23/07/2010

William C. Chittick

Rumi e o oceano do amor de Deus


Artigo de William C. Chittick, professor de estudos religiosos do Departamento de Estudos Asiáticos e Asiático-Americanos da Universidade Estadual de Nova York, em Stony Brook, publicado no sítio Huffington Post, 19-07-2010. Chittick é autor de "Sufi Path of Love: The Spiritual Teachings of Rumi" [O Caminho do Amor Sufi: Ensinamentos Espirituais de Rumi].
Fonte: UNISINOS


Rumi é celebrado com justiça como um dos grandes poetas da história humana. Quando eu comecei a lê-lo como estudante, há 45 anos, eu não sabia persa e contei com o trabalho de R. A. Nicholson, que produziu a primeira edição crítica dos 25.000 versos de Rumi em "Mathnawi", junto com uma tradução completa em inglês e dois volumes de comentários (oito volumes ao todo).

Naquela época, Rumi era praticamente desconhecido fora do campo de estudos sobre Oriente Médio, por isso a sua popularidade no Ocidente é um fenômeno recente. No mundo influenciado pela cultura persa (que se estende desde os Bálcãs, passando pela Turquia, Irã, Ásia Central e o subcontinente indiano), ele foi um ícone cultural durante séculos.

Apesar de agora ser muito mais conhecido no Ocidente do que era há 40 anos, o entendimento daquilo que ele realmente está falando parece ter diminuído. Não foi fácil ler Nicholson, mas se aprende muito sobre o conteúdo religioso e filosófico dos ensinamentos de Rumi.

Todos reconhecem que Rumi foi um poeta do amor. Isso significa que a maioria das pessoas veem-no como uma aberração na história islâmica. Quando situamo-lo em seu próprio contexto histórico, no entanto, vemos que ele falou para a corrente dominante. O que fez com que ele se destacasse foi o fato de ter chegado ao coração da questão mais rapidamente e muito mais atrativamente do que a maioria dos autores. Ele faz a sua agenda explícita na introdução ao "Mathnawi": ele explica "as raízes das raízes das raízes da religião", ou seja, a religião islâmica fundada pelo Alcorão e por Maomé.

Tal como qualquer grande escritura, o Alcorão apresenta seus ensinamentos em linguagem mítica e simbólica, suscetível a uma grande gama de interpretações. Embora o Alcorão não mencione o amor tão frequentemente (cerca de 100 vezes), é fácil ver que essas poucas menções fornecem os germes de uma extensa literatura sobre os laços íntimos entre Deus e a alma humana. Nessas discussões, os autores citam aquilo que, por vezes, dizem-se ser palavras de Deus dirigidas a Davi, o salmista. Em um trecho típico, Deus diz: "Ó Davi, qualquer um que afirme me amar é um mentiroso se a noite chega e ele vai dormir em meu regaço. Todo amante não ama se isolar com seu amado?". Uma dessas supostas conversas finalmente se tornou proeminente nos ensinamentos sufistas. Davi perguntou a Deus por que ele criou o universo. Deus respondeu: "Eu era um tesouro escondido e amaria ser reconhecido, então eu criei as criaturas para que eu pudesse ser reconhecido".

Essa frase coloca séculos de reflexão sobre o amor em poucas palavras. Isso significa que Deus, em sua unidade absoluta, é infinitamente rico, ilimitadamente transbordante, misericordioso, compassivo, amoroso. Além disso, "Deus é belo", como disse o Profeta, "e ele ama a beleza". Quando ele ama, é sempre a beleza que ele ama. Em sua individualidade eterna, essa beleza é justamente o Tesouro Escondido, pois não há outra beleza. Seu infinito amor pela beleza, então, deu origem ao universo, que é definido mais sucintamente como "tudo o que não é Deus". Ele encheu esse universo com beleza, para que os outros possam compartilhar a alegria do amor.

Mas montanhas e oceanos, leões e águias, independentemente de quão belos sejam, têm pouca ou nenhuma capacidade de reconhecer a beleza nos outros. O que é necessário é uma receptividade sem limites à infinita beleza do Tesouro Escondido, e é isso que Deus deu aos seres humanos quando os criou "à sua forma", como disse Maomé, ecoando o Gênesis. O Alcorão diz: "Ele formou-te e fez tuas formas bonitas" (40:64). Deus ama os seres humanos, devido à plenitude da beleza divina que eles exibem e à sua conseguinte habilidade de reconhecer a beleza de Deus. Deus, então, pede, como qualquer amante faria, que o amem de volta.

O papel humano no universo é reconhecer a Deus, amá-lo assim como ele deve ser amado e trazer o seu amor e a sua beleza ao mundo. Essa antropologia subjaz a grande parte do pensamento islâmico e é explicitada pela poesia de Rumi. A sua relevância em curso torna-se um pouco mais óbvia quando lembramos que, na teologia islâmica, Deus não criou o universo há tanto tempo só para brincar com ele de vez em quando (a noção do Deísmo). Pelo contrário, ele sempre está criando o universo, que nada mais é do que a fagulha permanente e sempre em mudança do Tesouro Escondido. O amor de Deus por ser reconhecido nunca está ausente do mundo e das nossas vidas e constantemente infunde energia em todas as coisas.

Rumi deu uma grande variedade de nomes para a participação humana no amor de Deus – fome, sede, necessidade, vontade, desejo, paixão, fogo, queimação. Como muitos outros, ele identificou o amor com a "pobreza" mencionada no verso do Alcorão, "Ó povo, vós sois os pobres rumo a Deus, e Deus é o rico, o que merece louvor" (35:15). O amor é aquele ponto vazio em nossos corações que nunca podemos preencher, porque almeja as riquezas infinitas do Tesouro Escondido.

Uma vez, diz Rumi, éramos peixes nadando no oceano, inconscientes da água e de nós mesmos. O oceano queria ser reconhecido, por isso jogou-nos em terra seca. Reviramo-nos atrás disso, reviramo-nos atrás daquilo, buscando uma felicidade cada vez mais esquiva. É o oceano que nos atormenta? Bem, sim. Ele nos colocou aqui. Mas, quanto mais ardemos, mais intensamente amaremos a beleza do oceano, quando ele nos chamar de volta.

Entrevista - Faustino Teixeira

Rûmî: a mística reconhecida pela alta literatura


No dia 31 de outubro de 2009, a União Brasileira de Escritores (UBE) entregou o Prêmio Mário Barata de melhor livro de crítica e interpretação de 2008 à obra O Canto da Unidade – Em torno da poética de Rûmî (Rio de Janeiro: Editora Fissus, 2007). A premiação da UBE é um reconhecimento do trabalho de tradução e análise da riqueza poético-reflexiva de Rûmî, ou Mawlānā Jalāl ad-Dīn Muhammad Rûmî, grande místico persa, nascido em 1207. Em comemoração aos 800 anos de seu nascimento, a Unesco consagrou a Rûmî o ano de 2007.

O livro reúne poemas traduzidos por Marco Lucchesi e Rafi Moussavi, que expressam a grande riqueza da obra lírica de Rûmî. São 30 Rubayats, ou quadras, versos, que expressam a forma mais curta da literatura persa, marcados pela musicalidade e pela concisão. Lucchesi também relata a experiência do trabalho de tradução no capítulo “Diário de um tradutor”, descrevendo as “madrugadas insones”, no trabalho de desenhar “mil vezes a tradução dos versos em português”. Estudando profundamente “três línguas abissais” (o turco, o árabe e o persa), Lucchesi conclui que, “na confluência desses mares, a poesia de Rûmî cria uma língua porosa, dúctil, cheia de vigor e profundeza”. O livro traz ainda comentários de diversos autores sobre a obra de Rûmî, como Leonardo Boff, Mário Werneck Filho, Heliane Miscali, Pablo Beneito e Pilar Garrido.

