29/03/2011

Morre José Comblin

Fonte: UNISINOS

José Comblin morreu nesta madrugada, em Salvador, na Bahia, aos 88 anos.

Padre Comblin estava hospedado na comunidade Recanto da Transfiguração, em Simões Filho (BA), em tratamento de saúde, quando sofreu um ataque cardíaco. Foi encontrado morto, sentado, em seu quarto, quando era esperado para a oração da manhã e não apareceu na capela. Ele tinha problemas cardíacos e usava marcapasso. Apesar da doença, parecia bem disposto e estava trabalhando.

Ele nasceu no dia 22 de março de 1923, na Bélgica. Desde 1958 trabalhava no Brasil, especialmente em Pernambuco, na Paraíba e na Bahia.

Ele veio para o Brasil em 1958, atendendo a apelo do papa Pio XII, que no documento Fidei donum (O Dom da Fé) pedia missionários voluntários para regiões com falta de sacerdotes.

Depois de trabalhar em Campinas e, em seguida, passar uma temporada no Chile, foi para Pernambuco, em 1964, quando d. Helder Câmara foi nomeado arcebispo de Olinda e Recife. Perseguido pelo regime militar, foi detido e deportado, em 1972, ao desembarcar no aeroporto de volta de uma viagem à Europa.





Ele foi um dos importantes assessores de D. Hélder Câmara e um dos maiores teólogos em atividade no Brasil. Deixa uma vasta e importante obra teológica.




Comblin esteve aqui no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, participando do Ciclo de Estudos De Medellín a Aparecida: marcos, trajetórias e perspectivas da Igreja Latino-Americana que celebrou os 40 anos da realização da Assembleia Geral do Episcopado Latino-Americano em Medellín. Ele foi um dos assessores deste grande evento da Igreja latino-americana.

A conferência proferida naquela ocasião, foi publicada nos Cadernos Teologia Pública, no. 36.

Neste evento, também foi exibido o belo documentário Hélder Câmara. Um santo rebelde. Após a exibição do filme, padre Comblin, um dos entrevistados pela diretora do documentário, comentou o filme, questionando o título ’santo rebelde’. Segundo Comblin, D. Hélder era santo, mas não rebelde.

Na oportunidade, em 2008, muito disposto, concedeu uma longa entrevista sobre a sua trajetória de vida. A entrevista foi publicada pela revista IHU On-Line. A entrevista pode ser acessada aqui.

José Comblin participou do primeiro grupo da Teologia da Libertação. Esteve na raiz das equipes de formação de seminaristas no campo em Pernambuco e na Paraíba (1969), do seminário rural de Talca, no Chile (1978) e, depois, na Paraíba, em Serra Redonda (1981). Estas iniciativas deram origem à chamada Teologia da enxada.

Além disso, esteve na origem da criação dos Missionários do Campo (1981), das Missionárias do Meio Popular (1986), dos Missionários formados em Juazeiro da Bahia (1989), na Paraíba (1994) e em Tocantins (1997).

É autor de inúmeros livros, dentre eles A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978). 

08/03/2011

Monge Enzo Bianchi

Uma eremita incômoda, amável e incisiva

Artigo do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, publicado no jornal La Stampa, 05-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


A publicação, a poucas semanas da morte de Adriana Zarri, do seu Un eremo non è un guscio di lumaca [Um ermitério não é uma concha de caracol] (Ed. Einaudi) é a ocasião para fazer memória dessa cristã incômoda, que soube fazer da sua própria existência uma voz aguda e clara na Igreja dos últimos 60 anos.

Tendo mantido com ela muitos intercâmbios, principalmente nos anos 60 e no início dos anos 80 do século passado, desejo testemunhar sobretudo a sua qualidade de mulher cristã que soube viver a pobreza evangélica em uma vida sóbria, sem luxo nem acúmulo de bens. Para sustentar-se, sempre se confiou ao seu trabalho – que certamente não lhe permitia confortos – e à amizade de quem lhe ajudava na gratuidade a manter a sua casa bela e acolhedora.

