29/10/2009

As fotos do cardeal Rodé: uma meditação

O cardeal Franc Rodé, prefeito da Congregação para os Religiosos e a pessoa encarregada pelo Papa Bento XVI para conduzir a Investigação Apostólica das congregações religiosas femininas nos EUA, ordenou, no último mês de março, seis novos diáconos do Instituto de Cristo Rei e Soberano Sacerdote na casa mãe do instituto, em Gricigliano, próximo de Florença, na Itália. A reportagem é de Thomas C. Fox, publicada no sítio National Catholic Reporter, 28-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Olhando essas fotos, lembramo-nos da diversidade cultural, eclesial e sócio-psicológica que compõe a nossa Igreja. Ao viver, como nós vivemos, no início do século XXI, devemos reconhecer que somos produtos de uma mistura de influências e temperamentos pré-modernos, modernos e pós-modernos complexos e sem precedentes.

Olhando essas fotos, nos sentimos movidos a perguntar se o cardeal Rodé, que, de acordo com o perfil de John Allen, é uma pessoa encantadora e um produto de antigas forças europeias, eslovenas e anticomunistas, está, de fato, tão distante dos padrões culturais e sociais dos EUA contemporâneos que possivelmente não entenderia muito bem as vidas e o trabalho de nossas religiosas. O cardeal, cuja inclinação por uma Igreja pré-conciliar de estilo tradicional, monárquica e europeia está claramente evidente nestas fotos, disse a John Allen que o Vaticano II provocou "a maior crise na história da Igreja". Nossas religiosas dedicaram suas vidas para dar continuidade aos mandatos do concílio de serviço e reforma.

Olhando essas fotos, lembramo-nos de que o multiculturalismo é um ingrediente central em nossa Igreja e em nosso mundo hoje, que requer compreensão, paciência e tolerância especial. Também é verdade que um julgamento leva a outro julgamento, e é por isso que cada vez mais pessoas em nossas comunidades estão perguntando: "Quem exatamente é esse homem que foi encarregado de julgar as almas, as vidas, a dedicação e a fé de nossas religiosas?".

Olhando essas fotos, dificilmente podemos evitar a conclusão de que a Investigação Apostólica, da forma em que atualmente está estruturada e é desenvolvida, está tragicamente equivocada e pode causar um dano irreparável à nossa Igreja, a menos que mentes sábias encontrem uma forma de suspendê-la.










Leia mais no sítio New Liturgical Movement e veja mais fotos aqui.

Pe. Hans Küng

O Papa que pesca na margem da direita

Artigo do teólogo suíço-alemão Hans Küng, presidente da Fundação Ética Mundial, publicado no jornal La Repubblica, 28-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


É uma tragédia: depois das ofensas já provocadas por Bento XVI aos judeus e aos muçulmanos, aos protestantes e aos católicos reformistas, agora é a vez da Comunhão Anglicana. Ela conta com 77 milhões de aderentes e é a terceira confissão cristã, depois da Igreja católica romana e da ortodoxa. O que aconteceu? Depois de ter reintegrado a antirreformista Fraternidade de São Pio X, agora Bento XVI quer engordar as fileiras reduzidas dos católicos romanos também com anglicanos simpatizantes de Roma. Os sacerdotes e bispos anglicanos poderiam se converter mais facilmente à Igreja católica, mantendo seu próprio status, também de casados. Tradicionalistas de todas as Igrejas, uni-vos – sob a cúpula de São Pedro! Vejam: o pescador de homens pesca principalmente na margem direita do lago. Mas ali a água é turva.

Esse ato romano representa nada menos do que uma drástica mudança de rota: longe da consolidada estratégia ecumênica de diálogo direto e de uma verdadeira reconciliação. E rumo a uma pirataria não ecumênica de sacerdotes, aos quais é até dispensada a obrigação medieval de celibato, só para lhes tornar possível um retorno a Roma sob o primado papal. Claramente, o atual bispo de Canterbury, Dr. Rowan Williams, não estava à altura da sagaz diplomacia vaticana. Ao querer se galardoar, o Vaticano aparentemente não compreendeu as consequências da pesca papal em águas anglicanas. Caso contrário, não teria assinado o comunicando minimizante do arcebispo católico de Westminster. As presas na rede de Roma não entendem que, na Igreja católica romana, serão só padres de segunda classe, e que os católicos não podem participar de suas funções? O comunicado faz referência descaradamente aos documentos realmente ecumênicos da Anglican Roman Catholic International Commission (Arcic), elaborados durante anos e anos de laboriosas negociações entre o romano Secretariado para a União dos Cristãos e a anglicana Conferência de Lambeth: sobre a Eucaristia (1971), sobre o ofício e a ordenação (1973), assim como sobre a autoridade na Igreja (1976/81). Porém, os especialistas sabem que esses três documentos, subscritos em seu tempo por ambas as partes, não estão voltados à pirataria, mas sim à reconciliação.

Esses documentos de verdadeira reconciliação oferecem, de fato, a base para o reconhecimento das ordenações anglicanas, das quais o Papa Leão XIII, em 1896, havia negado a validez com argumentações pouco convincentes. Da validade das ordenações anglicanas, deriva também a validade das celebrações eucarísticas anglicanas. Seria possível, assim, uma recíproca hospitalidade eucarística, uma intercomunhão, um lento processo de unificação entre católicos e anglicanos.

Mas a vaticana Congregação para a Doutrina da Fé, à época, fez com que esses documentos de reconciliação desaparecessem o mais rápido possível nos calabouços do Vaticano. "Trancar na gaveta", diz-se. "Muita teologia künguiana", recitava, à época, um comunicado reservado da agência de imprensa católica KNA. Com efeito, eu havia dedicado a edição inglesa do meu livro "A Igreja Católica" (Objetiva, 2002) ao então arcebispo de Canterbury, Dr. Michael Ramsey, na data de 10 de outubro de 1967, quinto aniversário de abertura do Concílio Vaticano II: na "humilde esperança de que nas páginas deste livro se apresente uma base teológica para um acordo entre as Igrejas de Roma e de Canterbury".

Ali se encontra também a solução para a espinhosa questão do primado do papa, que há séculos divide essas duas Igrejas, mas também divide Roma das Igrejas do Leste e das Igreja reformistas. Uma "retomada da comunidade eclesial entre a Igreja católica e a Igreja anglicana seria possível", se, "de um lado, fosse garantido que a Igreja da Inglaterra pudesse manter a sua própria ordem eclesial sob o primado de Canterbury e, de outro, que a Igreja da Inglaterra reconhecesse o primado pastoral do sólio de Pedro como instância superior de mediação e conciliação entre as Igrejas".

"Assim", esperava eu à época, "do império romano nascerá um Commonwealth [corpo, comunidade] católico!".

Mas o Papa Bento quer restaurar absolutamente o império romano. Não faz nenhuma concessão à Comunhão Anglicana, pretende, ao contrário, manter para sempre o centralismo medieval romano – mesmo se impeça um acordo das Igrejas cristãs sobre questões fundamentais. O primado do Papa – depois do Papa Paulo VI, é preciso admitir, a "grande rocha" no caminho rumo à unidade da Igreja – não age aparentemente como "Pedra da unidade". Volta ao auge o velho convite ao "retorno para Roma", agora por meio da conversão, sobretudo de sacerdotes, possivelmente em massa. Em Roma, fala-se de meio milhão de anglicanos com 20 ou 30 bispos. E os outros 76 milhões? Uma estratégia que se demonstrou falimentar nos séculos passados e que conduzirá, no melhor dos casos, ao nascimento de uma mini-Igreja anglicana "unida" a Roma em forma de dioceses pessoais (não territoriais). Mas quais são as consequências hodiernas dessa estratégia?

1. Um ulterior enfraquecimento da Igreja anglicana: no Vaticano, os antiecumênicos jubilam pelo influxo de conservadores; os liberais, na Igreja anglicana, exultam pelo êxodo de simpatizantes católicos perturbadores. Para a Igreja anglicana, essa cisão implica em uma ulterior corrosão. Ela já sofre agora sob as consequências da eleição para bispo, desnecessariamente concretizada nos EUA, de um pároco reconhecidamente homossexual – com a conseqüente aceitação da divisão da própria diocese e de toda a comunidade anglicana. A corrosão foi reforçada pela atitude discordante da cúpula eclesiástica com relação aos casais homossexuais: alguns anglicanos aceitariam sem mais o registro civil com amplas consequências jurídicas (tipo direito de sucessão) e com eventual benção eclesiástica, mas não um "casamento" (termo reservado, há milênios, à união entre homem e mulher) com direito de adoção e consequências imprevisíveis para os filhos.

2. Desorientação geral dos fiéis anglicanos: o êxodo dos sacerdotes anglicanos e a nova ordenação na Igreja católica proposta a eles levantam, para muitos fiéis (e pastores) anglicanos, uma grave interrogação: a ordenação dos sacerdotes anglicanos é válida? E os fiéis teriam que se converter à Igreja católica junto com o seu pastor? O que será dos imóveis eclesiásticos e dos introitos dos pastores?

