19/04/2010

Eduardo A. Esquivel

A Igreja Católica desce do pedestal
Fonte: ADITAL


Os insistentes noticiários sobre pedofilia cometida por padres católicos têm sido interpretados como expressões de anticlericalismo, abandono da religião ou até ateísmo. Pois a igreja católica é um baluarte do que há de mais valioso em nossas sociedades e, nesse sentido, toda a qualquer crítica a ela deve ser banida.

Quem assim pensa faz bem em situar os fatos que vivenciamos numa perspectiva mais ampla. Durante longos séculos, a igreja católica dominou a cultura ocidental e um dos instrumentos desse domínio foi o postulado de sua santidade intocável. Apenas cinqüenta anos atrás, o domínio do pensamento católico sobre as consciências ainda era tão poderosa que criticar um representante da igreja católica era quase o mesmo que criticar o próprio Deus. Como dizia o padre Cícero: ‘o padre é santo nem que o diabo não queira’. O postulado da santidade da igreja e de seus representantes era considerado um sustentáculo da fé.

Mas será que esse postulado tem raízes nos Evangelhos? O leitor atento dos mesmos poderá verificar que neles não se encontra nenhum argumento a favor da santidade da igreja. Pelo contrário, no Evangelho de Marcos, por exemplo, os discípulos de Jesus são apresentados como ‘maus exemplos’. Eles não conseguem compreender Jesus e, quanto mais este se aproxima da morte, tanto mais eles demonstram não entender nada. Enquanto Jesus caminha em direção a Jerusalém com plena consciência do perigo de vida que enfrenta, seus discípulos ficam discutindo entre si quem será o primeiro a ‘se sentar à direita do trono no reino de Deus’. E quando ele, no jardim de Getsémani, chega a suar sangue, de tanta agonia ao ver o ‘cálice’ se aproximar, eles ficam dormindo. Judas o trai com um beijo e Pedro foge quando uma empregada do sinédrio diz: ‘você também é galileu’. Essas narrativas são intencionais. O evangelista quer mostrar como é difícil comprometer-se com o estabelecimento do reino de Deus: mesmo os apóstolos mal conseguem corresponder ao desafio. No mesmo sentido, Jesus combate a pretensa santidade dos fariseus e a santidade não menos hipócrita dos sacerdotes no templo. A carta aos hebreus é um vigoroso requisitório contra a pretensão à santidade, uma tentação que ameaça qualquer instituição religiosa. O reino de Deus vem por meio de um empenho humilde e perseverante, não por exibições de santidade. É, pois, em vão que a teologia procura argumentos no novo testamento para justificar a santidade da igreja.

Então, donde provém o postulado da igreja santa? Ela é uma elaboração teológica do século IV e tem muito a ver com a aproximação da igreja com o sistema imperial romano e os métodos utilizados para impressionar as pessoas. Um século depois de proclamada a santidade da igreja (no Concílio de Nicéia), a idéia recebe um importante reforço na obra ‘A cidade de Deus’, da autoria de Santo Agostinho. Diante de um império romano em decadência, corroído por corrupção e abusos, Agostinho apresenta a luminosa imagem de uma cidade de Deus incorrupta, repleta de santos. Essa imagem é tão poderosa e seduz tanto os clérigos que atravessa os séculos sem grandes contestações. Eis a ideologia do atual papa. Ao longo de seu trabalho como professor em teologia (como testemunha Leonardo Boff, que estudou na Alemanha na época), ele sempre defendeu a idéia de uma igreja que fosse santa em meio à devassidão do mundo e aos erros do século, uma cidadela de Deus, exatamente na linha de pensamento de Santo Agostinho. Como papa, ele demonstra que seu pensamento continua o mesmo, apesar das contradições (como demonstra uma carta recente de Hans Küng). O argumento mais forte contra o papa Bento XVI provém dos fatos. Contra fatos não há argumentos. A pedofilia praticada por padres vem demonstrar que a igreja não é tão santa como o papa gostaria que ela fosse. Os padres mostram-se humanos, por vezes ‘demasiadamente humanos’, e isso enerva o papa. Se ele fosse ler os trabalhos de Jon Sobrino, não ficaria tão nervoso. Sobrino muda o foco: o que importa não é a Igreja, mas o reino de Deus. Jesus não veio pregar a Igreja, mas anunciar o reino de Deus. A igreja é apenas um instrumento provisório. O que importa é o reino de Deus, ou seja, a sociedade humana. Mas o papa não lê Sobrino, como não lê Gustavo Gutiérrez, José Comblin, Leonardo Boff, Ivone Gebara e nossos(as) outros(as) mestres(as) da teologia latino-americana. Ele não lê os sermões de Dom Romero nem as cartas conciliares e pós-conciliares de Dom Helder Câmara. Toda essa literatura está focada no reino de Deus, não na instituição igreja. Mas o papa continua embevecido com um ideal de santidade eclesiástica que não se fundamenta no Novo Testamento nem se verifica na realidade vivida.