A sua existência foi a de uma "eremita" ainda antes de obter uma residência solitária: a sua incapacidade de viver em uma comunidade vinha-lhe de um caráter de grande autonomia, de uma distinta singularidade que tornavam difícil a convivência cotidiana. Quando, no início dos anos 70, esboçou uma tentativa de vida comum com um padre de profunda espiritualidade e profecia, a ideia naufragou antes ainda de tomar forma.

Simplesmente, a solidão era necessária a Adriana, para "viver dentro", segundo as suas palavras, para ser ela mesma no face a face com Deus e com o mundo: a solidão era o seu modo de se sentir em comunhão com os outros.

Nos longos anos que viveu não longe do meu mosteiro – em Albiano primeiro e depois em Crotte –, não faltaram as ocasiões de encontro das quais surgiam a sua paixão para uma Igreja fiel ao Evangelho e a sua lucidez crítica. Não nego que, mesmo nutrindo um grande respeito pela sua qualidade cristã, não compartilhei muitas das suas posições, e a franqueza recíproca nos levou também a trocas verdadeiramente vivazes.

Era principalmente a diferente sensibilidade eclesial que provocava atritos: o nosso modo de viver na Igreja e de criticar a não evangelicidade de cristãos e de instituições tinham timbres e acentos às vezes profundamente dissonantes. A consciência da sua "anomalia" de ser mulher e teóloga a levava a expressar instâncias às vezes polêmicas, como os seus amados gatos, outras vezes meigas, como um fio de erva; levava-a a batalhas de vanguarda e a saída inoportunas. Mas a sua vida e a sua pessoas, tão ricas de inteligência e de sensibilidade cristã autêntica, merecem um grande respeito e uma escuta livre de preconceitos.

Costumou-se celebrar as pessoas mortas só com elogios quando se compartilha tudo o que fizeram e disseram. Senão, prefere-se o silêncio. Acredito, ao contrário, que a Igreja é uma comunidade plural e que os caminhos para viver o Evangelho em seu interior são diferentes: o que me leva ao silêncio não são, portanto, as divergências ou as posições que eu sinto como contraditórias às minhas, mas sim as atitudes de quem não se protege do "fermento dos fariseus", a hipocrisia.

Desse fermento, Adriana Zarri sempre se afastou, e por isso faço memória dela com muito gosto! O seu livro, que às páginas mais antigas acrescentou outras, não menos ásperas e críticas, contem todo o mundo de Adriana, as suas expectativas e as suas desilusões, a indignação e as esperanças... Justamente por isso, revela ainda hoje uma alma que sempre aspirou a ser cristã e desejou uma Igreja digna do seu Senhor.

[grifos do blog]

Louis A. Ruprecht Jr.

Aos 96 anos, morre o confessor de Thomas Merton

Artigo de Louis A. Ruprecht Jr., professor da cátedra William M. Suttles de Estudos Religiosos da Georgia State University, em Atlanta, nos EUA, e pesquisador visitante da cátedra Stanley J. Seeger do Programa de Estudos Helênicos da Universidade de Princeton, publicado no sítio Religion Dispatches, 24-02-2011, com tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


"Louis disse a Delia: 'Essa é a parte triste da vida.
As pessoas sempre vão embora enquanto outras chegam'. Os anjos a reservaram."
Josh Ritter, em Bloodbath Folk


"As pessoas sempre vão embora enquanto outras chegam". Essa é a frase que, de repente, me veio à mente quando eu soube que o Padre Matthew Kelty deixou este mundo em paz, ao meio-dia do dia 18 de fevereiro. Essa é uma grande perda para aqueles dentre nós que chegaram recentemente, e nem tão recentemente, e eu queria tentar explicar porque eu penso isso. Esse notável monge passou 50 anos dentro e fora da Abadia de Gethsemani, no Kentucky, onde ele havia sido o último confessor que Thomas Merton teve. E, como se isso não bastasse para garantir uma discussão mais aprofundada, ele também era um padre gay que "saiu do armário" em um de seus ensaios mais eloquentes na maturidade dos 90 anos. Não veremos novamente tipos de monges como esse tão cedo.