3. Desprezo do clero e do povo católico. A indignação com a persistência do não às reformas se difundiu também entre os fiéis membros da Igreja. Depois do Concílio, muitas conferências episcopais, inumeráveis pastores e crentes pediram a anulação da proibição medieval do casamento para os sacerdotes, que subtrai párocos já quase à metade das nossas paróquias. Mas só gritam contra a recusa persistente e obstinada de Ratzinger. E agora os padres católicos devem tolerar a seu lado pastores casados convertidos? O que devem fazer os padres que desejam o casamento: talvez fazer-se primeiro anglicanos, casar e depois reapresentar-se?

Como no cisma entre o Oriente e o Ocidente (século XI), aos tempos da Reforma (século XVI) e no Concílio Vaticano I (século XIX), a fome de poder de Roma divide a cristandade e danifica a sua Igreja. Uma tragédia.


25/10/2009

Mary E. Hunt

A proposta indecente do Vaticano aos anglicanos: um escândalo teológico

"Roma não muda nem uma vírgula com a chegada dos anglicanos dissidentes. Ela mantém em seu lugar o seu clero celibatário, enquanto acolhe anglicanos casados com gosto." Essa é a opinião da teóloga norte-americana Mary E. Hunt, publicada no sítio Religion Dispatches, 22-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Em setembro deste ano, a teóloga esteve na Unisinos durante a programação do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades, proferindo a conferência "Narrar Deus hoje: uma reflexão a partir da teologia feminista".
Fonte: UNISINOS


O novo esquema do Vaticano para atrair anglicanos conservadores descontentes ao rebanho deve ter pego o arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, desprevenido, mas os católicos não ficam surpresos com nada do que Roma faz para ampliar a sua cota de mercado. O clero conservador, cuja oposição à ordenação de mulheres e aos indivíduos LGBT o motivou a se separar da Comunhão Anglicana, é agora bem-vindo a se mudar para o catolicismo.

Deixemos a história lembrar esse escândalo teológico pelo que ele é. Vendido por Roma como um passo adiante nas relações ecumênicas com uma comunhão-prima, ele é, de fato, a união de dois grupos unidos em sua rejeição às mulheres e aos indivíduos "queer" como indignos para a liderança religiosa.

Uma vindoura Constituição Apostólica irá pronunciar os detalhes: os anglicanos contra a ordenação de mulheres e de pessoas LGBT (como o bispo Gene Robinson, por exemplo) estão em plena comunhão com Roma. Por que se incomodar, então, com requerimentos de conversão individual ou papeladas supérfluas? Esses anglicanos podem até fazer a transição enquanto congregações ou dioceses inteiras, se preferirem. Eles serão católicos, mas, assim como os católicos de rito oriental, eles o farão a seu modo. Eles podem trazer seus próprios incensos e sinos e o seu Livro de Oração Comum, e até seus próprios padres e bispos, que irão presidir os "Ordinariatos Pessoais", que irão funcionar como dioceses. Venham como vocês são, sejam bem-vindos para discriminar contra os conteúdos do seu coração em nome de Deus.

Roma não muda nem uma vírgula com a chegada dos anglicanos dissidentes. Ela mantém em seu lugar o seu clero celibatário, enquanto acolhe anglicanos casados com gosto. Eu prevejo mais do que uma pequena consternação nas fileiras romanas com relação a isso. As políticas atuais permitem que os pastores episcopais e luteranos casados pulem a cerca com sua família a reboque. Porém, os homens católicos romanos que desejam se casar, independentemente das mulheres católicas romanas que poderiam até concordar com o celibato, são proibidos de ser ordenados. Nenhuma autoridade católica romana parece ser capaz de dizer de uma forma franca e direta por que isso é assim. Eles murmuram algo sobre tradição e certas distinções. Mas a retórica se enfraquece crescentemente enquanto eles defendem o indefensável contra a sua própria prática. Isso não é bonito.

Roma mantém sua liturgia e teologia completamente intactas. A educação teológica continua a mesma, com o acréscimo de pequenos grupos de formação para candidatos anglicanos ao sacerdócio, que podem apreciar seu próprio "patrimônio", conseguindo também uma boa dose de pensamento romano. De nenhuma forma o Vaticano se engaja em questões que conduzam à Reforma Inglesa do século XVI. Ao invés, Roma pretende ser flexível e moderna com relação a tudo isso, graciosa e complacente como uma raposa. Quando as lutas por propriedades começarem, eu prevejo que as gentilezas abrirão caminho para algumas sérias disputas, e nós veremos como Roma não consegue ser complacente.

Denominações são negócios, acima de tudo, e, dessa forma, elas prestam tanta atenção aos resultados finais quanto aos seus ensinamentos. Talvez mais aos primeiros. Nesse caso, a oportunidade de mais fácil acesso são os anglicanos britânicos que ainda não descobriram como se reorganizar à luz de suas mudanças de denominação. O grupo norte-americano liderado pelo Rev. Martyn Minns, da Virgínia, disse que eles estão muito bem, obrigado, ajeitando suas próprias estruturas para que não precisem se converter.

Alguém pode se perguntar quanto tempo eles poderão resistir ao charme de Roma. Imaginem as oportunidades imobiliárias, já que as igrejas católicas romanas fecham, e os anglicanos conservadores precisam de prédios. Pensem na solução brilhante para a falta de sacerdotes, com os padres anglicanos garantidamente fiéis às normas substituindo os rapazes romanos, assim que eles morrerem e/ou pensarem por si mesmos. Conjecturem a visão de uma grande massa com uma grande quantidade de ministros do altar e incenso tão abundante, que faz com que os paroquianos até esqueçam que houve uma vez um Vaticano II. Para os mais "católicos" entre os dissidentes anglicanos, é um casamento feito nos céus. Mas os anglicanos conservadores mais evangélicos podem considerar que esse é o seu pior pesadelo.

Como prevenir que outras denominações sigam a linha de Roma? Por exemplo, e se a Comunhão Anglicana estabelecer uma ala católica, em que aqueles católicos romanos que acreditam na ordenação de mulheres e de um clero de casais de mesmo sexo podem ser anglicanos de rito católico romano? Os Menonitas podem criar um rito católico para aqueles que os seguem em questões de paz, resultando nos menonitas católicos. Eu duvido disso. É mais provável que Roma decida que alguém nem precisa ser cristão. Essa discriminação contra mulheres e gays é um elo comum suficiente para criar alguns católicos de rito muçulmano, por exemplo. As permutas são infindáveis, mas o resultado é o mesmo: uma perversão de tudo o que o movimento ecumênico representou nos últimos cem anos. Os cristãos ecumênicos tentaram aprender sobre as tradições uns dos outros e encontrar pontos positivos de acordo – não pequenos espaços de preconceito compartilhado.

Eu sinto muito por Rowan Williams se ele não sabia contra o que estava quando se envolveu nas relações bilaterais com Roma, só para estar sujeito à sua traição. Cercado por todos os lados em sua própria comunhão, ele agora preside o potencial êxodo de alguns de seus membros que irão encontrar, na nova dispensa, um lugar confortável para viver suas ideias antiquadas de humanidade.

Eu apenas espero que Williams e companhia se consolem com o fato de que estão em boa companhia entre os colegas ecumênicos que respeitam as tradições uns dos outros, compreendem as dinâmicas das disputas internas e resistem à tentação de lucrar com os problemas dos outros. Roma, por outro lado, está em uma categoria – mesmo que baixa – só dela.
Para ler mais:
Primaz anglicano não considera a decisão católica um ''ato de agressão''
Ida e volta: 20 padres católicos espanhóis passaram para a Igreja Anglicana em 2009
Bispo anglicano questiona criação romana de prelazias pessoais
Relações anglicano-católicas: nem diálogo, nem ecumenismo
Ainda sobre os anglicanos. Testemunhos e comentários
Bento XVI e a restauração da identidade católica. Entrevista com John L. Allen Jr.
Igreja Anglicana. Pelos caminhos de Newman e Blair
Vaticano anuncia que irá acolher anglicanos conservadores dissidentes
Papa aceita padre anglicano casado e anuncia visita
Roma faz concessões a quem aderir à Igreja
''Se a pessoa quer sair, deve ter suas razões'', afirma bispo anglicano
Anglicanos, evitada a ruptura. Mas permanecem as distâncias
Roma faz concessões a quem aderir à Igreja

22/10/2009

Leonardo Boff

Querendo ser Deus?
Fonte: UNISINOS


Rose Marie Muraro é uma mulher impossível. Com extrema limitação de vista e de saúde escreveu 35 livros e editou cerca de outros 1600. Foi pioneira do feminismo brasileiro. Seu estudo sobre a sexualidade da mulher brasileira, publicado pela Vozes de Petrópolis se transformou num clássico seja pela metodologia seja pelas categorias de análise.

Formada em física, sempre se preocupou com a tecnologia e sua incidência no destino humano. Agora, no avançado dos anos e após muitas pesquisas e manejando mole imensa de fontes, informações e autores nos entrega um livro-síntese com o titulo Os avanços tecnológicos e o futuro da humanidade: querendo ser Deus? É uma publicação da Editora Vozes de Petrópolis da qual foi por 17 anos diretora editorial.

