30/01/2009

Dom Sérgio da Rocha

A questão do sentido da vida

Vivemos numa época marcada por transformações rápidas e profundas na sociedade, especialmente, no âmbito da cultura. Basta ter presente, dentre outros aspectos, a situação do matrimônio e da família, a vivência da sexualidade, o campo científico e tecnológico, as práticas religiosas e as transformações políticas. As rápidas mudanças e o acentuado pluralismo que caracterizam a vida sócio-cultural podem levar as pessoas à perda de referências fundamentais para dar sentido, motivação e orientação para a própria vida. Em última análise, pode-se dizer que há uma crise de sentido na sociedade, ocasionando tristes conseqüências no âmbito pessoal, familiar e social. A angústia e a desesperança, o vazio e a desorientação, a desumanização dos relacionamentos e a banalização da vida refletem a falta ou a perda do sentido da vida.

Sentido é razão de ser; é fundamento sobre o qual se constrói lenta e pacientemente o edifício da vida. Sentido é mística, motivação maior, que anima os passos no caminho, por vezes, árduo e longo. Sentido é orientação, é bússola a nortear; possui uma dimensão ética enquanto fonte de critérios de discernimento para o agir. Não se pode viver sem sentido; é próprio do ser humano atribuir sentido. A necessidade e a busca incessante de sentido para a vida pessoal, para a história e o mundo, estão enraizadas na natureza da pessoa humana. Assim sendo, a realização humana e a felicidade dependem, em grande parte, do modo como se cumpre esta tarefa.

A questão não se reduz a um círculo de pensadores ou a uma espécie de elite filosófica, embora os filósofos muito possam contribuir. Não se trata também de algo confinado àqueles que já têm suas necessidades materiais satisfeitas ou não teriam coisa mais importante a fazer. Os mais pobres também têm necessidade de sentido, enquanto pessoas humanas; pelas duras condições em que vivem, talvez precisem ainda mais encontrar e compreender o sentido da vida. Além disso, seria errado desvincular a busca de sentido da busca de condições indispensáveis à sustentação da vida ou da luta pelos direitos sociais; aliás, estas pressupõem sentido, mística. Todos precisam crescer na compreensão e vivência do sentido.

A busca de sentido torna-se ainda mais difícil, numa época marcada pela emergência da subjetividade, fenômeno nem sempre considerado e bem compreendido, pela sua complexidade e ambivalência. De uma parte, pode significar a afirmação justa do valor da pessoa, de seus anseios e necessidades. De outra, pode desembocar no individualismo, no fechamento sobre si, alimentando o interesse próprio e o relativismo. Por isso, o sentido para a vida não pode ser considerado como algo que diz respeito apenas à própria pessoa, ignorando-se ou excluindo-se o outro. A perspectiva da mesmidade, onde a pessoa enxerga apenas a si própria, não pode ser o horizonte onde se descortina o sentido. Ao contrário, tal tarefa só pode ser concebida em perspectiva de alteridade, na qual a pessoa se coloca diante do outro; o outro representado pelos que a rodeiam ou compartilham do seu mundo; o Outro que é o próprio Deus.

Uma adequada concepção de pessoa pressupõe relacionamentos, abertura ao outro, valorizando-o e respeitando-o. É nesta perspectiva de alteridade, que se coloca a tarefa da busca de sentido. Contudo, a busca de se sentido não se confunde ou se reduz a necessidade de atribuir sentidos parciais e passageiros às atividades, tarefas ou projetos que vão se desenvolvendo ao longo da vida. É certo que as pessoas precisam dar sentidos parciais ou provisórios, atribuindo significado a cada tarefa que realizam. Isso não basta; por serem imediatos ou provisórios, pode-se cair no vazio na medida em que passam ou que não acontecem.

O sentido dos sentidos, o fundamento último, é transcendente, ultrapassando os sentidos parciais e provisórios, sustentando a pessoa depois de alcançá-los e, especialmente, quando não os consegue. Aqui se coloca a questão de Deus, o absoluto que permanece, enquanto sentido pleno, que ultrapassa os limites da racionalidade filosófica ou científica, radicando-se no âmbito da fé. Aí ocorrem de modo especial a busca, a compreensão e a experiência do sentido da vida, que para nós cristãos está em Deus revelado em Jesus Cristo.

Fonte: Arquidiocese de Teresina

28/01/2009

Rafael López Villaseñor

FSM 2009: Para uma Espiritualidade a partir da Ecologia

O terceiro Fórum Mundial de Teologia e Libertação, de 21 a 25 de Janeiro de 2009, antecedeu o Fórum Mundial Social na cidade de Belém - Brasil, porta de entrada da Amazônia. Ao longo de cinco dias constitui-se o fórum teológico com o tema central da terra e da água vista a partir da Amazônia como espaço de encontro para a reflexão teológica ecológica e plural, buscando novas metodologias e diálogos possíveis, para a contribuição do debate ecumênico e multidisciplinar acerca biodiversidade no planeta.

Pensar ao Deus da Vida na construção de um "outro mundo possível" é sempre uma utopia, um caminho em acabamento. Trata-se de pensar a história e a humanidade no sentido e na direção de desconstrução do sistema vigente. É a construção de outras possibilidades, através dos poucos espaços que o sistema vigente nos deixa, isto é, das falhas, ou das pequenas rachaduras encontrados ao longo da história. É a sabedoria, a capacidade de relação e recriação da humanidade, através da libertação de todo tipo de opressão. É caminhar na contra mão da história.