A história do Pe. Matthew não é tão conhecida como merece ser, em grande parte porque sua história foi tão profundamente entrelaçada com a história de Thomas Merton (1915-1968), sem dúvida o monge mais famoso que a Abadia de Gethsemani e o catolicismo norte-americano já produziram.

O Pe. Matthew não era nem famoso nem se autopromovia, e é isso que torna tão eloquentes e tão dignos da nossa audiência os traços líricos das notas que ele produziu.

Ambos me parecem ser agora o produto de uma era e de um tempo diferentes e, mais especificamente, ambos eram o resultado de uma forma diferente de habitar o tempo – uma forma monástica, poética e, finalmente, bastante silenciosa. Ambos cresceram nos Estados Unidos do pós-guerra, e ambos estavam intimamente envolvidos na vasta experiência do pensamento cultural que associamos com os anos 60: as tentativas de reimaginar raça, sexo, nação e religião. Precisamos de suas vozes e precisamos nos lembrar da existência de tais vozes contra a cacofonia cultural de fundo dos nossos dias.

Kelty via Merton

Acho que vou estar em consonância com a quieta humildade do Pe. Matthew Kelty se usar Thomas Merton para ajudar a contar a sua história – Merton, o talentoso escritor e adepto espiritual que foi responsável, dentre outras coisas, pela introdução de um público norte-americano para as formas novas e mais místicas de imaginar o evangelho cristão, para o significado do monaquismo e do silêncio, para a profunda relação entre criatividade artística e vida espiritual, para a necessidade do pacifismo em um mundo em guerra, e até mesmo para as virtudes e as sutilezas do Zen budismo.

O início da vida de Merton não foi fácil. Seus pais, ambos artistas, estavam vivendo na França quando Thomas Merton nasceu. Forçado a fugir da violência iminente da Primeira Guerra Mundial, eles navegaram para Nova York e se estabeleceram em Long Island, onde sobreviveram durante a Grande Guerra com sua família ampliada. A mãe de Merton morreu em 1921, quando ele tinha apenas seis anos de idade. Seu pai o abandonou no ano seguinte, em busca de um romance improvável.

O jovem homem precoce se instalou em uma escola francesa por alguns anos, voltando a viver com seu pai até que o artista faleceu, três anos depois, devido a um tumor cerebral. Merton tinha apenas 16 anos quando ficou órfão. Ele viajou extensivamente pela Europa, vagou durante algum tempo, e então passou dois anos no Clare College, em Cambridge, antes de se transferir para a Universidade de Columbia, onde se graduou em 1938 com uma licenciatura em língua inglesa.

Embora as sementes para isso foram claramente plantadas em 1933, quando ele fez uma visita decisiva a Roma, Thomas Merton, um pouco surpreendentemente, se converteu ao catolicismo romano em novembro de 1938. Menos de dois anos depois, durante a época da Páscoa de 1941, ele fez um retiro na Abadia de Nossa Senhora do Gethsemani, no Kentucky, um refúgio beneditino de vários andares, fundado em 1846 e situado em um vale deslumbrante a menos de 20 milhas da casa natal e da fazenda da infância de Abraham Lincoln. Merton foi aceito como peticionário na Abadia de Gethsemani em dezembro do mesmo ano.

Assumindo o nome de Padre Louis e os necessários votos trapistas de obediência silenciosa, Merton colocou sua voz surpreendente e seus vastos poderes artísticos na imprensa, tornando-se assim o mais público dos eremitas e o mais prolífico escritor que o catolicismo norte-americano já produziu. Mas Merton estava sempre inquieto, agitado. Nunca estava – não se pode deixar de sentir – muito contente. Ele pensava na ideia de deixar Gethsemani e, eventualmente, deixar também a vida monástica, não muito tempo depois de ser arrebatado por um caso amoroso com uma enfermeira local de 25 anos, Margie Smith. O caráter dessa jovem fica claro a partir de um único detalhe que o Pe. Matthew me transmitiu: nas longas décadas posteriores à morte de Merton, ela nunca disse uma palavra pública sobre o seu relacionamento. Havia um brilho em seus olhos quando ele disse isso.