Considerada de maneira mais amplamente societária, a atual exposição dos pecados da igreja demonstra como nossas sociedades não suportam mais os métodos de intimidação, ocultamento e manipulação que ainda eram aceitos por nossos pais e avós, num passado não tão distante. Nossa percepção do que seja uma sociedade democrática, igualitária e justa vai se aperfeiçoando. Da mesma forma em que vemos, pela primeira vez, um governador preso, vemos também padres sendo julgados em tribunais civis. Nada mais louvável numa sociedade que pretende caminhar para a democracia e a liberdade. Todos os cidadãos estão sujeitos à lei, nenhuma instituição está acima da lei civil. E assim a igreja católica vai, lentamente, descendo do pedestal e se adaptando à normalidade da atual convivência humana.

Cardeal Odilo Pedro Scherer

Muito mais que pedofilia

Cardeal Odilo Pedro Scherer é Arcebispo da Arquidiocese de São Paulo/SP
Fonte: O Estado de São Paulo/11.04.2010.


As notícias sobre pedofilia, envolvendo membros do clero, difundiram-se de modo insistente. Tristes fatos, infelizmente, existiram no passado e existem no presente; não preciso discorrer sobre as cenas escabrosas de Arapiraca… A Igreja vive dias difíceis, em que aparece exposto o seu lado humano mais frágil e necessitado de conversão. De Jesus aprendemos: “Ai daqueles que escandalizam um desses pequeninos!” E de São Paulo ouvimos: “Não foi isso que aprendestes de Cristo”.

As palavras dirigidas pelo papa Bento XVI aos católicos da Irlanda servem também para os católicos do Brasil e de qualquer outro país, especialmente aquelas dirigidas às vítimas de abusos e aos seus abusadores. Dizer que é lamentável, deplorável, vergonhoso, é pouco! Em nenhum catecismo, livro de orientação religiosa, moral ou comportamental da Igreja isso jamais foi aprovado ou ensinado! Além do dano causado às vítimas, é imenso o dano à própria Igreja.

O mundo tem razão de esperar da Igreja notícias melhores: Dos padres, religiosos e de todos os cristãos, conforme a recomendação de Jesus a seus discípulos: “Brilhe a vossa luz diante dos homens, para que eles, vendo vossas boas obras, glorifiquem o Pai que está nos céus!” Inútil, divagar com teorias doutas sobre as influências da mentalidade moral permissiva sobre os comportamentos individuais, até em ambientes eclesiásticos; talvez conseguiríamos compreender melhor por que as coisas acontecem, mas ainda nada teríamos mudado.

Há quem logo tem a solução, sempre pronta à espera de aplicação: É só acabar com o celibato dos padres, que tudo se resolve! Ora, será que o problema tem a ver somente com celibatários? E ficaria bem jogar nos braços da mulher um homem com taras desenfreadas, que também para os casados fazem desonra? Mulher nenhuma merece isso! E ninguém creia que esse seja um problema somente de padres: A maioria absoluta dos abusos sexuais de crianças acontece debaixo do teto familiar e no círculo do parentesco. O problema é bem mais amplo!

Ouso recordar algo que pode escandalizar a alguns até mais que a própria pedofilia: É preciso valorizar novamente os mandamentos da Lei de Deus, que recomendam atitudes e comportamentos castos, de acordo com o próprio estado de vida. Não me refiro a tabus ou repressões “castradoras”, mas apenas a comportamentos dignos e respeitosos em relação à sexualidade. Tanto em relação aos outros, como a si próprio. Que outra solução teríamos? Talvez o vale tudo e o “libera geral”, aceitando e até recomendando como “normais” comportamentos aberrantes e inomináveis, como esses que agora se condenam?