Nos últimos meses assistimos as notícias de guerras e de conflitos mundiais, de desmatamento e de poluição, de opressões e de agressões, de morte e de desespero, de egoísmo e de individualismo, de exclusão e de marginalização. Realidade que nos leva a construir uma teologia e uma espiritualidade de libertação e a propor novos caminhos de mudança a partir do Deus da Vida. O maior desafio da nossa época é criarmos uma aliança global em favor da vida, da biodiversidade, pensando o mundo como nossa casa comum e suscitando novos valores éticos.

Assim, por exemplo, a Amazônia é de suma importância para o planeta terra, considerada patrimônio da humanidade, não pode ser reduzido apenas ao aspecto econômico. Corresponde a 5% da superfície da terra. Contém 20% da reserva mundial de água doce não congela. Amazônia, também abriga 34% da reserva florestal mundial, cerca de 30% de todas as espécies da flora e fauna do mundo. Porém a humanidade está agredindo a vida da terra e da Amazônia. O uso de suas riquezas naturais não pode trazer o desequilibro ambiental. Amazônia tem uma importância para a humanidade inteira.

O livro do Gênesis após cada ato da criação repete: "Deus viu que era bom" e o conjunto de toda a criação é apresentado como "muito bom", uma criação perfeita. Deus deixa ao homem e a mulher a missão de zelar e cuidar da criação. O homem e a mulher, os quais ao serem criados a "imagem e semelhança de Deus" (Gn 1,26) têm a missão de completar e aperfeiçoar a obra perfeita da criação. Eles são sujeitos e protagonistas da história com a tarefa de cuidar, preservar e zelar pela sua casa como um paraíso. A humanidade é o ponto alto de toda a obra criadora de Deus (Gn 1,26-31), logo somos chamados a cuidamos da criação, ou pereceremos. Respeitar a obra criadora de Deus é respeitar o próprio Deus. Assim a criação é o maior ato de amor de Deus. Terra e humanidade aparecem como uma unidade.

Deus manda ao homem de "dominar a terra" (Gn 1,26), no sentido de completar a criação, de cuidar, de zelar, de participar, não de destruir ou oprimir a natureza. Assim, a humanidade deve aperfeiçoar e cuidar o planeta terra, porque as reservas naturais são finitas, acabam, ou cuidamos do planeta, ou pereceremos, matando a natureza nos auto-destruímos. Cuidar é aperfeiçoar a criação, o que significa viver de maneira responsável e sustentável. O consumo humano está em conflito com a natureza e com a criação. Cuidar da terra, da água do ecossistema significa reduzir o consumo, reciclar, reaproveitar e reutilizar o que já usamos, é resolver os problemas da poluição da água, do esgoto, do lixo, do ar entre outros. Trata-se de salvar o planeta terra e a humanidade de um desastre global, de superar o capitalismo e pensar novas formas de produzir.

Enxergar a natureza apenas a partir do poder econômico é contrário ao projeto criativo de Deus. Também, as populações e os projetos sustentáveis, quase sempre são considerados estorvo para o capitalismo neoliberal que destruí e mata a biodiversidade do planeta. Devemos pensar o projeto de Deus através do chamado desenvolvimento sustentável sem devastação ambiental, no respeito natureza e aos direitos das populações locais tradicionais como os grupos indígenas, os negros, os camponeses entre outros.

O território é o espaço da vida, é a casa, é a morada da humanidade. Tudo é criação de Deus e faz parte da realidade sagrada. A defesa da biodiversidade e a promoção de seu desenvolvimento sustentável e não predatório virá em benefício de todos os habitantes de todo mundo. Não podemos assistir impassíveis à destruição desse patrimônio natural e cultural, do qual tanto depende o futuro bem-estar da humanidade.

Terra e humanidade é uma unidade. O sofrimento da terra é o sofrimento da humanidade. A crise da criação é a crise da humanidade. Somos convidados a mudar nossas práticas de viver e ter novas maneiras de viver com a criação. Os efeitos do sistema capitalista destrutivo são sentidos através das mudanças climáticas, através do aquecimento global, o mudamos nossos hábitos ou todos morreremos. Sempre os mais fracos acabam sendo as maiores vitimas das mudanças climáticas: os pobres, as crianças, as mulheres, etc. É necessária uma nova política para a atuação rápida e urgente frente às mudanças climáticas.

A preocupação com ecologia nos deve levar a uma conversão de hábitos. Hoje mais que nunca somos chamados a cuidar e zelar da criação de Deus e abandonar o modelo neoliberal que acaba destruído a terra, a vida e a humanidade. Somos desafiados a criar uma nova ética e espiritualidade para um outro mundo é possível.

Rafael López Villaseñor é Missionário Xaveriano. Informações sobre os Missionários Xaverianos, clicar aqui.

