12/09/2011

Antonio Cechin

Duzentas igrejas à venda como mercadorias comuns na Alemanha. Um escândalo mais, ou um grande sinal dos tempos? 
 
 
Artigo de Antonio Cechin, irmão marista, miltante dos movimentos sociais, autor do livro  Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: Estef, 2010.
Fonte: UNISINOS


Nada se parece tanto com um edifício em construção quanto um edifício em demolição!” (Tristão de Ataíde). Parafraseando Tristão, a fim de entendimento mais fácil, imediato e com mais força de expressão, podemos nós dizer: “Nada se parece tanto com um por de sol, quanto um nascer do sol. Só que um anuncia as trevas e o outro anuncia a luz!”

Esbarramos com uma pessoa amiga, muito religiosa, freira, escandalizada grau máximo à notícia dada com palavras e fotos na TV, de igrejas da Alemanha, lindas de morrer, transformadas em farmácias, mercados, bibliotecas, bares, etc. São nada menos de duzentas fechadas por absoluta falta de freqüentadores, à espera de talvez idêntico destino, complementara a notícia.

O dicionário Aurélio, no verbete escândalo registra os seguintes significados: 1) aquilo que é causa de erro e pecado. 2) aquilo que resulta de erro ou pecado. 3) Indignação provocada por um mau exemplo. 4) Desordem, tumulto, cena, alvoroço, escarcéu. 5) Grave acontecimento que abala a opinião pública. 6) Fato imoral, revoltante.

De outro lado, o dicionário bíblico de Jean Jacques von Allmen (Edições Delachaux & Niestlé) à expressão “sinal dos tempos” dá a seguinte explicação: o sinal dos tempos,  cuja forma exterior pode não apresentar nada de extraordinário, tem uma dupla finalidade: 1) anunciar aquilo que vai acontecer, isto é, constitui não raro uma antecipação de um mundo novo; 2) proclamar, revelar aquilo que está em ação desde já e agora neste mundo: atraindo a atenção sobre Jesus de Nazaré, o sinal dos tempos lembra que Deus está em ação nele e por Ele.

Então, no fato envolvendo as igrejas da Alemanha, trevas ou luz? Demolição ou construção? Escândalo ou admiração? Estamos diante de um dualismo, não de uma dualidade. No dualismo, a preposição que une os pólos é ou. Na dualidade, a preposição que liga os dois é e. Para desatar esse nó, nada melhor do andar por  sucessivas aproximações. O primeiro passo é a notícia em si.

Sabemos todos que a imprensa, no sistema capitalista em que vivemos, tanto a falada como a escrita, nos grandes meios de comunicação social, é muito mais dada a escândalos do que a boas notícias. Estas últimas são muito menos lucrativas do que as primeiras.. Por isso mesmo, em geral, as notícias consideradas sensacionais ou escandalosas, são anunciadas em grandes manchetes a fim de que ninguém as perca de vista. Normalmente só dizem meia verdade, ou então são dadas de maneira truncada, repletas de omissões. O normal dessa imprensa dos ricos ou do dinheiro, é dizer muitas mentiras que, para não aparecerem como tais, as escondem sob o véu de uma falsa verdade. Do contrário, de tanto dizer mentiras cruas e nuas, ninguém mais compraria o jornal ou escutaria a emissora de rádio ou ligaria a TV deles.

A uma pergunta das mais simples ao repórter que a transmitiu, atrapalharia imediatamente a possibilidade do sensacionalismo gerador de escândalo. No caso, a perguntinha intrigante poderia ser: o que foi feito com o dinheiro da venda das igrejas? Se se trata de um fiel cristão, que nem nós que amamos a Igreja Católica da Alemanha, a pergunta que não nos agüentaria calados, seria: Por acaso o fruto da venda das Igrejas não teria sidodestinado à construção de moradias para gente pobre, ou destinado aos milhões de seres humanos que estão morrendo de fome, no país da Somália, neste momento ou para qualquer uma das tantas finalidades beneficentes de gente pobre? Sem adquirirmos consciência crítica face aos grandes meios de comunicação social, estaremos como patinhos que engolem tudo o que vem pela frente.

Se já uma freira de tão escandalizada, gesticula com força e meneia a cabeça por todos os lados, imagine-se o efeito devastador de uma notícia dessas para o povão do Brasil que é considerado o maior país católico do planeta. Lembremos a grave condenação de Jesus:  “Ai de quem escandalizar a um só destes pequeninos! Antes lhe houvessem amarrado uma mó de moinho ao pescoço e o tivessem lançado ao fundo do mar!Esses pequeninos de Jesus, além das crianças, são as pessoas mais humildes. São estas exatamente as mais religiosas. Rico, em geral não tem fé nem religião. O deus dele é o dinheiro mesmo.

