque adeliano uma empatia com o poema Ash-Wednesday (Quarta-feira de Cinzas), de T.S. Eliot, escrito em 1930, três anos após a conversão do poeta ao cristianismo. Na quinta parte, Eliot canta que "a palavra perdida se perdeu", "a usada se gastou", mas perdura no "Verbo sem palavra, o Verbo. Nas entranhas do mundo".

Toda poesia de qualidade é polissêmica. É verso que faz emergir nosso reverso. É canto que encanta, desdobra em múltiplo o nosso ser e nos induz a encontrar aquela pessoa que realmente somos e, no entanto, em nós reside como um estranho que provoca temor e fascínio.

É à poesia que o apóstolo Paulo recorre quando, no discurso no Areópago (Atos dos Apóstolos 17, 28), expressa a nossa ontológica e visceral união com Deus: "Nele vivemos, nos movemos e existimos, como alguns dos vossos, aliás, já disseram: ‘Porque somos também de sua raça’."

Trata-se de uma citação livre da obra  Fenômenos, de Arato, poeta que viveu na Cilícia no século III a.C. O texto originário é: "Comecemos com Zeus, de que nós mortais nunca deixamos de lembrar. Porque toda rua, todo mercado está cheio de Zeus. Mesmo o mar e o porto estão cheios da divindade. Em todo lugar todo mundo é devedor a Zeus. Porque somos, na verdade, seus filhos... (Phaenomena 1-5)."

12/05/2009

Dom Frei Luiz Flávio Cappio, ofm

"São Cidadãos do Mundo todos e todas que nos juntamos em defesa do “São Francisco – terra e água, rio e povo", afirma D. Frei Luiz Flávio Cappio, ofm, no discurso de agradecimento pelo Prêmio Cidadão do Mundo, da Fundação Kant.

Fonte: UNISINOS




Saúdo os membros da Fundacao Kant. Saúdo as autoridades presentes, especialmente o Vice-Ministro do Exterior Gernot Erler, pela “laudatio” que muito agradeco. Saúdo as senhoras e senhores presentes nesta festa magnífica, em especial a Jeff Hapter, que comigo recebe este premio. Saúdo os pobres do mundo sem vez e sem voz, que lutam por seu direitos humanos: comigo recebem este premio!

Quando me veio a notícia do Prêmio Cidadão do Mundo, da Fundação Kant, fiquei a me perguntar o por que. Que ligação teria a nossa luta no Vale do Rio São Francisco, no Nordeste do Brasil, com a filosofia de Immanuel Kant e os propósitos da Fundação que zela pelos seus ideais? Fui rever meus estudos de Filosofia, nos longínquos anos 1960. Não foi difícil perceber a intenção dos premiadores nas proposições ético-filosóficas de Kant, luminosamente atuais, de uma cidadania cosmopolítica, baseada nos direitos humanos universalizados, unidas a moral e a política.

Ser associado a esta filosofia me honra, mas não me ensoberbece. Porque o objeto da premiação não é uma pessoa ou o que por si mesma, solitariamente, ela tenha feito. Não é mérito de um, mas de uma legião de homens e mulheres, jovens e anciãos, movimentos, organizações e entidades sociais, que agem – poderíamos dizer – sob o imperativo categórico kantiano: buscar para todos o que desejaríamos que todos fizessem a todos.

Atitude que eu diria revolucionária, dada a extensão e profundidade da crise que vivemos, de civilização, de paradigma, no fundo, a mais grave crise ética. Não se pautar por princípios universais (porque os fundamentais), mas por fins meramente individualistas e utilitários, foi o que desumanizou o homem e o levou a corromper a natureza. Estamos sob o jugo de um inédito relativismo dos valores e referenciais da existência humana, uma perda coletiva do sentido da vida, da sociedade, da humanidade. Na verdade, sem exagero, não estamos longe de um estado de anomia e barbárie.

* * * * *

Como e por que chegamos a este ponto? – devemos ter a coragem de responder e não temer a resposta.