Fonte: ADITAL

As alegorias sacramentais de Vieira

Por Luiz Sugimoto
Quatorze anos depois da publicação da primeira edição, Teatro do Sacramento, de Alcir Pécora - professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp -, é relançado pelas mesmas Editora da Unicamp e Edusp, quando se celebram os 400 anos de nascimento do jesuíta Antonio Vieira (1608-1697), considerado o maior pregador do seu tempo. O livro, fruto da pesquisa de doutoramento do autor, continua sendo apontado pelos especialistas como o melhor estudo da obra de Vieira já produzido no país.

Fonte: Jornal da UNICAMP


JU – O senhor afirma que a obra de Vieira é mal conhecida. Pensando nos leitores em geral, o que é essencial conhecer sobre sua produção?


Alcir Pécora – O que acho essencial, de fato, são os sermões. Fala-se muito dos sermões, mas pouquíssimos são lidos – da Sexagésima, de Santo Antonio aos Peixes, do Mandato, talvez o da Epifania, e uns poucos mais. Vieira tem mais de 200 sermões editados por ele, uma obra imensa que está muito longe de ser verdadeiramente conhecida, analisada e discutida, sobretudo no Brasil, onde os estudos coloniais na área da literatura são deixados de lado. Muito diferentemente do que acontece na América espanhola, onde esses estudos são tidos como fundamentais.

JU – O senhor também fala que a obra de Vieira é alvo de distorções. Quais são as mais comuns? E por que elas ocorrem?

Alcir Pécora – Não digo que sejam distorções exatamente, pois todo leitor costuma trazer a obra para um contexto próprio, que não é necessariamente aquele em que o autor escreveu. E o leitor tem direito a esse tipo de deformação. Entretanto, no caso de Vieira, há dois aspectos, entre vários outros, que a meu ver reduzem muito a sua obra. Um deles é a tentativa de ler um autor do século 17 sob o ponto de vista de uma literatura nacional que só seria formulada nos séculos seguintes – é a chamada leitura teleológica, que tem gerado um empobrecimento grave de suas possibilidades de significação.

Por exemplo: há quem procure perceber em Vieira elementos que apontem para um Brasil independente, quando estamos falando de um jesuíta, para quem a idéia de nacionalidade brasileira (a par da portuguesa) não fazia nenhum sentido – e acho que a repudiaria completamente se fosse pensada, coisa que não foi. Em sua época, nem havia o Brasil como entendemos hoje, sequer a mesma unidade territorial, já que eram dois estados, o Brasil e o Grão-Pará. Vieira viveu nos dois, mas sentindo-os sempre como parte do império português. Enfim, a leitura teleológica nacionalista produz um anacronismo que impede a percepção do que há de importante na obra.

JU – E qual é o segundo aspecto que empobrece a leitura da obra de Vieira?

Alcir Pécora – É a imagem de um homem contraditório. Vieira atuou fortemente em muitas áreas. Foi pregador nas missões da Companhia de Jesus, de D. João IV, da rainha Cristina da Suécia, tendo sido convidado mesmo a se tornar pregador do papa. Foi teólogo e missionário. Também deixou escritos considerados proféticos, mas que mais eram interpretações casuísticas de profecias. Em dez anos trabalhando na frente diplomática do governo de D. João IV, ainda produziu vários pareceres e papéis políticos. Envolveu-se em todo tipo de polêmica de Estado no seu período. Sustentou forte oposição à Inquisição e participou de todo o debate sobre a questão do judaísmo no século 17. Escreveu poesia, foi um grande correspondente etc.

Diante desta trajetória, é mais fácil dizer que Vieira tinha fases distintas ou atividades contraditórias entre si, quando suas atuações, a meu ver, eram absolutamente articuladas. Fala-se na contradição, por exemplo, entre ser político e também pregador ou missionário. Entretanto, pensa-se nisso com nossa visão contemporânea de que o religioso é um homem voltado para si mesmo – dentro do lugar comum da religião como questão de foro íntimo – e que o político, ao contrário, é cínico ou falso ao falar de religião. É uma visão estranha ao catolicismo tridentino, e especialmente à Companhia de Jesus. Acreditava-se então que a vida cristã demandava uma forma de política igualmente cristã. Portanto, unir as duas atividades era uma necessidade, sob risco de se incorrer na separação maquiavélica entre conduta religiosa e prática política.

JU – Ainda assim, Vieira foi mesmo uma figura controversa, ora considerado o “Apóstolo”, ora o “Judas do Brasil”.

Alcir Pécora – Ele é controverso porque suas posições nunca foram as mais aceitas ou partilhadas. Pelo contrário, tinha certo gosto em afrontar o lugar comum, o que para um político é péssimo, já que o melhor político estabelece vocabulários que permitam a negociação entre o lugar comum da gente com poder. Vieira tinha um discurso muito inventivo e produzia fórmulas consideradas excêntricas no ambiente político contemporâneo. Por isso, produziu sempre com mais facilidade oposição que aliança. Acho que até gostava disso. É particular em Vieira esse gosto pelo confronto, pela tensão política.

JU – Daí, o fato de a produção discursiva de Vieira revelar muito dos acontecimentos do seu tempo?

Alcir Pécora – Praticamente não há tema do século 17 com o qual Vieira não tenha se envolvido. Além dos sermões, dos escritos ditos proféticos e dos textos de chancelaria, sua correspondência também é enorme: perto de 800 cartas estão recuperadas na íntegra e certamente outras serão descobertas. Existem poemas latinos, alguns em duelo com Gregório de Matos. Parte da obra é escrita em latim e ainda inédita.