Já o teólogo Faustino Teixeira, que co-assina o livro, analisa a obra de Rûmî a partir do tema do amor, que, segundo ele, encontra um lugar central nos escritos do místico. Grande parceiro do IHU, Teixeira é doutor e pós-doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. É professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCIR-UFJF), em Minas Gerais.
Fonte: UNISINOS 

IHU On-line – Qual a importância que o senhor atribui ao prêmio conquistado pelo livro e que significado ele tem para a nossa cultura e literatura?

Faustino Teixeira – Esse prêmio, Mário Barata, concedido pela União Brasileira de Escritores (UBE-RJ), ao melhor livro de crítica e interpretação em 2008, foi acolhido com grande alegria. Em primeiro lugar, pelo fato de ser um livro gestado com muito carinho. Eu e Marco Lucchesi já sonhávamos com um tal empreendimento. A obra foi sendo curtida nos últimos anos, pensada e sonhada com delicadeza. A idéia inicial foi traduzir para o português alguns Rubâi´yat de Rûmî: são poemas maravilhosos, que traduzem o canto de amor apaixonado e embriagado desse grande místico do século XIII, contemporâneo de São Francisco. Essa tradução coube a Marco Lucchesi e Rafi Moussavi. Esse belo trabalho realizado pelos dois foi reconhecido pela crítica, tendo ficado entre os dez finalistas do prêmio Jabuti de 2008. Além dos Rubâi´yat, cuja tradução é inédita no Brasil, o livro traz uma série de artigos de reflexão sobre a obra de Rûmî: “Diário de um tradutor” (Marco Lucchesi); “A flama do coração: perspectivas dialogais em Rûmî” (Faustino Teixeira); “O eixo do amor: Rûmî e São Francisco” (Leonardo Boff); “Amor: universo em verso e O homem inspirado é fonte da vida: breve biografia de Rûmî” (Mário Werneck Filho) e “Filho do silêncio, mestre das palavras: a linguagem mística do silêncio em Rûmî” (Heliane Miscali). Em segundo lugar, pelo fato do prêmio ser concedido a um livro sobre mística. Num tempo marcado pelo “desgaste da compaixão” e pela afirmação crescente do individualismo e do secularismo, o reconhecimento de uma obra que trata da mística significa um passo novo, uma abertura de horizontes, um alargamento de olhar.

IHU On-line – O senhor sugere, no livro, que entre as mais ricas mensagens deixadas por Rûmî estão a cortesia inter-religiosa e a delicadeza espiritual. Em que consistem e como elas podem ser retraduzidas para a nossa época?

Faustino Teixeira – Vale registrar que um dos nomes atribuídos a Deus no islã está envolvido pela delicadeza: Al-Latîf. Trata-se de um nome atestado em sete versetos do Corão. O termo “delicadeza” vem, assim, inserido nas malhas que envolvem o significado do mistério maior. A mística islâmica como tal, o sufismo, traz as marcas da cortesia inter-religiosa e da delicadeza espiritual. Um dos maiores místicos dessa tradição, Al-Hallaj (858-922), foi pioneiro de um “ecumenismo místico”. Numa clássica passagem de seu "Diwan", sublinha o tema da unidade essencial das diversas expressões de fé. Diz que as religiões são os “muitos ramos de uma única Fonte”. Para ele, fixar-se exclusivamente numa única ramificação seria afastar-se do Fundamento divino maior. Daí a necessidade permanente do diálogo e da comunicação. Nessa mesma linha vai a reflexão de Rûmî, que é herdeiro de Al-Hallaj. Em seu "Livro do Interior" (Fihi-ma-fihi), Rûmî assinala que “se os caminhos são diferentes, o objetivo é um só”. Para ele, a religião verdadeira é aquela que traduz a dinâmica de um coração compassivo, pois no fundo do coração há um “ponto luminoso” que traduz o centro nevrálgico da unidade. O mistério de Deus, que é o “senhor das coisas ocultas”, ultrapassa infinitamente o mundo das aparências, revelando-se misteriosamente em caminhos diversificados. O fundamental para Rûmî é o calor do coração. Em bela passagem de seu "Mathnawî", Rûmî aborda a história de Moisés e o pastor, que trata justamente disso. A mensagem que ali apresenta é muito clara: “Aqueles que amam os belos ritos são de uma classe, aqueles cujos corações e alma ardem de amor são de outra (…). Não é preciso virar-se para a Caaba quando se está nela, e mergulhadores não precisam de sapatos”. Num tempo que vem perdendo esse senso da delicadeza e do cuidado com os outros, Rûmî apresenta pistas que são inusitadas, que traduzem um convite singular em favor da abertura inter-religiosa.

IHU On-line – O místico afirma que venceu o Dois e uniu-se ao Um, e, no livro, o senhor afirma que Rûmî não convida ninguém a romper com o caminho de sua tradição (religiosa), mas a avançar para dentro dela, do "núcleo mais íntimo onde brota a água viva da Realidade". Qual a dimensão dessa expressão para os fiéis atuais, independentemente de seu credo, e o atual diálogo ecumênico e inter-religioso?

Faustino Teixeira – É um tema que Rûmî aborda num de seus mais belos livros de poema: "Diwan de Shams de Tabriz", que revela a força e o vigor de um dos mais ricos encontros amorosos de toda a história da mística. Num desses poemas, canta Rûmî: “O que fazer, se não me reconheço? Não sou cristão, judeu ou muçulmano (…). O meu lugar é sempre o não lugar, não sou do corpo, da alma, sou do Amado. O mundo é apenas Um, venci o Dois. Sigo a cantar e a buscar sempre o Um”. Rûmî traduz aqui a sede de todo místico: desocultar o “sol-estrela que se eleva além da realidade das formas”; adentrar-se no outro mundo que habita esse mundo, mas que é “impermeável às palavras”; abrir os olhos “que sabem contemplar o invisível”. O caminho para esse desvelamento é uma viagem para dentro de si mesmo, em busca da “fonte da doçura”. O Amado não está distante, mas bem próximo: “Vós que saístes a peregrinar! Voltai, voltai, que o Amado não partiu! O Amado é vosso vizinho de porta, porque vagar no deserto da Arábia? (…). De casa em casa buscastes resposta. Mas não ousastes subir ao telhado”. De fato, Rûmî não desacredita a importância do vínculo religioso e do amor à própria tradição. Porém, o desafio que nos coloca é bem preciso: é necessário avançar para além da espuma que aparece para se poder atingir o vigor das águas. Isso significa avançar para dentro da própria tradição, aproximando-se de seu ponto (nuqta) virginal, do núcleo da luz original, de onde transbordam as teofanias incessantes do Mistério de Deus. Essa abordagem mística de Rûmî revela-se muito atual para o diálogo inter-religioso. Indica que o caminho do diálogo não se dá pela superfície, mas pela profundidade. Para ilustrar essa perspectiva, gosto sempre de citar uma passagem do teólogo Paul Tillich, em importante reflexão sobre o cristianismo e as religiões: “Na profundidade de toda religião viva, há um ponto onde a religião como tal perde sua importância, e o horizonte para o qual ela se dirige provoca a quebra de sua particularidade, elevando-a a uma liberdade espiritual que possibilita um novo olhar sobre a presença do divino em todas as expressões do sentido último da vida humana”.