Por sinal, em jornal de maior circulação entre nós, do dia seis (06) deste mesmo mês de setembro, véspera do dia da pátria, o assunto liberdade de imprensa é o maior em destaque. O motivo é a reunião realizada em Brasília pelo Partido dos Trabalhadores, em cuja convenção nacional foi proposta a luta, começada ainda no governo Lula, para a criação de um marco regulatório da imprensa no Brasil. Nas duas horas de reportagem oral da maior emissora de rádio, no mesmo dia 6, conduzida pelo mais tradicional repórter, às 14 horas, foi lido um manifesto da mais importante rede de comunicação do estado, contra a tentativa do petismo de introduzir censura de imprensa, proclamando que jamais como hoje, no Brasil, gozamos de tanta democracia como agora, por causa da liberdade de imprensa que existe. De repente começa-se  a conspirar contra nossa modernidade como país.

Não existe ainda nem projeto acabado do marco regulatório e a comunicação burguesa já estrila. Aqui, de novo poderíamos perguntar a esses poderes da informação: Será que existe mesmo imprensa democrática no Brasil, quando se dá uma notícia causadora de tanto impacto em gente religiosa católica do país, sem informar detalhes sobre o fato? Quem lhes poderia dar com autoridade todos os detalhes, é a própria Igreja da Alemanha. Onde fica o respeito para com os pequeninos, maioria absoluta da população brasileira? Qualquer deslize em questão de sagrado, os machuca até o fundo do coração, pois religião como tudo o que se refere ao sagrado, são seus temas mais queridos.

No Brasil, todas as gerações do pós-guerra de 1939 a 1945, imediatamente depois das grandes destruições e mortes que a Alemanha sofreu, sem descurar a massa das vítimas dos bombardeios, nossos irmãos na fé, daquele país nórdico, começaram a nos enviar carradas de recursos para evangelização e para socorro dos mais pobres, para habitação, saúde, saneamento, educação, organização de Movimentos Populares, etc. etc. Quem é que tanto no Brasil como em toda a América Latina nunca ouviu falar em Adveniat, Caritas e Misereor, para só nomear três das maiores agências financiadoras de projetos sociais e de evangelização para todos os países latinoamericanos?

Não acreditamos que uma Alemanha tão católica e tão fraterna, amicíssima dos pobres e tão amiga do continente latino americano com nossas Cebs, nossa catequese libertadora, nossa teologia da libertação, tenha vendido igrejas fechadas durante muitos anos devido à diminuição de fiéis e tenha depositado o dinheiro com vistas à capitalização e para benesses aos ricos. Será que uma imprensa burguesa que desrespeita os valores dos pequeninos, pode ser considerada democrática e verdadeiramente livre?

Para além da própria notícia em si, há outros aspectos de fundo, iluminadores da situação em que se encontram os templos cristãos da Alemanha. Se tivermos um mínimo de visão histórica global de Antigo e Novo Testamento na Bíblia, o tema da igreja enquanto edificação, enquanto casa do povo de Deus, sofreu toda uma evolução. Senão vejamos:

No Antigo Testamento, quando por meio de Moisés, Deus libertou o povo eleito, também quis caminhar à  frente`dele, através do deserto. Foram 40 anos de nomadismo, vivendo em tendas. Agradecido ao Senhor Deus Libertador, o povo ergueu-lhe também uma tenda maior, onde pudesse reunir o máximo de pessoas para rezar, cantar e celebrar os ritos religiosos.

Mais tarde, num segundo período, quando de nômade o povo se tornou sedentário e construtor de casas de pedra para cada uma das famílias, pensou imediatamente em providenciar uma grande Casa de Deus, de pedra como todas as moradias. Está aí a origem do grande templo de Jerusalém, referência central de toda a vida e história do povo judeu. O próprio Homem-Deus, Jesus de Nazaré, quando completou a idade de 12 anos, começou a freqüentar o templo. Quando soube da morte de João Batista, Jesus iniciou a sua pregação sobre o Projeto a que fora enviado: O Reino de Deus. O local escolhido não era nem o templo que eram as “igrejas” do povo judeu. Preferiu casas de algum de seus discípulos e ao ar livre, junto à  Natureza como a grande Casa que o Pai Criador construiu para toda a humanidade. Seu cenário de culto e pregação eram os montes, como o das bem-aventuranças e o Tabor; dentro de barcos, à beira da praia; nas estradas e praças; em meio a plantações de trigo, embaixo de copas de árvores. Quando Jesus queria explicar algo de difícil entendimento para as pessoas como o Reino de Deus, usava coisas simples da vida quotidiana – sementes, aves, trigo, arbustos, árvores.