JU – O senhor analisa a retórica e a estética relativas aos sermões e as relaciona com o peso da mensagem teológica. Como esses elementos são articulados na obra de Vieira?

Alcir Pécora – Acho que o conceito de estética não se aplica aos sermões, e sim o de retórica. Isso por que a estética é um conceito que se formula a partir do século 18, quando se pensa na autonomia do artístico ou do literário. No caso de Vieira, há uma articulação entre o que é letrado, o que é da religião e o que é da política. Esses universos não são disciplinas estanques e separadas como nos séculos 19 ou 20. Participam necessariamente do universo intelectual. E a integração entre esses saberes é postulado e tematizado pela retórica, não pela estética.

JU – O que são as alegorias sacramentais e como elas concorrem para o que o senhor chama de “magnífico teatro discursivo”?

Alcir Pécora – As alegorias sacramentais são o tema fundamental do livro. Procuro mostrar que a integração entre as várias atuações de Vieira – como teólogo, pregador, missionário, político, diplomata, profeta – tem como eixo uma idéia da linguagem como sacramento. Esta guardaria potencialmente um poder semelhante ao da consagração eucarística, quando o sacerdote diz “este é o meu corpo, este é o meu sangue” e faz com que, do ponto de vista católico, Deus ali se manifeste nas formas do pão e do vinho.

A tese central do livro é que, no caso de Vieira, há uma crença análoga em relação à palavra. É como se o pregador, na construção do seu discurso, produzisse a presença divina e ela, por um processo de conversão verdadeiramente místico, agisse sobre as almas das pessoas, corrigindo-as individualmente – ou, em se tratando de pessoas ligadas ao governo, influindo na formulação de políticas de Estado. É isso que orienta o conjunto da sua obra. Palavra, poder e mística são concepções totalmente articuladas nos sermões de Vieira.

JU – Pode falar, grosso modo, sobre os temas abordados em Teatro do Sacramento?

Alcir Pécora – O livro acompanha as analogias construídas pelos sermões com o sacramento eucarístico, em várias dimensões. Primeiramente estuda aquelas relativas à idéia de natureza, tomando-a como efeito de Deus, de modo que tudo o que existe ainda manifesta este ato criador original. Os sermões desenham constantemente essa natureza em que não vemos apenas acidentes, mas também o ato necessário de origem, de fundação divina, que o mantém providencialmente orientado para seu fim original.

O segundo ponto estudado examina a própria concepção do mistério eucarístico ressaltada nos sermões. Neles, a idéia da comunhão está associada não só a uma ligação vertical do cristão com Deus, mas a uma ligação do conjunto dos homens entre si através de Deus. Trata-se de uma afirmação da comunidade dos homens, inclusive comunidade política, por meio da presença divina. O fundamento primeiro do Estado é o amor entre os homens. Ressalto que é preciso cuidado para entender a palavra amor nesse contexto: ela é ao mesmo tempo plena de identidade mística e de adesão política às finalidades do Estado cristão. Nada especialmente romântico.

No último capítulo trato do Vice-Cristo (ou Príncipe Encoberto), uma figura que Vieira aproveita de diversas tradições místicas e a reorienta na direção de suas convicções jesuíticas. Trata-se, portanto, de compreender a sua visão histórica, a qual necessariamente inclui a idéia de que também o futuro já era parte dela e podia ser lido, identificado, explicado. Nessa história do futuro, haveria o surgimento de um príncipe português, cuja ação inspirada conduziria a um tempo de reunificação da monarquia universal cristã. Lembremos que Vieira viveu o tempo quente das guerras de religião, bem como o das novas descobertas, com a revelação de povos no Oriente e Ocidente sem nenhum conhecimento do Deus católico. Ninguém mais ardentemente do que a Companhia de Jesus, e seus soldados, alguns extraordinários como Vieira, formulou uma política de reunificação da Igreja na Europa e de conversão de novos gentios, com incursões na China, Japão, Índia etc.

26/01/2009

Irmão Antonio Cechin

MST: Profecia?... ou Utopia?...

O Irmão Marista Antonio Cechin formou-se em Letras Clássicas e em Direito, pela PUCRS, onde também foi professor. Fez sua pós-graduação no Centro de Economia e Humanismo, em Paris. Iniciou na Instituição Católica de Paris a especialização em catequese, quando foi chamado para o Vaticano, na Sagrada Congregação dos Ritos, no início da década de 1960. Depois, retornou ao Brasil e iniciou a luta junto aos movimentos sociais. Fonte: UNISINOS



Sábado, dia 25 de janeiro, dia em que o calendário religioso assinala como festividade da conversão do apóstolo Paulo, foi encerrado com grande solenidade, na antiga Fazenda Anoni, o Décimo Terceiro Encontro Nacional, comemorativo dos 25 anos de existência do MST.

