Igreja e internet: uma relação de amor e ódio
Sbardelotto é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, na linha de pesquisa Midiatização e Processos Sociais. Atualmente, é coordenador do Escritório da Fundação Ética Mundial no Brasil (Stiftung Weltethos), um programa do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em São Leopoldo-RS. É bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.
Fonte: UNISINOS
IHU On-Line – Como a Igreja se posicionou diante das novas tecnologias e do uso da internet?
Moisés Sbardelotto – Pelo que temos visto especialmente nos últimos anos, a Igreja Católica tem mantido uma relação de “amor e ódio” com os meios de comunicação e particularmente com as mídias digitais, tendo estado no centro de inúmeras crises. Nesse processo de reviravolta sociocomunicacional, a Igreja ainda está tateando em busca de um reposicionamento institucional.
Em 2009, em um gesto histórico, o papa enviou uma carta a todos os bispos do mundo, na qual reconheceu que cometera um erro “comunicacional”. Referindo-se ao fato de não ter se informado anteriormente sobre um bispo ultratradicionalista recém reintegrado à Igreja que havia negado a existência das câmaras de gás durante o Holocausto, Bento XVI afirmou: “Disseram-me que o acompanhar com atenção as notícias ao nosso alcance na internet teria permitido chegar tempestivamente ao conhecimento do problema. Fica-me a lição de que, para o futuro, na Santa Sé, deveremos prestar mais atenção a esta fonte de notícias”. Ou seja, o papa assumiu que bastaria ter dado uma simples “googlada” para saber quem era esse bispo.
Em termos oficiais, no nível da alta esfera, o Vaticano tem publicado documentos que abordam a relação entre a Igreja e as mídias digitais, como, por exemplo, as mensagens por ocasião do Dia Mundial das Comunicações Sociais. A última, do dia 5 de junho de 2011, trata do tema “Verdade, anúncio e autenticidade de vida, na era digital”. Ou seja, essa nova ambiência é uma temática que interroga a Igreja, que se encontra tão enraizada na cultura escrita impressa e nos meios de comunicação de massa, recolhendo ainda os despojos do papado multimidiático de João Paulo II. Nessa mensagem, há um avanço quando se reconhece que “as novas tecnologias estão mudando não só o modo de comunicar, mas também a própria comunicação em si mesma, podendo-se afirmar que estamos perante uma ampla transformação cultural”.
Por outro lado, na mensagem, Bento XVI afirma que “como qualquer outro fruto do engenho humano”, as novas tecnologias da comunicação, se “usadas sabiamente, podem contribuir para satisfazer o desejo de sentido, verdade e unidade que permanece a aspiração mais profunda do ser humano”. Embora reconhecendo o alcance sociocultural das mídias digitais, a Igreja ainda se centra na questão do seu uso – que poderia ser, nesse entendimento, bom ou ruim (no final, o papa diz: “Convido sobretudo os jovens a fazerem bom uso da sua presença no areópago digital”).
A preocupação, no entanto, deveria ir muito além disso. A internet, embora sendo “fruto do engenho humano”, está ligada também a formas e práticas de vida intrínsecas a ela. Como analisa Gordon Graham, novidades tecnológicas como a internet não são positivas apenas por serem novas, nem negativas apenas por serem tecnológicas. Mas também não são neutras: nas mídias digitais online, por exemplo, põe-se de manifesto um determinado tipo de ser humano. Mesmo um “bom uso” traz consigo lógicas que são intrínsecas à técnica.
Para exemplificar, na semana passada, a Basílica de São João de Latrão, em Roma, começou a emprestar iPods a seus peregrinos com um aplicativo projetado especialmente para guiar o visitante junto às obras de arte, à arquitetura e à história do local. A proposta, segundo o padre responsável, seria reduzir o ruído provocado pela visitação de grandes grupos e seus guias, assim como atrair mais os jovens. Cada visitante pode até ouvir as narrações na “voz” de personagens históricos como o próprio imperador Constantino. Mas, no fundo, o que significa atribuir a função de “guia” a um aparelho digital personalizado? São essas lógicas, anteriores ainda a um bom ou mau uso, que merecem reflexão.
