29/08/2010

Raimon Panikkar

Unir céu e terra serve para restituir um sentido ao mundo
Fonte: UNISINOS



No decurso dos milênios o homem tem sido atraído, com freqüência obsessionado e talvez fascinado por duas forças que os místicos chamariam transcendência e imanência, os poetas céu e terra, os filósofos espírito e matéria. O homem se debateu entre estes dois pólos, atribuindo de quando em vez mais importância a um ou ao outro, desprezando, transcurando ou quem sabe negando realidade a um dos dois (a matéria é um mal, o corpo é escravidão, o tempo é ilusão) ou mesmo vice-versa (o céu não existe, o espírito é mera projeção, a eternidade um sonho).

A religião, entendida como dimensão humana que poderemos chamar religiosidade, colocada diante do problema do significado da vida, oscilou entre estes dois pólos sem conseguir esquecer completamente o outro. Carpe diem: a terra é demasiado atraente para não se gozar dos seus prazeres. Fuga mundi: o mundo é demasiado fugaz para colocar nele nossa confiança.

Não resta dúvida, no entanto, que muitas das principais religiões em nossos dias deslocaram decididamente a balança para o transcendente, o espiritual, o ultra-terreno. “Como chegar ao céu” é a tarefa da religião; “como vão os céus” é a incumbência da ciência: tem sido esta a matéria de discussão entre um cientista (Galileu Galilei) e um teólogo (Roberto Bellarmino).

A dicotomia tem sido letal para ambos. A religião é banida dos negócios humanos e a ciência se torna uma especialidade abstrata, afastada da vida humana. A religião se torna uma ideologia e a ciência uma abstração. Em ambos os casos o corpo é praticamente irrelevante. Tarefa da nossa geração, se não quisermos contribuir à extinção do homo sapiens, é voltar a celebrar a união entre céu e terra, aquele hieros gamos ou sagrada união da qual falam tantas tradições, não excluída a cristã.

O estudo das tradições religiosas da humanidade nos mostra que “ciência” (para não usar outros termos) tem querido dizer algo mais do que descrição empírica de comportamentos “religiosos” e de suas interpretações “científicas” e que religião não é redutível a práticas ou crenças definidas “religiosas” do ponto de vista da racionalidade entendida no sentido em que a interpretou o assim dito iluminismo. Dizendo “ciências” não queremos excluir alguma forma de consciência nem de sabedoria. Ao dizer “religiões” não queremos cair no monopólio desta palavra da parte de instituições (“religiosas”). Referimo-nos, ao invés, àquele núcleo último de toda cultura, e também de toda vida humana que se crê dar certo sentido à vida.

É muito significativo que a palavra polissêmica “religião” tenha sido considerada pouco menos do que inconveniente em alguns ambientes e que se tenha querido substituí-la com “espiritualidade”. Isso, todavia, demonstra que a alergia à palavra “religião” é somente superficial, dado que a palavra “espírito” poderia fazer-nos cair por sua vez num outro “gueto” exclusivo dos “espiritualistas”. Quando se critica a religião enquanto Oasis fechado que exclui os assim ditos não-crentes, a espiritualidade poderia, por sua vez, ser entendida como a confederação de religiões em antítese àqueles que negam o que é espiritual. Desde os tempos de Confúcio se sabe que existe uma política das palavras.

José Manuel Vidal

Pannikar, pensador único e irrepetível


O artigo é de José Manuel Vidal, jornalista, e publicado pelo sítio Religión Digital. A tradução é de Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS



Foi, sem dúvida, um dos pensadores mais lúcidos de nosso tempo. Raimon Pannikar marcou uma forma de fazer teologia e de ser teólogo. Tive a sorte de coincidir com ele e de entrevistá-lo em várias ocasiões e sempre saía do encontro com uma esperança rediviva e redimensionada. Era como um santão hindu, porém na forma de teólogo católico. Um enamorado do diálogo inter-religioso e um homem com um decurso vital excepcional. Soube transitar desde a sensibilidade mais conservadora do Opus Dei até outras mais ecumênicas e fronteiriças. Sem grandes estardalhaços. Sem fazer demasiado ruído. Deslizando suavemente, com seu eterno sorriso e suas gafes a la Gandhi.

A última vez que o vi foi em Montserrat, num encontro inter-religioso internacional. Parecia ser tão monge como os monges, sem ser monge. E estava no centro do simpósio. Todo o mundo estava pendente do que ele dizia. Era uma autêntica autoridade. E uma pessoa autêntica. Com uma obra centrada no diálogo inter-religioso e intercultural, avalizado por mais de 50 livros.

Costumava dizer: “A religião não é um experimento, senão uma experiência de vida através da qual se toma parte da aventura cósmica”. Ou: “a grande epidemia moderna é a banalidade”.

Durante 30 anos teve um contato intenso com a Índia, que visitou por primeira vez em 1954. “Viajei cristão, me descobri hindu e retorno budista, sem ter deixado de ser cristão”, costumava repetir para explicar seu ser crente.

Onde você encontra sua identidade?”, lhe perguntaram certa ocasião. E ele respondeu: “Perdendo-a, não a buscando: não querendo me aferrar a uma identidade que ainda não está realizada e que não se pode encontrar desde logo no passado, porque então seria uma cópia de algo velho. A vida é risco; a aventura é novidade radical; a criação se produz todos os dias, como algo absolutamente novo e imprevisível”.

Descanse em paz este grande pensador e grande pessoa que abriu o caminho do diálogo inter-religioso “dialogal” e autêntico.

Juan José Tamayo

Raimon Panikkar (foto): diálogo e interculturalidade

O artigo é de Juan José Tamayo, teólogo espanhol, e publicado pelo jornal El País, 28-08-2010. A tradução é de Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS




Quando Salvador Pániker me chamou na tarde de 26 de agosto, temi o pior. E meus temores se confirmaram. Era para comunicar-me o falecimento de seu irmão Raimon, que me deixou submerso num estado de comoção do qual tardei sair. E não era para menos. Durante os últimos 30 anos tive a sorte de desfrutar da amizade e do discipulado de Raimon Panikkar, de quem aprendi lições teóricas e práticas de gratuidade, convivência, diálogo e serenidade ante a vida.

Com ele coincidi em congressos, em semanas e encontros de estudo, e intercambiei um amplo epistolado em forma de tarjas de letra com caracteres quase indecifráveis e também mantive freqüentes conversações telefônicas até que a enfermidade lho impediu. Convidei-o a participar nos congressos de teologia da Associação de Teólogos e Teólogas João XXIII e em cursos de verão. Somente numa ocasião declinou o convite. No ano passado chamei-o para dar uma conferência no curso sobre Judaísmo, Cristianismo e Islã, três religiões em diálogo, na Universidade Internacional Menéndez Pelayo. O estado de prostração em que se encontrava o impedia de deslocar-se de Tavertet a Santander. Convidei-o também a escrever em obras coletivas sobre a interculturalidade e o diálogo, pois era um dos principais especialistas mundiais.

Sem diálogo, o ser humano se asfixia e as religiões se ancilosam”. Foi em 1993 que escreveu sentença tão aforística num artigo sobre Diálogo inter e intra-religioso, logo recolhido em Nuevo diccionario de teologia (Trotta, PP. 243-251). Nele estabelece as bases do diálogo como alternativa a fundamentalismos, dogmatismos, anátemas e intolerâncias das religiões e culturas hegemônicas, e como superação dos monolinguismos, colonialismos e guerras religiosas.

Mas, o diálogo ele não o defende em abstrato e no vazio, senão entre filosofia e teologia, religião e ciência, Ocidente e Oriente, Atenas e Jerusalém, culturas e religiões. Sua formação científica, filosófica e teológica lhe facilitou o terreno. A partir de seu conhecimento das culturas e religiões da Índia (La experiencia filosófica de la Índia, Trotta) foi pioneiro no diálogo com o hinduísmo. Em 1961 defendeu sua tese doutoral em Teologia na Universidade Lateranense de Roma sobre El Cristo desconocido del hinduismo (Marova). Depois abriu novo roteiro de diálogo com o budismo com El silencio de Dios (atualizado como El silencio de Buddha. Uma introducción al ateísmo religioso; Siruela, 1996).

Encarnava esse diálogo e a peregrinação pelas diferentes religiões. É proverbial sua confissão de fé inter-religiosa: “Viajei [da Espanha à Índia] cristão, descobri a mim mesmo hindu e voltei budista, sem ter deixado de ser cristão”. Dizia que nele confluíam quatro grandes rios: o cristão, o hindu, o budista e o secular. Todo um exemplo de equilíbrio entre crenças religiosas e secularidade!

É considerado iniciador e grande propulsor da filosofia intercultural. Não a confunde com o multiculturalismo, que só defende a coexistência das culturas sem convivência, nem com a transdisciplinaridade, pois as culturas são mais do que disciplinas. O método da interculturalidade é o diálogo que ele define como dialogal e duologal: implica confiança mútua numa aventura comum em direção ao desconhecido e aspiração à concórdia discorde, e leva a descobrir o outro não como estrangeiro, senão como companheiro, não como um ele, senão como um tu no eu.