Como fizemos parte do grupo que acompanhou o Movimento desde o nascedouro em Ronda Alta, motivados pela sentença do grande escritor católico Alceu de Amoroso Lima “o passado não é aquilo que passa, mas o que fica do que passou”, Jacques Alfonsin, o advogado do MST e eu tivemos o maior dos interesses em participar do balanço que se realizaria no Encontro Nacional de Sarandi

Ficamos impressionados com a capacidade de mobilização do Movimento. Para o encerramento eram esperadas em torno de 3000 pessoas convidadas. Lá estavam lideranças de todos os Estados do Brasil, representantes de dezenas de entidades apoiadoras; para além das nacionais, outras dos cinco continentes. Entre as inúmeras figuras históricas vieram para a premiação das lutas e dos apoios: Ana Leocádia, filha de Luís Carlos Prestes e de Olga Benário; a filha de Che Guevara como substituta de Fidel Castro, impossibilitado por doença de comparecer pessoalmente; o filho do economista Celso Furtado; o filho do sociólogo Florestan Fernandes; uma religiosa da mesma congregação da Irmã Dorothy Stang, todos para receberem prêmios póstumos dos grandes apoiadores mortos; além de inúmeros políticos governadores de Estado, Prefeitos, deputados federais e estaduais e vereadores.

João Pedro Stedile, valente assessor e incansável estrategista do MST, nesta semana em que são celebrados os 25 anos do Movimento (1984 a 2009) escreveu um artigo brilhante, intitulado “25 anos de teimosia”. Como condividimos com ele, ainda que seja por longe, a partir da Comissão Pastoral da Terra, o acompanhamento desses anos todos de luta, causou-nos uma certa surpresa que ele, assim como a coordenação do Movimento, tenham decidido celebrar, neste início de 2009, 25 anos do Movimento.

Por que 25 anos e não 30, se no ano de 1979 ocorreu a ocupação da Fazenda Macáli; no ano de 1980, da Fazenda Brilhante e logo em seguida, o acampamento da Encruzilhada Natalino, considerado o marco por excelência de toda a história de lutas pela terra, realizado em plena ditadura militar e momento em que o MST derrotou o exército brasileiro comandado pelo famigerado coronel Curió? Como explicar, sabendo que isso tudo e muitas outras coisas, fazem parte do patrimônio histórico dos SEM-TERRA antes de 1984, ano em que, na cidade de Cascavel (Paraná), tiveram início os 25 anos, hoje celebrados?

Haveria desinteresse ou mesmo um certo pudor, por parte do MST, em não abiscoitar exclusivamente para si, o esplendor do NATALINO, por exemplo?

Intrigados com a circunstância, depois de refletir com mais atenção, imaginamos primeiro a hipótese que Stedile e os Sem-Terra tenham ficado atraídos pelo número 25 com seu peso significativo de data jubilar - jubileu de prata. Depois nos convencemos de que estão com carradas de razão, porque os 5 primeiros anos foram, em nosso modesto entender e interpretar, um TEMPO DE PROFECIA (1979 a 1984), de acúmulo de força mística. Os 25 anos sub-sequentes (1984 a 2009), um TEMPO DE UTOPIA e que o João Pedro se tenha limitado ao tempo em que o MST se dedicou de fato, como Movimento autônomo, a construir seu Projeto de Reforma Agrária para o Brasil inteiro, utopia mantida acesa até hoje.

I. TEMPO DE PROFECIA

Pela nossa Teologia da Libertação, o papel dos profetas é transmitir as mensagens de Deus ao seu Povo. Trata-se de desinstalar o povo quando este se acomodou dentro de uma rotina. O Deus de todas as religiões, do ponto de vista do cristianismo, não está lá em cima, na transcendência, fora do mundo. Ele caminha conosco, em nosso dia-a-dia, à frente de nós, na história. Por isso a profecia tem duas dimensões: denúncia e anúncio (práxis). Denúncia da situação de opressão em que o povo vive acomodado, e anúncio (ou práxis) de caminhos novos, por onde se retome a caminhada para frente, nas pegadas do próprio Deus deixadas por Jesus de Nazaré, o Homem-Deus. Vejamos os fatos:

No ano de 1979 – 30 anos atrás – estávamos reunidos no Colégio Marista de São Gabriel com mais de uma centena de membros das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica, provenientes de lugares os mais diversos de nosso Rio Grande do Sul, a fim de participar do primeiro Encontro Estadual.

Fruto da reflexão das Assembléias da Igreja Latino-Americana de Medellín (1968) e Puebla (1979), em nossa opção pelos pobres, as Comunidades Eclesiais de Base se propunham em sua prática, ser ao mesmo tempo focos de evangelização (Profecia) e motores de libertação (Utopia).

Escolhêramos a cidade por causa de Sepé Tiaraju, índio guarani martirizado juntamente com 1.500 companheiros pelo exército dos impérios aliados de Espanha e Portugal, no ano de 1756, nesse exato lugar, em que hoje se ergue a cidade de São Gabriel.

O que nos movia era a intenção de impregnar gente pobre do campo e das periferias urbanas, com a espiritualidade libertadora com que estiveram embebidos nossos irmãos-de-fé-e-de-utopia, os índios guarani, em sua luta pela defesa da terra que lhes pertencia, ao grito de “Esta Terra-Sem-Males tem dono!” Pois sabemos que na cabeça de todo guarani, desde o nascimento, está sempre a Mística pela incansável busca da TERRA-SEM-MALES, realidade que haviam conseguido realizar em seus queridos SETE POVOS. Os imperialistas vinham armados até os dentes para implantar um projeto oposto: o capitalismo ou da TERRA-DE-TODOS-OS-MALES.