IHU On-Line – De que maneira a manifestação religiosa da Igreja e dos fiéis se transformou a partir da utilização da internet?
Moisés Sbardelotto – Em uma sociedade em midiatização, o religioso já não pode ser explicado nem entendido sem se levar em conta o papel das mídias. Na transformação cultural de hoje, as mídias organizam e impregnam o social, e passamos a viver em uma realidade sociocultural de permanente comunicação midiatizada. Por isso, as mídias não são meros meios de transmissão de informação, nem apenas extensões dos seres humanos, mas sim o ambiente no qual a vida social se move. Marshall McLuhan já afirmava que “toda tecnologia gradualmente cria um ambiente humano totalmente novo”, ambientes que “não são envoltórios passivos, mas processos ativos”.
Hoje, o transcendente se digitalizou. E, como o Moisés bíblico, as pessoas sobem a montanha digital porque vêem uma sarça ardente em seu topo e buscam a presença de Deus na Internet. Portanto, se as mídias digitais como a internet hoje “viraram um templo”, com tantas ofertas de sagrado disponíveis, cabe analisar como isso aconteceu, que templo-Igreja é esse e que relação fiel/Deus se manifesta em meio a seus bits e pixels.
Exemplo disso é que a experiência da fé – dentre outras diversas manifestações religiosas – pode ser vivenciada na internet por meio de diversos serviços: versões online da Bíblia e de textos sagrados; orientações online com líderes religiosos; pedidos de oração; as chamadas “velas virtuais”; programas religiosos em áudio e vídeo; dentre muitas outras opções. O fiel, onde quer que esteja, quando quer que seja, por meio da internet, desenvolve um novo vínculo com a Igreja e com o transcendental, em um novo ambiente de culto. Isso possibilita uma nova modalidade de revelação e de manifestação de Deus e do sagrado: agora, porém, midiatizada – uma espécie de midioteofania.
A partir desse desvio do olhar do fiel dos templos tradicionais para os novos templos digitais, ocorrem alterações também na formação da identidade individual e religiosa. Cada tecnologia traz consigo uma nova maneira de ser e de fazer. Com o desenvolvimento das tecnologias digitais, características como a digitalidade (o sagrado moldado em bits e pixels), a ubiquidade (o sagrado acessível em qualquer ponto da rede a qualquer momento), a conectividade (conexões/interações em rede entre o sagrado e o fiel e entre fiéis) e a hiperdiscursividade (novas formas de discurso e narrativas sobre o sagrado), dentre outras, manifestam lógicas e processualidades comunicacionais que modificam o ser, o fazer e o experienciar da religião.
IHU On-Line – Como se dá a interação entre fiel, Igreja e Deus no ambiente digital brasileiro?
Moisés Sbardelotto – São as “ações entre” sistema e fiel que possibilitam a comunicação e a construção de sentido religioso na internet. De outra forma, isso não ocorreria. Na pesquisa, analiso essas interações por meio de três eixos conceituais – interface (as materialidades gráficas dos sítios católicos), discurso (coisa falada e escrita nos sítios católicos) e ritual (operações, atos e práticas do fiel).
Com relação à interface, o sagrado que é acessado pelo fiel passa por diversos níveis de codificação por parte do sistema. Analisamos quatro deles:
1) a tela;
2) periféricos como teclado e mouse;
3) a estrutura organizacional das informações (menus); e
4) a composição gráfica das páginas em que se encontram disponíveis os serviços e rituais católicos.
2) periféricos como teclado e mouse;
3) a estrutura organizacional das informações (menus); e
4) a composição gráfica das páginas em que se encontram disponíveis os serviços e rituais católicos.
Ou seja, a interação é possibilitada porque o fiel decodifica o sagrado a partir da configuração computacional ofertada pelo sistema. Por meio de instrumentos e aparatos físicos e simbólicos, o fiel “manipula” o sagrado ofertado e organizado pelo sistema e navega pelos seus meandros da forma como preferir.
Por meio da interface, o sistema informa ao usuário seus limites e possibilidades, e este comunica ao sistema suas intenções. O sistema indica ao fiel não apenas uma forma de ler o sagrado, mas também uma forma de lidar com o sagrado, que raramente é neutra ou automática: ela carrega consigo sentidos e afeta a mensagem transmitida.