IHU On-line – Em sua contribuição ao livro, o senhor afirma que Rûmî é tanto místico quanto profeta. Nesse sentido, quais são as principais inspirações que ele vivencia como místico e quais denúncias eles faz como profeta?

Faustino Teixeira – Enquanto místico, Rûmî nos convoca à percepção do mistério da gratuidade de Deus: da rica dialética que envolve a sua infinita transcendência (tanzih) e a proximidade de sua Presença (tashbih). E também do reconhecimento de sua graça transbordante, que a cada segundo, e de forma inusitada, enriquece e dilata o coração do ser humano. Para Rûmî, Deus está presente no íntimo do coração: é o sempre-já-aí. O Deus transparente que é mais diafania que epifania. A profecia de Rûmî está na forma original como entende a religião do amor. São inúmeras as críticas que ele tece contra a hipocrisia de uma religião não habitada pelo Amado. O que propõe é uma religião do amor, que vem sempre acompanhada pelas boas ações. A seu ver, as más ações constituem expressão de um coração corrompido, produzindo um hálito negativo junto às narinas de Deus. Invoca-se melhor a Deus mediante a língua dos atos. Não há, segundo Rûmî, melhor companheiro do que as obras para atravessar a existência. Nem os amigos, nem todas as riquezas da terra conseguem acompanhar o ser humano para além da tumba, mas sim a excelência de suas ações. Na avaliação derradeira, o que vai contar é o amor: “No dia da Ressurreição, homens e mulheres comparecerão pálidos e trêmulos de medo para o julgamento final. Eu apresentarei o teu amor em minhas mãos e te direi: interrogue-o, ele te responderá”.

IHU On-line – Se fosse possível definir em algumas palavras, qual seria a ética que Rûmî inspira aos homens e mulheres do nosso tempo?

Faustino Teixeira – Diria em poucas palavras, a ética da cortesia, da delicadeza e do exercício do amor transparente.

IHU On-line – Considerado um "mestre das palavras", é possível traçar uma relação entre a poética de Rûmî com a poesia brasileira em geral? Como Rûmî dialoga com a nossa cultura?

Faustino Teixeira – Em verdade, a condição de “mestre das palavras” advém de sua situação de “filho do silêncio”. As palavras de Rûmî são tecidas numa experiência de “solidão sonora”, habitada pela grande riqueza dos seres humanos e de toda a criação. Sua mística não traduz nenhum solipsismo, mas vem penetrada até a medula pela presença de todos. É difícil e complexo estabelecer relações da poética de Rûmî com a poesia brasileira, mas sinto uma proximidade quando leio os poemas de autores contemporâneos como Marco Lucchesi e Mariana Ianelli. Marco é habitado por semelhante paixão do infinito, pela presença de um Deus que ampara e atormenta. Sua sede maior não é de um Deus encerrado em conceitos, mas de um Deus que possa ser abocanhado em seus frutos, que possa ser apreendido em seu hálito. Seus poemas trazem a marca de um “rosto” que o acompanha por toda parte: de um rosto que acende os sonhos, mas que também confunde e arrebata. Em tudo o que vê, presencia e vive, capta o reclame de algo “mais fundo e impronunciável”. É a presença do Todo, “faminto de profundas harmonias”, que reclama a comunhão das partes. Em Mariana Ianelli, percebe-se algo análogo: a presença de um “céu absoluto” que inspira os mais profundos enigmas. E também a busca de um Deus palpável: “Para estar em Deus, há que se provar pelo tato o rancor dos temporais, a calma gentil dos regatos, o segredo das grutas e das ribanceiras”. O diálogo de Rûmî com a nossa cultura soa mais como uma profunda provocação, no sentido de uma mudança de rota, ou, melhor ainda, de mudança de ritmo e de percepção do real. Sua mensagem é bem clara: há que abrir os olhos e o coração para poder perceber o canto das coisas.

IHU On-line – Como co-autor do livro, qual seria o principal objetivo que o senhor espera alcançar junto ao público a partir da leitura da obra, agora reconhecida também pela alta crítica?

Faustino Teixeira – O objetivo maior está em suscitar nos corações e mentes a sensibilidade mística e espiritual. Como mostrou de forma sábia e perspicaz o nosso grande filósofo brasileiro, Henrique Cláudio de Lima Vaz, em sua obra sobre a mística na tradição ocidental, um dos resultados mais funestos de nossa “modernidade moderna” foi a dissolução da “inteligência espiritual”, decorrente de uma revolução antropocêntrica que situou o sujeito como “vetor ontológico do espírito”. Ao sinalizar o valor dos grandes místicos e de suas narrativas, estamos abrindo novos horizontes e resgatando a essencial “reserva escatológica” de Deus sobre o mundo e sobre as religiões. E também suscitando uma nova sensibilidade humana e criatural.

19/07/2010

Dom Kevin Dowling

A Igreja e o Vaticano II. 'Um retrocesso'

Kevin Dowling, bispo de Rustenburg, África do Sul, proferiu, recentemente um discurso que repercutiu intensamente em países de língua inglesa. Dowling disse ao National Catholic Reporter, em uma entrevista por telefone, que proferiu a fala no dia 1º de junho a um grupo de “católicos leigos influentes” que se encontram periodicamente na Cidade do Cabo para almoçar. O grupo, disse Dowling, pediu a ele que proferisse algo sobre como via a situação atual da igreja. “Em conversas subseqüentes, ficou claro para mim que o grupo de líderes católicos leigos bem informados, queria uma análise que fosse aberta e honesta”, disse Dowling no dia 8 de Julho. “Dado o fato de que seria um grupo seleto sem a presença da mídia, decidi ser aberto e franco em relação aos meus pontos de vista para iniciar um debate e discussão.” No entanto, um repórter estava presente, e o que Dowling pretendia com uma conversa confidencial com líderes leigos tornou notícia local. Dowling logo enviou cópias de sua fala aos seus companheiros bispos sul africanos. O NCR recebeu uma cópia do documento e contatou Dowling para verificar sua autenticidade. Dowling enviou ao NCR uma cópia original da palestra e autorizou-nos a publicar online. Segue o texto da fala de Dowling em 1º de junho na África do Sul aos líderes católicos leigos. Dowling iniciou a palestra lendo uma nota do correspondente do NCR em Washington, Jerry Filteau, sobre uma Missa Latina celebrada em abril na Basílica do Santuário Nacional da Imaculada Conceição, em Washington. Edward Slattery, bispo de Tulsa, celebrou a missa, que apresentou, nas palavras de Filteau, “a cappa magna [veste litúrgica], um séquito vermelho brilhante de quase 20 metros, por trás de um bispo ou cardeal, que veio a ser um dos símbolos do renascimento da missa tridentina.” O discurso de Dom Kevin Dowling foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 08-07-2010 . A tradução é de Lucas Schlupp.
Fonte: UNISINOS


The Southern Cross (jornal católico semanal da Africa do Sul), por volta de três ou quatro semanas atrás, publicou uma foto do bispo Slattery com sua “cappa magna”. Para mim, tal demonstração que representa o triunfalismo, em uma igreja despedaçada por escândalos de abusos sexuais, é muito infeliz. O que aconteceu lá reproduziu as marcas de uma corte real medieval, não a liderança humilde e servidora demonstrada por Jesus. Mas parece-me que isso é, também, um símbolo do que tem ocorrido na igreja, especialmente desde que o papa João Paulo II se tornou o Bispo de Roma, e até então – e isso é “restauracionismo”, o desmantelamento cuidadosamente planejado da teologia, eclesiologia, visão pastoral; realmente “a abertura das janelas” do Concílio Vaticano II – para “restaurar” um modelo de igreja anterior, ou mais controlável através de uma estrutura de poder cada vez mais centralizada; uma estrutura que agora controla tudo na vida da igreja através de uma rede de congregações do Vaticano, lideradas por cardeais que asseguram a estrita observância do que é considerado por eles como “ortodoxo”. Aqueles que não obedecem arcam com censura e punição. Por exemplo, os teólogos que são proibidos de lecionar em faculdades católicas.