O subtítulo Querendo ser Deus? define a perspectiva de sua análise e ao mesmo tempo faz ecoar uma denúncia contra o tipo de ciência e de tecnologia dominantes na história. Na verdade, faz um soberano rastreamento histórico da tecnologia desde os alvores da humanidade quando há mais de dois milhões de anos surgiu o homo faber, aquele que, por primeiro, utilizou o instrumento para se impor à natureza, passando pelos vários períodos históricos com suas respectivas revoluções até chegar aos tempos contemporâneos da engenharia genética, da robótica, da nanotecnologia, da biologia sintética para culminar na fusão entre homem e máquina.

O que Rose nos mostra, ao longo de seu livro, é o calvário da Terra e a lenta e progressiva crucificação da vida e da natureza através do poder da tecnociência, posta a serviço da vontade de poder na sua concretização mais crua e cruel no capital/dinheiro.

Mas nem sempre foi assim. Primitivamente o saber e a técnica estavam a serviço da solidariedade e da partilha, atendendo as demandas humanas e aliviando o peso da vida. Mas do momento em que surgiu a moeda e ela se fez a mediação exclusiva para todas as trocas e se transformou ela mesma em mercadoria com preço (juros) se produz uma perversa revolução. Passa-se da cooperação para a competição, do cuidado para a agressividade. O que vige então é o ganha/perde e não o ganha/ganha. A sociedade é conflitiva com exércitos, muitas guerras e grandes mortandades Os senhores do dinheiro assujeitam a si as pessoas, controlam a sociedade e decidem que saber e que técnica cabe desenvolver para reforçar seu poder. Não se produz para a vida mas para o mercado. Não se inventa para a sociedade mas para o lucro.

O atual projeto da tecnociência acelerou enormemente a história. Em cem anos a humanidade caminhou mais do que nos dois milhões de anos anteriores. Esta velocidade estonteou a mente e está gerando uma verdadeira mutação humana, somente comparável àquela ocorrida na evolução biológica multimilenar. Cientistas projetam introduzir nanopartículas na corrente sanguínea do cérebro para gestar uma inteligência supra-humana. Emergeria assim um híbrido de ser humano e máquina, bifurcando a humanidade entre os melhorados e os não melhorados.

É contra esse intento que se insurge Rose Marie Muraro, pois ele configura suprema arrogância e atualização da antiga tentação bíblica do sereis como Deus.

O ser humano, por mais que queira, jamais superará os limites de sua natureza. Só uma ciência com consciência, servirá à vida e garantirá o futuro da Terra. A autora propugna por moedas complementares, por um consumo compassivo e reciclável, por uma revolução radical de dentro para fora e de baixo para cima, no jogo do ganha/ganha, como forma de sair com êxito do cipoal em que nos enredamos. A frase final de seu brilhante livro é esperançadora: “Quando desistirmos de ser deuses poderemos ser plenamente humanos, o que ainda não sabemos o que é mas que intuímos desde sempre”.

21/10/2009

Pe. Manfredo A. de Oliveira

A urgência de novo padrão civilizatório
Fonte: Paróquia de Santo Afonso/Fortaleza-CE




O presidente do IPEA, o economista Márcio Porchmann, tem insistindo em seus diversos pronunciamentos através do Brasil na urgência de pensar em novas bases um projeto de desenvolvimento para a o país. Sua tese de base é que vivemos hoje uma situação profundamente diferente da que serviu de referência para os projetos de desenvolvimento pensados até agora. Na realidade se tratou para nós no passado de passar de uma sociedade rural para uma sociedade urbano-industrial o que implicava que o eixo do projeto fosse o processo de industrialização.

Hoje estamos passando de uma sociedade industrial para uma sociedade pós-industrial. Alguns fatos importantes nos ajudam a compreender o que está em jogo. Atualmente no Brasil, de cada dez empregos gerados, sete a oito são empregos no setor dos serviços e a forma do exercício do trabalho neste setor é profundamente diferente do trabalho na indústria e na agricultura. Fundamental neste contexto é que esta forma de trabalho está vinculada a novas formas de gestão que estão produzindo uma enorme intensificação do trabalho que faz com que se trabalhe cada vez mais e fora do local de trabalho.

A novidade aqui é a produtividade imaterial no sentido de que se trata de um trabalho não materializado, não tangível, com base cada vez mais forte no conhecimento e cujo salário é reajustado de acordo com a meta da produção e das metas de venda. A impressão que se passa ao trabalhador é que ele é uma espécie de sócio do empreendimento uma vez que seu salário depende da evolução do faturamento. Esta produtividade imaterial está gerando grandes parcelas de riqueza que não está sendo discutida, contabilizada e muito menos repassada para os salários o que significa dizer que estamos vivendo uma fase do capitalismo de gigantesco aumento da concentração de riqueza, marcada por um processo de fusão que não vai permitir a existência de mais de quinhentas grandes corporações transnacionais capazes de dominar qualquer setor da atividade econômica. Estamos num mundo em que fica claro que o que realmente importa não são as pessoas, nem os países, mas as grandes corporações. Nesse novo contexto, as instituições criadas no pós-guerra para administrar países simplesmente não servem mais. No entanto, aqui está para ele o grande desafio de nosso tempo: esta nova forma de constituição da sociedade pós-industrial, sociedade de serviços e de conhecimento, está gerando um ganho de produtividade que permite construir um novo padrão civilizatório.

No entanto, o Brasil está com muita dificuldade para passar para este novo estágio de desenvolvimento porque ainda não realizou tarefas que foram indispensáveis nos países que se modernizaram. O sinal mais claro disto é o Brasil não ter realizado as reformas básicas que foram fundamentais para a consolidação de uma sociedade industrial entre as quais a reforma agrária e, sobretudo, a reforma tributária. Na realidade, diz ele, os ricos vivem aqui muito melhor que a classe média e os ricos nos Estados Unidos e na Europa porque aqui eles não pagam impostos. E lá não existe essa massa de serviçais. No Brasil, as famílias de classe média e ricas têm, em média, 13 serviçais à sua disposição para prestar serviços, mais de 20 milhões de pessoas, um exército com remuneração extremamente baixa. Por que é possível ir para a churrascaria no Brasil e comer bem pagando preços módicos? Porque os que lá trabalham, têm remunerações extremamente baixas. O que chama atenção é que viabilizar e internalizar esse padrão de consumo só é possível com um sistema tributário que concentra renda, que tira dos pobres e dá para os ricos e com um Estado que se organizou para atender fundamentalmente os ricos, o andar de cima da sociedade. Esse andar de cima tem tudo. Tem banco público, tem sistema de tecnologia, tem compras públicas, ou seja, montou-se uma estrutura para sustentar os de cima.

18/10/2009

Entrevista - Hans Küng

''Vivi sete vidas. Não tenho medo de morrer''.

Nesta longa entrevista à revista alemã Stern, o teólogo alemão Hans Küng é confrontado pelo entrevistador sobre suas convicções de fé e teológicas. Há 20 anos de sua "missio canonica" - a autorização para o ensino da teologia católica - ter sido revogada pela Congregação para a Doutrina da Fé, devido às suas críticas a João Paulo II, Küng encara também o tema da morte e avalia a sua trajetória de vida. A reportagem é de Arno Luik, publicada na revista alemã Stern, 15-10-2009. A entrevista publicada em alemão, foi traduzida do italiano por Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Senhor Küng, tenho uma tia com 98 anos que tem um grave problema: ela tem certeza que vai para o paraíso e irá encontrar lá seu marido, filhos e conhecidos, mas se questiona em que estado estarão: jovens, velhos, doentes, sãos?

Entendo que a sua tia tenha tais preocupações. Não se sabe o que pode nos esperar além da porta da morte. Pessoalmente, não posso e não quero imaginar como é o paraíso. Toda pessoa gosta de imaginar, mas deve saber que são só suas imagens. Vivemos em uma época posterior a Copérnico e a Darwin - e portanto não podemos mais imaginar o paraíso como fizeram, por exemplo, Michelangelo e os pintores da Idade Média e do Barroco. Eu não acredito nessas representações simplistas do paraíso, segundo as quais ficaremos sentados em uma cadeirinha de ouro cantando "aleluia".

O Papa Bento XVI acredita seguramente que no além, de algum modo, todos estão sentados juntos. Há não muito tempo, ele dizia que seu antecessor, João Paulo II, estava escorado na sacada da casa do Senhor olhando-nos: então, há um morto que olha lá de cima.

Essa é uma representação surpreendentemente ingênua. O Papa se expressa às vezes de maneira pré-moderna e popular - uma herança da sua fé bávara agrícola. Naturalmente, ele também sabe que o paraíso não é uma casa em cima das nuvens com janelas do céu. Os cristãos iluminados entendem que, no além, nenhum cadáver é ressuscitado, mas que - como dizemos na liturgia - ocorre uma total transformação do modo de ser. Estou curioso para descobrir como será no além.

Senhor Küng, o senhor certamente está desiludido com a sua vida aqui na terra.

Como assim?

O senhor escreveu mais de 60 livros, mais de 30 mil páginas e...

Trabalho com muito prazer. Com toda a modéstia, acredito ter produzido algo que torna o cristianismo, a religião, a ética novamente compreensíveis ao homem moderno.