Tendo sido proibido de manter um contato maior com a sua amante, Merton recebeu a permissão de deixar a abadia para uma viagem ao Extremo Oriente na primavera de 1968. Seu principal objetivo era dar uma palestra em Bangkok sobre monaquismo e misticismo comparativo, mas havia muito mais nessa viagem do que isso, como revelam os seus diários publicados hoje. Ele explorou uma grande variedade de possíveis novos eremitérios ao longo do caminho, teve várias audiências com Sua Santidade o Dalai Lama e visitou as monumentais estátuas budistas no Sri Lanka – elas seriam a inspiração para o que viria a ser a sua visão artística e mística final. Então, quase tão misteriosamente quanto aquele sorriso de Buda, Merton foi embora.

Claramente exausto, ele teve um desempenho bastante pobre em Bangkok e, então, antes de se retirar ao seu quarto para tirar uma soneca, ele expressou o que viriam a ser as suas últimas palavras públicas: "Agora eu vou desaparecer". Ele voltou ao seu quarto e morreu eletrocutado durante seu banho. Seu corpo foi enviado aos Estados Unidos em um avião de carga que transportava as baixas norte-americanas da guerra nessa mesma região – da qual ele tinha sido um crítico especialmente direto e eloquente. O Pe. Louis foi enterrado em uma sepultura simples ao lado do mosteiro, com vista para as colinas que ele versejava tão comoventemente em muitos de seus melhores livros.

Um amigo e colega

O monge que atuou como confessor de Merton nesses anos finais e tumultuosos em Gethsemani era um colega monge da sua mesma idade: o Pe. Matthew Kelty.

O Pe. Matthew sabia que algo estava acontecendo com o seu conturbado amigo e manifestou o sentimento profundo de que, no dia da sua partida, quando o Pe. Louis optou por se afastar do mosteiro nas primeiras horas da manhã sem dizer adeus a ninguém, ele provavelmente não veria o seu amigo de novo. E ele não veria, é claro. "Essa é a parte triste da vida".

Esse detalhe capta muito bem a graça silenciosa e tolerante do Pe. Matthew Kelty e o serviço que ele ofereceu durante todas as longas quatro décadas sem Merton. Ele entendeu muitas coisas sobre esse homem, especialmente as atitudes e os comportamentos que ele não necessariamente compartilhava. Ele nunca precisou fazer amizades nem cultivar colegas de trabalho, preferindo permitir que os outros se tornassem imagens mais puras de si mesmos, sem pressioná-los à idolatria de sua própria imagem.
Ao lidar com um amigo e companheiro, cujo espírito era muito mais conturbado e muito mais discordante do que o seu, o Pe. Matthew apenas ouvia, meditava, rezava e nunca deixava de oferecer uma palavra oportuna de conforto. Ele era dono de si e conhecia a sua própria mente, mas, a partir dessa silenciosa calma e firmeza de propósito, ele era capaz de analisar um mundo mais amplo e mais instável de formas humanas.

Nascido e batizado como Charles Richard Kelty Jr., em South Boston (em 1915, assim como Merton), seus pais não eram artistas. Seu pai era um engenheiro e maquinista de Nova Jersey. Ele foi sem dúvida o mais precoce dos seus três irmãos. Foi educado em escolas públicas de Milton, Massachusetts, onde, por sua própria confissão, adquiriu o seu vitalício gosto pela poesia.

Em outras palavras, ao contrário de Merton, a arte não se insinuou a ele. Ele se aproximou dela e tomou gosto dela naturalmente. Ao ver o currículo monástico do Pe. Matthew, não podemos deixar de ficar impressionados com o estranho contraste entre esses dois homens – a energia impaciente e a profunda infelicidade do Pe. Louis, e o fácil contentamento e a graça silenciosa do Pe. Matthew.

Mas o Pe. Matthew conhecia um verdadeiro poeta quando via um, e deu a Merton uma amizade e uma compreensão favorável, das quais que não se pode deixar de sentir uma necessidade desesperada em seus últimos anos.