Por outro lado, o contato entre fiel e sagrado passa pelo discurso, pela narração da fé, pela “realidade material de coisa pronunciada ou escrita”, nas palavras de Michel Foucault. Nos sítios brasileiros, esse discurso é construído a partir de três atores: o fiel (o internauta); um “outro” (com quem o fiel dialoga e intercede junto ao sagrado); e um “Outro”, o destinatário último (Deus, Nossa Senhora ou os santos, por exemplo). É por meio do discurso, portanto, que se gera o sentido religioso nos sítios católicos. Nele, é possível perceber virtualmente entidades como o “enunciador” e o “enunciatário” – que estão inscritas e vivem no interior do texto –, assim como as regras para as interações entre eles, já que o discurso não é simplesmente “aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”, como também aponta Foucault.
Por último, o fiel interage com o sagrado por meio de rituais. Até então celebrados no templo físico, eles agora se deslocam para o ambiente online (como, por exemplo, as “velas virtuais”, o “terço virtual”, a “adoração ao Santíssimo”, missas etc.). Por isso, os chamados rituais online são atos e práticas de fé desenvolvidos pelo fiel por meio de ações e operações de construção de sentido em interação com o sistema católico online para a busca de uma experiência religiosa. O ritual online, portanto, esclarece mecanismos e processualidades fundamentais do fenômeno religioso contemporâneo. Tudo isso, analisado mais detalhadamente, estará disponível no Cadernos IHU, n. 35, que sintetiza a pesquisa.
IHU On-Line – Como o religioso pode ser explicado e entendido em uma sociedade em midiatização?
Moisés Sbardelotto – O que se constata hoje é um desvio do olhar do fiel dos templos tradicionais para os novos templos digitais, que estimulam, sob novos formatos e protocolos, a experimentação de uma prática religiosa que encontra suas raízes na realidade offline (como o “acender de velas”), mas que agora é ressignificada para o ambiente digital. Existe algo que faz com que o indivíduo prefira praticar a sua fé na internet, em vez de fazer isso na igreja de seu bairro.
Portanto, se a comunicação (suas lógicas, seus dispositivos, suas operações) está em constante evolução, a religião, ao fazer uso dela, também acompanha essa evolução e é por ela impelida a algo diferente do que tradicionalmente era. É essa complexidade da interface entre o fenômeno da comunicação (a partir de suas ocorrências concretas, como o caso da internet) e o fenômeno religioso (a partir da utilização dos dispositivos comunicacionais para a sua ocorrência) que exige maior atenção por parte da Igreja e dos pesquisadores.
IHU On-Line – Que religião nasce da mídia?
Moisés Sbardelotto – Essa é a pergunta-chave. As respostas são múltiplas, por isso posso dar apenas algumas indicações. O que podemos perceber é que a fé vivenciada, praticada e experienciada nos ambientes digitais aponta para uma mudança na experiência religiosa do fiel e da manifestação do religioso, por meio de novas temporalidades, novas espacialidades, novas materialidades, novas discursividades e novas ritualidades.
Assim, a religião como tradicionalmente a conhecemos também está mudando, e a “nova religião” que se descortina diante de nós nesse “odre novo” traz também um “vinho novo”, que caracteriza a midiatização digital (suas formas características de ser, existir, pensar, saber, agir etc. na era digital). Junto com o desenvolvimento de um novo meio, como a internet, vai nascendo também um novo ser humano e, por conseguinte, um novo sagrado e uma nova religião, por meio de algumas microalterações.
Por um lado, temporalmente, os tempos e períodos tradicionais, divididos e organizados pela Igreja liturgicamente e na vida cotidiana, mudam radicalmente na internet. Agora, um ritual religioso (missa, adoração ao Santíssimo, acompanhamento espiritual etc.) pode ser feito a qualquer hora do dia, independentemente dos horários dos demais membros da comunidade religiosa, e em qualquer lugar, em casa, no horário de trabalho, ou mesmo em trânsito, independente da agenda do padre, do religioso ou dos demais fiéis.