As notícias tristes desses dias ajudarão a Igreja a se purificar e a ficar muito mais atenta à formação do seu clero. Esta orientação foi dada há mais tempo pelo papa Bento XVI, quando ainda era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Por isso mesmo, considero inaceitável e injusto que se pretenda agora responsabilizar pessoalmente o papa pelo que acontece. Além de ser ridículo e fora da realidade, é uma forma oportunista de jogar no descrédito toda a Igreja católica. Deve responder pelos seus atos perante Deus e a sociedade quem os praticou. Como disse São Paulo: Examine-se cada um a si mesmo. E quem estiver de pé, cuide para não cair!

A Igreja é como um grande corpo; quando um membro está doente, todo o corpo sofre. O bom é que os membros sadios, graças a Deus, são a imensa maioria! Também do clero! Por isso, ela será capaz de se refazer dos seus males, para dedicar o melhor de suas energias à Boa Notícia: para confortar os doentes, visitar os presos nas cadeias, dar atenção aos abandonados nas ruas e debaixo dos viadutos; para ser solidária com os pobres das periferias urbanas, das favelas e cortiços; ela continuará ao lado dos drogados e das vítimas do comércio de morte, dos aidéticos e de todo tipo de chagados; e continuará a acolher nos Cotolengos criaturas rejeitadas pelos “controles de qualidade” estéticos aplicados ao ser humano; a suscitar pessoas, como Dom Luciano e Dra. Zilda Arns, para dedicarem a vida ao cuidado de crianças e adolescentes em situação de risco; e, a exemplo de Madre Teresa de Calcutá, ainda irá recolher nos lixões pessoas caídas e rejeitadas, para lavar suas feridas e permitir-lhes morrer com dignidade, sobre um lençol limpo, cercadas de carinho. Continuará a mover milhares de iniciativas de solidariedade em momentos de catástrofes, como no Haiti; a estar com os índios e camponeses desprotegidos, mesmo quando também seus padres e freiras acabam assassinados.

E continuará a clamar por justiça social, a denunciar o egoísmo que se fecha às necessidades do próximo; ainda defenderá a dignidade do ser humano contra toda forma de desrespeito e agressão; e não deixará de afirmar que o aborto intencional é um ato imoral, como o assassinato, a matança nas guerras, os atentados e genocídios. E sempre anunciará que a dignidade humana também requer comportamentos dignos e conformes à natureza, também na esfera sexual; e que a Lei de Deus não foi abolida, pois está gravada de maneira indelével na coração e na consciência de cada um.

Mas ela o fará com toda humildade, falando em primeiro lugar para si mesma, bem sabendo que é santa pelo Santo que a habita, e pecadora em cada um de seus membros; todos são chamados à conversão constante e à santidade de vida. Não falará a partir de seus próprios méritos, consciente de trazer um tesouro em vasos de barro; mas, consciente também de que, apesar do barro, o tesouro é precioso; e quer compartilhá-lo com toda a humanidade. Esta é sua fraqueza e sua grandeza!

16/04/2010

Carta aberta de Hans Küng aos bispos católicos de todo o mundo



Em carta aberta aos bispos católicos de todo o mundo, o teólogo suíço Hans Küng qualifica o pontificado de Bento XVI como o das oportunidades perdidas. No quinto aniversário do pontificado de Bento XVI, Küng pede ao clero que reaja diante da crise da Igreja, aprofundada pelos abusos a menores. Hans Küng é professor emérito de Teologia Ecumênica na Universidade de Tübingen (Alemanha) e presidente do Projeto Ética Mundial. O artigo de Hans Küng está publicado no El País, 15-04-2010. A tradução é do Cepat. Fonte: UNISINOS



Joseph Ratzinger, atual Bento XVI, e eu, éramos, entre 1962 e 1965, os dois teólogos mais jovens do Concílio. Agora já somos os mais idosos e os únicos que seguem plenamente na ativa. Eu sempre entendi o meu trabalho teológico também como um serviço à Igreja. Por isso, preocupado com esta nossa Igreja, atolada na crise de confiança mais profunda desde a Reforma, dirijo-lhes uma carta aberta no quinto aniversário do pontificado de Bento XVI. Não tenho outra possibilidade de chegar até vocês.