Termino com um texto do Libre d’ amic e Amat, do filósofo maiorquino Ramón Llull, precursor da interculturalidade, que é aplicável a Panikkar: “O pássaro cantava no horto do amado. O amante chega e diz ao pássaro: se não podemos entender-nos um ao outro através de linguagens, entendamo-nos então um ao outro através do amor, já que em tua canção meu amado é evocado em meus olhos”.

Vito Mancuso

O adeus a Panikkar (foto), teólogo da cosmoteandria


Artigo do teólogo italiano Vito Mancuso, publicado no jornal La Repubblica, 28-08-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS





Cosmoteandria. Nessa difícil palavra, está contido o núcleo do pensamento de Raimon Panikkar (falecido nesta quinta-feira aos 92 anos na sua casa na Catalunha), um dos maiores teólogos da nossa época, destinado a se tornar sempre mais uma permanente fonte de luz para todos os buscadores sinceros da verdade.

Cosmoteandria é o termo cunhado por Panikkar para expressar a sua intuição filosófico-teológica fundamental, isto é, que o Absoluto (teo) é atingível só em união com o mundo (cosmos) e em união com o homem (andria) e, simetricamente, que o homem explica a sua essência só em harmonia com o mundo natural e com o divino.

Trata-se de uma perspectiva que, nele, não nasce como uma sacada de gênio extemporâneo – embora, falando de Panikkar é necessário falar de "gênio" começando pelas 20 línguas, entre antigas e modernas, perfeitamente dominadas e pelos inumeráveis reconhecimentos internacionais e láureas honoris causa (dentre as quais a conferida em 2004 pela Faculdade de Teologia da Universidade de Tübingen, isto é, uma espécie de Nobel da pesquisa teológica).

A intuição da cosmoteandria é o destilado da sua vida. Nascido em 1918 em Barcelona, de mãe catalã e pai indiano (um aristocrata com passaporte britânico), formou-se em química, letras, filosofia e teologia nas melhores universidades europeias, quase marcando com os seus estudos uma progressiva ascensão dos fundamentos da matéria às alturas do espírito.

Ordenado sacerdote, dedicou-se só por pouco tempo à vida pastoral, enquanto logo começou a ensinar e a proferir conferências nas melhores universidades de todos os continentes. A respeito disso, lembro particularmente dos 20 anos entre 1966-1987, quando, por um semestre, ele viveu nos Estados Unidos, ensinando em Harvard, na Califórnia, e em Nova York, e, por um semestre, na Índia, estudando e principalmente vivendo o hinduísmo e o budismo.

E eis-nos chegados ao ponto que mais se ressalta do gênio de Panikkar, o diálogo inter-religioso, que, para ele, foi pesquisa existencial em primeira pessoa. Estas suas célebres palavras são um significativo testemunho disso: "Parti cristão, descobri-me hindu e retorno budista, sem deixar por isso de ser cristão".

Lá onde espíritos míopes e inseguros veem o perigo da heresia e do sincretismo, Panikkar oferece, na realidade, a indicação luminosa para o único sentimento que o nosso mundo globalizado pode hoje percorrer se quer a paz e o encontro entre as civilizações, e não o contrário. Nessa perspectiva, é significativo saber que Panikkar quis que o diálogo inter-religioso por ele praticado durante toda a vida o acompanhasse até o fim: nestas horas, o seu corpo será cremado, e metade das cinzas serão depositadas no túmulo da família, metade levadas ao Ganges e colocadas sobre uma folha, segundo a antiga tradição hindu.

A Itália tem a honra de ser o país no qual a opera omnia de Panikkar viu a luz pela primeira vez graças à editora Jaca Book de Milão, ao seu presidente Sante Bagnoli e principalmente à curadora Milena Carrara Pavan. Trata-se de 12 volumes, dos quais quatro já foram publicados, e um quinto está para sair com o título "Religione e religioni" [Religião e religiões], provavelmente o coração do pensamento do grande teólogo.

É desta forma que ele mesmo apresenta os seus livros: "Os meus escritos cobrem um período de cerca de 70 anos, em que me dediquei a aprofundar o sentido de uma vida humana mais justa e mais plena. Não vivi para escrever, mas escrevi para viver de um modo mais consciente e para ajudar os meus irmãos com pensamentos que não surgem apenas da minha mente, mas britam de uma Fonte superior que se pode chamar de Espírito". E ainda: "Abri-me à vida que está ao meu redor na sua concretude e descobri que não era profana, mas sagrada". E eis-nos de volta à cosmoteandria: o espaço para uma nova e mais radical intuição do sagrado é a abertura à vida real e concreta.

Mas o que me vem à mente agora, à pouca distância da sua morte, do Raimon Panikkar que eu conheci é principalmente o sorriso e a paixão pelo chocolate. Um sorriso docíssimo, que revelava a alegria de viver, o inevitável senso de humor, a real atenção pelos outros, o amor terno e forte por todo fragmento de ser. E a paixão pelo chocolate que protegia nele, até o fim, a simplicidade do menino.

Faustino Teixeira

Raimon Panikkar, buscador do Mistério

Faustino Teixeira, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), recorda a vida e a obra de Raimon Panikkar (foto), falecido na semana passada. Ele será sepultado no dia 3 de setembro, no Mosteiro de Montserrat, próximo de Barcelona.
Fonte: UNISINOS





Os místicos dizem que a morte mais difícil não é a morte física, essa morte pequena, mas aquela que acontece com o desapego radical e o mergulho na profundidade da alma. A expressão utilizada é “morrer antes de morrer”. Assim aconteceu com Raimon Panikkar, que nos deixou nesse agosto de 2010. Talvez tenha sido um dos Buscadores do Mistério mais ousados e provocadores. Sua vida foi toda tecida pela dinâmica da relação. De mãe católica e pai hindu, traz em sua vida esse traço de dialogação.

Uma vez perguntado sobre o seu itinerário pessoal respondeu que partiu cristão, descobriu-se hindu e retornou budista, sem ter jamais cessado de ser cristão. E anos depois, acrescentou que no seu retorno, descobriu-se um cristão melhor. Esse é Panikkar, referência singular para o diálogo das religiões e a reflexão sobre a espiritualidade. A perspectiva dialogal estava envolvida em sua vida como o musgo na pedra. Não via futuro nas religiões a não ser no intercâmbio criativo entre elas. Dizia que sem a interlocução externa as religiões não poderiam senão afogar-se. Propunha um “diálogo dialógico”, mais existencial, de “fecundação mútua”, que pudesse de fato envolver os parceiros numa busca comum do mistério. O diálogo para ele era, antes de tudo, um ato espiritual, que implicava uma profunda consciência da humildade e vulnerabilidade dos interlocutores diante do Mistério sempre maior e adiante. Mesmo reconhecendo todas as dificuldades que acompanham a abertura e o êxodo para o mundo do outro, acreditava que esse era o caminho seguro para a construção da identidade. Tornava-se necessário conhecer e dialogar com uma outra tradição religiosa para poder situar verdadeiramente a própria tradição. Em frase lapidar, assinalava que “aqueles que não conhecem senão sua própria religião não a conhecem verdadeiramente”.

Na visão de Panikkar, o diálogo interreligioso requer como condição fundamental a atitude de “uma busca profunda, uma convicção de que estamos caminhando sobre um solo sagrado”. Há que se despir de preconceitos para acessar o mundo do outro. E essa viagem não é fácil. Mas há que sair do “esplêndido isolamento”. O encontro com o outro torna-se hoje “inevitável, importante e urgente”. Mas alongar as cordas é sempre muito difícil. Exige um questionamento profundo às nossas convicções e a disposição de deixar-se transformar pelo outro. Como indica Panikkar, é também um encontro “perigoso e desconcertante”, mas certamente purificador. É a condição indispensável para nos darmos conta da profundidade inexaurível da experiência humana e dos limites precisos de nossos vínculos contingenciais e limitados. Para Panikkar, o salto desarmado na realidade é “audacioso e mortal”, e esse foi o exemplo deixado por peregrinos como Buda e Jesus. No horizonte dessa busca o que existe é algo encantadoramente simples, como destaca Mestre Eckhart: algo que é “florescente e verdejante”. Panikkar indica que o verdadeiro buscador deve voltar-se para o que é simples por excelência: o Mistério que nos habita e que também brilha no mundo do outro. Na verdade, o diálogo é uma viagem novidadeira que toca de perto nossa própria peregrinação pessoal, no sentido do encontro com a plenitude de nós mesmos. Há que jogar-se com liberdade nessa água, nos diz Panikkar, ainda que nossas pernas vacilem e nosso coração titubeie. Mesmo sabendo que há o risco de nele nos perdermos e afogar, é o caminho essencial para tocar o fundo.

No último período de sua jornada, Panikkar dedicou-se ao tema da mística e da espiritualidade. Para ele, a mística vem entendida como a “experiência integral da vida” ou “experiência da Realidade última”. E a categoria Realidade assumia para ele uma importância única, de densidade mais ecumênica para expressar o significado profundo da experiência do Mistério sempre maior. Enquanto a mística traduz para ele essa “experiência suprema da realidade”, a espiritualidade vem entendida como o caminho para alcançar essa experiência. É ela que faculta o essencial fermento para a qualidade da vida e para o encontro autêntico com o outro.