No entanto, o seu ardor...

Não fui e não sou um fanático, nem um santo. Escrevo para as pessoas que estão em busca.

Apesar do seu compromisso, desde 1989 as duas maiores Igrejas na Alemanha perderam mais de sete milhões de fiéis, e na oração das quartas-feiras em Roma participam anualmente dois milhões e meio de pessoas a menos com relação a alguns anos atrás com João Paulo II. O senhor consumiu seus dedos escrevendo, mas inutilmente.

Não. Tive êxito! Um número incalculável de pessoas me escreve - diariamente - que eu fui uma ajuda para elas. Eu me tornei, involuntariamente, um porta-voz da leal oposição à sua Santidade. Um porta-voz que é levado a sério - até pelo próprio Papa. Estou presente dentro e fora da Igreja. Sem mim, muitos teriam abandonado a Igreja. Muitos me dizem: "Enquanto o senhor resistir dentro da Igreja, eu também resisto".

No entanto, o senhor perdeu a sua batalha. O seu antagonista Ratzinger...

Não é o meu antagonista, e a minha profissão não é crítico do Papa. Sou um reformador, não um subversivo. E não suporto ser sempre chamado de rebelde da Igreja ou...

O seu antagonista se tornou Papa, entrou na história. O senhor será só uma nota de rodapé...

É um desrespeito o que você está dizendo. Você não pode ver o futuro, você...

Mas será assim!

Você acredita? Como uma pessoa entra na história só a própria pessoa decide. Não importa a função, nem o poder. Um exemplo: Tomás de Aquino - não quero me colocar à sua altura - renunciou voluntariamente a qualquer cargo importante na Igreja. O Papa Inocêncio III, seu contemporâneo cultíssimo, foi o mais poderoso de todos os papas. Você conhece Inocêncio III? Não. Esse papa, poderosíssimo em seu tempo, é uma nota de rodapé, mesmo que ainda importante para os historiadores. Mas Tomás de Aquino é constantemente citado ainda hoje como uma autoridade. Não, não me sinto um perdedor.

É claro que o senhor deve dizer e deve ver assim.

Certamente eu vejo assim! Mas há uma outra coisa que entristece na vida: que Joseph Ratzinger, que, em 1966, eu chamei para a Universidade de Tübingen, não continuou no mesmo caminho da reforma, como eu fiz. Então, provavelmente temos hoje essa divisão da Igreja católica entre Igreja alta e Igreja baixa. Eu represento a Igreja baixa; ele, a Igreja alta. Todo o meu trabalho estava voltado para que a Igreja alta mudasse. E nisso, e aqui você tem razão, eu tive só um sucesso limitado. Mas quem venceu uma batalha ainda está longe de ter vencido a guerra. Eu acredito que a atual política do Vaticano é um fiasco. A tentativa de empurrá-la novamente para trás, para a Idade Média, a esvazia. Não se pode trazer os velhos tempos de volta à vida!

Mas, diga-me, por que 200 anos depois do Iluminismo ainda se deveria acreditar em Deus?

Sim, justamente como iluminista, eu lhe digo: existem milhares de motivos para não acreditar.

Nisso o senhor tem razão.

Diante da miséria do mundo e da própria vida, pode-se duvidar de Deus ou confiar em Deus. Não há nenhuma prova estritamente científica a favor de Deus. A sua existência não pode ser fundamentada em argumentos logicamente convincentes. Justamente segundo Immanuel Kant: a razão pura teorética fora do tempo e do espaço não é competente. Por isso, a existência de Deus não pode ser baseada em argumentos logicamente convincentes.

Sério?!

Não brinque. Você certamente ainda tem em mente, de um lado, a sua fé de criança, mas, de outro lado, a sua razão também não tem competência na questão da fé. A existência de Deus é uma questão de confiança razoável.

Confiança razoável? Parece-me ser, pelo contrário, irrazoável, e acho que Mark Twain tinha razão: "A fé consiste em crer em algo que se sabe que não é verdade".

Exatamente uma péssima frase de espírito. Porém, eu lhe respondo muito seriamente com uma frase da Carta aos Hebreus: "A fé é fundamento das coisas que se esperam e prova daquelas que não se veem". Portanto, apesar das suas dúvidas há milhares de motivos pelos quais uma pessoa - apesar de todas as contrariedades da vida - pode acreditar em Deus.

Diga-me um.

Sobre isso, justamente, recém escrevi um livro inteiro: "Quello in cui credo" ("Aquilo em que creio", em tradução livre). A fé é sobretudo um problema de confiança de fundo. Confiança na vida. Gostaria de convidá-lo a admitir Deus pelo menos como hipótese. Tome a questão filosófica mundial: por que uma coisa existe no lugar de não ser, ou a inexplicável origem das fundamentais constantes da natureza ou da velocidade da luz. Mas também o problema do infinito na matemática, os rastros da transcendência na música - tudo isso pode ser um convite a crer em Deus.

O cientista Richard Dawkins lhe responderia a essas palavras que ressoam tão belas...

... Eu diria, ao invés, que ressoam tão verdadeiras!

Ele diria: todas as religiões ensinam coisas sem sentido e são perigosas para a humanidade.

Não me fale aqui desses novos ateus! Dawkins é um ideólogo que reage a uma imagem de Deus superada e argumenta de modo extremamente polêmico, sem porém levar a novas consequências. É um estudioso de ciências naturais, sem abertura a problemas filosóficos. Eu me ocupei dos grandes ateus clássicos, analisei Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud. Eles constituem um desafio para mim, não esse...

"A religião", diz Marx, "é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, o espírito de situações sem espírito. É o ópio do povo. A abolição da religião enquanto felicidade ilusória do povo é a condição necessária para a sua verdadeira felicidade: a condição necessária para renunciar às ilusões da sua situação, a condição necessária para renunciar a uma situação que precisa de ilusões".

Marx tem razão: a religião pode ser o ópio do povo. A religião pode ser um meio de aquietamento e consolação social. Mas não deve ser isso. As análises de Marx também expressam, talvez contra a sua vontade, algo positivo, isto é, que a religião pode ser muito mais - um protesto contra as condições que temos, protesto contra as circunstâncias por causa das quais sofremos.
Essa é a uma interpretação arriscada. "A crítica da religião", diz ainda Marx, "é o germe da crítica do vale de lágrimas do qual a religião é a auréola".

Religião só reverbera? Nisso, Marx - como Feuerbach - provoca um curto-circuito. A religião é mais do que uma projeção. Como a fé, a esperança e o amor, ela não se exaure só no fato de fazer suportar a miséria dos homens consciente ou resignadamente! Não, a religião pode ser um motivo excepcionalmente forte, como diz Marx, não só para interpretar o mundo de forma diferente, mas para mudá-lo.

Meu Deus, mas que mundo o seu Deus criou. Enquanto nós estamos aqui falando, crescem sem parar as montanhas de cadáveres. A cada cinco segundos uma criança com menos de 10 anos morre de fome ou de sede. Estamos falando de míseros trinta minutos - 360 crianças mortas!

Por que Deus não impediu o mal? O filósofo grego Epicuro já volta essa pergunta contra a religião no ano 300 a.C. Mas talvez devemos nos perguntar antes: por que os homens não impediram o mal? Com relação ao mal, toda pessoa que crê em um Deus bom e vivo é confrontado neste mundo a um mistério que...

O senhor chama de mistério a morte de crianças pela fome?

Não. O mistério é por que Deus não impediu o mal. A dor imerecida de crianças não pode ser justificada com nenhuma argumentação. "Por que sofro? Essa é a rocha do ateísmo" é dito na tragédia de Büchner "A morte de Danton". Sim, por que sofremos? Essa é a pergunta original do homem. Você, senhor Luik, sabe dar uma resposta?

O senhor, professor Küng, o senhor é o cristão crente. Eu espero ansiosamente a sua resposta.

Que não é fácil. Também pertence ao mistério por que os homens não fazem mais contra a dor. De todos os modos, não podem atribuir toda a culpa a Deus. A humanidade, justamente no "avançado" século XX, experimentou o mal em uma medida até então desconhecida: extermínios de Estado, Auschwitz, a industrialização do massacre. Como Deus pôde permitir isso? O mistério do sofrimento não pode ser explicado com os meios da razão.

Muito fácil.

Nem por meio da psicologia, nem por meio da filosofia, nem por meio da moral a escuridão do sofrimento se deixa transformar em luz. Deus permanece incompreensível.

Senhor Küng, além das palavras difíceis: o seu Deus estava em Auschwitz?

Palavras difíceis? Deus não é responsável pelo horror do holocausto. Certamente, se Deus existe - e eu acredito nisso -, então Deus estava também em Auschwitz.

Mas que Deus é esse que está em Auschwitz e não impede Auschwitz?

Esse é um grito de protesto que eu compreendo. E é minha convicção que a monstruosa realidade de Auschwitz não pode ser liquidada mesmo com ardentes especulações sobre um Deus que sofre. A isso se dedica uma teologia do silêncio. Mas até em Auschwitz a fé era possível: crentes de diversas religiões voltaram a Deus a sua oração até na fábrica da morte, porque estavam convencidos de que, apesar de tudo, Deus existia. E você, de sua parte, deve se perguntar: o seu ateísmo explica o holocausto? A sua falta de fé explica o mundo, consegue consolar quem está no sofrimento sem sentido? Não! Nenhum dos grandes espíritos da humanidade que eu li resolveu o problema original do sofrimento e do mal.