Num determinado momento de sua vida, do alto de uma colina de  onde podia divisar a majestade e a beleza das edificações da cidade de Jerusalém, entre as quais erguia-se o majestoso templo, Jesus chorou. Enxugando as lágrimas, balbuciava as palavras: “Jerusalém, Jerusalém, assim como a galinha acolhe os pintinhos debaixo das asas, assim eu quis fazer com os teus filhos. Porém tu não o quiseste. Virão dias em que os inimigos te cercarão por todos os lados. De ti não sobrará pedra sobre pedra.” Com tais palavras, Jesus profetizou o fim do templo.

No centro da pregação de Jesus estava o Reino de Deus, o seu projeto para a humanidade. Apontava para um Mundo Novo. Questionado por um popular intrigado pela pendenga entre judeus e palestinos em relação ao lugar em que se deveria prestar culto ao Deus verdadeiro, perguntou a Jesus se no monte Sião onde estava o templo de Jerusalém, conforme afirmavam os judeus, ou se no monte Garizim como insistiam os samaritanos. O Mestre respondeu: “Virá um tempo em que não se adorará mais nem no templo de Jerusalém, nem no templo do monte Garizim, mas se adorará a Deus em espírito e verdade”. Jesus passou por cima de um templo como edificação. Deu destaque mais a lugares da natureza, a montes mais do que a templos.

Após a morte e a ressurreição de Jesus, quando os apóstolos, a seu exemplo começaram a anunciar o Reino de Deus, foi desencadeada uma grande perseguição contra todos os que acreditassem na Boa Nova. Em pouco tempo a perseguição se estendeu por toda a Terra Santa para alcançar todos os demais países do entorno. Acuados, os cristãos celebravam sua fé nas próprias casas que viraram possíveis lugares para o culto.

Na cidade de Roma onde a perseguição dos imperadores foi mais feroz, além de terem sempre as casas como igrejas domésticas reunindo vizinhos,  os cristãos começaram a celebrar a Missa e os sacramentos nas catacumbas, galerias subterrâneas que funcionavam como cemitérios. Tinham aí a vantagem de estar junto aos seus queridos mártires sobre cujos túmulos, transformados em altares, consagravam o pão e o vinho eucarísticos.

No ano 476, o imperador Constantino, convertido ao cristianismo, deu a mais ampla liberdade aos cristãos para celebrarem seus cultos e devoções. Os lugares que reuniam maior quantidade de pessoas eram os mercados. Passou-se então a fazer as celebrações religiosas nos mercados, chamados basílicas. Tais basílicas ou mercados foram sendo sempre mais adaptados para atos religiosos, adornados de acordo com funções inteiramente novas ligadas ao sagrado. Acrescentaram-lhes torres para os sinos a fim de convocar os fiéis, lugar para os corais, pia batismal, sacristia, etc. etc. e aí estão elas em todo o mundo ocidental como as  grandes basílicas de hoje, também chamadas catedrais, herança da Idade Média, igrejas como estas que vimos na Alemanha, algumas das quais, retornando até à velha função de mercados.

O papa João XXIII a uma interrogação de jornalista norte-americano sobre o que desejava com o Concílio Vaticano II, levantou-se da cadeira em que estava sentado, foi até a janela do seu aposento, abriu-a e disse em italiano: Aria fresca nella Chiesa! Em português: Quero um vento fresco na Igreja, isto é, uma grande renovação nas estruturas da grande instituição.

Todos os que acompanhamos o Concílio Vaticano II, vivemos ares primaveris que provocaram na Igreja uma alegria só comparável a alegrias da mais linda estação do ano. Foram ventos de uma renovação que prometia uma igreja nova, a também fermentar um Mundo Novo.

Dom Hélder Câmara que iniciou a Igreja do Brasil na opção pelos pobres que, como um rastilho, se espalhou por toda a América Latina, em vez de encerrar o Concílio Vaticano na Igreja-Basílica de São Pedro em Roma, acompanhado de uns oitenta bispos do mundo inteiro, foi com eles celebrar o encerramento nas catacumbas, igrejas dos primeiros cristãos-mártires dos imperadores romanos. Esses bispos firmaram com Dom Hélder o Pacto das Catacumbas a fim de voltarem para suas dioceses e serem os iniciadores de uma Igreja de Pobres.