Na data de 7 de setembro de 1979, feriado nacional comemorativo da independência do Brasil, bem cedo, o sino do colégio nos acorda com a alegre notícia de que nossos companheiros das Comunidades de Base da paróquia de Ronda Alta, durante a noite, acabavam de ocupar a Fazenda Macáli. Era o primeiro fruto da nossa espiritualidade missioneira, calcada no exemplo de luta por TERRA, de Sepé Tiaraju e dos índios guarani, nos primórdios de nosso Estado (1750 a 1756), ao grito de “Esta Terra-Sem-Males tem dono!” Os delegados encontristas daquele município, que estavam conosco em São Gabriel, naquele mesmo dia, partiram para o abraço jubiloso com os vitoriosos da tomada da Fazenda Macáli.

No ano seguinte de 1980, foi a vez da ocupação da Fazenda Brilhante no mesmo município de Ronda Alta, depois veio o grande acampamento da Encruzilhada Natalino com mais de 600 famílias em beira de estrada. O ponta-pé inicial deste acampamento do Natalino fora dado pelos índios kaingang de Nonoai.

Havíamos participado, no ano de 1975, do primeiro Encontro Estadual do Centro Indigenista Missionário do Rio Grande do Sul, que se realizou durante as férias de julho, na Faculdade Católica de Ijuí. Lá estiveram conosco, como participantes, durante 15 dias de reflexão e planejamento, índios do centro-oeste do país: os xavante, os bororo e os terena, juntamente com nossos kaingang e guarani. A um determinado momento, na mesa do almoço, o cacique xavante dialogava com o cacique kaingang Xangrê, face à queixa que este expressava a respeito dos sofrimentos do seu povo, cada vez mais acuado pelos “intrusos” brancos que, sempre em maior número, ocupavam suas terras: “Vocês têm que reagir! Estão vivendo em verdadeiro campo de concentração!”, interrompia o xavante a toda hora.

Três anos mais adiante, em 1978, inesperadamente, eis que os kaingang, com o cacique Xangrê à frente, tirando proveito do preconceito que branco tem para com índio, já que o considera um selvagem, realizaram o “Levante de Nonoai”. Começaram com o incêndio de várias escolas, enclaves simbólicas da imposição da cultura do branco sobre o índio. Em seguida abateram um leitão de uma família intrusa, mais adiante torceram o pescoço de uma galinha de outra família e fizeram a ameaça: “se não saírem dentro de três dias, faremos com todos o que nos permitimos fazer com esses animais domésticos.”

Era um exército de 40 índios “desintrusando” 7.500 roceiros invasores. Limparam a área dentro do prazo estabelecido. Esse embate passou para a história como a “guerra dos miseráveis”. Pobre contra pobre. A vitória dos esfarrapados índios kaingang como exemplificamos acima, foi conseguida através de meios extremamente pobres.

Não fosse a intervenção da Brigada, dando cobertura de imediato à “desintrusão” dos brancos, certamente motivada pelo fato de a ditadura nacional ter mostrado interesse em levar colonos para a transamazônica, o segundo momento da refrega teria sido dos pobres agricultores que, com um mínimo de organização, em número bem maior, ter-se-iam jogado de volta para cima dos kaingang.

O governo do Estado da época houve por bem remover as famílias “desintrusadas”, para os pavilhões da exposição de animais em Esteio. Lá permaneceram acampadas durante meses. Posteriormente a maioria foi transferida para a Transamazônica.

Algumas dessas famílias que perderam casa e terra em Nonoai optaram por se instalar na Encruzilhada Natalino. Aos poucos, outros Sem-Terra foram se alinhando nessa mesma estrada. Quando o governo se deu conta, já eram em número de 600 barracos. Foi quando a ditadura deslocou o coronel Curió e uma tropa de soldados a fim de desmantelar o acampamento.

As Comunidades Eclesiais de Base do Rio Grande, as Paróquias e as dioceses, acudiram de todos os lados com alimentos, roupas, remédios etc. e deram proteção o tempo todo que durou o acampamento e a pressão do coronel e de sua soldadesca que não mediam esforços e artimanhas para dissolver os colonos que, em boa hora, logo que iniciaram na estrada, pediram a assessoria do Padre Arnildo Fritzen e da Irmã Aurélia, da paróquia de Ronda Alta.

Depois que a ditadura militar desistiu de pressionar os Sem-Terra da Encruzilhada, as Igrejas do Rio Grande se cotizaram e compraram um gleba próxima de uma linda represa a fim de poderem usufruir de sossego para se organizarem melhor em sua luta por terra. Ao assentamento feito pelas Igrejas, os colonos deram o nome de NOVA RONDA ALTA.

Essas famílias até aí sob a proteção das Igrejas, dentro da nova morada, tiveram a tranqüilidade para completar sua conscientização sobre os caminhos da luta que estavam dispostas a continuar a fim de conseguir um pedaço de chão para plantar e sobreviver. Para tanto construíram um ícone que lhes lembrasse sempre a PROFECIA. Tratava-se de uma Cruz enorme simbolizando o peso desmedido que teriam de enfrentar no futuro, se não esmorecesssem na luta pela conquista definitiva de um pedaço de chão.