Apreciei muito que o papa Bento, logo depois de sua eleição, convidasse a mim, seu crítico, para uma conversa de quatro horas, que transcorreu num clima muito amistoso. Naquele momento, isso me fez ter a esperança de que Joseph Ratzinger, meu ex-colega na Universidade de Tübingen, encontrasse apesar de tudo o caminho para uma maior renovação da Igreja e o entendimento ecumênico no espírito do Concílio Vaticano II.

Minhas esperanças, e as de tantos católicos e católicas comprometidos, infelizmente, não se realizaram, coisa que fiz saber ao papa Bento de diversas formas em nossa correspondência. Sem dúvida, cumpriu conscienciosamente suas obrigações papais cotidianas e nos brindou com três Encíclicas úteis sobre a fé, a esperança e o amor. Mas, no tocante aos grandes desafios de nosso tempo, seu pontificado se apresenta cada vez mais como o das oportunidades desperdiçadas, não como o das ocasiões aproveitadas:

– Desperdiçou-se a oportunidade de um entendimento duradouro com os judeus: o Papa reintroduziu a oração pré-conciliar em que se pede pela iluminação dos judeus e readmitiu na Igreja os bispos cismáticos notoriamente antissemitas, impulsionou a beatificação de Pio XII e só leva a sério o judaísmo como raiz histórica do cristianismo, não como uma comunidade de fé que perdura e que tem um caminho próprio para a salvação. Os judeus de todo o mundo se indignaram com o pregador pontifício na liturgia papal da Sexta-feira Santa, na qual comparou as críticas ao Papa com a perseguição antissemita.

– Desperdiçou-se a oportunidade de um diálogo assentado na confiança com os muçulmanos; é sintomático o discurso de Bento XVI em Regensburg, no qual, mal aconselhado, caricaturizou o Islã como a religião da violência e da desumanidade, atraindo assim a permanente desconfiança dos muçulmanos.

– Desperdiçou-se a oportunidade da reconciliação com os povos nativos colonizados da América Latina: o Papa afirma com toda seriedade que estes “desejavam” a religião de seus conquistadores europeus.

– Desperdiçou-se a oportunidade de ajudar os povos africanos na luta contra a superpopulação, aprovando os métodos anticoncepcionais, e na luta contra a Aids, admitindo o uso de preservativos.

– Desperdiçou-se a oportunidade de concluir a paz com as ciências modernas: reconhecendo inequivocamente a teoria da evolução e aprovando de forma diferenciada novos campos de pesquisa, como o das células-tronco.

– Desperdiçou-se a oportunidade de que também o Vaticano faça, finalmente, do espírito do Concílio Vaticano II a bússola da Igreja católica, impulsionando suas reformas.

Este último ponto, estimados bispos, é especialmente grave. Uma e outra vez, este Papa relativiza os textos conciliares e os interpreta de forma retrógrada contra o espírito dos Padres do Concílio. Inclusive se situa expressamente contra o Concílio ecumênico, que, segundo o Direito Canônico, representa a autoridade suprema da Igreja católica:

– Readmitiu incondicionalmente na Igreja os bispos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, ordenados ilegalmente fora da Igreja católica e que não aceitam o Concílio em aspectos fundamentais.

– Apóia com todos os meios a missa medieval tridentina e ele mesmo celebra ocasionalmente a eucaristia em latim e de costas para os fiéis.

– Não leva a cabo o entendimento com a Igreja anglicana, assinado em documentos ecumênicos oficiais (ARCIC). Ao contrário, procura atrair para a Igreja católico-romana sacerdotes anglicanos casados renunciando a aplicar a eles o voto do celibato.

– Reforçou os poderes eclesiais contrários ao Concílio com a nomeação de altos cargos anticonciliares (na Secretaria de Estado e na Congregação para a Liturgia, entre outros) e bispos reacionários em todo o mundo.

O Papa Bento XVI parece afastar-se cada vez mais da grande maioria do povo da Igreja, que de todas as formas se ocupa cada vez menos de Roma e que, no melhor dos casos, ainda se identifica com sua paróquia e seus bispos locais.