Santos e discípulos

O Pe. Matthew era assim: seu próprio espírito parecia brilhar mais intensamente em seu próprio ambiente. Não existem santos sem seus discípulos mais verdadeiros, nem poetas sem seus leitores honestos.

Charles Kelty estudou no Seminário da Sociedade do Verbo Divino - SVD em Techny, Illinois, e foi ordenado sacerdote, assumindo o nome de Matthew, em agosto de 1946. Mas ele serviu à Igreja de muitas outras formas ao longo dos próximos 15 anos, antes de ir para Gethsemani.

Primeiro, ele serviu nas missões dos padres verbitas em Papua Nova Guiné (1947-1951), depois voltou para a sede da SVD em Techny, Illinois (1951-1960). Ele foi aceito para a comunidade da Abadia de Gethsemani em fevereiro de 1960 e fez os votos de Obediência Estrita em 1962.

Em uma reviravolta curiosa e até mesmo poética, o Pe. Louis foi designado para ser o diretor espiritual dos novos iniciados em 1960, e por isso teve uma influência direta sobre a consequente adoção do Pe. Matthew das restrições da abadia. Esse aspecto de entrelaçamento de suas vidas monásticas é curioso: Louis chega cedo, Matthew chega tarde; Louis sai mais cedo, Matthew fica por mais tempo.

"As pessoas sempre vão embora enquanto outras chegam"

O que o Pe. Matthew recordava de sua primeira formação monástica era a maneira que Merton incentivava os novos monges a encontrar suas próprias formas de expressão artística, sob qualquer forma, assim como ele próprio havia encontrado na palavra escrita. A criatividade – espiritual e outras – deveria ser a palavra de ordem em Gethsemani. E até mesmo uma passada rápida hoje na loja da abadia demonstra como muitos dos monges assumiram o chamado de Merton à criatividade nas artes visual e escrita.

O Pe. Matthew Kelty não foi uma exceção, embora tenha alcançado a sua criatividade mais lentamente do que a maioria. Como Merton, ele deixou Gethsemani por um tempo. Ao contrário de Merton, ele sempre teve a intenção de voltar. Ele passou três anos (1970-1973) junto a uma pequena comunidade cistercense em Oxford, na Carolina do Norte, e depois mais nove anos (1973-1982) novamente em Papua Nova Guiné como um solitário. Depois, voltou para casa, em Gethsemani.

Foi aí que a sua vida se tornou a sua obra-prima. O Pe. Matthew voltou-se para o ofício da homilia dominical, muitas das quais ele filmou e postou online no final de sua vida (disponíveis aqui, em inglês). Sua maneira de celebrar a Eucaristia era justamente isto: uma celebração ritual, um evento teatral cuja gravidade artística nunca estava longe do seu desejo. Elas estão entre as suas criações artísticas semanais mais emocionantes.

Mas o Pe. Matthew Kelty também se voltou para a palavra escrita. Sua correspondência pessoal tem a qualidade de um poema, em que as palavras descobrem uma delicadeza que às vezes não tinham nas mãos menos calejadas de Merton. O Pe. Matthew também escreveu um livro. Mas as suas razões para fazê-lo foram muito menos pessoais do que as de Merton. Elas foram, na falta de um termo melhor, políticas. O Pe. Matthew Kelty publicou uma coleção de homilias e de ensaios espiritual intitulada My Song is of Mercy (editada por Michael Downey) em 1994.

"Sexo não é problema. O amor é que é"

O trecho mais surpreendente e um dos mais comoventes nesse livro o epílogo, intitulado O celibato e o dom dos gays. O Pe. Matthew Kelty decidiu, em antecipação ao seu 90º aniversário, "tirar do armário" a sua própria personalidade monástica e, assim, tentar descrever que dons os cristãos gays e lésbicas têm para contribuir com a complexa tapeçaria da comunhão cristã.

