11/09/2010

Aldo Maria Valli

A travessia de Newman
Quando, dentro de alguns dias, no dia 19 de setembro, Bento XVI beatificar John Henry Newman (foto), o Papa não prestará apenas a devida homenagem da Igreja Católica a um homem que, em vida, por causa da sua busca da fé verdadeira, enfrentou muitas tribulações. Ele indicará também um modelo de vida cristã e de estímulo pastoral válido para hoje. A reportagem é do vaticanista italiano Aldo Maria Valli, publicada na revista Europa, 10-09-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Nascido em 1801 e falecido em 1890, fervoroso anglicano e depois ministro da Igreja da Inglaterra, Newman, em 1845, se converteu ao catolicismo. Dois anos depois, foi ordenado padre católico e, em 1879, é feito cardeal. Mas por trás da aparente linearidade desse percurso, há muitas curvas difíceis, muitos obstáculos, muitas incompreensões.

Desde o início, a vida do futuro cardeal foi marcada pelo imprevisto e pelo contraste. Foi um estudante brilhante, mas, por causa dos muitos estudos, seus exames finais foram um meio fracasso. A nota foi muito baixa, mas depois de cerca de um ano, ele prestou novos exames e, desta vez, tornou-se professor do Oriel College de Oxford. O seu papel é o de tutor, com o encargo de seguir um grupo restrito de estudantes, mas eis que Newman, com pouco mais de 20 anos, não se limitou a transmitir noções. Para ele, o ensino pode ser concebido só como uma parte da educação, que é, em primeiro lugar, moral e espiritual. Segundo a visão então dominante, trata-se de um escândalo, e assim os estudantes lhe são retirados.

Em 1825, tornou-se padre anglicano, dedicou-se à paróquia universitária, fez sermões e, enquanto isso, começou a se interrogar: está exatamente na Igreja Anglicana o caminho certo para alcançar Deus e viver como santo? Uma primeira resposta é positiva: a Igreja da Inglaterra, disse, é uma espécie de via media [caminho do meio, em latim] entre o protestantismo e o catolicismo, um exato meio.

Mas ao longo dos anos, deu-se conta de que esse caminho, na prática, não existe. Percebeu que as interferências do Estado na vida da Igreja são indevidas e inadmissíveis. Aos poucos, aproximou-se da Igreja Católica. O seu "rebocador" é um padre italiano, o passionista Domenico Barberi. A conversão é o fruto desse lento caminho, como a travessia, disse, de um mar tempestuoso. Não dá as costas aos anglicanos, não renega nada do passado, mas, para os ex-co-irmãos, é um traidor. Deixa as certezas compartilhadas para entrar em uma minoria desprezada. Abandona a comodidade e a reputação para abraçar a verdade.

O barco chega no porto, mas os problemas não acabaram. A própria Igreja Católica se esforça para acolher um personagem sob muitos aspectos incômodo.

Seja como fundador da Universidade Católica de Dublin, seja como diretor do jornal católico The Rambler, Newman vai ao encontro de contrastes e incompreensões. No diário, anota: "Se antes, a minha religião era desolada, mas a minha vida não o era, agora a minha religião não é mais desolada, mas a minha vida o é". Em meio a tantos fracassos (incluindo as calúnias de um ex-católico italiano, que lhe custaram uma condenação por difamação), Newman teve também que se resguardar das suspeitas de ambas as partes: assim como alguns anglicanos defendem que ele sempre foi católico em segredo, alguns católicos dizem que ele nunca abandonou verdadeiramente o protestantismo.

Quando Leão XIII, admirador de Newman, sucedeu Pio IX, as nuvens, pela primeira vez, se desfazem. A púrpura cardinalícia, inesperada, é o selo de uma vida corajosa e plena de paixão pela verdade, uma vida da qual surgem alguns traços distintivos de cristão: a busca contínua, a capacidade de aceitar o quieto viver, o desejo de se tornar ponte, apesar da obstinação de quem quer erguer muros, o testemunho pessoal, a indissolubilidade de palavra e exemplo, a disponibilidade à mudança, porque, "aqui sobre a terra, viver é mudar, e a perfeição é o resultado de muitas transformações".