O Relatório do Desenvolvimento Humano 2007/2008, do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento revela: os 20% mais ricos do mundo absorvem 82,4% de todas as riquezas do planeta enquanto os 20% mais pobres têm que se contentar com apenas 1,6% . Este máquina de produzir desigualdade não mais se sustenta politicamente, nem se aceita eticamente.

Está evidenciado que sua raiz está no sistema da economia de livre-mercado autoregulado e absoluto – o chamado neoliberalismo e sua globalização mercantil – erigido sobre o dogma do máximo lucro, extraído a qualquer custo, até da doença e da morte de milhões de seres humanos (como acontece na África com a SIDA, como ameaça acontecer com a Gripe A). Esta pretensão a-ética não se refreia frente à danação dos semelhantes. Mas, os limites da natureza, a exaustão dos recursos naturais e o aquecimento global causado por esta civilização, se encarregam de oferecer à humanidade uma chance, talvez a última, de rever este sistema de morte e reinstaurar relações livres e solidárias com todas as formas de vida. Como diz meu mestre e irmão Leonardo Boff, “a nova era ou será da ética ou não será”.

Esta a tarefa que esta premiação nos convoca. Se as alternativas históricas ao capitalismo mostraram-se frustrantes, reproduzindo a dominação humana e a depredação natural, trata-se de, aprendendo da experiência histórica, reinventar nosso modo de vida sobre a terra.

Acredito firmemente que uma sociedade internacional justa, sustentável e pacifica, que viva e deixe viver, só é possível numa perspectiva ecossocialista. A produção se tornando ecológica e o acesso aos bens necessários produzidos se fazendo solidário, sob condições socialistas, é o que nos levará à superação das crises atuais. Acredito que a Europa, apesar das contradições do colonialismo, pela tradição da democracia e dos direitos humanos, tem um papel importante nisto.

Acredito também que os povos originários, resistentes e sobreviventes à colonização, e as comunidades empobrecidas do Sul e de todo o mundo, têm enorme contribuição a dar. Pois nutrem o desejo da mudança e conservam práticas tradicionais de relação com a natureza e entre si com mais nítidas marcas de interação respeitosa e solidária.

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É por onde entendo e aceito o Prêmio Cidadão do Mundo, da Fundação Kant. Porque na minha pessoa vocês e eu vemos todos e todas que encarnamos esta utopia – ideal de vida e compromisso histórico. Concretamente, são Cidadãos do Mundo todos e todas que nos juntamos em defesa do “São Francisco – terra e água, rio e povo”, nos mobilizamos sobre um eixo de vida comum-unitária no pauperizado Semiárido brasileiro, nos dedicamos em resgatar a dignidade dos pobres exigindo com eles ativa e pacificamente a justiça e o direito, os mesmos que deveriam existir universalmente.

Busquei estes Cidadãos do Mundo na minha trajetória de vida nos últimos 40 anos, desde que atendendo ao chamado de Jesus no modo de vida proposto e testemunhado por Francisco de Assis, troquei o rico Sudeste do Brasil pelo empobrecido Nordeste. Encontrei-os nas comunidades e povos empobrecidos e resistentes dos sertões semiáridos do rio São Francisco.

Entendi que Cidadãos do Mundo aqui premiados são os pobres desta região, com quem tenho aprendido mais que ensinado a dignidade do trabalho, a alegria da partilha mesmo na maior carência, o cuidado com os dons da terra, das águas, das matas e dos animais, o direito às condições materiais e imateriais imprescindíveis a uma vida abundante e em paz. Por exemplo, os ribeirinhos lutadores pelo rio e por si mesmos - povo do rio - que encontramos entre 1993 e 1994 ao peregrinar por um ano pelas margens dos quase 3 mil km do terceiro maior rio do Brasil. Ou os habitantes do Semiárido que, apesar dos desmandos e corrupções, aprendem e ensinam a conviver com o clima, com as condições ambientais adversas.