Sei que alguns de vocês sofrem com o fato de que o Papa se veja plenamente respaldado pela cúria romana em sua política anticonciliar. Esta procura sufocar a crítica no episcopado e na Igreja e desacreditar por todos os meios os críticos. Com uma renovada exibição de pompa barroca e manifestações de efeito caras aos meios de comunicação, Roma trata de exibir uma Igreja forte com um “representante de Cristo” absolutista, que reúne em suas mãos os poderes legislativo, executivo e judiciário. Entretanto, a política de restauração de Bento fracassou. Todas as suas aparições públicas, viagens e documentos não são capazes de modificar, no sentido da doutrina romana, a postura da maioria dos católicos em questões controversas, especialmente em matéria de moral sexual. Nem sequer os encontros do Papa com a juventude, de que participam sobretudo agrupações conservadoras carismáticas, conseguem frear os abandonos da Igreja nem despertar mais vocações sacerdotais.

Exatamente vocês, como bispos, lamentam profundamente: desde o Concílio, dezenas de milhares de bispos abandonaram sua vocação, sobretudo devido à lei do celibato. A renovação sacerdotal, assim como também a de membros de ordens, de irmãs e irmãos leigos, decaiu tanto quantitativa como qualitativamente. A resignação e a frustração se estendem no clero, precisamente entre os membros mais ativos da Igreja. Muitos se sentem abandonados em suas necessidades e sofrem pela Igreja. Pode ser que esse seja o caso em muitas de suas dioceses: cada vez mais igrejas, seminários e paróquias vazios. Em alguns países, devido à falta de sacerdotes, finge-se uma reforma eclesial e as paróquias são obrigadas a se fundirem, muitas vezes contra a sua vontade, constituindo gigantescas “unidades pastorais” nas quais os poucos sacerdotes estão completamente assoberbados de tarefas.

E agora, às muitas tendências de crise ainda são adicionados escândalos que clamam aos céus: sobretudo o abuso de milhares de meninos e jovens por clérigos – nos Estados Unidos, Irlanda, Alemanha e outros países –, relacionado a uma crise de liderança e confiança sem precedentes. Não se pode silenciar que o sistema de ocultamento posto em prática em todo o mundo diante dos crimes sexuais dos clérigos foi dirigido pela Congregação para a Fé romana do cardeal Ratzinger (1981-2005), na qual, já sob João Paulo II, foram reunidos os casos sob o mais estrito segredo. Ainda em 18 de maio de 2001, Ratzinger enviava um escrito solene sobre os crimes mais graves (Epistula de delitos gravioribus) a todos os bispos. Nela, os casos de abusos se situavam sob o secretum pontificium, cuja revelação pode atrair severas penas canônicas. Com razão, pois, são muitos os que pedem um mea culpa pessoal do então prefeito e atual Papa. Entretanto, na Semana Santa perdeu a ocasião de fazê-lo. Em vez disso, no Domingo de Ramos moveu o decano do colégio cardinalício a levantar urbi et orbe testemunho de sua inocência.

As consequências de todos estes escândalos para a reputação da Igreja católica são devastadoras. Isto é algo que também já foi confirmado por dignitários de alto escalão. Inúmeros padres e educadores de jovens irrepreensíveis e sumamente comprometidos sofrem sob uma suspeita generalizada. Vocês, estimados bispos, devem colocar-se a pergunta de como serão as coisas no futuro em nossa Igreja e em suas dioceses. Contudo, não queria esboçar um programa de reforma; já fiz isso em repetidas ocasiões, antes e depois do Concílio. Apenas queria colocar-lhes seis propostas que, na minha convicção, serão respaldadas por milhões de católicos que carecem de voz.

1. Não calar: em vista de tantas e tão graves irregularidades, o silêncio torna vocês cúmplices. Ali onde consideram que determinadas leis, disposições e medidas são contraproducentes, deveriam, ao contrário, expressá-lo com a maior franqueza. Não enviem a Roma declarações de submissão, mas demandas de reforma!

2. Acometer reformas: na Igreja e no episcopado são muitos os que se queixam de Roma, sem que eles mesmos façam alguma coisa. Mas hoje, quando numa diocese ou paróquia não se vai à missa, quando o trabalho pastoral é ineficaz, quando a abertura às necessidades do mundo limitada, ou quando a cooperação é mínima, não se pode culpar sem mais Roma. Bispo, sacerdote ou leigo, todos e cada um devem fazer algo para a renovação da Igreja em seu âmbito vital, seja maior ou menor. Muitas grandes coisas nas paróquias e na Igreja inteira aconteceram graças à iniciativa de indivíduos ou de pequenos grupos. Como bispos, vocês devem apoiar e alentar tais iniciativas e atender, agora mesmo, as queixas justificadas dos fiéis.