Em bela iniciativa da editora italiana Jaca Book, toda a obra de Panikkar está sendo recolhida e organizada e vários volumes, divididos por temas, entre os quais: mística e espiritualidade, religião e religiões, cristianismo, hinduísmo, budismo, cultura e religiões em diálogo, hinduísmo e cristianismo, visão trinitária e cosmoteândrica, mistério e hermenêutica, filosofia e teologia, secularidade sagrada, espaço tempo e ciência (Opera Omnia).

28/08/2010

Raimon Panikkar, teólogo da dissidência

O pensador Raimon Panikkar (foto) faleceu nesta quinta-feira em Barcelona, aos 91 anos. Havia nascido nessa mesma cidade em 1918, filho de um engenheiro hindu que ali se estabeleceu. Há um personagem de "La Regenta" de [Leopoldo Alas] Clarín que, quando chega ao cassino, sempre diz: "Do que se fala que me oponho?". Raimon Panikkar era assim: um pensamento em constante oposição. Também se poderia dizer que ele se opunha ao próprio fato de se opor, porque o que buscava de verdade era o diálogo, ao acordo, ao entendimento. Entre os homens, sem dúvida, mas também deles com os deuses, se acaso existirem. A reportagem é de Francesc Arroyo, publicada no jornal El País, 27-08-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Fonte: UNISINOS


Muito jovem, ele conheceu um sacerdote que então se chamava José María Escrivá: o fundador da Opus Dei. Alistou-se na ordem, e seu irmão Salvador Pániker (a diferença de sobrenomes é vontade deles) afirma que foi ele quem implantou o grupo em Barcelona, captando figuras como Valls Taverner ou López Rodó.

Fronteira do conhecimento

Panikkar estudou Química e Filosofia (esta última, provavelmente, por influência de um sacerdote chamado Ramón Roquer) e se doutorou em ambas, além de Teologia. Tanto seus estudos científicos quanto os filosóficos tentam estabelecer as fronteiras do conhecimento, para diluí-las.

Nos anos 40 e início dos 50, antes de instalar-se em Roma, primeiro, e na Índia, mais tarde, fundou a revista Arbor, vinculada ao Conselho Superior de Investigações Científicas, mas controlada por membros da Opus Dei. Era uma tentativa de abrir a filosofia espanhola a algo mais do que a religião, embora o predomínio dos pensadores católicos que tendiam a ver a filosofia como "escrava da filosofia" representou um forte obstáculo para alguns empreendimentos. Depois de Panikkar, o secretário de redação da revista seria Rafael Calvo Serer, então também membro da Opus Dei.

A atividade livre de Panikkar na Índia, já ordenado sacerdote, foi muito incômoda para a Opus Dei, que acabou tirando-o de cima com maus modos, contam seus achegados, e "deixando-o jogado". O que não deixa de ser uma forma de falar para um homem de seus recursos que, após primeiros movimentos indecisos, acabaria como professor de história da religião em Harvard e em Santa Bárbara.

Nos últimos anos, havia se instalado na Catalunha, onde realizava uma tarefa de difusão de suas ideias, baseadas em um certo panteísmo e, principalmente, na vontade de diálogo intercultural e inter-religioso. Rezava missa com regularidade e era visitado por estudiosos do pensamento em seu estilo dissidente de todas as dissidências. Participava de colóquios, no rádio ou na televisão, e dirigia teses doutorais.

Se anos atrás decidiu adaptar a grafia de seu sobrenome paterno (o materno era Alemany), já aposentado na Catalunha, decidiu catalanizar o Raimundo original e convertê-lo em Raimon, como mais uma demonstração de sua vontade de integração com o entorno imediato, com a história pessoas e, por meio da individualidade, com o universo inteiro.

Raimon Panikkar, teólogo católico, filho de pais indianos, é reconhecido internacionalmente por propugnar o diálogo inter-religioso.


O TEMPO DO PERDÃO E A  LÓGICA DO INIMIGO. Artigo de Raimon Panikkar

Quando é que o cristianismo foi poderoso? Quando era perseguido. Portanto, mesmo nas perseguições uma civilização madura cresce, adquire uma identidade própria. Ter medo do inimigo não é a mesma coisa que não resistir ao inimigo. O Evangelho diz claramente. De que tenho medo? De perder uma identidade que é tão débil que não se mantenha sozinha? Se eu tiver pouca confiança em mim, como ocorre na civilização ocidental, qualquer ventinho me fará pensar que seremos atacados. Toda civilização contém tudo – o amor e o ódio, uma coisa e o seu oposto – e eu devo ter disso uma visão pormenorizada.

Qual é, para sermos concretos, o Estado muçulmano mais populoso do mundo? A Indonésia. E os indonésios não são tão perigosos! O segundo Estado: a Índia e depois o Paquistão. Até agora ainda não encontrei nestas populações nacionalismos e fundamentalismos tão ferozes. Índia e Paquistão se combateram muitas vezes, mas por razões históricas e políticas muito concretas.

Quero dizer que não devemos fazer uma caricatura das outras civilizações, pois, caso contrário, não nos lamentemos se também eles fazem uma simétrica de nós e de nossa civilização. A lógica da distorção não funciona como defesa contra o crime ou contra a desordem. Os últimos fatos que o demonstram são as conseqüências da guerra no Afeganistão e no Iraque. Há um caminho a explorar para não cair nos choques ideologizados de civilização: é o caminho da paz e do perdão. Segundo meu parecer, há uma relação direta entre paz e perdão. Escrevi, bastantes anos atrás, que somente o perdão rompe a lei do carma, do olho por olho e dente por dente. O perdão tem uma dimensão que o torna tão grande e tão difícil: ele é um ato eminentemente religioso. O perdão, se não sair do coração, não é tal. Eu posso não me vingar, mas a ferida continua.

Dito em termos teológicos: o perdão é uma des-criação. Se a criação é fazer do nada uma coisa, o perdão é fazer que aquela coisa volte ao nada. E por isso não necessito de vingança, não necessito de restituição, não necessito de nada. A grande dificuldade consiste em como seja possível traduzir isso em termos políticos. Não tenho uma solução, mas tenho dois comentários. O primeiro comentário é que todos os nossos grandes esforços para solicitar a restituição de um dano sofrido (evitando o perdão) não têm funcionado por quarenta séculos. Quanto ao perdão, realmente ainda não o experimentamos.

O segundo comentário é que o perdão tem um efeito catártico ou purificador tão importante que modifica o outro. O outro se dá conta que fez uma coisa que não ficava bem e que tu lhe retribuíste com um ato unilateral de perdão: por toda a vida ele será feliz e fiel, porque o curaste para sempre com o teu perdão. Mas é preciso ser claro sobre um tema tão delicado. O perdão não é ação-reação. Ele necessita de um tempo de maturação. Para perdoar, é necessário esperar. Saber esperar custa, e nós vivemos numa civilização que gostaria de fazer tudo imediatamente. Há um tempo para o perdão, que não é a reação instantânea à ofensa. Seria quase uma burla ou uma impunidade. O perdão tem um tempo de maturação, é uma decisão que chegará a seu tempo. Se não tiver havido essa maturação interior, eu não estarei disposto a perdoar, porque ainda sinto a ferida, nem o outro estará disposto a reconhecê-lo, porque se sentiria impune. Encontrar este equilíbrio entre tempo e ato de perdoar é importantíssimo. Isso pertence à virtude real da prudência.

É necessário realçar que os choques de civilização têm, historicamente, a ver com o problema da verdade e de sua posse exclusiva. Não se pode negar, de fato, que em nome da verdade tenham sido cometidos crimes pavorosos e sido encontradas horríveis justificações. Nós não somos os donos da verdade. Citando Santo Tomás: “quem encontrou a Verdade é possuído pela verdade, não é seu proprietário”. A verdade se possui. A verdade é relação, é sempre o estar com o outro, se não não é verdade. A verdade absoluta é uma contradição, precisamente porque a verdade é relação.

O grande perigo, e aqui não gostaria de escandalizar ninguém, é o monoteísmo. O monoteísmo pensa que Deus é a Verdade, porque o monoteísmo pensa um Deus isolado, um Deus solitário. Não é assim em todos os monoteísmos, a questão é muito complexa, mas existe este perigo constante: embora eu não possua a verdade, há um Deus que a possui e este Deus a revelou. Não me convence o monoteísmo. Penso que o monoteísmo não seja cristão, porque o cristianismo crê na Trindade.

Mas, também para a mística do Islã há três realidades: o amor, o amante e o amado. Para a Cabala, são três as coisas criadas por Deus: a Tora, a Lei e o povo. A Trindade é muito mais extensa, também nas assim ditas religiões monoteístas, do que se acredita. Embora reconhecendo que em nome da verdade absoluta se cometeram muitíssimos crimes, digo isto: aquela não é a verdade. Uma verdade que eu imagino como absoluta, eximindo-a, portanto, de toda relacionalidade – que é a essência da verdade – por definição não é verdade, nem mesmo aquela que é apresentada como divina. Por conseguinte, desmascarar esta chaga da humanidade é um progresso que é necessário realizar neste momento histórico. O contrário de uma verdade absoluta não é a indiferença, não é afirmar que a verdade não existe. A verdade existe, mas é relativa: a nós, a uma mente, a qualquer coisa.