Dom Helder foi mais longe ainda. Deu a sugestão ao Papa Paulo VI de quem era grande amigo que entregasse o Vaticano e tudo que encerra em termos de catedral, capelas,  museus, bibliotecas, estátuas, quadros, etc. à Unesco, setor cultural  da Onu, com a justificativa que o grande acervo cultural reunido durante séculos e que pertence unicamente à Igreja, na realidade se trata de cultura criada pela humanidade inteira e não só da Igreja. O que é de toda a humanidade, à humanidade tem que retornar. Completou a insólita sugestão com o pedido que o Papa fosse morar no bairro pobre de Trastevere, não muito longe do Vaticano. Terminado o Concílio, Dom Hélder retornando ao Brasil para sua sede arquidiocesana de Olinda e Recife, estabeleceu residência na sacristia de uma Capelinha das periferias.

A Igreja Católica vive uma crise institucional considerada uma das maiores da história a ponto de haver um verdadeiro cisma entre o papado e a base que é o povo, isso no dizer do grande teólogo Hans Küng e confirmada por muitos outros teólogos e pastoralistas. Entre o clero problemas de pedofilia. A corrupção dos melhores é a pior do mundo, afirma um provérbio latino.

Crise interior, de fé, gera crise exterior na prática da fé, minando aos poucos toda a grande instituição. Daí que o esvaziamento das igrejas com i minúsculo, isto é dos edifícios sagrados nada mais é que um sinal dos tempos, através o próprio Deus nos fala através de fatos e fotos do cotidiano como este dos templos fechados e alugados, transformados até, alguns, verdadeiros “covis de ladrões” no sistema capitalista.  Para que edifícios de pedra, de um valor extraordinário em dinheiro, se no mundo há pedras vivas que são os pobres, aos milhões no mundo inteiro, passando fome, sem casa, doentes, etc.?

Deus está fazendo Sinal aos cristãos que em vez de templos de pedra os templos vivos que são as pessoas pobres sofrendo são muito mais importantes. Por isso vendam-se sempre montanhas de pedras decoradas por dentro e por fora enquanto houver pessoas pobres no mundo. O contrário, continuar  com igrejas sobrando nesta situação do mundo com tanta miséria é tentar a Deus, é contrariar a vontade de Deus. “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” dizia o Nazareno.

Historicamente, vivemos hoje tempos de decadência muito semelhante aos de São Francisco de Assis. Seus biógrafos nos relatam que o santo teve uma visão em que Jesus lhe falava: “Francisco, reconstrói a minha Igreja!” Num primeiro momento Francisco pensou tratar-se da reconstrução de uma pequena igreja de pedra em ruínas, a Porciúncula que em italiano quer dizer a pequena porção.

Na verdade, assim como Jesus Cristo trabalhara em duas dimensões: a da pequena comunidade e as multidões, isto é, o pequeno grupo dos 12 apóstolos que deveriam tornar-se fermento das massas, hoje o autêntico caminho da Igreja Católica é o de retorno às suas fontes, ao tempo de Cristo e dos Apóstolos. 

Este Novo modelo já está aí em ação no mundo latino-americano com suas pequenas Comunidades Eclesiais de Base que são também Comunidades Ecumênicas de Base, e em época de Mudanças Climáticas com sinais de fim de mundo, também de pequenas Comunidades Ecológicas de Base como são os coletivos de trabalho com catadores, os que com toda a força da profecia libertam o Planeta Terra do lixo que está sempre mais a vida florescer em plenitude.

Como é que, como cristãos, pedras vivas que devemos ser de uma Igreja ou Comunidade viva, podemos conviver com irmãos nossos como são os milhões de famintos da Somália, que como seres humanos iguais a nós são pedras vivas mas que morrem antes do tempo? Que fraternidade é essa?

Às três horas da tarde, hora em que Jesus crucificado expirou, o véu do templo de Jerusalém, rasgou-se de alto a baixo. Estavam totalmente superados os templos todos do povo de Deus com a morte do Deus Amor. Eis que um Novo projeto divino para a humanidade, o Reino de Deus que é também Reino da Humanidade a partir dos pobres, estava desencadeado.

Que se acabe com as igrejas mortas, quando a Igreja Viva na pessoas dos oprimidos e famintos está nas vascas da agonia! O Mestre de Nazaré canonizara Davi roubando os “Pães da Proposição” do templo por causa da fome de seus companheiros!... Olhos para ver e não ver, ouvidos para ouvir e não ouvir, é demasiado trágico!... Confundir construção com demolição?