Os TEMPOS DA PROFECIA tinham chegado a plenitude.

Dom Pedro Casaldáliga, bispo profeta e poeta, quando visitou a Nova Ronda Alta e pousou num dos barracos, fortificou a esperança de todos por terra e casa compondo até um hino que se tornou verdadeiro canto de “guerra”. Eis a letra:


Nova Ronda Alta, Terra prometida!
Quando a união não falta, sobra Terra e Vida.
Terra Prometida que conquistaremos
com a força unida e os irmãos que temos.

Nós pobres podemos, Deus está junto de nós.
Juntos venceremos muitos curiós.
Para a gauchada que firme onde está,
a golpe de enxada o chão crescerá.

Esta terra é nossa, viva São Sepé,
e não há quem possa dobrar nossa fé.
Cada encruzilhada que vencer o povo
é uma CAMINHADA para o mundo novo.

A terra vermelha como o sangue puro
germina na história o nosso futuro.
Batiza a barragem o resto que espera
águas de passagem, páscoa verdadeira.

Muitos vão em frente de nossa esperança
e dentro da gente todo o povo avança.
A Cruz por bandeira, o amor deste chão.
Somos sementeira de libertação.


II. TEMPO DE UTOPIA

A palavra utopia foi criada por Thomas Morus (1478-1535) por justaposição das palavras gregas topos (lugar, região) e ou (não, negação) para designar a cidade imaginária (que não existe). Costuma ser usada quando se tem um projeto ou sonho de uma sociedade e, por extensão, de um futuro desejável.

As experiências de algumas ocupações e principalmente o treino que tiveram com a “guerra” contra o exército do coronel Curió foi um TEMPO DE FÉ E DE EVANGELIZAÇÃO em que se robusteceram com a mística missioneira personificada em Sepé Tiaraju e particularmente no profeta valente que foi JESUS DE NAZARÉ, simbolizado pelo ícone que passou para a história como a Cruz de Ronda Alta.

No Encontro que os do Natalino tiveram no ano de 1984, com as representações de outros SEM-TERRA de todo o Brasil, juntos se sentiram suficientemente fortes para serem os PROFETAS da Reforma Agrária, agora como movimento autônomo a fim de congraçar todos os Sem-Terra do Brasil. Transformaram-se em Movimento escolhendo para si o nome de MOVIMENTO DOS SEM TERRA (MST).

Face ao projeto capitalista, trazido pelo europeu, no arrastão iniciado pelo “descobridor” Cabral, o MST optou pelo projeto nativo de fundo socialista dos índios, que também depois foi adotado pelos negros QUILOMBOLAS e agora engrossado por todos os movimentos populares dos quais a locomotiva é o próprio MST. A UTOPIA vai se tornando dia-a-dia mais concretizada Haja vista a CONQUISTA DO CAIBOATÉ, a ex-fazenda do latifundiário Southall neste início de 2009.

Neste Encontro Nacional realizado na semana passada a UTOPIA SOCIALISTA foi reafirmada com todas as letras pelo MST. Como bons profetas, anunciam que em 2009 estamos começando uma rica etapa de re-ascenso dos Movimentos Populares. Em época de crise mundial do projeto capitalista, um KAIRÓS (tempo favorável) do projeto em marcha de índios, negros e pobres de todos os matizes é inteiramente possível para um salto qualitativo. Com a união da via campesina com os movimentos urbanos prevêem a confluência da PROFECIA COM A UTOPIA. Foi o que se viu na premiação final do Encontro: a filha de Luís Carlos Prestes, o grande utopista do socialismo brasileiro, em comunhão com a religiosa da mesma congregação da Irmã Dorothy que de bíblia em punho, o livro por excelência da PROFECIA, enfrentou seu próprio assassino.

23/01/2009

O porquê do retorno do sagrado

O artigo do filósofo Charles Taylor, publicado no jornal Corriere della Sera, 15-01-2009, aborda a "tese da secularização" e sugere que hoje vive-se uma redescoberta do espírito. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS








É surpreendente, mas as ciências sociais, de resto nascidas secularizadas, foram até agora cegas e surdas frente aos valores espirituais. Salta aos olhos a total indiferença que não poucos filósofos, sociólogos e historiadores reservam à dimensão do espírito. As consequências desse desinteresse são pesadas no nível da imprensa e da opinião pública, especialmente a culta. Mas não é suficiente que, ao redor da religião, tenha sido criada intencionalmente uma cortina de indiferença e de ignorância; assim, a fé se torna objeto de contínuos ataques. É significativa a frase do Nobel Steven Weinberg, que além do mais é um cosmólogo e não um sociólogo: “Há pessoas boas que fazem coisas boas, e pessoas ruins que fazem coisas ruins, mas, se quiserem encontrar pessoas boas que façam coisas ruins, voltem-se para a religião”. Em alguns países, essa frase se tornou quase um provérbio e é repetida pela imprensa e nos bares. É impressionante que um homem como Weinberg se saia com tal frase, um homem que viveu grande parte da sua vida em um século, o XX, que conheceu os regimes mais opressivos da história. É essa objeção que eu utilizo logo que alguém se sai com a frase de Weinberg. E obtenho, invariavelmente, a seguinte resposta: “Mas o comunismo era uma religião!”. Em síntese, para alguns, a palavra “religião” se tornou sinônimo de irracionalidade e até mesmo de assassínio.