A este propósito devo dizer imediatamente aos puritanos, não para consolá-los, mas para clarificar, que a relatividade que eu defendo e da qual estou convencido não é o relativismo, onde tudo é igual. A relatividade não é relativismo: a verdade é relativa. Mas, para superar o relativismo, não se deve cair no absolutismo. O remédio seria pior do que a doença. O relativismo não vai bem, mas a relatividade implica não perder a medida humana. Ela não se projeta sobre um ponto ômega infinito.

É a nossa vida que conta e a minha verdade (para sem sincero, direi: a minha convicção e estou plenamente convencido de tudo aquilo que digo) eu não absolutizo, porque pode existir um ponto de vista diverso do meu e uma angulação diferente. Por isso, embora reconhecendo que, em nome da verdade, se cometeram grandes crimes, eu ainda defendo a idéia da verdade como relacionalidade e não como absolutismo. O homem isolado, sozinho – e a solidão do homem contemporâneo é uma doença da alma – não se sustenta, não pode respirar, não existe. Tem necessidade do outro, o outro como portador de uma mensagem. Como diz a tradição muçulmana: “o desconhecido pode ser um anjo”. Devemos ajudar-nos reciprocamente e estar cônscios, precisamente no confronto entre culturas e espiritualidades diversas, que a verdade não é posse pessoal, eu não sou o único ente bom deste mundo, o único que entende o que é a verdade. Temos necessidade de compreender que a verdade, quem sabe, “quando cai do céu sobre a terra se rompe em cem pedaços, um pedacinho à disposição de cada um”.

As confissões dos Legionários

Pedófilo, ladrão, drogado. Marcial Maciel, definitivamente a antítese de um santo, foi, ao mesmo tempo, o fundador da congregação mais conservadora e uma das mais poderosas da Igreja. Após sua morte, em 2008, revelou-se a sua farsa. Entramos no território privado onde os legionários se confessam. A reportagem é do jornal La Vanguardia do México, 26-08-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



São a ponta de lança da Igreja mais conservadora. Não se permitem concessões. Não perdem o tempo. É pecado. Sua caça e pesca de fundos e vocações não se detém. Assim como a sua fome de influência. Uma questão de poder no seio da Igreja.

Em 1950, só tinham um sacerdote, seu fundador, Marcial Maciel. Hoje, cerca de mil. Sua estratégia corporativa foi a de crescer a todo o custo. Copiando o ardor guerreiro dos jesuítas e o elitismo da Opus Dei. E acrescentando uma pitada de secretismo.

Seu objetivo sempre foi o de atrair os "líderes do mundo". Como confirma um velho legionário: "Maciel tinha clareza que tínhamos que ir para a ponta da pirâmide. Pelos líderes naturais e econômicos e, por meio de nossos colégios, pelos seus filhos. A chave era influenciar. E, teoricamente, ajudar os pobres através dos ricos, como Robin Hood".

Na Legião, tudo está regulado. Da vestimenta (distinta) ao modelo de relógio (sem adornos e com pulseira preta). Do tempo que um sacerdote deve rezar por dia (três horas) e escovar os dentes (três vezes) até a forma de comer espaguete (cortando-os, nunca enrolando-os no garfo).

Algo que se estende a seu movimento leigo, o Regnum Christi, no qual o manual redigido por Maciel orienta milimetricamente a vida de seus membros; suas amizades, namoro, sexualidade, forma de vestir, espírito laboral, educação dos filhos, caça de fundos e pesca de vocações. Maciel chega a aconselhar seus seguidores que incluam a congregação "em seu próprio testamento".

Eram os eleitos. Iam salvar a Igreja. Foram o eficaz martelo da Santa Sé contra a Teologia da Libertação; ativistas incansáveis contra a camisinha, o aborto, a eutanásia e a reprodução assistida, inimigos do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Generosa fonte de financiamiento para o Vaticano e, sobretudo, a fiel cavalaria leve de João Paulo II para implantar seu modelo de catolicismo: resistência, reconquista e restauração. A Igreja como poder político.

A Legião cresceu muito rapidamente. Tinha os pés de barro. E um terrível segredo em seu interior, que, após décadas de ocultamento, acabaria estourando: seu fundador, Marcial Maciel, nascido no México em 1921, era um farsante.

Marta Rodríguez, uma consagrada de 30 anos que fez promessa de obediência. Pobreza e castidade e tem um irmão legionário, relembra as pompas da Legião de Cristo em novembro de 2004, no Vaticano, quando João Paulo II celebrou os 60 anos de profissão sacerdotal do fundador. Era a consagração da congregação.

"João Paulo II nos dizia: 'Se sente, os legionários estão presentes'. E você acreditava que era o melhor da Igreja. Pensava: sou do Regnum Christi e que fácil é ser do Regnum Christi".

"Quando, em 2009, o padre Luis Garza (número dois da Legião) nos confessou a vida imoral do padre Maciel, chorei três dias... Passei da Disneylândia para a realidade".

Pergunto ao padre Miguel Segura, valenciano, de 39 anos, reitor da comunidade de Roma, mestre de noviços, físico de nadador e um dos homens mais influentes da Legião:

- O senhor autorizaria que se infligisse castigo físico para vencer a tentação?

- Para começar, se você tem uma sexualidade descontrolada, não pode entrar na Legião. Aqui, é preciso viver sadiamente. E, se apertar, eu recomendo amizade, esporte e descanso. Se essa pessoa for homossexual, eu lhe aconselharia que abandonasse a Legião. Se você é gay, não pode ser legionário. Não pode ser sacerdote. Não pode viver a castidade rodeado de homens. Enquanto aos cilícios e a se açoitar... são demonstrações de vaidade. EU aconselho que se levantem antes, jejuem, deem-se banhos frios... Que não ponham sua integridade física em risco.

Diante da gravidade dos fatos, o Papa foi além da pura retórica.

A maquinaria vaticana se encontra na disjuntiva de dissolver, refundar ou simplesmente reformar a ordem. Qualquer possibilidade está à vista.

No último dia 9 de julho, Bento XVI nomeou o arcebispo italiano Velasio de Paolis, de 74 anos, como comissário para a Legião de Cristo.

De Paolis substitui Álvaro Corcuera, que de 2005 até hoje detinha esse cargo. O arcebispo italiano presidia a Prefeitura para os Assuntos Econômicos da Santa Sé.

Desde a condenação de Bento XVI contra Maciel em maio deste ano, seus retratos desapareceram da Legião. Terão sido queimados? Ninguém sabe.

Marcial Maciel, exemplo durante décadas, faleceu de câncer em janeiro de 2008, em Jacksonville, Flórida, 20 meses depois de ter sido afastado da prática do sacerdócio por ter abusado de 20 seminaristas. Não houve julgamento.

Os abusos sexuais eram o primeiro capítulo da biografia de crimes que seriam conhecidos nos meses seguintes.

A declaração da Santa Sé sobre a vida e a obra de Maciel concluía: "Seus comportamentos gravíssimos e objetivamente imorais se configuram, às vezes, em autênticos delitos e manifestam uma vida carente de escrúpulos e de verdadeiro sentimento religioso".

Os números dos Legionários

15 universidades na Espanha e 48 no México
177 colégios
133.000 alunos
20.000 empregados
3.450 sacerdotes
1.000 consagradas (sua rama feminina de religiosas sem hábito)
75.000 membros do Regnum Christi, o braço laico da organização

(Difícil acreditar que Marcial Maciel enganou tanto durante tanto tempo. Penso que muitos - papas, bispos, sacerdotes, seminaristas, leigos - sabiam quem verdadeiramente ele era.  
Enoisa) 

25/08/2010

A grandeza de ser mulher

Ocorre entre os dias 23 e 31 de agosto, em Ávila, na Espanha, o Congresso Internacional "O livro da Vida", organizado pelo Centro Internacional Teresiano Sanjuanista (Cites). A reportagem é de Cristiana Dobner, publicada no jornal L'Osservatore Romano, 24-08-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto e revisada pela IHU On-Line. O Cites e a Universidade da Mística dos Carmelitas Descalços têm suas sedes em Ávila, terra que imediatamente evoca Teresa de Jesus. Francisco Javier Sancho Fermín, diretor do Cites, fala sobre o Congresso Internacional, que estará centrado no "Livro da Vida", escrito pela santa.




Qual é o rosto do Cites? O que expressa essa sigla?

O Centro Internacional Teresiano Sanjuanista nasceu em 1986 por decisão do Definitório Geral da Ordem dos Carmelitas Descalços, com uma vocação internacional que busca sobretudo aprofundar e difundir, em todos os níveis, a vida, a doutrina e a experiência dos dois grandes mestres da mística cristã: Teresa de Jesus e João da Cruz. Um projeto muito simples e direcionado inicialmente apenas aos membros da Ordem, como centro de formação e especialização, mas os diversos pedidos de cursos, de formação e de aprofundamento da mística do Carmelo, aos poucos, fizeram com que se abrisse as portas para dar uma resposta a essa sede de espiritualidade e de experiência de Deus, das quais os homens de hoje têm necessidade.