Ele fez isso porque sentiu uma responsabilidade para com os "menores dentre nós", que não estavam percorrendo um caminho de aceitação como muitos esperavam no final dos anos 60 e no início dos anos 70. Mas também é possível ouvir mais do que um sutil eco a partir do que Matthew aprendeu com o tormento heterossexual de Merton.

Continua sendo verdade que, dado o nosso clima nacional, vai demorar um pouco para deixar o amor livre. E, depois, para deixar o amor crescer, mais profundamente, mais grandemente, mais amplamente. (...)
É por isso que tantos heterossexuais abandonam o celibato depois de uma década ou duas: eles não conseguem lidar com ele: eles precisam de uma mulher externa para despertar o 'eu' interior, especialmente em nossa cultura. Talvez, com um 'eu' menos dividido, eles sejam melhores...
E como aqueles que tendem a se inquietar vão se inquietar aqui com relação ao sexo, a resposta é simples: o sexo não é problema. O amor é que é. Onde não há amor, você pode esperar que o sexo surja. Todos os homens querem amor, também os celibatários. O sexo pode ser uma forma de amar, mas é absurdo dizer: não sexo é não amor, tão absurdo quanto dizer que sexo é amor.

Um sacerdócio e comunidade celibatários são uma graça para a Igreja, uma música do Reino (onde não haverá casamento, mas todos serão como um todo) e uma alegria para todos os que nele estão. Não há ninguém mais chamado a isso, mais capaz disso, mais criado para isso do que as pessoas que chamamos de gays. Eles iniciam, desde o primeiro dia, um processo de integração que os outros não têm sequer ideia antes dos 40 anos. Abençoados sejam! (My Song is of Mercy, p.258-259).

Em suma, ele escreveu para outros, nunca para si mesmo. Mesmo nesta, a mais pessoal das confissões espirituais, o assunto não foi o Pe. Matthew. Foi a humanidade, o mundo, a Igreja, o seu abraço compassivo, surpreendente e envolvente da Criação, da qual ele via a si mesmo como uma parte indelével.
Merton fez um forte lobby para obter a permissão de viver levemente distante de sua comunidade, em um pequeno eremitério na subida da colina a partir de Gethsemani – alguns monges se ressentiriam pelo fato de que a súplica especial e o tratamento especial de Merton eram inevitáveis. Mas o Pe. Matthew nunca fez isso. Ao invés disso, ele creditou a Merton o fato de que o seu pensamento e o de seus colegas monges se voltaram para os valores centrais do misticismo e da solidão. Só dessa forma é que o monge pode encontrar o amor divino em que o celibato faz sentido.

Lembremo-nos da visão central que tornou possível a sua própria vida monástica: "O sexo não é problema. O amor é que é". Essa foi, sem dúvida, a sua percepção mais distintiva, que ele não deve a Merton (salvo como um contraexemplo), mas que era totalmente do próprio Matthew.

A questão do celibato é discutida frequentemente em um nível muito superficial, e certamente isso acontece quando o nível místico é posto de lado. Fazer isso é reduzir o celibato a um ato de coragem que [...] pode terminar apenas arruinando a pessoa. O celibato sem um caso de amor profundo é um desastre. Não é nem mesmo celibato. É só não estar casado. E o mundo já tem o suficiente dessas pessoas, casadas ou não.
O sexo não é problema. O amor é que é. Por isso, o celibato é perversamente mal interpretado se for imaginado como uma vida não casada sem sexo. Isso apenas reinscreve as obsessões sexuais dos nossos dias.

O celibato é um caso de amor – um caso de amor com Deus. É isto o que se apreende do Pe. Matthew: o seu amor tranquilo, embora às vezes avassalador, por Deus. Ele foi infundido com ele, e brotava dele em cada homilia, em cada carta, em cada olhar sorridente.

Sua oração mais comum era uma oração pela paz. Sua orientação espiritual fundamental era para a eterna misericórdia, misericórdia que ele cantou como uma canção e viveu como um caso de amor. E, assim como o catolicismo norte-americano continua repensando a sua relação com Roma e o seu futuro cultural em tempos de ataque, é ainda mais importante lembrarmos que vozes como a do Pe. Matthew existiram na Igreja.