3. Agir colegiadamente: depois de um debate vivo e contra a sustentada oposição da cúria, o Concílio decretou a colegialidade do Papa e dos bispos no sentido dos Atos dos Apóstolos, onde Pedro também não agia sem o colégio apostólico. No entanto, na época pós-conciliar os papas e a cúria ignoraram esta decisão central do Concílio. Desde que o Papa Paulo VI, já no segundo ano do Concílio, publicara uma Encíclica em defesa da discutida lei do celibato, voltou a se exercer a doutrina e a política papal ao estilo antigo, não colegiado. Inclusive na liturgia o Papa é apresentado como autocrata, em relação a quem os bispos, dos quais gosta de se rodear, aparecem como comparsas sem voz nem voto. Portanto, vocês não deveriam, estimados bispos, agir só como indivíduos, mas em comunidade com os demais bispos, com os sacerdotes e com o povo da Igreja, homens e mulheres.

4. A obediência ilimitada só se deve a Deus: todos vocês, ao serem consagrados como bispos, juraram obedecer incondicionalmente ao Papa. Mas vocês sabem igualmente que nunca se deve obediência ilimitada a uma autoridade humana, só a Deus. Por isso, o voto de vocês não deve impedi-los de dizer a verdade sobre a atual crise da Igreja, de suas dioceses e de seus países. Seguindo em tudo o exemplo do apóstolo Paulo, que enfrentou Pedro e teve que se opor “a ele abertamente, pois assumira uma atitude errada” (Gl 2, 11)! Uma pressão sobre as autoridades romanas no espírito da fraternidade cristã pode ser legítima quando estas não concordam com o espírito do Evangelho e sua mensagem. A utilização da linguagem vernacular na liturgia, a modificação das disposições sobre os matrimônios mistos, a afirmação da tolerância, a democracia, os direitos humanos, o entendimento ecumênico e tantas outras coisas só serão alcançados pela tenaz pressão vinda de baixo.

5. Buscar soluções regionais: é frequente que o Vaticano faça ouvidos moucos a demandas justificadas do episcopado, dos sacerdotes e dos leigos. Com tanto maior razão se deve buscar de forma inteligente soluções regionais. Um problema especialmente espinhoso, como vocês sabem, é a lei do celibato, proveniente da Idade Média e que está sendo questionado com razão em todo o mundo precisamente no contexto dos escândalos por abusos sexuais. Uma modificação contra a vontade de Roma parece praticamente impossível. Contudo, isto não nos condena à passividade: um sacerdote que depois de madura reflexão pensa em se casar não tem que renunciar automaticamente ao seu estado se o bispo e a comunidade o apoiarem. Algumas conferências episcopais poderiam proceder a uma solução regional, mesmo que fosse melhor chegar a uma solução para a Igreja em seu conjunto. Portanto:

6. Exigir um Concílio: assim como se requereu um Concílio ecumênico para a realização da reforma litúrgica, da liberdade religiosa, do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, o mesmo acontece com o problema da reforma, que irrompeu agora de forma dramática. O Concílio reformista de Constança, no século anterior à Reforma, aprovou a realização de Concílios a cada cinco anos, disposição que, contudo, foi ignorada pela cúria romana. Sem dúvida, esta fará agora quanto estiver ao seu alcance para impedir um Concílio do qual deve temer uma limitação de seu poder. Em todos vocês está a responsabilidade de impor um Concílio ou ao menos um sínodo episcopal representativo.

A convocação que lhes dirijo em vista desta Igreja em crise, estimados bispos, é que vocês coloquem na balança a autoridade episcopal, revalorizada pelo Concílio. Nesta situação de necessidade, os olhos do mundo estão postos em vocês. Inúmeras pessoas perderam a confiança na Igreja católica. A recuperação só valerá a pena se os problemas e as consequentes reformas forem abordados de forma franca e honrada. Peço-lhes, com todo o respeito, que contribuam com o que estiver ao seu alcance, quando for possível em cooperação com o resto dos bispos; mas, se for necessário, também individualmente, com “coragem” apostólica (At 4, 29-31). Deem aos seus fiéis sinais de esperança e alento e à nossa Igreja uma perspectiva.