Assim, que não deixemos de destacar suficientemente este fato importante. O Vaticano II foi um concilio ecumênico, ou seja, um exercício solene do magistério da igreja, ou ainda, o colégio de bispos reunidos com o bispo de Roma e exercitando uma função de ensino para toda a igreja. Em outras palavras, sua visão, seus princípios e direcionamentos, devem ser seguidos e implementados por todos, do papa ao camponês lavrador em Honduras.

Desde o Concílio Vaticano II, não houve tal exercício de autoridade de ensino do magistério. Em vez disso, uma série de decretos, pronunciamentos e decisões que ganharam vários “rótulos”, indicando, por exemplo, que devem ser mantidos com “consentimento interno” pelos fiéis católicos, mas na realidade são simplesmente as interpretações ou opiniões teológicas ou pastorais dos que tem poder no centro da igreja. Eles não foram definidos solenemente como pertencentes ao “depósito da fé” para serem cridos e seguidos por todos os católicos, assim como outros dogmas solenemente proclamados. Por exemplo, as questões de celibato para o sacerdócio e a ordenação de mulheres, até mesmo retiradas da esfera de discussões. Por isso, tais pronunciamentos estão suscetíveis a exames minuciosos – para discernir se estão de acordo, por exemplo, com a visão teológica fundamental do Concílio Vaticano II, ou se há, na verdade, um caso a ser submetido à diferente interpretação ou opinião.

Quando trabalhei internacionalmente a partir da minha base congregacional religiosa em Roma, de 1985 a 1990 (Dowling é um redentorista [pertencente à Congregação do Santíssimo Redentor]), antes de voltar para cá como bispo de Rustenburg, uma das minhas responsabilidades era a construção do ministério de jovens adultos juntamente com as nossas comunidades em países da Europa, onde tantos jovens estavam alienados da igreja. Desenvolvi relações com muitas centenas de jovens adultos católicos que buscavam de forma sincera, bem abertos a questões de injustiça, pobreza e miséria no mundo, conscientes da injustiça estrutural nos sistemas políticos e econômicos que dominam o mundo, e sentiam cada vez mais que a igreja “oficial” não estava somente perdendo a noção da realidade, mas dando mal testemunho às aspirações de católicos pensantes e conscientes que buscam uma experiência diferente de igreja. Em outras palavras, buscam uma experiência que os possibilita a acreditar que a igreja à qual pertencem possua algo relevante a dizer e testemunhar para este mundo desafiador ao qual vivem. Muitos, mas muitos destes jovens adultos, desde então, deixaram a igreja definitivamente.

Por outro lado, há de ser reconhecido que para um significante numero de jovens católicos, católicos adultos, padres e religiosos ao redor do mundo, o modelo “restauracionista” de igreja que tem sido implementado nos últimos 30 a 40 anos é procurado e valorizado; encontra uma necessidade neles; dá-lhes um sentimento de estarem pertencendo a algo com claros parâmetros e diretrizes para a vida. Desta forma trazendo um senso de segurança e clareza sobre o que é verdade e o que moralmente é certo ou errado, pois há uma estrutura de autoridade clara e forte que decide de forma definitiva por todas estas questões, e à qual eles confiam absolutamente como sendo de origem divina.

O crescimento de grupos e organizações conservadores na igreja nos últimos 40 anos ou mais, que atraem significativo número de adeptos, levou a um fenômeno que eu acho difícil de lidar. Uma igreja com um olhar “para dentro”, atemorizante, quando não antagônica, em relação a um mundo secular com seu perigo concomitante de relativismo, especialmente em termos de verdade e moralidade – frequentemente referido pelo papa Bento XVI; uma igreja que dá uma impressão de “sair pela retaguarda”, e confiando em uma autoridade forte centralizada para garantir unidade através da uniformidade no credo e na prática diante de tais perigos. O medo que há, é de que, sem tal supervisão e controle, e se for autorizada qualquer liberdade de tomadas de decisões, mesmo em questões menos importantes, iria abrir a porta para a divisão e o colapso na unidade da igreja.

Isso se dá por causa de uma “visão” fundamentalmente diferente na igreja e da igreja. Onde é que hoje podemos encontrar os grandes líderes teológicos e pensadores do passado, como o Cardeal (Joseph) Frings de Colônia (Alemanha) e (Bernard Jan) Alfrink (Utrecht, Holanda) na Europa, e os grandes bispos profetas dos quais as vozes e testemunhos foram um chamado de trombeta pela justiça, direitos humanos e uma comunidade global de distribuição justa – o testemunho do Arcebispo (Oscar) Romero de El Salvador, as vozes dos cardeais (Paulo Evaristo) Arns e (Aloísio) Lorscheider, e os Bispos (Dom) Helder Câmara e (Pedro) Casadaliga do Brasil? Novamente, quem no mundo de hoje, “por ai”, ainda dá ouvidos, ou pelo menos aprecia ou permite ser desafiado pela liderança da igreja na atualidade? Acho que a autoridade moral da liderança da Igreja nunca esteve tão fraca. É, portanto, importante, no meu ponto de vista, que a liderança da Igreja, ao invés de dar uma impressão do seu poder, privilégio e prestígio, deveria ser experimentada como ministério humilde, em busca juntamente com as pessoas, para discernir a resposta mais apropriada ou viável que pode servir para complexificar as questões éticas e morais – uma liderança, portnato, que não presume ter todas as respostas o tempo inteiro.

Mas, para mudar um pouco de assunto, uma das contribuições realmente significantes da igreja para a construção de um mundo em que as pessoas e comunidades possam viver em paz e dignidade, com uma qualidade de vida que beneficia aos criados à imagem de Deus, é o corpo do que se tem chamado de “Doutrina Social da Igreja”, um compêndio publicado nos últimos anos. Estes princípios da doutrina social são: Princípio do Bem Comum, Solidariedade, a Opção pelos Pobres, Subsidiariedade, Destinação Universal dos Bens, a Integridade da Criação e a Centralidade da Pessoa – todos baseados e seguindo os valores do Evangelho. Aqui temos princípios e diretrizes muito relevantes para empregar em realidades sociais, econômicas, culturais e políticas complexas, especialmente em como elas afetam os membros mais pobres e vulneráveis da sociedade em todo lugar.