Fascinado pelo convertido Agostinho, Bento XVI, desde sempre, é fascinado também pelo convertido Newman. O caminho do cristão é a conversão contínua. Um desenvolvimento ininterrupto, um amadurecimento. Ao longo do qual, as dificuldades são inevitáveis.

Em 1990, pelo centenário da morte de Newman, o cardeal Ratzinger proferiu em Roma uma conferência e revelou que a teoria da consciência, central no pensamento do grande convertido, o fascinou desde 1946, isto é, desde o início dos seus estudos de teologia no seminário de Freising, logo depois da guerra.

Quando, na Carta ao duque de Norfolk, Newman disse que, em um hipotético brinde, ele brindaria primeiro à consciência e depois ao Papa, ele não convidou a cair na subjetividade. Pelo contrário, anota o futuro Papa, Newman defende o "caminho da obediência à verdade objetiva". É nesse sentido que a consciência vem antes e é também o fundamento da autoridade do Papa.

Bento XVI, o pontífice que colocou a ideia de verdade no centro do seu magistério, não podia não se apaixonar por Newman. Até porque, como ele mesmo relata, naquele 1946, quando começou a estudar teologia, ele e seus companheiros haviam recém acabado de experimentar o que significa a negação da consciência. Hermann Göring [líder militar nazista] havia dito sobre o seu chefe: "Eu não tenho nenhuma consciência! A minha consciência é Adolf Hitler". Ratzinger comenta: "A imensa ruína do homem que derivou disso estava diante dos nossos olhos".

Marcelo Barros

Panikkar e a Teologia da Libertação


Por Marcelo Barros (foto), teólogo e monge beneditino.
Fonte: UNISINOS


Raimon Panikkar se foi deste mundo no mesmo dia 27 de agosto, em que lembramos a partida de Dom Hélder Câmara. Foi através deste bispo profeta que conheci Panikkar no final dos anos 60, quando este passava pelo Recife em uma viagem pelo Brasil. Dom Hélder Câmara o apresentou como um dos “nossos” teólogos na Europa. Naquela época não havia ainda surgido o conceito de “Teologia da Libertação”. Compreendi que Panikkar era nosso no sentido de que estava ligado à nossa busca de ligar profundamente a fé com a defesa da vida e a causa da justiça para toda a humanidade. Posteriormente, só o encontrei novamente, há poucos anos, em Barcelona. Entre aquele encontro dos anos 60 e este de 2002, conheci várias de suas obras. Embora ele nunca tenha assumido explicitamente a Teologia da Libertação, todas as pessoas que, no mundo e nas Igrejas, trabalham pela justiça podem considerá-lo “irmão e companheiro na tribulação e no testemunho do reino” (Ap 1, 9). Para nós, latino-americanos, isso se torna mais claro, principalmente, quando, a partir da preparação da 4ª Conferência do episcopado latino-americano, em Santo Domingos (1992), o diálogo das culturas e tradições espirituais se tornou questão central da vida e da Teologia da Libertação.