Saúdo vocês na comunhão da fé cristã, Hans Küng.



14/04/2010

Francesco Merlo

Homossexualidade e pedofilia. Uma confusão

O cardeal Tarcisio Bertone, que é um homem, normalmente, prudente, e é, nada menos, que o número dois do Estado do Vaticano, para defender o celibato abusou da homossexualidade. O artigo é de Francesco Merlo e publicado pelo jornal La Repubblica, 14-04-2010. A tradução é da IHU On-Line. Fonte: UNISINOS



“Muitos psicólogos, muitos psiquiatras demonstraram que não há uma relação entre celibato e pedofilia – disse Bertone no Chile – mas muitos outros demonstraram, me disseram recentemente, que há uma relação entre homossexualidade e pedofilia”.

Sobre a natureza e as origens da pulsão da pedofilia foram escritas muitas coisas, mas que exista uma relação estatístico-científica entre homossexualidade e pedofilia é seguramente uma besteira. Dita por um teólogo, a besteira é mais grave. O cardeal Bertone há realmente, uma altíssima relação com o candor e com o amor, um hábito filosófico com a profundidade, é um homem de Deus. Por isso, surpreende que tenha entrado com os dois pés numa questão tão delicada e complexa. E, parece, que suas palavras não devem ser lidas como um manifesto teocrático da intolerância para ser usado e abusado para o uso e o consumo dos homófobos, mas como uma dramática confissão da fraqueza, do estado de confusão em que se encontra a Igreja católica neste momento.

Todos sabemos que a pedofilia é sexo com meninos e meninas, é um dos tantos mistérios da psique e da história da humanidade. A conhecemos desde os tempos da antiga e tolerante Grécia. Para nós é perversão, é depravação, é violência porque o pedófilo usa de um corpo que não é ainda autônomo, não é maduro para a opção sexual, não é responsável. À menina e ao menino é imposta relação física por alguém que é maior, que é respeitável, que goza da confiança, que exerce uma forte influência espiritual.

Assim, parece muito estranho que um homem de Igreja não se dê contra de quanto é ultrajoso de associar a homossexualidade à pedofilia. Não temos a presunção de saber o que a homossexualidade nem qual é a melhor maneira aceitada por Deus para definir ou praticar a sexualidade. Mas todos, também Bertone e o clero de Roma, sabem que a pedofilia é um crime, um abuso feroz, e, ao contrário, a homossexualidade – seja uma opção, seja imposta pela natureza – é legítima tanto quanto a heterossexualidade. Têm os mesmos títulos. A nenhum cardeal veio à mente justificar ou minimamente associar com argumentos científicos o estupro com a heterossexualidade: há heterossexuais estupradores e há heterossexuais pedófilos, homens e mulheres, como há ladrões calvos e ladrões cabeludos. Não é o cabelo que faz o ladrão, ilustre cardeal.

Para nós é fácil replicar ao cardeal Bertone mas, enquanto escrevemos, nos perguntamos o que está acontecendo na nomenklatura da Igreja de Roma. Nós sabemos muito bem que há muitos padres que estão na vanguarda da luta contra a pedofilia e a depravação violenta. Seria, desta maneira, estúpido defender que todos os padres, enquanto celibatários, são pedófilos, já que vemos tantos que dão a sua vida e a sua alma para defender as crianças, para proteger a sua inocência, inspirados na imagem evangélica que remonta ao Cristo.

Certamente Tarciso Bertone tem o direito e também o dever de defender a Igreja e o celibato dos padres. Mas ofendendo desta maneira os homossexuais, trai a sua fragilidade, expõe a sua homofobia, desarma todos os soldados de Cristo.

11/04/2010

Dom Demétrio Valentini

O escândalo da pedofilia

Dom Demétrio Valentini, Bispo de Jales (SP) e Presidente da Cáritas Brasileira
Fonte: Adital

Está tendo ampla repercussão a divulgação de casos de pedofilia, envolvendo membros do clero da Igreja Católica. O assunto merece ser analisado com cuidado, para perceber com objetividade sua dimensão, e distinguir os dados verdadeiros, da exploração que deles se faz com o intento de denegrir a imagem da Igreja, universalizando para toda a instituição o que se constitui em erros pessoais, de todo condenáveis, mas que não podem ser imputados como se fossem de autoria de toda a Igreja.