Mas nem o cristianismo que - é quase absurdo - fala do Deus bom, benévolo, indulgente. Um Deus que tudo sabe, que tudo guia.

Essa é uma representação medieval do Deus onipotente, que guia todos os eventos cósmicos.

Então eu estudei mal a religião!

Não. Deus é espírito, que age dentro, com e no meio dos homens, mas que respeita a sua liberdade. E essa liberdade também compreende inevitavelmente o mal. O homem que sofre não pode chegar ao segredo dos projetos do criador sobre o mundo. O sofrimento, enorme, insensato - tanto individual quanto coletivo - não pode ser compreendido teoricamente, mas, no melhor dos casos, superado praticamente. Os judeus - os cristãos também - têm, como sofrimento extremo, a figura de Jó diante dos olhos. Esse homem perde tudo, sem culpa alguma: o patrimônio, a família, a saúde, torna-se mendigo, é atingido pela lepra. Lamenta-se com Deus e rejeita todos os argumentos a favor de Deus. Com isso, mostra que o homem não necessariamente deve acolher o sofrimento. Ele tem o direito de insurgir, de protestar, de se rebelar contra um Deus que lhe parece cruel, pérfido e astuto - e por meio dessas provas, Jó reencontra Deus!

Isso é uma fábula.

Isso é literatura mundial altamente dramática. Mas ainda mais do que Jó, para mim, como cristão, é Jesus, aquele Jesus que é abandonado, flagelado, que é caçoado, que morre lentamente na cruz, aquele que participou da terrível experiência do holocausto.

Para o senhor, como cristão, essa morte é certamente uma morte salvífica que...

... que remete para além da miséria, da dor, da morte! Até para céticos como o marxista Horkheimer era insuportável acreditar que a miséria tivesse a última palavra. Deve haver uma última justiça justamente para os pobres, os miseráveis deste mundo! E as crianças que sofrem sem culpa podem ter o conforto de que essa vida não é tudo, mas que têm diante de si uma vida sem dor.

É o senhor mesmo quem diz: a fé é ópio.

Não, não é ópio. É conforto.

O senhor tem agora mais de 80 anos e...

... Estou consciente do fato de que o meu fim terreno está próximo. Antes eu pensava - a minha vida foi uma vida cansativa - que não chegaria aos 50 anos. Agora, faço as contas com a morte, cada hora pode ser a última. Quem tem a morte diante dos olhos todos os dias tem menos medo dela. Estou pronto. Vivi sete vidas. Não me permito nenhuma nostalgia de velhice, não me fixo espasmodicamente em querer ser jovem. Às vezes me perguntam: "Como gostaria de morrer?". Sorrindo, respondo: "Durante uma viagem de trabalho!". E então acrescento: "De todos os modos, não em uma casa de saúde".

O seu amigo, o professor de retórica Walter Jens, afundou-se em um mundo além do pensamento, além das palavras, está louco. Foi um defensor da ajuda ativa a morrer. Sua mulher Inge diz: "Não aproveitou o momento certo em que poderia passar da vida para a morte".

Para mim, a vida é um dom de Deus do qual sou responsável. E isso até o último suspiro. Está entregue à minha responsabilidade, e não à da Igreja, ou do Papa ou de um padre, de um médico, de um juiz. É minha responsabilidade, e, definitivamente, sou responsável da mais alta instância: Deus. Digo apenas que não gostaria de perder o momento certo.

O que espera do fim da vida?

Como disse, estou curioso. A morte é a primeira para todos. Tenho a fundada confiança de não cair no nada. "Isso é tudo", disse Kurt Tucholsky, que se tirou a vida em 1935. Ele escreveu: "Se tivesse que morrer agora, diria 'Isso é tudo?' - e 'Não entendi muito bem'". E: "Foi um pouco barulhento". Mas não, eu não penso assim! Não é tudo. Eu acredito na vida eterna.

Walter Jens me dizia uma vez que encontraria com prazer Heinrich Böll e Willy Brandt lá em cima.

Naturalmente, eu também me encontraria com muito prazer com determinadas pessoas. De todos os modos, preferiria Mozart a Brandt, e gostaria de conhecer Thomas Morus. Mas o que eu sei? As fantasias não tem nada a ver com a seriedade do morrer.

E o que o senhor dirá a Deus, no caso de que exista, quando lhe perguntar: "O que fez para tornar o mundo melhor?"

Sei que ele não me fará essa pergunta, porque ele sabe disso sem perguntar.

Teólogo Juan José Tamayo

Deus é o silêncio do universo

Segundo Juan José Tamayo, teólogo espanhol e prêmio Mundial Presidente da Tunísia 2009 pelo seu livro "Islam. Cultura, religión y política" (Trotta, 2009), é preciso concordar com José Saramago que "a história dos homens é a história de seus desencontros com deus: nem ele nos entende, nem nós o entendemos". O artigo foi publicado no jornal El País, 17-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



Pilar del Río, Sofía Gandarias, José Saramago e eu caminhávamos, em uma manhã de janeiro de 2006, pelas ruas de Sevilha, em direção ao auditório da Universidade Hispalense para participar de um simpósio sobre Diálogo de civilizações e modernidade. Às nove da manhã, enquanto atravessávamos a praça da Giralda, os sinos começaram a repicar enlouquecidamente. "Os sinos tocam porque um teólogo está passando", disse Saramago, com seu habitual senso de humor. "Não", eu respondi com o mesmo tom. "Os sinos tocam porque um ateu está a ponto de se converter". "Isso nunca", ele me respondeu. "Ateu fui durante toda a minha vida e ateu morrerei".

Imediatamente, me lembrei de uma poética definição de Deus que lhe recitei sem vacilar: "Deus é o silêncio do universo, e o ser humano, o grito que dá sentido a esse silêncio". "Essa definição é minha", reagiu em seguida o prêmio Nobel. "Efetivamente, foi por isso que a citei", respondi-lhe. "E essa definição está mais perto de um teólogo místico do que de um ateu". Trata-se, a meu ver, de uma das mais belas definições de Deus, que mereceria aparecer entre as 24 - com ela, 25 - do "Livro dos vinte e quatro filósofos" (Siruela, 2000).

A obra literária de Saramago é uma permanente luta titânica contra Deus. Como foi a do Jó bíblico, que amaldiçoa o dia em que nasceu, sente nojo de sua vida e ousa perguntar a Deus, em tom desafiador, por que lhe ataca tão violentamente, lhe oprime de maneira tão desumana e lhe destrói sem piedade. Ou como o patriarca Jacó, que passa uma noite inteira lutando de braço quebrado contra Deus e termina com o nervo ciático ferido. Não é o caso de Saramago, que nunca se deu por vencido e saiu sempre incólume do combate. Aos seus 87 anos, ele continua se perguntando e perguntando aos teólogos e crentes que diabo de Deus é esse que, para enaltecer Abel, tem que desprezar Caim.

Familiarizado com a Bíblia, a judaica e a cristã, ele recria com humor, um humor iconoclasta do divino e do humano, algumas de suas figuras mais emblemáticas. Fez o mesmo 20 anos atrás no "Evangelho segundo Jesus Cristo". Ele volta a fazer isso agora na novela "Caim", em qe recria literariamente o mito bíblico. A Bíblia apresenta Caim como o assassino de seu irmão Abel, empurrado pela inveja, e Deus como "valentão". Saramago inverte os papéis do bom e do mau, do assassino e do juiz. Responsabiliza deus (sempre com minúscula) pela morte de Abel e o acusa de ser rancoroso, arbitrário e enlouquecedor das pessoas. Caim mata seu irmão não arbitrariamente, mas em legítima defesa, porque deus havia lhe preterido em seu favor. E o mata porque não pode eliminar deus.

Compartilhe-se ou não dessa leitura da Bíblia judaica, acredito que se deve estar de acordo com Saramago que "a história dos homens é a história de seus desencontros com deus: nem ele nos entende, nem nós o entendemos". Excelente lição de contra-teologia!

Qualquer que fosse a responsabilidade de Caim na morte de seu irmão, fica de pé a pergunta: "onde está teu irmão?". E a resposta não pode ser um evasivo "não sei. Acaso sou eu o guardião de meu irmão?", mas, seguindo com a Bíblia, a parábola evangélica do bom samaritano.

13/10/2009

Entrevista - Dom Pedro Casaldáliga

Aos seus 81 anos, o bispo emérito da diocese de São Félix do Araguaia é um dos mais destacados representantes da Teologia da Libertação e se converteu em uma referência para a esquerda latino-americana. Há quatro décadas, desde que chegou ao Brasil para ficar, seu trabalho em defesa dos direitos dos povos indígenas e dos grupos sociais mais oprimidos, assim como seu apoio aos movimentos brasileiros de agricultores sem terra e à revolução sandinista na Nicarágua nos anos 80 fazem com que Pedro Casaldáliga seja parte fundamental da memória viva da luta pela dignidade e pela libertação dos povos na América Latina.