1. Os diversos rostos do Cristo

Em 1978, no documento de Conclusões da Conferência de Puebla já aparece o tema do “rosto de Cristo no negro, no índio e nos diversos tipos de empobrecidos” (n. 31- 40). Nesta época, Panikkar já havia escrito: “Il Cristo sconosciuto del induísmo” . A abordagem deste livro nos ajudou a relativizar nosso “cristocentrismo”, aprofundado a partir do catolicismo popular. Naquela época, os teólogos latino-americanos insistiam exatamente na figura histórica de Jesus de Nazaré . Panikkar ressaltava a distinção não tanto entre o Jesus histórico e o Cristo da Fé, como fazia a teologia ocidental dos anos 60, mas distinguia a figura histórica de Jesus e a dimensão misteriosa do Cristo, bem mais ampla e cósmica. Era a sua forma de contemplar o sentido salvífico das religiões orientais, sem cair no tal inclusivismo ocidental. Esta visão de Panikkar nos ajudava a aprofundar a presença do Cristo nas culturas e religiões populares. Nos anos 90, ao preparar o 9º Encontro intereclesial de CEBs em São Luís (MA), Carlos Mesters escreveu: “Jesus Cristo está presente no Candomblé . Isso lhe valeu um violento protesto da coordenação do Movimento de Renovação Carismática Católica em uma carta aberta aos bispos brasileiros.

Com sua proposta de uma visão cosmoteândrica , Panikkar se colocou muito próximo da Teologia Pluralista da Libertação, insistindo na centralidade do Espírito e do reino (eu teria preferido que ele usasse o termo antropos no lugar de andros para evitar um enfoque especificamente masculino e centrar a questão no humano que é masculino e feminino).

2 – Sincretismo, diálogo intra-religioso e interculturalidade

No caminho de inserção no Catolicismo popular e religiões ancestrais de nossos povos, um elemento central a ser compreendido é o que geralmente se chama de sincretismo. Em 1983, no livro “Igreja, Carisma e Poder”, Leonardo Boff dedicou um capítulo ao Sincretismo . Em 1978, Panikkar publicara a primeira versão do seu “diálogo intra-religioso”. Trata-se de não só dialogar com alguém exterior, mas carregar dentro de si mesmo as interrogações surgidas das diferentes tradições espirituais. É preciso expressar a fé não de modo relativista, mas relacional. “A finalidade do diálogo intra-religioso é a compreensão. Não se trata de ganhar o outro (em outro escrito ele chama isso de “diálogo dialético”), nem chegar a um acordo total, ou a uma religião universal. O ideal é a comunicação (diálogo dialogal), visando preencher o fosso de ignorância entre as diferentes culturas do mundo, deixando-as falar e expor abertamente suas intuições próprias em suas próprias linguagens”.

Para uma Teologia da Libertação, empenhada em servir à vida e à libertação dos pobres, a questão do sincretismo aparece, em primeiro lugar, como elemento de resistência cultural. Durante séculos e até poucos anos, ser cristão era a única forma de negros e índios se sentirem “incluídos” na sociedade hegemônica. Ao mesmo tempo, ser do Candomblé ou de uma religião índia era uma forma de resistir e manter sua identidade cultural. Por isso, além de qualquer argumento religioso, era e é importante defender o direito das pessoas viverem essa integração como diálogo intra-religioso a serviço da libertação e da vida.

Uma vez, nos anos 80, vi um sacerdote tentar convencer um índio xavante de que ele não precisaria batizar seu filho. O índio respondeu: “O batismo é o único instrumento que o torna humano igual aos outros. Meu filho não tem o mesmo direito dos filhos dos brancos?”. Enquanto não conseguimos a transformação radical da sociedade e a convivência igualitária de todos em uma real interculturalidade, temos de garantir o profundo respeito e diálogo com a sensibilidade das pessoas envolvidas, no caso, as mais pobres e que lutam pelo reconhecimento de sua dignidade humana e cultural.

A reflexão de Panikkar sobre interculturalidade, mesmo sendo “uma reflexão filosófica”, é um trabalho de teologia da libertação. Ali, ele denuncia a falácia do que, em geral, se chama de multiculturalismo e legitima a colonização . Além de denunciar a opressão como faria um bom teólogo da libertação, ele trabalha a questão da interculturalidade para aprofundar o caminho da paz, no sentido de aliança de justiça, comunhão humana e com todos os seres vivos. Ele faz isso a partir de sua cultura que liga Ocidente e Oriente. A conclusão do livro é o capítulo no qual ele descreve nove sutras sobre a paz.