Por isso, em 2008, nasceu a Universidade da Mística, que busca oferecer o espaço e a formação àqueles que, de todas as partes do mundo, querem satisfazer a sede profunda de Deus: um lugar aberto ao estudo, à experiência de Deus, à fraternidade, à oração, que oferece atividades em todos os níveis: para estudiosos e especialistas, para simples cristãos. No fundo, a missão é levar adiante o grande desejo e projeto de Teresa de Jesus e de João da Cruz: ajudar o homem de todos os tempos a ter uma relação existencial e experiencial com Deus.

Qual é o significado de um congresso internacional dedicado a um livro escrito por uma freira do século XVI?

Se o objetivo desse congresso internacional fosse apenas aproximar a um livro escrito no século XVI, seria interessante só do ponto de vista histórico e literário. Porém, o objetivo não é simplesmente preencher um currículo acadêmico. O "Livro da Vida" de Santa Teresa é um livro "vivo", no sentido de que é testemunha de uma profunda experiência de Deus que, ao longo dos séculos, conseguiu mover tantas pessoas a tomar uma decisão consciente por Deus, por exemplo, Edith Stein.

O fato de Teresa freira ser também a primeira mulher doutora da Igreja, e doutora principalmente por aquilo que se refere à oração e à experiência de Deus, também é testemunho válido da salvação que Deus continua realizando em cada pessoa. Em poucas palavras, não se pode destacar toda a riqueza presente nessas páginas de Teresa. Dizer, porém, que é uma mulher que viveu a grandeza do seu ser mulher no encontro com Deus abre as portas a muitíssimas conclusões existenciais das quais sempre temos necessidade.

Por que esse primeiro congresso internacional?

Esse encontro quer ser o início de um caminho que nos leva a 2015, ano da celebração do quinto centenário do nascimento de Santa Teresa. No Carmelo, acreditamos, depois da experiência não tão distante de outros centenários, que não deve chegar só com a ideia de fazer festa ou de preparar um jubileu. A ideia é muito mais ambiciosa: queremos verdadeiramente fazer um caminho de formação profunda do pensamento e da experiência mística de Teresa, mas também ser capazes de ver a sua atualidade e sua capacidade de diálogo e encontro, seja com as outras ciências, seja com as outras religiões e os diversos estados de vida. Percorrer, assim, novos caminhos, redescobrindo uma Teresa de Jesus capaz de oferecer "vida" a todas as pessoas: uma resposta e uma solução às graves crises do homem e da Igreja [confira aqui a programação do congresso].

A quem é dirigido o congresso?

O congresso, justamente por isso, é aberto a todas as pessoas. Certamente, tocam-se questões de grande profundidade e especialização, mas, pelo fato de falarmos principalmente de uma "experiência", de algo que, de um modo ou de outro, pode ser oferecida a todos, sejam ou não conhecedores de Teresa.

Quem quis e como foi administrada uma experiência tão completa?

Há anos, na medida em que nascia o projeto da Universidade da Mística, uma das ideias principais era a organização de congressos internacionais, como os quatro de 2010 com temas diversos. Foi decisiva a criação da Comissão Internacional de Preparação do Centenário, que, na seção cultural, comprometeu-se com a organização dos congressos teresianos, para aprofundar a leitura anual de uma das obras de Teresa até 2015.

Qual é a expectativa dos Carmelitas e das Carmelitas Descalças e de todos os que olham para Teresa como Mãe da vida no Espírito?

Ser capaz de levar adiante hoje o desejo e a missão de Teresa: fazer com que tantos homens e mulheres, cristãos e não cristãos, se tornem "verdadeiros amigos de Deus". O caminho a seguir são os passos de Teresa: conhecê-la melhor para conhecer mais profundamente a Deus, abrir-nos à experiência do Deus vivo, verdadeiro e misericordioso e ser capazes de testemunhar com a própria vida o Deus Amor, redescobrir que Teresa se encontrou com Deus em sua própria humanidade. Porque o "Livro da Vida" é um texto vivo, capaz de ainda transmitir vida e experiência: não só no estilo peculiar de Teresa, mas no testemunho profundo de um Deus que não deixa de amar, de se doar, de recriar as pessoas.

Um Deus que, na sua humanidade, enche de sentido a vida do homem, na narração de um Deus próximo e amigo, na narração de uma pessoa que redescobre e aceita a si mesma, na história de amor que porta o amor do outro, que não se fecha em si mesmo, mas se abre a toda a humanidade, porque em Deus descobre o verdadeiro sentido da sua vida e a dignidade infinita de todo ser humano. Quem quer descobrir a si mesmo, quem quer descobrir o Deus amigo, sempre encontrará nesse livro um guia atual, porque fala do desejo mais profundo de todo ser humano: descobrir o caminho da plenitude e da felicidade.

13/08/2010

Frei Carlos Mesters

Leitura Orante da Palavra de Deus

O texto foi escrito pelo Frei Carlos Mesters por ocasião da celebração do Ano Vocacional Carmelitano, da Província Carmelitana de Santo Elias-Carmelitas. Frei Carlos Mesters é biblista e fundador do Centro de Estudos Bíblicos - CEBI. Fonte: UNISINOS


A Leitura Orante da Lei do Senhor faz a pessoa crescer e amadurecer, pois traz consciência crítica frente "aos conselhos dos ímpios", ajuda a evitar o "caminho dos maus", torna fecunda a vida que, "como árvore, plantada à beira da água, dará fruto a seu tempo. Sua folhagem não secará, e terá êxito em todos os seus empreendimentos". Deste modo, se abre para nós o caminho da felicidade: "Feliz este homem!"

"Meditar dia e noite na Lei do Senhor". Uma prática antiga, sempre nova


SUBSÍDIO 1 - Leitura Orante da Palavra de Deus

Uma prática antiga, sempre nova

"A Palavra está perto de ti, em tua boca e em teu coração" (Dt 30,14)

Há pessoas que acham a Bíblia um livro difícil. Dizem que ela só serve para o estudo das coisas de Deus, mas não para rezar e fazer a pessoa crescer na intimidade com Deus. No AT, já havia gente que pensava assim achando que só alguns poucos seriam capazes de descobrir e entender a Palavra de Deus. Por exemplo, pessoas estudadas e viajadas, capazes de entender as coisas do céu e da terra. O livro do Deuteronômio responde para eles e para nós:

"Este mandamento que hoje lhe ordeno não é muito difícil, nem está fora do seu alcance. Ele não está no céu, para que você fique perguntando: 'Quem subirá por nós até o céu para trazê-lo a nós, a fim de que possamos ouvi-lo e colocá-lo em prática?' Também não está no além-mar, para que você fique perguntando: 'Quem atravessará por nós o mar, para trazer esse mandamento a nós, a fim de que possamos ouvi-lo e colocá-lo em prática?' Sim, essa palavra está ao seu alcance: está na sua boca e no seu coração, para que você a coloque em prática" (Dt 30,11-14).
A Palavra de Deus não é uma doutrina distante de difícil acesso, nem um catecismo de verdades a serem estudadas e decoradas. A Palavra de Deus é o próprio Deus querendo comunicar-se conosco como Pai amoroso. O valor da Bíblia não está só naquilo que ela diz e ensina. O seu valor está também e sobretudo em Deus, Ele mesmo, a sua pessoa e a sua bondade, que pronuncia com muito amor aquilo que é dito e ensinado na Bíblia. Era a experiência de Deus como Pai que revelava a Jesus o sentido pleno das palavras da Escritura.

Descobrir e experimentar esta dimensão interpessoal da Bíblia é o objetivo da Leitura Orante da Palavra de Deus. A própria Bíblia é fruto desta prática antiga e sempre nova da leitura orante da Palavra de Deus.

A Bíblia, ela mesma, é fruto da Leitura Orante da Palavra de Deus

O texto da Bíblia não caiu pronto do céu. A Palavra de Deus, antes de ser escrita, era transmitida oralmente. Antes de ser transmitida, era vivida. Antes de ser vivida, era recebida no coração e revelada na prática do Povo de Deus. O texto da Bíblia nasceu aos poucos, ao longo dos séculos, como fruto de um demorado processo de interpretação dos fatos da vida e da história, nos quais o povo foi descobrindo a presença escondida da Palavra de Deus.

O ambiente desta leitura e descoberta da Palavra de Deus era o ambiente da liturgia, a celebração, os santuários, as romarias, o Templo, as rezas, as reuniões do povo. Por exemplo, entre os textos mais antigos da Bíblia estão os cânticos litúrgicos atribuídos a Miriam (Ex 15,20), a Débora (Jz 5,2-31) e a Ana (1Sam 2,1-10) e a profissão de fé do livro do Deuteronômio (Dt 26,5-9). A Bíblia nasceu e cresceu num ambiente de celebração. É neste mesmo ambiente orante que deve ser lida e meditada.

No tempo de Jesus era neste ambiente orante que o povo meditava a Palavra de Deus. Quando aquela mulher "levantou a voz no meio da multidão, e lhe disse: "Feliz o ventre que te carregou, e os seios que te amamentaram", Jesus fez o maior elogio à sua mãe quando respondeu dizendo: "Mais felizes são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática" (Lc 11,27-28). De fato, Maria meditava a Palavra de Deus presente nos fatos da vida e nas palavras do anjo e das pessoas (Lc 2,19.51). O resultado desta meditação orante é o Cântico do Magnificat, feito com frases quase todas tiradas do livro dos Salmos (Lc 1,46-55). Sinal de que ela sabia rezar a vida e seus acontecimentos.