Em primeiro lugar, a própria Igreja se antecipa em reconhecer e em confessar a gravidade da situação, admitindo inclusive que houve culpa por falta de vigilância em coibir abusos, permitindo que padres pedófilos continuassem exercendo o ministério, favorecendo assim a continuidade dos delitos.

Independente da quantidade de casos constatados, mesmo que fosse um só, merece a clara condenação de todos, e se praticado por algum membro do clero católico, o reconhecimento de quanto isto depõe contra a imagem da Igreja.

Em recente carta à Igreja da Irlanda, onde foram constatados diversos casos de pedofilia praticada por padres católicos, o Papa Bento 16 faz uma dura advertência à hierarquia da Igreja daquele país, para que redobre a vigilância, e afaste do ministério todos os envolvidos na prática da pedofilia.

Se há uma conseqüência positiva, decorrente da discussão levantada no mundo inteiro em torno da pedofilia, é o crescimento da consciência da criminalidade dos atos de abusos sexuais praticados com crianças. Eles se constituem em crimes, que precisam ser denunciados, e devem ser condenados, com responsabilização adequada de todos os que incorrem em alguma responsabilidade por seu cometimento.

As crianças têm o direito de serem preservadas das distorções sexuais dos adultos, sejam eles quem forem. Esta consciência da necessidade de preservar as crianças da maldade dos adultos precisa avançar muito mais. É toda a sociedade que precisa estar atenta para preservar a inocência das crianças. Nisto toda a sociedade tem culpa em cartório. Se fosse usado o mesmo rigor com que agora se aponta para os padres pedófilos, quantas situações precisariam ser denunciadas, nas famílias, na sociedade, sobretudo nos meios de comunicação social, onde não despertou ainda a consciência dos prejuízos causados às crianças pelas situações a que elas ficam expostas.

Mas no que se refere diretamente à pedofilia, seria muita hipocrisia achar que ela se limita aos casos praticados por padres católicos. Existe inclusive uma evidente campanha, levada adiante por pessoas interessadas em denegrir a imagem da Igreja Católica, que está se aproveitando desta situação para tornar ainda mais virulentas as acusações contra ela. Por isto, no Brasil não é nada de estranhar que uma conhecida rede de televisão se esmere agora em ampliar o que é sua razão de ser: acusar continuamente a Igreja Católica, usando para isto todos os meios de que dispõe.

Neste sentido, sem fazer dos números uma desculpa, é importante olhar os dados com objetividade. O Professor Carlos Alberto di Franco, Doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra (difranco@iics.org.br), traz a seguinte constatação: desde 1995, na Alemanha, houve 210.000 denúncias de abusos de pedofilia. Destas denúncias, só trezentas se referem a padres católicos. Isto é, só 0.2% por cento do total. E por que só se insiste em falar da Igreja, tentando inclusive envolver o Papa, acusando-o de responsabilidade por ter aceito um padre pedófilo na sua diocese, no tempo em que era arcebispo de Munique? Por que não se fala dos outros 99,98 por cento dos casos? [boa pergunta]

Se olhamos o clero do Brasil, em sua imensa maioria constituído de beneméritos ministros devotados à sua missão, com os limites humanos de que todos somos revestidos, a proporção é certamente parecida com a análise apresentada pelo Prof. Di Franco. Os raros casos de pedofilia constatados no clero brasileiro, por mais deploráveis que sejam, não justificam a hipócrita escandalização, levada em frente por meios de comunicação que trazem evidente a marca da tendenciosidade, que fica desmascarada à luz de qualquer dado objetivo.

A Igreja Católica está disposta a uma severa autocrítica de sua própria instituição, diante dos casos reais de pedofilia praticada por membros do seu clero. Ela aceita de bom grado os questionamentos objetivos que podem ser feitos pela sociedade. Mas ela dispensa a hipocrisia de quem generaliza as acusações, escondendo seus interesses escusos, e desvirtuando uma análise objetiva do problema da pedofilia.
(http://www.diocesedejales.org.br/)