O sistema se encarrega de mediar essa interação, apesar do tempo offline da vida cotidiana. Os processos lentos, vagarosos e penosos da ascese espiritual (os “séculos dos séculos”, “até que a morte os separe”) vão sendo agora substituídos pela lógica da velocidade absoluta. Passamos, assim, a viver uma fé na expectativa de imediaticidade (tudo deve estar disponível agora, já).
Por outro lado, há um deslocamento espacial da experiência religiosa: a celebração feita do outro lado do país ou do mundo pode ser agora assistida pelo fiel em seu quarto – e é ele quem decide quando a missa vai começar. Um fiel do interior da Amazônia não precisará se deslocar até o Santuário Basílica de Nossa Senhora Aparecida, em São Paulo, para fazer suas orações, prostrar-se diante da imagem e até mesmo acender sua vela, pois, pela Internet, a “capela virtual” acolhe seus pedidos e lhe oferece um vídeo do interior da basílica para venerar a santa pela internet. Assim, instaura-se uma nova forma de presença: uma “telepresença”, como indica Lev Manovich, possibilitada pela produção de presença encarnada nas representações e simulações de sagrado disponíveis no sistema católico online. Mas a essência dessa nova modalidade de presença é a não presença, a “antipresença”. Não é necessário que o fiel esteja lá fisicamente para estar lá digitalmente: o fiel pode agora ver e agir à distância. Essa “bilocação” não se deve à “santidade” do fiel, mas sim à técnica comunicacional, que permite ao fiel esse seu “poder ultraterreno” nessa ambiência digital.
A fé digital
Além disso, a fé digital traz consigo uma materialidade totalmente própria: numérica, de dígitos que podem ser alterados, deletados, recombinados de acordo com a vontade do sistema e/ou do fiel, embora com resquícios de uma religiosidade pré-midiática (como o uso de velas, por exemplo). Assim, a complexidade da técnica não pressupõe o abandono de tradições discursivas. Porém, elas são ressignificadas: na “capela virtual”, o sol sempre brilha, as flores sempre estão abertas, vivas e coloridas, as velas até se acendem sozinhas, e a cerimônia inicia assim que o fiel entra (adeus, preocupação com o atraso!).
Claro, algumas velas digitais também se “consomem” e diminuem de tamanho com o passar dos dias, mas não há mais os “incômodos” da cera derretida, dos vapores e fumaças, dos riscos de incêndio. Mas, hoje, acrescentam-se novas camadas intermediatórias entre fiel e Deus, agora tecnocomunicacionais: computador, teclado, mouse, interfaces, fluxos de interação comunicacional etc.
Porém, tudo isso, em geral, passa despercebido pelo fiel, reforçando a transparência da técnica: a sensação de sagrado construída pelo sistema promove (ou reforça) a crença de que o fiel está diante de (e apenas de) Deus. Além disso, a fé digital é vivida com uma sensação de carência: exigem-se sempre novas tecnologias, crescendo a necessidade de ser mediado pela tecnologia comunicacional, até na espiritualidade.
Sentido religioso
Discursivamente, o fiel constrói sentido religioso por meio de narrativas fluidas e hipertextuais, marcadas por uma constante transformação, em que novas informações também podem ser adicionadas, deletadas, corrigidas ou relacionadas segundo os protocolos da internet. Isso acaba abrindo o texto original a inúmeras interpretações em uma hermenêutica infindável de novos sentidos. As relações e vínculos nesse ambiente também são fragmentários, já que o fiel seleciona e escolhe a sua alteridade discursiva (terrena ou divina). O fiel-internauta vive uma experiência de fé com uma ausência objetiva (antipresença) do “outro”, seja ele outra pessoa ou Deus, o que, nem por isso, caracteriza uma fé vivida isolada e individualisticamente, pois ele continua recorrendo a uma comunidade de fé, embora ressignificada.