Porém, se a liderança da igreja, em qualquer lugar, ousa desaprovar ou criticar políticas econômicas e sociopolíticas, e os que planejam tais políticas ou governos, deve também deixar ser criticada da mesma forma, em relação a suas políticas, sua vida interna, e especialmente seu modus operandi [modo de operação]. Uma cultura e prática democrática, com foco na participação dos cidadãos e mantendo o dever de prestar contas pelos que são eleitos para governar, é cada vez mais desejado, apesar da inevitável deficiência humana. Quando pessoas pensantes de todo tipo de convencimento olham para a liderança da Igreja, a questionam sobre, por exemplo, a verdadeira participação dos seus membros no governo e, de que forma, na verdade, a liderança da Igreja deve ser responsabilizada. Se a Igreja e sua liderança declaram seguir os valores do Evangelho e os princípios da Doutrina Social da Igreja, aí sua vida interna, seus métodos de governo e seu uso da autoridade serão analisados com base no que nós cremos. Deixe-nos tomar um princípio da doutrina social, com importância vital para garantia da democracia participativa no domínio sócio político, a saber, subsidiariedade.

Eu trabalhei com a conferência episcopal (da África do Sul), Departamento de Justiça e Paz, por 17 anos. Após a nossa liberação política em 1994, discernimos que ela própria teria pouca relevância para a realidade dos pobres e marginalizados, a não ser que resultasse em sua emancipação econômica. Nós, portanto, decidimos que uma questão fundamental para a África do Sul pós 1994 era a justiça econômica. Após muita discussão em todos os níveis, emitimos uma Nota Pastoral em 1999, a qual intitulamos “Justiça Econômica na África do Sul”. Seu foco principal foi necessariamente na economia. Dentre outras coisas, tratou de cada um dos princípios da Doutrina Social da Igreja, e eu apresento agora uma citação de parte do tratamento de subsidiariedade:

“O princípio da subsidiariedade protege os direitos dos indivíduos e grupos diante dos poderosos, especialmente do estado. Faz com que aquelas coisas que podem ser feitas ou decididas num nível mais baixo da sociedade não seja substituído pelo que é de um nível mais alto. Assim, reafirma nosso direito e nossa capacidade de decidir por nós mesmos, como organizar nossos relacionamentos e como entrar em acordo com os outros. [...] Nós podemos e deveríamos dar passos para encorajar tomadas de decisões em níveis econômicos mais baixos, e capacitar o maior número de pessoas para participar o máximo possível da vida econômica.” (Justiça Econômica na África do Sul, pg. 14)

Aplicado à igreja, o princípio de subsidiariedade requer de sua liderança que promova e encoraje ativamente a participação, responsabilidade pessoal e empenho efetivo de todos em termos de chamado e ministério particular na igreja e no mundo, de acordo com suas oportunidades e dons.

Entretanto, penso que hoje temos uma liderança, que na verdade questiona exatamente a noção de subsidiariedade; onde os mínimos detalhes da vida e prática da igreja “no nível mais baixo” estão sujeitos à análise e autenticidade dadas por um “nível mais alto”, na verdade o nível mais alto, por exemplo, a autorização de linguagem e textos litúrgicos; onde um dos princípios chave do Concílio Vaticano II, o coleguismo nas tomadas de decisões, é virtualmente inexistente. O eminente emérito Arcebispo de Viena, Cardeal Franz König, em 1999 – quase 35 anos depois do Concílio Vaticano II – escreveu o seguinte: “Na verdade, porém, de facto e não de jure, intencionalmente ou não intencionalmente, as autoridades curiais trabalhando em conjunto com o papa se apropriaram da tarefa do colégio episcopal. São eles que realizam quase todas” (Minha Visão da Igreja do Futuro, The Tablet, 27 de Março, 1999, p. 434).

O que compõe isso, para mim, é a mística que tem envolvido crescentemente a pessoa do papa nos últimos 30 anos, de forma que qualquer crítica ou questionamento de suas políticas, sua forma de pensar, seu exercício de autoridade, etc. são considerados como traição. Há mais do que um sentimento, por causa desta mística, de que a obediência inquestionável dos fiéis ao papa é necessária e é um sinal do costume e fidelidade de um verdadeiro católico. Quando a autoridade do papa é estendida intencionalmente à cúria do vaticano, existe a real possibilidade de que a inquestionável obediência às decisões humanas tomadas pelos departamentos curiais e cardeais sobre uma gama de questões, tornam-se a marca da fidelidade como católico, e tudo fora disso é interpretado como sendo desleal ao papa, que é acusado de dirigir a barca de Pedro.

Por isso, tornou-se cada vez mais difícil ao longo dos anos, para todo o colégio de bispos, ou particularmente em um território, de exercitar sua liderança teologicamente embasada no serviço, a discernir respostas apropriadas em relação a sua realidade e necessidades socioeconômicas, culturais, litúrgicas, espirituais e pastorais; muito menos para discordar com ou buscar alternativas a políticas e decisões tomadas em Roma. E o que parece cada vez mais a política de designar bispos “seguros”, inquestionáveis ortodoxos, e até, muito conservadores para preencher dioceses vagas nos últimos 30 anos, apenas faz com que cada vez menos o colégio de bispos – mesmo em conferências poderosas como nos Estados Unidos – questionarão o que sair de Roma, e certamente não publicamente. Ao invés disso, haverá todo esforço para tentar encontrar uma adaptação com os que estão no poder, o que significa que a posição romana ao final prevalecerá. E, levando isso adiante, quando um único bispo fizer caso de algo, especialmente em público, a impressão ou julgamento será de que ele está “desrespeitando a hierarquia” em relação aos outros bispos e causaria apenas confusão aos fiéis leigos – assim dizem – pois parecerá que os bispos não possuem unidade em relação aos ensinamentos e papel como líderes. A pressão, portanto, é para fazer adequação.

O que deveríamos ter, a meu ver, é uma igreja onde a liderança reconhece e incentiva o ato de tomar decisões nos níveis apropriados de igrejas locais; onde a liderança local escuta e discerne juntamente com o povo de Deus daquela área o que “o Espírito diz à igreja”, e então articula o resultado como um consenso da comunidade de fé, oração e que serve. Precisamos de fé em Deus e confiança no povo de Deus para fazer o que possa parecer a alguns, ou muitos, um risco. A igreja poderia enriquecer com o resultado de uma diversidade que verdadeiramente integra os valores socioculturais, e a percepção de uma fé viva e em desenvolvimento, juntamente com um discernimento de como tal diversidade pode promover unidade dentro da igreja – e não requerendo, portanto, uniformidade para ser verdadeiramente autêntica.

Diversidade na vida e na prática, como uma expressão do princípio de subsidiariedade, tem sido tirada das igrejas locais em todo lugar pela centralização da tomada de decisões ao nível do Vaticano. Além disso, ortodoxia está mais e mais identificada com as opiniões e visões de mundo conservadoras, com o devido julgamento de que tudo visto como “liberal” é tanto suspeito como não ortodoxo, e por isso, a ser rejeitado como um perigo à fé do povo.

Há algum caminho que nos leva adiante? Eu luto com esta questão, especialmente em vista da divisão aparente do propósito e da visão na igreja. Como reconciliar tais visões ou modelos de igreja tão diferentes? Eu não tenho a resposta, a não ser que em algum lugar tenhamos que encontrar uma atitude de respeito e reverência à diferença e diversidade enquanto buscamos por uma unidade viva na igreja; que pessoas sejam autorizadas, e realmente capacitadas, a encontrar ou criar o tipo de comunidade que é expressiva em sua fé e aspirações com relação a suas vidas cristãs e católicas e com o compromisso com a igreja e o mundo, e que se esforça para manter a tensão legítima e construtiva nas incertezas e ambigüidades que tudo isso vai trazer, confiando na presença do Espírito Santo.