A meados do mês de agosto, Pedro Casaldáliga recebia um grupo de ativistas sociais do Estado espanhol em sua humilde casa de São Félix, no estado brasileiro do Mato Grosso, para refletir que "a mundialização nos deu a oportunidade de reconhecer que somos uma só humanidade. Somos todos iguais, devemos ser assim, em dignidade e em oportunidades". Assim se dava início a uma conversa em que se tratou desde a situação política do Brasil até as perspectivas atuais da Teologia da Libertação, passando pelo modelo de consumo ou os desafios da esquerda latino-americana. A reportagem é de Pedro Ramiro, María González Reyes e Luis González Reyes, publicada na revista Pueblos, nº 39, de setembro de 2009, e no sítio Religión Digital, 08-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



A partir da perspectiva que o fato de continuar exercendo há muitos anos o compromisso com as pessoas mais desfavorecidas do planeta oferece, que significado tem para o senhor a solidariedade hoje?

A pergunta que se faz a partir do Primeiro Mundo é: o que nós podemos fazer? Justamente renunciar, por fim, que já é pedir muito, ao privilégio de ser Primeiro Mundo. Renunciar a essa condição excepcional de uma mínima parte da Humanidade, se a compararmos com a imensa maioria de todo o Terceiro Mundo. Estamos tentando destacar sempre que a solidariedade deixou de ser aquela solidariedade paternalista, de enviar roupas, remédios, certos recursos... Deve ser uma solidariedade que vai e que vem, muito mais concreta e muito mais exigente: damos e recebemos, para que também a própria solidariedade, além de alimentar pessoas e curar doenças, facilite e estimule a vivência da própria cultura. Porque nós ajudamos pessoas que têm uma cultura, que não são simplesmente um estômago e algumas veias, mas que são povos. Por isso, temos que procurar que a solidariedade seja constante, consciente, autocrítica, local e global: de ida e de volta.

Quando o senhor se encontrou com Fidel Castro, há 20 anos, ele afirmou que "a Teologia da Libertação ajuda na transformação da América Latina muito mais do que milhões de livros sobre o marxismo". Em que se baseia atualmente a Teologia da Libertação?

Hoje em dia, há diferentes teologias da libertação. O que se fez foi incorporar mais explicitamente temas, setores da sociedade, da vida, que antes não eram tão considerados. Foram surgindo as questões associadas aos indígenas, às mulheres, à ecologia, às crianças de rua... Agora, trata-se de uma teologia enriquecida pelas reivindicações desses grupos emergentes, e por isso a Teologia da Libertação já é muito plural em seus objetivos, sempre dentro da reivindicação da libertação. Quando pedimos libertação para o povo negro, pedimos que ele possa se sentir com orgulho negro e que não lhe seha privada a cátedra, a função pública, o governo, que não haja a segregação que ainda existe. Veja que, quando eu vim para a América Latina, há 41 anos, os negros, em sua imensa maioria, não se reconheciam como tais. Inclusive, alisavam o cabelo para que não parecesse cabelo de negro. Agora, estão recuperando seu orgulho, sua identidade. Algo parecido ocorreu com a população indígena. Quando eu cheguei ao Brasil, dizia-se que havia 150 mil índios, enquanto que hoje há um milhão. Nesta região, por exemplo, os indígenas tapirapé reconquistaram seu território, os karajá reconquistaram também uma parte de seus territórios, os xavante também... E tudo isso tem o espírito da Teologia da Libertação.

Uma das críticas que é feita à Teologia da Libertação por parte dos conservadores é de que se trata de uma teologia muito materialista, que se preocupa muito com interesses materiais, de necessidades físicas e esquece o espírito, a oração. Diante disso, eu reivindicaria três ou quatro traços que seriam indispensáveis na Igreja de Cristo: o primeiro, a opção pelos pobres; o segundo, conjugar fé e vida; o terceiro, a Bíblia nas mãos do povo; quarto, a solidariedade autenticamente fraterna.

O que permitiu que ela vingasse na América Latina?

Na América Latina, a Teologia da Libertação se desenvolveu em um momento muito oportuno: acabava de acontecer o Concílio Vaticano II, no ano de 1968, quando eu cheguei aqui – corriam ventos de mudança, as ditaduras militares tinham lugar, pelo qual o contexto foi propício para plantar pé e jogar-se à libertação. Além disso, há na América Latina uma certa unidade de continente. É o único continente que pode se chamar de pátria grande: Nossa América, como diziam os libertadores. Isso facilitou que surgisse uma teologia característicamente latino-americana.

Lembro sempre como as perseguições, os exílios, as torturas, os mártires conjugaram melhor toda a realidade latino-americana. Aqui no Brasil, às vezes, sentíamos que estávamos um pouco distantes da América Latina hispano-falante: um país muito grande, com outro idioma... Mas depois de todas essas ditaduras militares, quando se misturaram os cantos e o sangue, a América Latina é mais ela, e é ela e o Caribe. Isso sim, eu prefiro a expressão Nossa América, porque os libertadores usavam mais essa denominação: Bolívar, Martí, Sandino, Fidel...

Na Agenda Latino-americana que vocês elaboram a cada ano, que serve de trabalho para muitos ativistas do continente, vocês colocaram em 2009 o título "Para um socialismo novo". O que quer dizer esse socialismo novo?

Quem é que sabe? (risos). Se poderia dizer também esquerda, ou socialismo, mas em todo caso existem umas quantas exigências indispensáveis: primeiro, não se pode ter o lucro como objetivo; segundo, é preciso ter uma certa igualdade, níveis muito igualitários, por exemplo, nos salários de um ministro ou de um agricultor; é preciso reivindicar um intercâmbio de países de igual para igual; e finalmente não se pode aceitar que o capital se faça dono do trabalho, da economia e da própria democracia.

Como estamos vendo com o caso de Honduras, os tempos dos golpes de Estado na América Latina podem voltar?

Quem sabe... Pelo menos, na Nicarágua e no El Salvador, já não poderá haver o que houve: haverá injustiças, haverá situações complicadas, mas uma revolução muito popular não se perde por completo.

Isso sim, o fato de que um país possa ser massacrado constantemente e que não haja ninguém que possa intervir nisso dá prova de que a Humanidade está mal. O socialismo não pode aceitar a ideia do colonialismo, do imperialismo. Nesse sentido, devemos gratidão a Cuba, porque, com todos os seus pecados e seus excessos, o fato de contestar obstinadamente o império é um grande serviço para a América Latina e para o mundo. Nesse sentido, uma política mundializada poderia supor uma oportunidade global.

O senhor também vem batendo pé no problema do consumismo.

Até agora, o consumismo tem sido visto como um excesso de vaidades, que é preciso sim ter 40 pares de sapatos, duas televisões etc. Mas isso é muito mais sério: consomem-se direitos, consomem-se necessidades. Se existem 20% de pessoas e famílias que estão na situação de estar bem, que vivem na civilização do bem-estar, há 80% que não têm o fundamental. O consumismo é capitalista, e todo o ruim que o capitalismo tem o consumismo também tem. Se você comparar o que acontece quando há um terremoto no Japão e quando ocorre em Honduras, vê que, em um lugar, morrem três pessoas e no outro, duas mil. Os países do Primeiro Mundo permitem-se ir fazendo, e atrás de nós, dizem, o dilúvio. Porque o primeiro que se olha não é o mundo, é a própria casa.

Para a agenda do ano que vem, vocês propõem como lema "Salvemo-nos com o planeta".

Dentro dessa visão de globalidade, descobri por fim que o planeta é a nossa única casa. E não há modo de nos salvarmos se não salvamos o planeta. Melhor ainda: é bom lembrar que podemos acabar com os homens completamente, e o planeta seguirá. Até por egoísmo, diríamos, agora nós só nos salvamos se for com o planeta.

Criou-se uma consciência que antes não existir: a Amazônia foi praticamente descoberta, por dizer assim, nos últimos tempos. Para a Igreja, a Amazônia não existia. Houve atitudes de alguns "avançados", mais com ideias bucólicas do que políticas, que eram definidos como quixotes simpáticos, mas que não passavam disso. Ultimamente, com a globalização, diversos técnicos e cientistas lembram que a coisa é séria. E chegamos a uma postura mais política.

Frente a tudo isso, o que pode ser feito?

Deve haver um grande processo de conversão, uma mudança de mentalidade. Enquanto acreditarmos que podemos ter tudo o que queremos, não há solução. Precisamente porque a situação é global, a proposta de dar uma consciência crítica sobre a situação real deve chegar a todas as bases. Cada família tem o direito e o dever de pôr um certo limite: se por um lado o pai está em uma ONG de solidariedade e, por outro, o filho está consumindo de mãos cheias, com essa conduta estamos desmoralizando o que estamos construindo.

É bom que saiam tantas notícias em boletins informativos, para que nos demos conta do que está acontecendo. Como dizem muitos especialistas, não vai haver problemas: eles já existem hoje, e chegamos tarde, era preciso resolver as coisas anteontem. Outros, mais esperançados, dizem que ainda há tempo, que ainda podemos resolver os problemas. Só que, para isso, são necessárias políticas oficiais. Já é um gesto que uma família tenha um carro em vez de três, mas isso não resolve o problema do petróleo.