O deslocamento, em suma, dá-se em direção à lógica do acesso, em que o pertencimento-participação em uma comunidade não se estrutura por uma localização geográfica, mas sim por uma ambiência fluida em que só faz parte dela quem a ela tem acesso. E são comunidades instauradas comunicacionalmente: ou, vice-versa, é a interação comunicacional que cria novas comunidades ao tornar comum entre os fiéis aquilo que social, política, existencial e religiosamente é incomum ou não pode nem deve, a seu ver, ficar isolado. Assim, no fundo, há uma lógica do compartilhamento e da publicização: antes, o pedido do fiel era privado, restrito à sua intimidade com Deus. Hoje, é público, é compartilhado com todos, e seu conteúdo é de livre acesso.
Por fim, ritualisticamente, os atos e práticas de fé desenvolvidos pelo fiel por meio de ações e operações de construção de sentido em interação com o sistema constroem-se agora na internet. E novos fluxos começam a surgir, como rituais offline reconstruídos midiaticamente e rituais online que são estendidos midiaticamente para o ambiente offline. Manifesta-se, assim, não apenas uma liturgia assistida pela mídia, mas também uma liturgia centrada, vivida, praticada e experienciada pela mídia, em que esta também oferece modelos para as práticas, o espaço e o imaginário litúrgicos. Instaura-se, em suma, uma nova sacramentalidade. O que fica escondido nos templos territorializados, como o ritual de acender velas, passa a ser exposto e oferecido como o principal ritual religioso das “capelas virtuais”.
A partir da midiatização digital do fenômeno religioso, portanto, vai acontecendo uma metamorfose da fé, somada aos diversos outros âmbitos sociais e históricos que evidenciam esse processo. Ou seja, embora mantendo alguns de seus aspectos tradicionais, produzem-se novas qualidades do religioso. Mas não podemos perder de vista que a hierofania nunca se restringe a um único âmbito do humano. Por meio da midiatização, revelam-se algumas faces desse sagrado, que não se limita a essas manifestações. O sagrado escapa ao midiático. Paralelamente aos ambientes online, continua-se vivendo, praticando e experienciando a fé nos tradicionais espaços de culto, em crescentes tensões e desdobramentos.
IHU On-Line – E o que a religião em uma sociedade midiatizada revela acerca da mídia?
Moisés Sbardelotto – Estamos em uma nova etapa da comunicação, em que as mídias não são apenas veículos de troca de informações, nem se resumem a instaurar mediações entre âmbitos sociais. Com a convergência tecnológica e midiática, temos um ambiente formado pela comunicação midiática, onde se dão os processos sociais contemporâneos. Existe agora uma cultura atravessada, perpassada, embebida pelas mídias.
A partir dessa compreensão, percebe-se que é esse ecossistema midiático que constitui o socius. O conteúdo do fenômeno da midiatização é a convergência das mídias, cada vez mais abrangente, cada vez mais acelerada. Não se trata apenas de um avanço tecnológico, mas sim de uma nova configuração social ampla, que gera novos sentidos em escala complexa e dinâmica, a partir da tecnologia e para além dela.
Analisar a midiatização da religião, portanto, é analisar também um processo de secularização: o processo histórico em que as mídias assumiram muitas das funções sociais que costumavam ser desempenhadas, por exemplo, pela própria religião. Por meio das processualidades da midiatização, a lógica midiática vai subsumindo outras lógicas sociais, em termos de regulação institucional, de conteúdo simbólico e de práticas individuais.
IHU On-Line – Qual o significado da religião em uma sociedade midiatizada? Como ela constrói e gera sentido nesse novo contexto?
Moisés Sbardelotto – Hoje, os fiéis estão fazendo de forma online grande parte daquilo que fazem offline, mas, como dizíamos, fazem isso de uma forma e em um ambiente diferentes, que geram diferença para a religião como a conhecemos. Essas microalterações na vivência da fé não são apenas uma isenta mudança de “forma”, mas sim, em sentido mcluhaniano, uma mudança de “conteúdo”: religião e mídia coevoluem de forma midiatizada, gerando novos predicados.