No cerne disto está a questão da consciência. Como católicos, temos que ser confiáveis o suficiente para tomar decisões conscientes da nossa vida, nosso testemunho, nossas expressões de fé, espiritualidade, oração, e envolvimento com o mundo – sobre o fundamento de uma consciência amadurecida. E, como convite para uma apreciação de consciência e decisões conscientes sobre nossas vidas e participação no que é uma igreja muito humana, encerro com a formulação ou entendimento dado de ninguém mais que o teólogo Pe. Josef Ratzinger, agora papa, quando era perito, ou expert, no Concílio Vaticano II:

Sobre o papa, como expressão da reivindicação vinculativa da autoridade eclesiástica, encontra-se a própria consciência, que deve ser obedecida até mesmo, se necessário, contra a exigência da autoridade eclesiástica. Esta ênfase sobre o indivíduo, cuja consciência confronta com um tribunal supremo e final, e aquele que em última instância, está além da reivindicação de grupos sociais externos, mesmo a igreja oficial, também estabelece um princípio em oposição ao crescente totalitarismo.” (Joseph Ratzinger em: Comentário sobre o Documento do Vaticano II, Vol. V., pg. 134 (Ed) H. Vorgrimler, Nova Iorque, Herder and Herder, 1967).

Bispo Kevin Dowling C.Ss.R.
Cidade do Cabo, 1 de Junho, 2010

Vittorio Cristelli

Caminhar sobre a estrada da fé

Artigo do padre e jornalista italiano Vittorio Cristelli, publicado na revista Vita Trentina, revista da diocese de Trento, na Itália, 18-07-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS




Acho iluminadora e exaustiva a descrição que o teólogo espanhol Juan Masià faz da situação atual da Igreja. Imobilizada pelo escândalo da pedofilia que surgiu entre os seus padres; caluniada e suspeita por causa da administração dos seus bens com um cardeal que negocia com clãs de negociadores, até mesmo condecorados com o título honorífico de "gentis-homens de Sua Santidade"; criticada por causa da presença do cardeal secretário de Estado no jantar organizado por Bruno Vespa, no qual se falou da reorganização do atual governo; preocupada com a deserção dos grupos que confluem nas seitas, mas também com a secularização e até com o refúgio no agnosticismo, principalmente dos jovens: essa é a Igreja de hoje.

Juan Masià localiza quatro "vias" que ele vê que estão sendo percorridas atualmente na Igreja e ele faz isso com a parábola sugestiva do caminho da montanha. Era uma vez – disse – um caminho da montanha, estreito, com um precipício de um lado e uma escarpa do outro. Cai a escuridão, e o caminho se torna perigoso.

Há quem prefira se embrenhar pelo bosque e chega a um planalto para passar a noite. De manhã, consideram-no cômodo e amplo. Encontrando-se bem, constroem ali antes uma paliçada de defesa, depois um pequeno castelo no qual se instalam, renunciando a caminhar além.

Um segundo grupo, avança sobre o caminho, apesar da noite, mas em certo ponto encontram uma gruta e ali se refugiam, renunciando caminhar além, exatamente como os da planície. O lugar é apertado, mas suficiente para o grupo.

Um terceiro grupo é o dos indecisos e temerosos, que param em uma encruzilhada por prudência. No dia seguinte, procuram alcançar aqueles do castelo e os da gruta, mas não para avançar, mas sim para fazer número – hoje diríamos massa crítica – para assim ter mais poder.

Por fim, há um quarto grupo, pouco numeroso, que decide continuar caminhando apesar da noite. Seguram-se pelas mãos para não se perder e continuam caminhando durante dias e noites. No caminho, encontram outros grupos provenientes de outros lugares, vestidos de modos diferentes e falando outras línguas. Unem-se a eles e fazem uma única comitiva. Contando uns aos outros suas próprias histórias, vão rumo à mesma meta.

Fora da metáfora, os do castelo são os cristãos da Igreja-instituição. Os da gruta são os rebeldes que se espremem em uma seita. Os da encruzilhada são os cristãos da prudência e da moderação, que procuram atrair os primeiros e os segundos, mas para ter mais poder e não para caminhar. E os que avançam apesar da noite são os cristãos que se deixam levar pelo vento do Espírito, que se transformam nos vários encontros com os outros homens de outras regiões, raças e línguas, mas nunca renunciam a caminhar.

O teólogo espanhol diz sinteticamente: "A Igreja, ao longo de dois mil anos, oscilou entre a tentação de se transformar em instituição, a tentação de se tornar seita e a tentação de cair no imobilismo por excesso de prudência. Mas o Espírito suscita repetidamente um novo Pentecostes por meio do quarto caminho. Também hoje".

Encontrei nestes dias dois apelos e exortações a caminhar, também na Itália. O primeiro de Pietro Citati, que, percebendo na Igreja um certo pessimismo e uma tristeza unidos à tentativa de superar a crise provocada pela pedofilia só por meio do justicialismo, recorda que a fé cristã é anúncio de alegria, de festa de esperança. Porque é "graça humanizada".

Encontrei o segundo em um texto de Paolo Giannoni, o eremita presente e inspirador dos encontros em Florença da "Igreja do incômodo". Ele escreve assim: "Não partimos das nossas forças, mas da convicção de que o Espírito está nas trevas do abismo como presença amorosa, salvífica, unificante, com uma doçura de grande esperança e confiança". Giannoni também exorta a ter "fé na fé".

04/07/2010

Entrevista - Faustino Teixeira

Teologia Pluralista e Teologia da Revelação.

O Prof. Dr. Faustino Teixeira (foto) é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). O teólogo é também pesquisador do ISER-Assessoria (RJ) e consultor da Capes. Fez o doutorado e o pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Itália). Fonte: UNISINOS



IHU On-Line – Que avaliação você faz do desenvolvimento da teologia do pluralismo religioso e do diálogo inter-religioso dos últimos anos? Quais os principais avanços e limites?

Faustino Teixeira – A teologia do pluralismo religioso vem buscando responder a um dos mais importantes desafios do século XXI: como acolher com respeito a pluralidade religiosa. Aos poucos vem firmando a convicção de que o pluralismo religioso é uma realidade de princípio, não um dado contingencial, inserindo-se no misterioso desígnio de Deus para a humanidade. Temos um núcleo de teólogos que defendem com firmeza esta perspectiva, entre os quais podemos destacar o pioneirismo de Raimond Panikkar, Edward Schillebeeckx, Jacques Dupuis, Claude Geffré, Michael Amaladoss, John Hick, entre outros. É um tema que vem envolvendo também a reflexão da teologia da libertação, e o fruto mais decisivo nesse sentido é a coletânea de cinco volumes, Pelos muitos caminhos de Deus, organizada pela ASET.

O fato do Congresso da SOTER organizar uma mesa sobre o tema, agora em julho, é uma expressão viva desse novo interesse. Gosto de utilizar uma metáfora de Christian Ducquoc para situar a questão: a “sinfonia adiada”. Trata-se de um recurso por ele utilizado para romper com a ingênua idéia de um plano divino magistral que estaria conduzindo as outras tradições religiosas para um único aprisco. No âmbito da teologia católica conhecemos de perto esta perspectiva de uma “teologia do acabamento”, que não consegue ver nas outras religiões senão “marcos de espera” para uma inserção “purificadora” no cristianismo. Esta “obsessão pela unidade” pode, em verdade, obstruir ou ocultar o caráter enigmático que preside a diversidade inter-religiosa. De fato, a verdade da religião não se condensa numa única tradição religiosa, mas na sinfonia que preside a sua interação.