Então, onde fica a política?

Só se pode resolver o problema se há, de forma simultânea, políticas oficiais e políticas domésticas, grupais, partidárias, de associações, ONGs. Como está se dizendo muito agora, é preciso trabalhar local e globalmente. É preciso dar mais valor para a política. É preciso se meter na política, é preciso assumir a vocação política. Senão, ficamos cantando canções de protesto. A política foi desmoralizada, foi ficando nas mãos de pessoas sem consciência social nem responsabilidade. Tanto os partidos quanto os sindicatos causaram muitas decepções, mas continuam sendo válidos, mesmo que já não sejam tão hegemônicos, porque também há muitos movimentos sociais e ONGs que são muito valiosos.

As melhores ONGs são as muito politizadas: cuidam de ajudar estimulando, ajudar propiciando a ação e a formação. Deveríamos pedir que as ONGs fizessem um exame de consciência política. Porque estão ajudando, sim, mas e estruturalmente? A Igreja católica sempre fez caridade, mas, se não nos metermos nas estruturas, continuaremos com algumas que são nefastas.

A um ano das eleições gerais no Brasil, qual é a sua avaliação do governo Lula?

Lula, mesmo que quisesse, não poderia fazer um Brasil socialista. Porém, ele poderia propiciar muitos gestos que fossem rumo ao socialismo: reduzir os salários dos mais ricos e subir o dos mais desfavorecidos; facilitar oportunidades aos grupos humanos que não as tinham; pôr o trabalho acima do capital; não se entregar de corpo e alma ao agronegócio, mas sim à agricultura familiar. Podemos exportar? Claro que sim, mas não dando prioridade ao que não é prioritário. Seu lema do mandato foi: que todos os brasileiros comam uma vez por dia. Afinal, esse é um passo de protossocialismo, não? Mas há milhões que não comem todos os dias. E que chefe de Estado teve a popularidade de 80% que Lula tem agora?

Como avalia o papel dos movimentos antiglobalização, os encontros do Fórum Social Mundial e as organizações que defendem que "outro mundo é possível"?

Essa consciência mundializada nos ajuda a compreender que devemos transformar o mundo. Não vale cuidar só a própria casa e o próprio país. A utopia se torna mais possível, porque já é uma utopia com visão política, de solidariedade, com atitudes concretas. Anos atrás, quem poderia pedir um governo mundial? Hoje, falar disso já não é tão utópico. A utopia é filha da esperança. E a esperança é o DNA da raça humana. Podem tirar-nos tudo, menos a esperança fiel, como digo em um poema. Pois bem, deve ser uma esperança confiável, ativa, justificável e atuante. Por isso, a Teologia da Libertação insistiu tanto na práxis: se dizemos que Deus é amor, é preciso praticá-los; se é vida, é preciso potencializar a vida. A religião não é práxis, diziam-nos, é fé. Mas a fé sem práxis é uma quimera e também um sarcasmo. Teoricamente, a coisa é clara. Agora, na prática, vamos ver...

06/10/2009

Na África, a Igreja é das mulheres

A oração para que "homens e mulheres" da Terra "volvam seus olhos para a África" e junto um convite a ser "protagonistas" com relação ao continente inteiro: "Levantem-se, ponham-se a caminho!". Passaram-se seis meses desde quando Bento XVI deixou a Angola e anunciou o II Sínodo para a África, que o Papa abriu solenemente na manhã deste domingo na Basílica de São Pedro. A reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada no jornal Corriere della Sera, 04-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Quinze anos depois da primeira "assembléia especial" dos bispos, em 1994, a Igreja olha ao continente mais pobre e esquecido como um tema decisivo para o futuro do planeta e do próprio cristianismo. Os católicos que eram alguns milhões no início do século XIX, passaram de 55 a 164 milhões dos últimos 30 anos e, daqui a 25 anos, calcula (com prudência) a revista mensal dos jesuítas Popoli, superarão em número os católicos presentes na Europa.

Durante três semanas, na Sala do Sínodo no Vaticano, irão se reunir 244 padres sinodais, com 228 bispos (dos quais 33 são cardeais, incluindo os 14 africanos), que chegarão obviamente da África (197), mas também da Europa (34), das Américas (10), da Ásia (2) e da Oceania (1), para mostrar que "a assembleia se refere a toda a Igreja africana", explica o arcebispo Nikola Eterovic, secretário-geral do Sínodo. Vinte congregações, nove sessões, um calendário cheio até o dia 25 de outubro, "a serviço da reconciliação, da justiça e da paz".

Porém, bastará apenas para enfrentar todas as questões que os bispos africanos elencaram no "Instrumentum laboris" já apresentado ao Papa: "A Assembleia sinodal deveria fazer ouvir o grito dos pobres, das minorias, das mulheres ofendidas em sua dignidade, dos marginalizados, dos trabalhadores mal pagos, dos refugiados e dos migrantes, dos prisioneiros...".

Dentre outras coisas, aparece no documento preparatório dos bispos africanos a questão feminina, que será abordada também por cerca de 30 mulheres, entre religiosas e leigas convidadas para os trabalhos como "especialistas" (10 de 29) ou "auditoras" (20 de 49). O próprio Bento XVI havia enfrentado o tema, no dia 22 março, em Angola: "Quem não adverte, hoje, a necessidade de dar mais espaço às 'razões do coração'? Pense-se nas terras onde abunda a pobreza, nas zonas devastadas pela guerra, em tantas situações trágicas resultantes de emigrações forçadas ou não… São quase sempre as mulheres que lá mantêm intacta a dignidade humana, defendem a família e tutelam os valores culturais e religiosos".

Porém, "a mulher continua a ser subjugada em todas as regiões sob diversas formas", escrevem os bispos: "violências domésticas", "poligamia", "prostituição"; " mutilação dos órgãos genitais das mulheres", as várias expressões do "domínio dos homens sobre as mulheres". Sem contar, admitem os bispos, que "um grande número de Igrejas particulares considera que a dignidade da mulher está ainda por promover, tanto na Igreja como na sociedade". As mulheres, assim como os leigos, "não estão ainda plenamente integrados nas estruturas de responsabilidade da Igreja" e na "gênese do seu programa pastoral", ou seja, contam pouco ou nada a despeito das 61 mil religiosas espalhadas no continente.

Um continente complexo, composto pelos 53 países da União Africana (mais o Marrocos, excluído por causa do conflito com o Saara Ocidental), um milhão de habitantes e 800 grupos étnicos principais, mas com problemas difusos que os bispos denunciam sem meios termos. Guerras e armas, para começar: "Coniventes com homens e mulheres do continente africano, forças internacionais fomentam guerras para vender armas, apoiam os poderes políticos que não respeitam os direitos humanos e os princípios democráticos para garantirem, em contrapartida, vantagens econômicas, ameaçam desestabilizar as nações".

E depois, "as multinacionais", que "não cessam de invadir gradualmente o continente em busca de recursos naturais. Esmagam as companhias locais, adquirem milhares de hectares, expropriando as populações de suas terras, com a cumplicidade dos dirigentes africanos. Causam dano ao meio ambiente e desfiguram a criação". Depois, estão as tragédias sanitárias, começando pela Aids.

No voo rumo à África, uma frase de Bento XVI ("Não se pode superar esse drama com a distribuição dos preservativos que, pelo contrário, aumentam o problema") desencadeou polêmicas planetárias, mesmo se, na realidade, o Papa se referia à necessidade de pesquisa e assistência médica (a Igreja na África está na vanguarda com 16.178 centros sanitários, incluindo 5.373 ambulatórios), além da educação: não por acaso, o L'Osservatore Romano citou como modelo, mesmo que "não totalmente aderente às indicações da Igreja", o método ABC, experimentado na Uganda: "abstinence", "be faithful" e "condom", ou seja, abstinência, fidelidade e só por último o preservativo, muitas vezes usado de modo impróprio e, portanto, arriscado.

E ainda, óbvio, a economia será central no sínodo: "Os programas de reestruturação das economias africanas, propostos pelas instituições financeiras internacionais, revelaram-se muitas vezes funestos. As reestruturações 'impostas' tiveram como consequência, por um lado, a fragilização das economias africanas e, por outro, a degradação do tecido social, causando o aumento das taxas de criminalidade, o alargamento do fosso entre ricos e pobres, o êxodo das zonas rurais e a superpopulação das cidades".

A própria campanha de sementes dos organismos geneticamente modificados (OMG) "pretende assegurar a segurança alimentar", mas, na realidade, "pode arruinar os pequenos proprietários, de suprimir a sua sementeira tradicional tornando-os dependentes das sociedades produtoras dos OGM", acusam os bispos.

No fundo, fica evidente a afinidade com o que Bento XVI escreveu na encíclica "Caritas in veritate" e repetiu ainda na África: na crise "nascida de um déficit de ética nas estruturas econômicas", os países pobres devem ser defendidos e principalmente envolvidos nos processos de decisão.