Cidadãos do Mundo premiados pela Fundação Kant são também as incontáveis pessoas e entidades, muitas aqui na Alemanha, que se manifestaram solidárias aos movimentos de jejum e oração que fizemos, em 2005 e 2007, contra o Projeto de Transposição de águas do rio São Francisco. Entenderam nosso gesto: tal projeto sintetiza a falácia do sistema, pois em nome dos pobres sedentos pretende criar segurança hídrica para grandes empreendimentos privados de produção e exportação de produtos hidroitensivos e socialmente danosos, como a cana-de-açúcar para etanol.

Sempre me angustia a pergunta: por que temos que lutar contra, quando temos muito mais a favor para lutar? Mas, se é verdade que “um rio é como um espelho que reflete os valores de uma sociedade", a nossa não vale o que bebe e come...

Resiste-se às evidências da falência deste modelo. No Brasil, com tantas dádivas da natureza, potencial extraordinário para servir a seu povo, à humanidade e ao planeta nesta hora grave, as crises econômica e ecológica têm sido encaradas até entusiasticamente como oportunidade de negócios lucrativos, numa postura cega, mesquinha e irresponsável. O atual governo, do Presidente Lula, frustrante das enormes expectativas da maioria que o elegeu, se presta a subsidiar a reprodução do modelo falido. O PAC, Programa de Aceleração do Crescimento (cerca de 178 bilhões de euros) prioriza obras de infraestrutura para o crescimento econômico a qualquer custo - até o desrespeito à lei, a povos tradicionais, a instituições do Estado.

No Brasil e em lugar nenhum, não cabe mais o crescimento ilimitado e obsessivo. É urgente mudar nosso modo de produção e nossos padrões de consumo, estabelecendo como critério a destinação universal dos bens necessários. Temos que aprender a “viver mais com menos”. Emergencialmente, ampliar iniciativas como a taxação de atividades destrutivas, do capital especulativo e dos grandes lucros, e o emprego destes recursos em programas de prevenção dos desastres ecológicos e apoio às vitimas da fome, da sede, das doenças e das mudanças climáticas.

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Por fim, compreendidas e compartilhadas as razões de estarmos aqui, só tenho a agradecer. Como reconhecimento e reforço de nossa luta, veio em boa hora. Muitos - porque não entendem e minimizam o que está em jogo - já davam por perdido o embate desigual que fazemos. Feliz coincidência: esta semana começamos uma nova Campanha Internacional contra a Transposição do Rio São Francisco, cujas obras estão iniciadas pelo Exército Brasileiro. Lançada pelos 33 Povos Indígenas da Bacia do São Francisco afetados direta e indiretamente, exige consulta a eles e ao Congresso Nacional e respeito aos seus territórios, como manda a Constituição. Convido aos senhores e senhoras a se engajarem nesta Campanha de emails ao Supremo Tribunal Federal e às demais autoridades brasileiras.

Agradeço à Fundação Kant a oportunidade de todo este avanço da consciência e da luta. Associá-la à luta do povo palestino, na pessoa de Jeff Harper, mais a engrandece e aprofunda. Comunico que vamos destinar o valor econômico do Prêmio ao início das obras do Santuário dos Mártires em minha diocese. Cidadãos do Mundo, mais do que ninguém, foram eles que deram a própria vida à causa da Vida. Em vida tiveram sofrimento e dor, que descansem com dignidade e paz!

Agradeço a todas as entidades e pessoas que têm se dedicado abnegadamente à solidariedade com a luta popular no Brasil, em especial aquelas que organizam essa nossa visita à Alemanha e Áustria: KOBRA (Kooperation Brasilein), Missão Central Franciscana, Misereor, Adveniat, Kindam..., Casa do Mundo e Paróquia do Anjo da Guarda, em Graz (Áustria).

Anterior a Kant e à sua entusiástica proposta de uma “paz perpétua”, fundada no exercício do Direito da “comunidade universal”, Francisco de Assis, pai e mestre, quase 800 anos antes das atuais catástrofes sócio-ambientais, propunha a fraternidade universal como o caminho para a salvação de todos e glória do Criador.

A todos e todas minha saudação franciscana, e que ela soe como uma oração: PAZ e BEM!