O estar sintonizado com a reflexão mística inter-religiosa tem-me ajudado muito a lidar distintamente com essa diversidade religiosa, com abertura, acolhida e delicadeza. Sigo as pistas abertas pelo grande místico sufi andaluz, Ibn´Arabi (1165-1240), que nos adverte para o risco de nos fixarnos exclusivamente num credo particular, sem atenção devida aos sinais de Deus que acontecem por todo canto e a todo momento. A seu ver, com esse fechamento acabamos deixando escapar inúmeros bens, ou mesmo a própria “Ciência da Verdade”. Há um ponto luminoso que preside toda diversidade religiosa, e não podemos perdê-lo de vista exclusivizando nosso olhar numa única perspectiva. A questão do diálogo interreligioso está intimamente vinculada a essa questão. Defendo a idéia de que a abertura ao pluralismo de princípio é um requisito essencial ao diálogo inter-religioso. Não se pode apagar o “mistério pessoal intransponível” que habita o mundo do outro. Há algo de irredutível e irrevogável no âmbito da alteridade, e o diálogo interreligioso traduz o aprendizado ou o intercâmbio de dons que acontecem nessa “viagem fraterna” de interlocutores distintos em sua busca pelo Mistério sempre maior.

IHU On-Line – Considerando a persistência e, às vezes, aumento dos conflitos étnico-raciais no mundo, quais as chances de eficácia dos múltiplos esforços pelo diálogo inter-religioso nos últimos anos?

Faustino Teixeira – Em obra recente sobre a globalização, democracia e terrorismo (2007), o historiador britânico, Eric Hobsbawm, mostrou com pertinência que o século XX foi “o mais mortífero de toda a história documentada”. Assinala que o montante de mortes causadas pelas guerras do período ou a elas associada vem estimado em 187 milhões de pessoas. Foi também um século marcado por fome, violência e devastações: uma história perturbadora de trânsito de grandes contingentes humanos fugindo da pobreza, da repressão e das guerras. Não há mudanças substantivas em nosso século XXI e agora acrescentam-se novos e complexos desafios como os relacionados à escassez da água e de alimentos e a afirmação crescente de identidades que se revelam agressivas (ou mesmo mortíferas) e impermeáveis. Nada mais atual que o princípio programático defendido por Hans Kung e levado à frente pela Fundação Ética Mundial: “Não há paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não há paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões.

Não há diálogo entre as religiões sem uma busca dos fundamentos das religiões”. Temos hoje importantes iniciativas no campo do diálogo interreligioso (DIR). Em âmbito mais institucional temos, no lado católico, a atuação do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso (PCDI), e citaria aqui o papel do Comitê conjunto para o DIR deste Conselho com o Comitê Permanente de Al-Azhar. Da parte dos muçulmanos, menciono a importante Mensagem Interreligiosa de Aman e outras iniciativas como a carta dos 138 teólogos muçulmanos a Bento XVI e os responsáveis cristãos. Em âmbito acadêmico, podem ser lembradas as atuações da Fundação Ética Mundial e do Grupo de Pesquisa Islamo-cristão (GRIC), fundado na França em 1977. Outras iniciativas acontecem no âmbito do diálogo da experiência religiosa: o Diálogo Interreligioso Monástico, o Caminho da Paz (envolvendo Dalai Lama e Laurence Freeman), a Comunidade de Santo Egídio (Itália). No Brasil temos o singular trabalho exercido pelo CESEP, com importantes incursões no campo do DIR, e o bonito trabalho realizado pelo Programa Gestando o Diálogo Interreligioso e o Ecumenismo (GDIREC), da Unisinos. Podemos também lembrar a atuação de expoentes dialogais como Monja Coen e Marcelo Barros. Mas há ainda muito o que fazer no Brasil nessa área.

O sucesso do empreendimento dialogal vai depende do efetivo empenho dedicado a seu favor. As chances são imensas, apesar das resistências ao contrário. É sempre difícil criar uma sensibilidade dialogal em tempos de acirramento identitário. Mas pistas importantes vão sendo levantadas. O fundamento teológico do DIR está no mistério do Deus criador e de sua acolhida amorosa. Busca-se recolher “todas as riquezas da sabedoria infinita e multiforme” do Deus da Vida, escondidos na criação e na história (DM 41 e 22). O DIR revela-se essencial para a vida cristã, e por duas razões fundamentais. É imprescindível para a paz no mundo e uma forma precisa de colocar em prática a lei mais essencial do cristianismo: amar o próximo como a si mesmo (Lc 10,27). É curioso perceber que em iniciativas recentes do DIR, como a Mensagem Interreligiosa de Aman, assinalou-se como traço comum das tradições religiosas proféticas a unidade do amor a Deus e do amor ao próximo.

Em sua encíclica Deus caritas est (2005), Bento XVI enfatizou o nexo indivisível entre esses dois amores. E assinalou que “a afirmação do amor a Deus se torna uma mentira, se o homem se fechar ao próximo ou, inclusive o odiar”. E há hoje que acrescentar o amor à natureza e toda a criação. Deus manifesta-se presente em “toda a vida e no inteiro universo”, é o maravilhoso dinamismo que o sustenta e movimenta a partir de dentro. Como sublinha Hans Kung, Deus é “a inapreensível ´dimensão infinita`em todas as coisas”. Somos nós, em nossa contingência, que não conseguimos captar essa presença. Há que educar o olhar para adentrar-se nesse mistério e nessa maravilha. E aqui toco num campo fundamental para o DIR que é a espiritualidade. É ela que faculta o trabalho interior de desapego e abertura, essenciais para um verdadeiro encontro inter-religioso.

O diálogo deve começar no interior de cada um, criando e favorecendo espaços de hospitalidade. Como mostrou com acerto Leonardo Boff em recente artigo, a espiritualidade é gestadora de uma paz novidadeira, que vem do âmbito da profunidade. É uma paz que “irrompe de dentro, irradia em todas as direções, qualifica as relações e toca o coração íntimo das pessoas de boa vontade. Essa paz é feita de referência, de respeito, de tolerância, de compreensão benevolente das limitações dos outros e da acolhida do Mistério no mundo. Ela alimenta o amor, o cuidado, a vontade de acolher e de ser acolhido, de compreender e de ser compreendio, de perdoar e de ser perdoado”.

IHU On-Line – Que lugar as bandeiras da ética, do futuro sustentável e da paz mundial encontram no fazer teológico latino-americano atual?

Faustino Teixeira – Penso que a reflexão teológica latino-americana deve seguir as inspiradoras pistas lançadas pela Carta da Terra. Ali se diz que “devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz”. Não há meio termo nessa luta essencial: ou formamos essa nova aliança global para cuidar de nosso planeta e lutar contra a dor dos humanos ou arriscamos nossa própria destruição. E aqui acrescento o desafio do diálogo interreligioso e do respeito à diversidade das opções espirituais, religiosas ou não. Há diversos caminhos que conduzem o ser humano ao seu destino e eles devem ser respeitados. Temos que recuperar o significado etimológico de salvação, entendida como uma dinâmica positiva de preservação da integridade do ser humano. Como nos mostra Adolphe Gesché, “salvar é levar alguém até a própria meta, é permitir que ele se realize, que atinja o seu objetivo”. E esta é uma aspiração legítima de todos e não se restringe ao campo das religiões. Trago também à baila a importante declaração em favor de uma ética mundial, lançada no Parlamento da Religiões Mundiais, em 1993 (Chicago). Falou-se ali que a humanidade precisa não apenas de reformas sociais e ecológicas, mas também de uma renovação espiritual, que possa favorecer à vida dos seres humanos uma “fidelidade de fundo” e um “horizonte de sentido”. A nossa reflexão teológica deve estar atenta a tudo isso e aperfeiçoar seu instrumental para avançar nessa direção.