Em um contexto de aprofundamento das interações sociais via mídia, ganha menos destaque o discurso sobre Deus, e mais o contexto, as circunstâncias específicas, em que as pessoas interagem com Deus: não como as pessoas creem ou devem crer (doxa), mas sim como as pessoas expressam a sua fé (praxis). Hoje, esse contexto da fé é vivenciado na internet, é um o contexto comunicacional construído pela interação entre o fiel e o sistema católico online. No fundo, os fiéis encontram nos protocolos da internet características outras, que são ou não encontradas nos santuários do mundo offline. Uma mídia tão simbólica da pós-modernidade como a internet permeia, mas também altera, a vivência e a experiência de uma fé tradicional, pré-moderna. Não acredito que se dê um processo de substituição de um por outro, mas sim uma justaposição das ofertas religiosas offline e online, a partir daquilo que o mundo digital concede a mais ou a menos, ou de forma mais instantânea, acessível ou disponível do que a religião tradicional.
Raízes agrárias
Nesse sentido, para religiões tradicionais como a Igreja Católica, ainda tão enraizadas em culturas e origens agrárias e pastoris, são necessárias mudanças realmente profundas em seus sistemas simbólicos para que possam ser capazes de responder a todos esses desafios na compreensão de uma nova forma de ver e de viver o “novo mundo” que vai nascendo. Noções como tempo, espaço, comunidade, autoridade, presença, participação etc. – tão centrais ao contexto religioso – vão sendo reconstruídos e readaptados a uma nova configuração social que, por vezes, é combatida pela Igreja e tem sua importância diminuída, como um processo localizado e sem grandes repercussões para as estruturas eclesiais. Porém, esse é um grande engano, já que, a partir das beiradas, uma modificação de fundo vai ocorrendo, para o bem ou para o mal, na configuração das religiões tradicionais.
IHU On-Line – Como vê o incentivo e o estímulo que a Igreja tem dado à relação e ao vínculo do fiel com Deus por meio do ambiente digital?
Moisés Sbardelotto – A relação com os meios de comunicação é quase vital à Igreja. Como indicou a Instrução Pastoral Communio et progressio, ainda em 1971, “os modernos meios de comunicação social dão ao homem de hoje novas possibilidades de confronto com a mensagem evangélica”. Para o então Papa Paulo VI, a Igreja “viria a sentir-se culpada diante do seu Senhor” se não lançasse mão dos meios de comunicação. Já para o Papa João Paulo II, na encíclica De Redemptoris Missio, os meios de comunicação social seriam “o primeiro areópago dos tempos modernos”. E aqui, o papa reconhece um ponto importante, já em uma era digital (1990): “A experiência humana como tal se tornou uma experiência vivida através dos mass media”.
Portanto, em nível internacional, começando pelo órgão máximo da Igreja, o Vaticano lançou sua página online ainda nos primórdios da internet, em 1995. O sítio continha apenas o texto da mensagem de Natal do então Papa João Paulo II para aquele ano e um e-mail de contato. Hoje, o sítio oficial da Igreja Católica já está disponível em oito idiomas, incluindo o português e até o latim, língua oficial do Vaticano. Em junho de 2011, foi lançada uma nova interface do sítio com poucas alterações na página de entrada, principalmente, um menu em formato de “calendário maia”, como li em uma crítica. A grande novidade do novo sítio ainda está em construção, que será um serviço de notícias do Vaticano, o News.va (1). Também houve uma recente ampliação dos serviços prestados pelo sítio, como uma seção de vídeos e a criação de uma “visita virtual” a diversas basílicas vaticanas, além da Capela Sistina e da Necrópole Vaticana.
Além do sítio oficial, o Vaticano também criou outros serviços específicos, como a página Pope2You (pope2you.net), lançada em 2009. A intenção de lançar esse sítio foi o de aproximar os jovens à mensagem de Bento XVI, ou a chamada “geração digital”, conforme palavras do próprio pontífice. Foi uma aproximação, mas nada além disso. Na página, os usuários têm acesso a aplicativos para Facebook, iPhone e iPad, para o recebimento de conteúdos religiosos, além de links para a Jornada Mundial da Juventude e para a página do Vaticano no YouTube. O fiel continua apassivado para o sistema, e precisa encontrar brechas em outros ambientes online, não oficiais, em que dá vazão à sua construção simbólica do religioso.