Desde os tempos do Servo de Javé e do próprio Jesus até hoje, é sempre a mesma palavra de Deus que é buscada e meditada. São muitas as maneiras de se ler a Bíblia, muitos os métodos para se interpretar a Palavra que Deus nos dirige de tantas maneiras diferentes. Mas o que há de comum em todos eles é a vontade de ouvir a Palavra de Deus e de colocá-la em prática (Lc 11,27). Como fazer isto?

O Testemunho do Servo de Javé

Foi na meditação orante da Palavra de Deus que o Servo de Javé, na época do cativeiro da Babilônia, encontrava a força para descobrir e realizar sua vocação como Servo. Ele mesmo descreve como fazia a leitura orante da Palavra de Deus:

"O Senhor me concedeu o dom
de falar como seu discípulo,
para eu saber dizer uma palavra de conforto
a quem está desanimado.
Cada manhã, ele me desperta,
para que eu o escute,
de ouvidos abertos,
como o fazem os discípulos.
O Senhor me abriu os ouvidos
e eu não resisti, nem voltei atrás (Is 50,4-5).
Quatro pontos chamam a atenção da gente neste breve testemunho do Servo

1) Ser Discípulo. Por duas vezes ele se apresenta como discípulo. Ele aprender a falar e a escutar como fazem os discípulos. E ele quer ser discípulo do Senhor. Discípulo é a pessoa que tem consciência de não saber tudo, de não ser dono da verdade, de estar disposto a aprender.

2) Palavra de conforto. Ele está preocupado não em agradar aos grandes, mas em saber encontrar e dizer uma palavra de conforto a quem está desanimado. E no cativeiro da Babilônia havia muita gente desanimada que estava precisando de uma palavra de conforto.

3) De ouvidos abertos. A maneira como ele consegue ser discípulo e aprender como encontrar a palavra certa de conforto para quem está desanimado era colocar-se diante de Deus, todas as manhãs, de ouvidos bem abertos para escutar o que Deus lhe tem a dizer.

4) Atitude de entrega. Quem se abre para Deus, tem a certeza de que Deus vem e responde, mas ele não saber o que Deus vai responder. O Servo se coloca às ordens de Deus para o que der e vier. Ele não volta atrás diante de uma palavra imprevista.

O Testemunho de Jesus

Os textos do Servo de Javé (cf Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12; 61,1-2) foram ação para Jesus descobrir e assumir sua vocação como Messias. Este texto do Servo que acabamos de ler (Is 50,4-5) é uma espécie de auto-retrato do próprio Jesus. Como o Servo do livro de Isaías, Jesus meditava e escutava a Palavra de Deus. Diz o evangelho de Marcos: "De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto" (Mc 1,35). Jesus passava noites em oração, meditando a Palavra de Deus (cf. Lc 5,16; 6,12; 9,18.28; 11,1).

Na raiz da leitura que Jesus fazia da Palavra de Deus estava a sua experiência de Deus como Pai. A intimidade com o Pai dava a ele um critério novo, um olhar mais penetrante, que o colocava em contato direto com Deus, o autor tanto da Bíblia como da vida. Por isso São Paulo recomenda: "Procurem ter em vocês os mesmos sentimentos que animavam Jesus" (Flp 2,5). Pois se tivermos em nós os mesmos sentimentos de Jesus, teremos também o mesmo olhar com que Jesus lia a Bíblia. A seguinte comparação ajuda para entender este assunto.

Numa roda de amigos alguém mostrou uma fotografia, onde se via um homem de rosto severo, com o dedo levantado, quase agredindo o público. Todos ficaram com a idéia de se tratar de uma pessoa inflexível e antipática que não permitia intimidade. Enquanto comentavam a fotografia, chegou um rapaz, viu a fotografia e exclamou: "É meu pai!" Os outros olharam para ele e disseram: "Pai severo, hein!" Ele respondeu: "Não é não! Meu pai é muito carinhoso. Ele é advogado. Aquela fotografia foi tirada no tribunal na hora em que ele denunciava o crime de um latifundiário que queria despejar uns pobres para apropriar-se do terreno deles e construir um prédio grande para alugar e assim ganhar mais dinheiro. Meu pai defendeu os direitos dos pobres e ganhou a causa. Até hoje os pobres continuam morando em suas casas. Graças a Deus!" Todos olharam de novo a fotografia e alguém comentou: "Que fotografia simpática!" Como por um milagre, a fotografia se iluminou por dentro e começou a tomar um outro aspecto. Aquele rosto tão severo adquiriu os traços de uma grande ternura! A experiência do filho, sem mudar um traço sequer, mudou tudo.

Olhando as fotografias do Antigo Testamento, o povo no tempo de Jesus imaginava Deus como alguém distante, severo, de difícil acesso, cujo nome nem sequer podia ser pronunciado. Em vez de Javé diziam Adonai, isto é, Senhor. Jesus chegou e disse: "É meu Pai!" As palavras e gestos de Jesus, nascidas da sua experiência de Filho, sem mudar uma letra ou vírgula sequer (cf. Mt 5,18), mudaram todo o sentido do Antigo Testamento. A Bíblia se iluminou por dentro. O mesmo Deus que parecia tão distante e severo adquiriu os traços de um Pai bondoso de grande ternura, sempre presente, pronto para acolher e libertar! O Novo Testamento é uma releitura do Antigo Testamento feita à luz da nova experiência de Deus como Pai e Mãe, revelada e partilhada a nós por Jesus.

A chave para descobrir a Palavra de Deus na vida é esta: alimentar em nós "os mesmos sentimentos que animavam Jesus" (Fl 2,5); buscar uma profunda experiência de Deus e, ao mesmo tempo, como Jesus e como Servo, estar muito atento aos problemas das pessoas desanimadas que precisam de uma palavra de conforto.

"Ter em nós os mesmos sentimentos que animavam Jesus" (Fl 2,5)

Como conseguir esta atitude, este olhar? Como criar em nós os mesmos sentimentos que animavam Jesus? Aqui seguem três sugestões ou conselhos: 1. Seguir Jesus; 2. Usar o método de Jesus; 3. Criar um contexto comunitário orante.

1. Seguir Jesus
O seguimento de Jesus tinha três dimensões que perduram até hoje e que formam o eixo central do processo de formação dos discípulos e da assimilação do jeito de viver de Jesus:

* Imitar o exemplo do Mestre:
Jesus era o modelo a ser recriado na vida do discípulo ou da discípula (Jo 13,13-15). A convivência diária com o mestre permitia um confronto constante. Nesta "escola de Jesus" só se ensinava uma única matéria: o Reino! E este Reino se reconhecia na vida e na prática do Mestre. Isto exige de nós leitura e meditação constantes do evangelho para olharmos no espelho da vida de Jesus.

* Participar no destino do Mestre.
A imitação do Mestre não era um aprendizado teórico. Quem seguia Jesus devia comprometer-se com ele e "estar com ele nas tentações" (Lc 22,28), inclusive na perseguição (Jo 15,20; Mt 10,24-25). Devia estar disposto a carregar a cruz e a morrer com ele (Mc 8,34-35; Jo 11,16). Isto exige de nós um compromisso concreto e diário de fidelidade com o mesmo ideal com que Jesus, fiel ao Pai, se comprometia.

* Ter a vida de Jesus dentro de si.
Depois da Páscoa, surge uma terceira dimensão, fruto da ação do Espírito de Jesus na vida das pessoas que levava os primeiros cristãos a dizer: "Vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20). Eles procuravam refazer em suas vidas a mesma caminhada de Jesus que tinha morrido em defesa da vida e foi ressuscitado pelo poder de Deus (Fl 3,10-11). Isto exige de nós uma espiritualidade de entrega contínua, alimentada na oração.


2. Usar o método de Jesus na leitura e interpretação da Bíblia

No episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35), Lucas apresenta Jesus como intérprete da Bíblia e nos ensina como devemos ler a Escritura. O processo de interpretação seguido por Jesus tem os seguintes passos, misturados entre si:

1º Passo: partir da realidade (Lc 24,13-24)
Jesus encontra os dois discípulos numa situação de medo e dispersão, de descrença e desespero. Eles estavam fugindo. A morte de Jesus na cruz, tinha matado neles a esperança: "Nós esperávamos que ele fosse o libertador, mas..." (Lc 24,21). Jesus se aproxima e caminha com eles, escuta a conversa e pergunta: "De que vocês estão falando? Por que estão tristes?" Mas eles não o reconheciam. Não percebiam a presença da Palavra de Deus que já estava com eles, na vida deles.

O 1º passo é aproximar-se, caminhar junto, escutar a realidade, os problemas; ser capaz de fazer perguntas que ajudem a pessoa a olhar a realidade com um olhar mais crítico.

2º Passo: usar a Bíblia (Lc 24,25-27)
Jesus usa a Bíblia não para dar uma aula sobre a Bíblia, mas para iluminar o problema que fazia sofrer os dois discípulos, para esclarecer a situação que estavam vivendo e para mostrar que a história não tinha escapado de mão de Deus.