3 – Para continuar o caminho

A intuição fundamental da Teologia da Libertação é ligar a fé e a espiritualidade com o compromisso de transformação do mundo e de cada pessoa. Embora isso se realize a partir da prática, sem dúvida, uma reflexão como a de Panikkar, em seu livro “El espíritu de la Política – Homo Políticus" propicia um aprofundamento da questão. Ali, diferentemente de nossas abordagens marcadas pela urgência do aqui e agora, ele toca na profundidade da natureza humana e vocação universal e comunitária do ser humano. Este livro é um bom instrumento para a elaboração de uma Teologia mundial da Libertação, desenvolvida nos três fóruns de Teologia e Libertação, ocorridos no contexto do Fórum Social Mundial e cuja quarta sessão se está preparando para Dakar (janeiro de 2011).

Atualmente, um desafio da Teologia da Libertação será a volta às bases. Além disso, de todos os cantos, vem o apelo por um maior aprofundamento de uma espiritualidade popular, laica, pluralista e libertadora. Na América Latina, chamamos isso de “espiritualidade macro-ecumênica”. Panikkar afirma: “a experiência religiosa ou mística, da qual somos conscientes, através da sensibilidade, da inteligência e do espírito, é o resultado de muitos fatores: experiência pessoal, linguagem, memória, interpretação, recepção e atualização. É a mais profunda experiência humana em sua plenitude irredutível”.

Nos anos 80, o livro de PanikkarL´Éloge du Simple” (Aubier, 1985) me marcou profundamente, certamente porque sou monge e, desde minha juventude, acredito no que, na Idade Média, dizia o abade Santo Estêvão de Muret: “toda pessoa que busca a unidade interior é monge ou monja”. E justamente nos anos 80, eu procurava organizar um mosteiro beneditino aberto a leigos e leigas, ecumênico e no qual a vida monástica fosse uma forma de viver a vocação humana naquilo que ela tem de transcendente e de amorosidade. Em seu livro, Panikkar insiste nesta dimensão universal da monasticidade como busca de unidade presente no coração de toda pessoa. A relação disso com a Teologia e a Espiritualidade da Libertação é que ele mostra como esta construção interior e íntima se realiza sempre no compromisso com os outros e em um contexto de algum modo comunitário.

Atribui-se a Eduardo de Filipo a afirmação: “O homem nasce velho e morre criança”. Este processo se dá pelo amadurecimento de uma espiritualidade que poderíamos chamar de humana e crística. Quem conheceu de perto Hélder Câmara e Raimon Panikkar pode testemunhar que ambos, apesar de aspectos frágeis e mesmo de suas contradições humanas, viveram isso profundamente. Neste sentido percorreram o caminho da libertação interior e das instituições mundanas e eclesiásticas, como processo de simplificação e mesmo de infância espiritual.

Acreditamos ser possível retomar o sopro profético de um novo mundo e uma nova espiritualidade possível. Fortalecidos pela herança espiritual de homens como Hélder Câmara e de Raimon Panikkar poderemos reinventar o caminho. Em uma conferência em Madrid, Panikkar contava: “Um pai da Igreja, um dos Gregórios, põe na boca de Abraão a seguinte reflexão: “Com minha família e os rebanhos, deixei Ur, na Caldéia, abandonei casa e tudo o mais, mas eu tinha dúvidas. Agora estou seguro de que a voz que me chamou era mesmo a voz do Senhor e tenho certeza disso porque não sei aonde vou”. Panikkar prossegue: “Se sabemos onde vamos, ao céu, ao inferno, a Deus ou ao Nada, ao Nirvana, não podemos ter uma espiritualidade realmente nova. Quem não recria a cada instante a sua vida, não refaz a cada momento a sua espiritualidade, quem não se deixa absorver pela realidade e não a recria com os meios que ela lhe oferece para ser realmente livre, de que espiritualidade está falando? O Espírito faz novas todas as coisas e sopra onde, quando e como quer”.