Nesse sentido, penso que o tema do Congresso da Soter foi muito feliz e oportuno. É um tema de grande atualidade e os teólogos não podem passar à margem de suas exigências. Estou muito motivado para participar do evento, verificar as pistas que vão se abrindo na reflexão teológica latino-americana a respeito e partilhar com os amigos as reflexões que venho fazendo nos últimos anos. Estou também animado a participar da mesa específica sobre a teologia do pluralismo religioso junto com Vigil e Queiruga. Estamos juntos nessa desafiadora tarefa de construir uma teologia do pluralismo religioso em sintonia e abertura ao caminhar da teologia da libertação.

José María Castillo

O Deus dos ricos não está em crise

Uma das notícias que mais se comenta hoje na mídia é o surpreendente aumento do número de ricos, em todo o mundo e especificamente na Espanha: 16.000 a mais que em 2008. Ou seja, os ricos aumentaram, em 2009, 12,5% em relação ao ano anterior. O relatório da Merril Lynch Global Health Management entende por ricos os que têm, ao menos, um milhão de euros, sem contar a residência e os gastos de consumo. A reflexão é de José María Castillo e está publicada em seu blog Sin Censura, 23-06-2010. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS



Portanto, quando a crise mais aperta os pobres e os trabalhadores, quando mais aumenta o número de desempregados, acontece que os ricos têm mais sorte e, pelo que dizem os que sabem do assunto, os ricos são cada dia mais ricos.

Dizer isto é o mesmo que dizer que aumenta a violência, a crueldade, a desumanização, o sofrimento e a desesperança de milhões de criaturas. Isto é o pior de tudo. Mas, além disso, o aumento do número de ricos é também um patético indicador religioso. Os cristãos sabem que Jesus disse: “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro”. E a razão é clara: “Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se apegará ao primeiro e desprezará o segundo” (Mt 6, 24).

A consequência – se é que Jesus tinha razão – é que o Deus dos ricos não está em crise. O que está em crise são a economia e as vítimas da economia de mercado. Mas, o que mais chama a atenção é que precisamente quando o Deus dos pobres se vê mais excluído e desautorizado, o Deus dos ricos está cada vez mais robusto e é mais generoso com os seus fiéis.

E, enquanto isso, a Igreja está pedindo dinheiro. Vemos isso na televisão e o ouvimos nas mensagens publicitárias veiculadas pelas rádios. Os bispos pedem às pessoas para que coloquem o dinheiro na caixa postal da Igreja. É verdade que a Igreja afirma que esse dinheiro é para as suas obras assistenciais e de caridade, que são muitas. Mas, não é só para isso. Sabemos que os bispos que conseguem generosos empréstimos dos bancos, nestes tempos de penúria, para fazer enormes construções, para suas obras enormes. Como os tempos mudaram!

Nos séculos III e IV, o bispo era o encarregado de administrar os bens da comunidade. Mas o bispo (todo bispo) sabia que o sujeito de domínio dos bens da Igreja eram os pobres e desamparados: assim aparece no cânon 25 do Concílio de Antioquia (341). O Papa Gelásio repete a mesma legislação, no final do século V, numa carta aos bispos da Sicília (PL 59, 57). E, sobretudo, a Igreja era, naqueles tempos, sumamente zelosa com algo que agora nos parece incrível: cada bispo era proibido de aceitar doações daqueles que cometiam injustiças. São Basílio não aceitou a oferenda de um prefeito injusto (PG 36, 564). E Santo Epifânio enuncia o princípio geral: “A Igreja aceita as oferendas daqueles que não fizeram mal a ninguém ou não cometeram nenhum crime, mas que se comportam com justiça” (PG 42, 832).

Mas mais exigente que tudo isto é o que ordenava a Didaskalia, documento litúrgico e canônico do século III que dava normas para o comportamento na liturgia e na vida das comunidades. O princípio geral era que “o altar de Deus são as viúvas e os órfãos” (II, 26, 3). Por isso, a obrigação principal do bispo era vigiar com sumo cuidado para que aqueles que cometiam maus-tratos e injustiças não se aproximassem do altar; nem, portanto, podiam dar esmolas para os pobres (II, 17, 1). Nem os que se aproveitavam dos pobres, nem os que pagavam diárias injustas, nem os que tratavam mal os seus trabalhadores..., de nenhum desses indivíduos, o bispo podia aceitar ajudas ou esmolas. Porque “do dinheiro que provém da injustiça, não pode viver o altar de Deus" (IV, 5, 2). Daí que, dos poderosos e dos ricos, que eram os que se ofereciam para dar esmolas, de tais pessoas não se aceitavam ajudas para a comunidade (IV, 8, 3). E esta convicção chegava ao extremo de que, segundo se dizia na mesma Didaskalia, “é preferível morrer de fome do que receber dos iníquos e dos que cometem injustiças” (IV, 8, 2). Este preceito é repetido pelas Constituições Apostólicas, no Oriente, e pelos Statuta Ecclesiae Antiqua, no século V.

Mas os tempos mudaram. Nossa Igreja recebe agora dinheiro de quem quer que seja. E quanto mais, melhor. Evidentemente, o sujeito de propriedade desse dinheiro já não são os pobres. Agora, os pobres estão na porta da Igreja pedindo esmola. O problema está em que cada dia menos gente vai às igrejas de nossa Igreja. O Deus da Igreja está tão em crise quanto os pobres. As pessoas agora vão aos novos templos do Deus dos ricos. Esses templos são os bancos, que, segundo dizem, estão bem protegidos, são seguros e não cambaleiam.

A coisa está clara: o Deus dos ricos está no auge, precisamente quando o Deus dos pobres se debate entre as dúvidas, o descrédito e o ressentimento de muitos cidadãos. Tudo isto tem muito a ver com o sistema econômico que manda em todos nós. Mas aqueles que vão com mais preocupação e fervor aos bancos que às igrejas também têm a sua parte de responsabilidade. E, de passagem, que se perguntem os bispos se eles se sentem sucessores daqueles antigos bispos que preferiram morrer de fome antes que aceitar o dinheiro dos que oprimem os pobres. Continuaremos crendo no Deus de Jesus? Ou já trocamos de Deus e encontramos outro mais cômodo e menos exigente, por mais que seja cruel com os mais infelizes?

Já termino. Aos que dizem de mim que ataco a Igreja, eu pergunto (e me pergunto) se é melhor continuar calando e tornar-se cúmplice destas coisas ou, ao contrário, dizer o que precisa ser dito, mesmo que dizemos isso daquela que dizem que é a “nossa mãe”. Prefiro que me chamem de “traidor” em vez de dizerem que a minha boca está selada pelo vil dinheiro. Em qualquer caso, a minha convicção é que Jesus e seu Evangelho estão acima de tudo, também da Igreja.