O 2º passo é este: com a ajuda da Bíblia, iluminar os fatos e situá-los dentro do conjunto do plano de Deus, transformar a cruz, sinal de morte, em sinal de vida e de esperança. Assim, aquilo que os impedia de caminhar, tornou-se a força principal na caminhada, a nova luz no caminho.

3º Passo: partilhar na comunidade (Lc 24,28-32)
A Bíblia, ela por si, sozinha, não abriu os olhos dos dois, mas a sua leitura e interpretação fizeram arder neles o coração (Lc 24,32), e isto é muito importante. O que faz enxergar mesmo, é o gesto comunitário da hospitalidade, da oração em comum, da partilha do pão ao redor da mesa. No momento em que é reconhecido, Jesus desaparece, e eles mesmos ressuscitam e renascem.

O 3º passo é este: saber criar um ambiente de fé, de fraternidade e de partilha, onde possa atuar o Espírito Santo que nos faz entender o sentido das coisas que Jesus falou, e produz em nós uma experiência de ressurreição e de vida nova (cf. Jo 14,26; 16,13).

Objetivo: Ressuscitar e voltar para Jerusalém (cf Lc 24,33-35)

Imediatamente, eles levantam e voltam para Jerusalém. Tudo mudou: coragem, em vez de medo; retorno, em vez de fuga; fé, em vez de descrença; esperança, em vez de desespero; consciência crítica, em vez de fatalismo frente ao poder; liberdade, em vez de opressão! Em vez da má noticia da morte, a Boa Notícia da Ressurreição!

O objetivo da leitura orante da Bíblia, é este: criar coragem e voltar para Jerusalém, onde continuam vivas as forças de morte que mataram Jesus. Os dois discípulos, eles mesmos ressuscitaram. Venceram o medo da morte e das forças da morte.

3. Criar um contexto comunitário orante que abre os olhos

O que abriu os olhos dos discípulos foi o contexto comunitário: a hospitalidade, a oração antes de comer, a mesa comum, a partilha do pão. A comunidade que se formava ao redor de Jesus tinha o seu ritmo de vida diário, semanal e anual, dentro do qual os discípulos recebiam a sua formação:

O ritmo diário em casa, na família:

No tempo de Jesus, nas casas de família e nos pequenos grupos, todas as pessoas rezavam três vezes ao dia: de manhã, ao meio dia e à noite. Eram os três momentos em que, no Templo em Jerusalém, se oferecia o sacrifício. Junto com o incenso e a fumaça dos sacrifícios subia até Deus a oração do seu povo. Estas orações, tiradas da Bíblia ou por ela inspiradas, marcavam o ritmo diário da vida de Jesus e da sua comunidade ao longo dos três anos de formação.

O ritmo semanal na comunidade, sinagoga:

Um escrito antigo da Tradição Judaica, chamado Pirquê Abot, dizia: "O mundo repousa sobre três colunas: a Lei, o Culto e o Amor". Ou seja, a Bíblia, a Celebração e o Serviço. Era o que o povo fazia todos os Sábados na sinagoga. Mesmo durante as viagens missionárias, Jesus e os discípulos tinham o "costume" (Lc 4,16) de, aos sábados, se reunirem com a comunidade local na sinagoga para ouvir as leituras da Bíblia (Lei), para rezar e louvar a Deus (Culto) e para discutir os serviços a serem realizados para a edificação da comunidade e a ajuda a ser oferecida às pessoas (Amor) (Lc 4,16.44; Mc 1,39). Até hoje, este ainda é o ambiente formador das nossas Comunidades Eclesiais de Base: ouvir em comunidade a leitura da Palavra de Deus (Lei, Bíblia), rezar juntos (Culto, Celebração) e combinar entre si o que fazer para melhor a vida dos irmãos e das irmãs (Serviço, Amor).

O ritmo anual no Templo, no meio do povo:

Cada ano, o povo tinha que fazer três romarias para visitar a Deus no seu Templo em Jerusalém nas três grandes festas, que marcavam o ano litúrgico e nas quais se celebravam os momentos importantes da história do Povo de Deus: Páscoa, Pentecostes, ou festa das semanas e a festa das Tendas (Ex 23,14-17; Dt 16,9). Jesus e os discípulos participavam das romarias e visitavam o Templo de Jerusalém (Jo 2,13; 5,1; 7,14; 10,22; 11,55).

Através deste tríplice ritmo (diário, semanal e anual), criava-se um ambiente familiar e comunitário, impregnado pela leitura orante da Palavra de Deus. A formação, que os discípulos assim recebiam, não era, em primeiro lugar, a transmissão de verdades a serem estudadas e decoradas, mas sim a comunicação da nova experiência de Deus e da vida que irradiava de Jesus para os discípulos e as discípulas. A própria comunidade que se formava ao redor de Jesus era a expressão desta nova experiência de Deus e da vida. A formação levava as pessoas a terem outros olhos, outras atitudes. Fazia nascer nelas uma nova consciência a respeito da sua vocação e a respeito de si mesmas. Fazia com que fossem colocando os pés do lado dos excluídos. Produzia aos poucos a "conversão" como conseqüência da aceitação da Boa Nova (Mc 1,15). Sem esta experiência comunitária da Leitura Orante, o estudo da Bíblia cairia no vazio.

A comparação dos dois Livros de Deus

Uma comparação esclarecedora de Santo Agostinho dizia: Deus escreveu dois livros. O primeiro livro é a criação, a natureza, a vida, tudo que existe e acon­tece. É pelo Livro da Natureza que Deus quer comunicar-se conosco. Mas por causa do nosso pecado as letras deste primeiro livro se atrapalharam e já não conseguimos descobrir a fala de Deus no livro da Vida, da Natureza. Por isso, Deus escreveu um segundo livro, que é a Bíblia. A Bíblia foi escrita, não para substituir o livro da vida, mas para ajudar-nos a interpretá-lo melhor. E Agostinho enumera os três objetivos desta leitura orante da Bíblia: a Bíblia nos devolve o olhar da contemplação; ela nos ajuda a decifrar o mundo; faz do universo uma teofania, uma revelação de Deus.

Clemente de Alexandria, Séc. IV, tinha a mesma intuição quando dizia: "Deus salvou os judeus judaicamente, os gregos, gregamente, os bárbaros, barbaramente". E podemos continuar: "Os brasileiros, brasileiramente". A convicção de fé subentendida nesta afirmação é a de que todos temos o nosso Antigo Testamento, temos nossa história, tanto pessoal como comunitária e nacional. Como o AT do povo hebreu, também o nosso AT, a nossa história, está orientada pelo mesmo Espírito do Deus Criador para desembocar na vida plena que nos foi revelada pela paixão, morte e ressurreição de Jesus. O que importa na interpretação de um texto bíblico é descobrir, através do estudo da "letra", esta mesma orientação para Jesus dentro da nossa vida e história, para que possamos crescer e desabrochar em Jesus e na vida ressuscitada da Comunidade. Este mesmo convite chega agora até nós através da mensagem do Sínodo dos bispos.

A Mensagem final do Sínodo dos Bispos

Esta maneira tão antiga de ler e interpretar a Bíblia - tão antiga quanto a própria Bíblia - renasce hoje, tanto na prática tão simples das nossas comunidades, como na palavra abalizada dos bispos reunidos no Sínodo sobre "A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja".

Nas intervenções dos bispos durante o sínodo sobre A Palavra de Deus na Vida e na Missão do Povo de Deus, havia uma insistência muito grande nestes quatro pontos: 1) A Bíblia deve voltar na mão do povo, sobretudo dos pobres; 2) A Leitura Orante diária deve ser retomada sobretudo pelos ministros que animam a fé do povo e pelos que se preparam para servir ao povo como presbíteros; 3) A exegese científica e o estudo acadêmico da Bíblia devem estar voltados para a teologia e a pastoral; 4) É importante retomar e valorizar a visão que os Santos Padres da Igreja tinham da Bíblia.

Na mensagem final do Sínodo ao Povo de Deus, os bispos sintetizaram todo o processo da descoberta, interpretação e meditação orante da Palavra de Deus em quatro símbolos muito sugestivos: a Voz da Palavra, o Rosto da Palavra, a Casa da Palavra e o Caminho da Palavra.

A Voz da Palavra ressoa não só na Bíblia, mas também se faz ouvir na natureza, no universo, na vida, nos fatos, "sem fala e sem palavras, sem que sua voz seja ouvida" (Sl 19,4). "De fato, desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, tais como o seu poder eterno e sua divindade, podem ser contempladas, através da inteligência, nas obras que ele realizou" (Rom 1,20).

O Rosto da Palavra é Jesus de Nazaré, sua vida, seus gestos, suas palavras, seus ensinamentos. Ele é a revelação do Pai. Nele a Palavra se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14). Ele podia dizer: "Quem me vê, vê o Pai" (Jo 14,9).

A Casa da Palavra é a Comunidade, a Igreja. É onde o povo se reúne em torno da Palavra de Deus: "Como pedras vivas, vocês vão entrando na construção do templo espiritual, e formando um sacerdócio santo, destinado a oferecer sacrifícios espirituais que Deus aceita por meio de Jesus Cristo" (1Pd 2,5). Jesus dizia: "Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, eu estou aí no meio deles" (Mt 18,20)

O Caminho da Palavra é a missão que recebemos como discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida. "Caminho" é a palavra usada no livro dos Atos para identificar os cristãos (At 9,2; 19,9; 22,4; 24,14). Indica o compromisso assumido de levar a Boa Nova pelo mundo afora.