Tudo somada, "o primeiro problema do Sínodo será encontrar um denominador comum, um plano de intervenção e de evangelização, evitando os extremos do pragmatismo e do espiritualismo", reflete o padre Giulio Albanese, missionário comboniano e professor da Universidade Gregoriana: "Há um problema com as classes dirigentes locais e a necessidade de um salto de qualidade na cooperação: são boas as obras de caridade, mas são necessários recursos financeiros e humanos. O escândalo é que a África, pelo roubo de recursos, dá ao Ocidente mais do que recebe. A crise tem efeitos devastadores. E enquanto isso retrocedemos em 50 anos: aos tempos em que se dava o peixe, em vez da vara de pescar".



04/10/2009

Direitos humanos também são violados com a pobreza

Jorge Bergoglio não usou palavras próprias, mas recorreu a um documento da Igreja latino-americana. Mas a citação soou como uma nova estocada do presidente da Conferência Episcopal, cardeal Bergoglio, no Governo. Foi quando advertiu sobre o risco de uma parcialização da luta a favor dos direitos humanos, uma das principais bandeiras do kirchnerismo. A reportagem é de Sergio Rubin e está publicada no jornal Clarín, 01-10-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS



A observação – tomada do documento da Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho de 1992 em Santo Domingo – foi feita por Bergoglio durante uma jornada sobre políticas públicas – “As dívidas sociais de nosso tempo” –, organizada pela Universidade do Salvador e a Universidade Carlos III, de Madri. O texto faz parte de seu discurso inaugural, com referências críticas à situação social. Como quando disse que “a perda do sentido da justiça e a falta de respeito para com os demais se aprofundaram e nos levaram a uma situação de iniquidade”.

O encontro – realizado no Hotel Alvear – reuniu dirigentes políticos como Francisco De Narváez, Raúl Baylac, Jorge Vanossi e Jorge Telerman e o secretário-geral da prefeitura de Buenos Aires, José Scioli, e empresários como Cristiano Ratazzi. Entre os expositores, a senadora Chiche Duhalde reclamou uma “autocrítica de todo o peronismo por sua atuação desde a retomada democrática”; o presidente da UOCRA, Gerardo Martinez, destacou o papel solidário do sindicalismo a partir da expansão dos serviços de seu grêmio, e Tomáz Sánchez de Bustamante (OSDE) falou da responsabilidade social que cabe às empresas.

Também fez uma exposição o rabino Sergio Bergman, que – fiel à sua visão crítica do Governo e o seu estilo eloquente – pediu um maior compromisso cívico “para que não terminemos sendo como a Venezuela”, em referência ao governo de Hugo Chávez.

Em sua alocução, seguida pelo auditório que encheu dois salões do Hotel, Bergoglio disse que “a maior imoralidade (da dívida social), dizem os bispos, reside no fato de que isso ocorre em um país que tem condições objetivas para evitar ou corrigir os danos, mas que lamentavelmente pareceria optar por agravar ainda mais as desigualdades”.

Nessa linha, sublinhou que “não podemos responder com verdade ao desafio de erradicar a exclusão e a pobreza, se os pobres seguem sendo objeto, destinatários da ação do Estado e de outras organizações em um sentido paternalista e assistencialista, e não sujeitos onde o Estado e a sociedade produzem as condições sociais que promovem e tutelam seus direitos e lhes permitam ser construtores de seu próprio destino”.

Para Bergoglio, “a crise econômico-social e o consequente aumento da pobreza tem suas causas em políticas inspiradas em formas de neoliberalismo que consideram os lucros e as leis de mercado como parâmetros absolutos em detrimento da dignidade das pessoas e dos povos”.

E disse que “nos acostumar a viver com excluídos e sem equidade social, é uma grave falta moral que deteriora a dignidade do homem e compromete a paz social”. Também se referiu à fuga de capitais. “Pensamos que há em torno de 150 bilhões de dólares de argentinos no exterior, sem contar os que estão no país fora do circuito financeiro, e nos informam que se vão cerca de dois bilhões de dólares a mais por mês”, assinalou. “O que podemos fazer para que sejam postos a serviço do país em ordem a saldar a ‘dívida social’ e produzir as condições para um desenvolvimento integral”, concluiu.


Padre do Paraguai: Fernando Lugo e a criação de uma nação

A história de Fernando Lugo, relatada em detalhe no livro, "The Priest of Paraguay: Fernando Lugo and the making of a nation" (Ed. Zed Books, 176 páginas), de Hugh O’Shaughnessy e Edgar Venerando Ruiz Diaz, que também retrata um vívido quadro de uma realidade compartilhada por outros países latino-americanos. A análise é do padre jesuíta Michael Campbell-Johnston, publicada no sítio Thinking Faith, o jornal eletrônico dos jesuítas britânicos, 22-09-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



Quase desde o seu início, o Paraguai pareceu ser uma nação condenada. Desde a sua independência em 1811, sua história tem sido dominada por longos períodos de instabilidade política e guerras devastadores com seus vizinhos. Na metade da década de 50, ele se viu sob a brutal ditadura de 36 anos de Alfredo Stroessner, que, como afirmam os autores, "deixou o Paraguai como uma casa em apodrecimento". Os 10% mais ricos da população têm 40 vezes a renda dos 10% mais pobres, enquanto o 1% dos proprietários de terra mais ricos detinham 80% das terras. Os autores mostram claramente como essa situação se manteve por meio de uma combinação de trapaça, corrupção e terror, com um partido governante (os Colorados) que deteve o poder durante 61 anos. O regime foi reconhecido e apoiado por nações industrializadas preocupadas com a proteção da prosperidade de seus mercados, especialmente o de armas.

Esse foi o mundo em que Fernando Lugo cresceu. Nascido em 1951 em um vilarejo do interior, filho de um ferroviário e de uma professora, ele testemunhou e experimentou a injustiça desde sua infância. Ele tinha 11 anos quando seu pai, Guillermo, foi preso e submetido a afogamento simulado, um processo que a política paraguaia aprendeu com os EUA e que foi formalmente ensinado posteriormente pela Escola das Américas, estabelecida na Zona do Canal do Panamá. Isso provocou sérias complicações nos rins de Guillermo e causou a sua morte. Os três irmãos de Fernando também foram torturados pela polícia de Stroessner, e a família pressionou-o a esquecer quaisquer ideias de entrar para a política. Pelo contrário, em 1970, ele entrou para o noviciado paraguaio dos Missionários do Verbo Divino.

Os autores traçam, em detalhe, a formação religiosa de Lugo e sua gradual introdução à então recente teologia da libertação. Um período crucial nesse processo foi o ano em que ele passou no Equador, logo após sua ordenação, durante o qual ele se sentiu sob a influência do bispo Leonidas Proaño, que, no ano anterior, havia sido preso com outros 16 bispos por "atividades subersivas". Como Lugo disse depois, "eu me sentia orgulhoso de que um dos bispos presos em Riobamba pelos militares fosse o paraguaio Dom Bogarín Argaña", que durante anos trabalhou entre os agricultores exigindo a reforma agrária. Porém, quando Lugo retornou para sua terra natal, Stroessner fez saber aos superiores do padre que eles deveriam enviá-lo para fora do país. Então, ele foi enviado à Universidade Gregoriana de Roma, onde fez especialização em espiritualidade e doutrina social da Igreja.

Depois de seu retorno ao Paraguai, em 1994, ele foi indicado bispo de San Pedro del Ycuamandeyú, uma das regiões mais pobres do país. Ao longo dos 10 anos subsequentes, ele se tornou um defensor dos pobres rurais e das populações indígenas, trabalhando por meio das comunidades eclesiais de base (cujo número na diocese mais do que dobrou), vivendo em uma pequena casa indistinguível de qualquer outra, usando a língua guarani e viajando por toda a diocese em uma motocicleta. Como era de se esperar, ele se tornou gradualmente uma das poucas vozes que podiam falar com autoridade em defesa dos pobres, e um grande número de grupos políticos foram ao seu encontro e começaram a vê-lo como um possível líder da oposição e como candidato presidencial. Lugo resistiu ao chamado por muito tempo, mas finalmente anunciou sua candidatura no Natal de 2006. Ele foi eleito dois anos depois, com uma margem confortável, abandonou seus votos religiosos, mas se viu diante dos problemas intimidantes de tentar "arrastar o Paraguai para fora do lodaçal em que a história o colocou".

O valor desse livro muito bem pesquisado é que ele oferece o pano de fundo necessário para se compreender o grande desafio que Fernando Lugo enfrenta agora. E sua história não é de relevância só para a situação do Paraguai. Lugo desfruta a companhia de Lula, do Brasil, Chávez, da Venezuela, Morales, da Bolívia, e Correa, do Equador, todos engajados na luta por justiça social que poderia transformar a América Latina e dar uma nova esperança e vida a seu povo. Pode haver desacordos com relação a alguns dos métodos empregados ou mesmo a alguns dos objetivos perseguidos, mas muitos na América Latina sentirão que não são as nações industrializadas e desenvolvidas que devem determiná-los: pelo contrário, eles devem esperar que essas nações apoiem suas tentativas de pôr em ordem as situações intoleráveis. Com esperança, esse livro irá avançar em uma compreensão crescente do grande desafio que se coloca diante dos latino-americanos.