Tecnologia à “nossa imagem e semelhança”
Porém, é preciso superar, por parte da Igreja, uma imagem das mídias meramente como meios a seu dispor para a difusão de uma mensagem, como se a “influência” da tecnologia sobre nossas vidas fosse só um problema no “modo de usar”. Ao contrário, é necessário compreender que toda a tecnologia – incluindo a comunicacional midiática – não é uma “escrava” a serviço do ser humano, nem mero prolongamento, extensão ou magnificação das capacidades humanas. A tecnologia é nossa “irmã” (como diria São Francisco) e nasce à “nossa imagem e semelhança”, da nossa “costela”, depende de nós. E, por isso, também nos molda poderosamente através de uma coevolução cada vez mais intensa.
Como a Igreja, enquanto instituição hierárquica, em sua organização interna, irá reagir ao longo do tempo a uma cultura do compartilhamento, da instantaneidade, das redes, da fluidez de tempo, espaço e vínculos etc.? Acho que o Wikileaks e as revoluções no Oriente Médio são demonstrações mais do que suficientes de que a cultura contemporânea é, em grande parte, o resultado do encontro entre as possibilidades da técnica diante das impossibilidades e limitações da episteme contemporânea (social, política, econômica, mas também religiosa). A tentativa de conjugar e resolver essa tensão será cada vez mais forte.
IHU On-Line – A virtualização provoca alguma modificação na vivência da fé?
Moisés Sbardelotto – Cremos que apontamos diversos aspectos nas respostas anteriores. Mas a pergunta é válida para debater o conceito de “virtual”, tão disseminado no campo de estudos das mídias digitais. Virtual é um termo que vem do latim (virtus), no sentido de força, potência, virtude. Ou ainda, filosoficamente, é aquilo que não tem efeito atual (“concreto”), que existe somente em potência. Mas essa conceituação não nos possibilita compreender a internet e suas processualidades. A internet pode, sim, ser considerada virtual quando o indivíduo está, por exemplo, descansando no campo, longe de um computador conectado. Nesse momento, ela, para ele, é virtual. Porém, assim que ele a acessa e interage com a rede, ele já a atualiza, a presentifica, poderíamos dizer. Passa-se do virtual ao atual. Por isso, mesmo que a informação da internet esteja “virtualmente presente em cada ponto da rede onde seja pedida”, como afirma Pierre Lévy, ela se atualiza, fisicamente até, em algum lugar (por exemplo nos mais de 7 mil metros quadrados ocupados pelos quase 2 mil servidores do centro de dados do Google na Califórnia, ou nos mais de 65 mil metros quadrados do centro de dados da Microsoft, em Chicago), em determinado momento, em determinado suporte, deixando assim de ser virtual. A internet em sua virtualidade não é do interesse da comunicação, mas sim a atualização do virtual nas interações e processos comunicativos.
Por isso, preferimos usar conceitos como digital ou online (conectado), mas que também não são sinônimos. Digital é a operação computacional que lida com quantidades numéricas ou informações expressas por algarismos (dígitos), com bits, com “cacos” de informação. Mas os fenômenos aos quais nos referimos aqui não são apenas digitais, mas também online, ou seja: o acesso do fiel ao “sagrado digitalizado” se dá por meio da internet, em rede, em qualquer ponto do tempo e do espaço.
Em uma analogia teológica, para se fazer presente na internet, o Verbo se torna informação e faz-se bit. Mas Deus, segundo a tradição cristã, se faz “carne”, para integrar tudo o que é do ser humano: seus órgãos, seus sentidos, a terra que o envolve. E não apenas o seu DNA. Em bits (o DNA da computação), o Verbo fica impossibilitado de assumir o “homem todo inteiro”, segundo Leonardo Boff – assim como o DNA não dá conta de toda a complexidade da “carne”. Portanto, na internet - entre fiel, Igreja e Deus - interpõe-se a técnica comunicacional digital, que reduz a bits, a “cacos”, a experiência multissensorial do sagrado. E “os bits fazem com que a matéria seja mais maleável do que os átomos”, como aponta Kerckhove.
Nota:
1.- O novo portal do Vaticano, news.va, será apresentado oficialmente nesta segunda-feira, dia 27 de junho, em Roma. (Nota da IHU On-Line).