Este é o sentido e o objetivo do convite que nos é feito hoje pela mensagem dos bispos. Os bispos retomaram o antigo convite feito a nós pelo salmo para praticar a Leitura Orante da Palavra de Deus:

"Feliz o homem,
que não segue os conselhos dos ímpios,
não anda no caminho dos maus,
nem freqüenta a companhia dos gozadores.
Pelo contrário,
encontra seu prazer na lei do Senhor,
e nela medita dia e noite.
Ele é como árvore plantada junto d'água corrente:
dá fruto no tempo devido,
e suas folhas nunca murcham.
Tudo o que ele faz é bem sucedido.
Feliz este homem!" (Salmo 1,1-3).



A Leitura Orante da Lei do Senhor faz a pessoa crescer e amadurecer, pois traz consciência crítica frente "aos conselhos dos ímpios", ajuda a evitar o "caminho dos maus", torna fecunda a vida que, "como árvore, plantada à beira da água, dará fruto a seu tempo. Sua folhagem não secará, e terá êxito em todos os seus empreendimentos". Deste modo, se abre para nós o caminho da felicidade: "Feliz este homem!"

01/08/2010

Matt J. Rossano

Agostinho de Hipona: modelo para uma fé inteligente



Artigo de Matt J. Rossano, professor e chefe do Departamento de Psicologia da Southeastern Louisiana University, dos EUA, publicado no sítio The Huffington Post, 28-07-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



O cabo de força entre religião e ciência foi estabelecido há 1.600 anos por um bispo norte-africano. Como sempre, aqueles que aprendem com a história estão fadados a repetir seus piores erros.

O caminho à santidade foi um caminho sinuoso para Aurelius Augustinus Hipponensis (Agostinho de Hipona). Nascido em 354 em Tagaste, uma cidade naquilo que era então a África do Norte Romana (agora Souk Ahras, na Argélia), Agostinho foi o produto de um casamento "misto": uma devota mãe cristã e um pai pagão incorrigivelmente promíscuo.

Depois de alguns vandalismos juvenis e aventureirismos sexuais (provavelmente exagerados), Agostinho estabeleceu-se com uma concubina e começou a buscar a verdade. Ele preferia latim ao grego, Cícero e Virgílio a Aristóteles. Ele era inteligente – alguém inteligente do tipo convencido e arrogante, que irritava os mais velhos. Para a aflição de sua mãe, achou as escrituras cristãs muito humildes para serem de muito valor. Seu intelecto vagava junto com seus interesses românticos, indo do maniqueísmo, ao ceticismo e ao platonismo, mas nunca satisfeito. Então, foi para Milão, e encontrou-se com um mentor, Ambrósio, que poderia desafiá-lo e castigá-lo com a mesma autoconfiança. Finalmente uma voz – "Pegue e leia" –, e o cristianismo reivindicou seu prêmio intelectual mais formidável.

Tal como acontece com a maioria dos convertidos, Agostinho assumiu apaixonadamente a nova fé, mas a paixão era temperada pelo olhar crítico de um forasteiro. Para ele, o cristianismo não podia ser apenas uma fé simples e reconfortante – seria muito chato! Em vez disso, ele devia ser a culminação da incessante busca do homem por sabedoria. Agora como clérigo erudito, Agostinho escrevia abundantemente, tornando-se o intelecto líder de sua época e conquistando o respeito até mesmo dos filósofos ateus dos dias modernos. Bertrand Russell, que não pensava grande coisa de Aquino, levava Agostinho em alta conta.

Em nosso tempo, alguns religiosos optaram por um caminho claramente anti-intelectualista. Os criacionistas, os "designers-inteligentes" e os literalistas bíblicos parecem obstinados a usar a ignorância como um distintivo de piedade.

A história se repete. No tempo de Agostinho, a grande questão não era a religião e a ciência, ou a religião e a evolução, mas o cristianismo e o corpus de aprendizagem clássica. Com a ruína do Império Romano, ficou cada vez mais nas mãos da Igreja cristã incorporar ou abandonar a grande tradição clássica intelectual. Séculos antes de Agostinho, alguns Padres da Igreja já tinham preferido a ignorância. Tertuliano proclamou famosamente: "O que Atenas tem a ver com Jerusalém, a Academia com a Igreja? Não temos nenhuma necessidade de curiosidade a partir de Jesus Cristo, nem de investigação a partir do Evangelho".

Agostinho não faria nada disso. Com uma certeza direta, ele argumentou que a razão era tão crítica para a fé quanto a revelação. Alarmado pela sua postura, um amigo bispo, Consentius, escreveu para lembrar Agostinho que "Deus não deve ser buscado pela razão, mas seguido por meio da autoridade". Deixando a colegialidade de lado, a resposta de Agostinho foi inusitadamente brusca:

Dizeis que a verdade deve ser compreendida mais pela fé do que pela razão ... Que o céu proíba que Deus odeie em nós aquilo pelo qual ele nos fez superiores aos animais! Que o céu proíba que devamos acreditar em uma tal concepção, assim como a não aceitar ou buscar razões, já que não poderíamos acreditar se não tivéssemos almas racionais.
A razão foi essencial para uma correta compreensão da Bíblia. Sim, a Bíblia deve ser tomada literalmente, onde faz sentido fazer isso, instruiria Agostinho. Mas onde ela obviamente contradiz a nossa experiência cotidiana, devemos buscar outros significados. Em "A Cidade de Deus" (16,7), por exemplo, Agostinho discute a Arca de Noé e como os animais estavam presentes em ilhas distantes, tão logo depois da grande enchente:

Questiona-se como eles [os vários animais selvagens] puderam ser encontrados nas ilhas depois do dilúvio (...) Pode-se, de fato, dizer que eles atravessaram até as ilhas a nado, mas isso só poderia ser verdade para os que estavam muito perto do continente. Considerando que existem algumas tão distantes, imaginamos que nenhum animal poderia nadar até elas (...). Eles foram gerados da terra assim como em sua primeira criação (...). Isso torna mais evidente que todos os tipos de animais foram preservados na arca, nem tanto com o fim de renovar o estoque, mas sim para prefigurar as diversas nações que deviam ser salvas na Igreja.

Espere um minuto, Santo Agostinho, repita isso. Noé não salvou literalmente todos os animais da terra na arca? (Como é que um bom bispo católico nunca ouviu a música do unicórnio dos Irish Rovers?) É representacional, você diz, o fato de a Igreja salvar as nações da terra? Mas nós temos agora museus da Arca que nos mostram como Noé fez isso. Encontraram a Arca real no Monte Ararat na Turquia, não? Quinhentos anos antes de qualquer pensamento europeu acerca de usar um garfo no jantar, Agostinho já havia entendido que a Bíblia requer uma interpretação crítica, não uma mera passada de olhos. O que ele deve estar pensando sobre alguns cristãos hoje?

Na verdade, não precisamos perguntar. Na obra "Comentário ao Gênesis" (1,19), Agostinho é muito claro sobre o que ele pensa de cristãos estúpidos. Depois de lembrar aos cristãos que muitos não-crentes em Deus são bem versados em áreas como astronomia, biologia e geologia, eles os adverte contra o uso despreocupado das escrituras como base para falar sobre esses tópicos com não-crentes inteligentes:

Agora, é algo infeliz e perigoso para um infiel ouvir um cristão, presumivelmente dando o sentido da Sagrada Escritura, falando bobagens sobre esses tópicos. E devemos fazer todo o possível para prevenir uma situação tão embaraçosa, na qual as pessoas mostram a grande ignorância de um cristão e riem disso com desprezo.
Se um cristão se mostra ignorante e estúpido, a religião e suas escrituras, então, podem ser menos do que isso?

Se eles [os não-crentes] se encontram com um cristão equivocado em um campo que eles mesmos conhecem bem e ouvem-no mantendo suas tolas opiniões sobre nossos livros, como vão acreditar nesses livros em questões relativas à ressurreição dos mortos, à esperança da vida eterna e ao reino dos céus, quando pensam que suas páginas estão cheias de falsidades e de fatos que eles próprios aprenderam com a experiência e à luz da razão?
Na verdade, as opiniões de Agostinho sobre a tolerância religiosa, o pecado e a sexualidade podem ofender as sensibilidades modernas. Ele nem sempre transcendeu o seu tempo (poucos fazem isso). Mas o seu exemplo de que a razão é um dom de Deus tanto quanto a revelação ofereceu os fundamentos para o dito de que "a Verdade (da razão) não pode contradizer a Verdade (da revelação)", que depois foi defendida tão vigorosamente por Alberto Magno e Tomás de Aquino.

O melhor da tradição intelectual cristã não oferece nenhum conforto ou cobertura para os cristãos tolos de hoje, que ignoram a ciência e a razão, em um esforço equivocado de guardar a fé. Sua timidez e covardia intelectual mancham o imponente edifício que os grandes pensadores cristãos do passado trabalharam tão arduamente para construir.