Na prática, há quem entenda por “religião” um complexo de crenças que pode induzir pessoas boas e pacíficas (que não matariam nem uma mosca, sei lá, para conseguir um ganho pessoal) a se transformar em assassinas por uma “causa”. Um modo de pensar bastante rústico, esse. Ao qual se coloca uma outra objeção ainda: Hitler, Stalin, Pol Pot, Mao etc. eram todos inimigos da religião. O outro efeito negativo da mentalidade antirreligiosa é o atraso com o qual o verdadeiro problema da violência que cresce nas nossas sociedades é enfrentado. Ninguém está imune ao risco de ser arrancado da própria vida tranquila e recrutado na violência de grupo. Está na espreita a tentação de assumir como um alvo um outro grupo social e de considerá-lo responsável por todos os nossos males. Ora, a tarefa urgente é entender o que leva grupos inteiros de pessoas a se sentirem prontos para ser cooptados em um projeto do gênero.

Mas temos uma abordagem imperfeita sobre esse problema. Grandes escritores como Fëdor Dostoevskij iluminaram a origem da violência e do delito, que, porém, ainda permanece envolvida no mistério. E é incompleto o conhecimento que temos acerca do caminho seguido por personagens dotados de carisma espiritual, como Gandhi, para convencer as massas a repudiar a violência, parando-as justamente quando estavam por ultrapassar a linha de não retorno. Sem intervenção de autoridades espirituais, frequentemente os esforços melhor intencionados também não conseguem impedir que a história se faça “sobre a mesa do açougueiro”, como disse Hegel. E dá calafrios pensar que Robespierre votou contra a pena de morte nas primeiras discussões sobre a Constituição republicana.

Recentemente, trabalhei para compreender quais são hoje os significados e as implicações do termo “secularização”. Durante muito tempo, a sociologia considerou esse processo como inevitável. Algumas características da modernidade – o desenvolvimento econômico, a urbanização, a mobilidade em contínuo aumento, o nível cultural mais alto – eram vistas como fatores que teriam provocado um inevitável declínio da crença e da prática religiosa. Era a famosa “tese da secularização” e, durante muito tempo, dominou o pensamento nas ciências sociais e nos estudos históricos. Essa convicção foi abalada por acontecimentos recentes. A religião reagiu à modernização, respondeu ao desafio demonstrando a própria vitalidade. Em todo o caso, porém, a religião se tornou a base para uma mobilização política e o fenômeno é inclusive ameaçador, dadas as proporções que assumiu. É hora de conhecer a fundo essa dinâmica, os benefícios e os malefícios que comporta, ver claramente em um mundo que a velha teoria da secularização ainda esconde à vista. A incapacidade de distinguir a dimensão espiritual da vida humana nos torna incapazes de explorar temas vitais. Então, trata-se de reportar a espiritualidade ao centro e em domínios abertos em que descobertas decisivas são possíveis.

No mundo secularizado, ocorreu que as pessoas se esqueceram das respostas às principais perguntas sobre a vida. Mas o pior é que se esqueceram também das perguntas. Os seres humanos – que o admitem ou não – vivem em um espaço definido por perguntas profundas. Qual é o sentido da vida? Existem modos de vida melhor e piores, mas como são reconhecidos? Quais são os modos úteis para o indivíduo e para a comunidade à qual pertence? Qual é o fundamento da minha dignidade pessoal, que eu procuro defender por mim mesmo, a cada dia? As pessoas têm fome de respostas para todas as questões e, se se dão conta ou não, sentem a necessidade de vê-las resolvidas por qualquer um. Haverá quem considere errada ou absurda a minha ideia. Eu estou certo de que é fundamentada.

Fala-se de “descoberta do espírito”, em analogia com as descobertas que ocorrem na biologia, física e química. Mas é mais exato falar de “redescoberta do espírito”: o homem tem uma excepcional capacidade de se esquecer de coisas que conhecera e depositara no profundo do coração. Os filósofos, a partir de Platão, analisaram essa característica humana. Heidegger fala, a propósito, de “esquecimento do ser”. Eu penso que o homem desliza em uma “desmemória do ser”. Creio que caímos em um tipo especial de esquecimento. Em todo o caso, o mundo moderno se funda sobre uma cadeia bem precisa de desmemórias.

Uma das regras principais do saber humano é tirar para fora as respostas inarticuladas que as pessoas se dão na vida. Por isso, temos necessidade de um novo conhecimento da razão. Não se trata simplesmente de se mover com procedimento dedutivo por meio de um argumento. É necessário também saber trazer à superfície aqueles valores vividos profundamente pelas pessoas, isto é, articulá-los, dar voz a eles. Penso que é muito perigoso esquecer os valores, porque novidades positivas diversas emergiram no nosso tempo, enquanto o povo respondera, de um certo modo, às perguntas que as novidades pressupunham. Boa parte da violência ocorrida no nosso mundo provém do fato de que os jovens são recrutados por causas que os transformam em horríveis robôs assassinos. Quem os recruta é uma oferta que promete dar um conteúdo às suas vidas. Estão sem trabalho, sentem-se sem futuro, não têm (não podem ter) o sentido da dignidade. Sim, deram uma resposta a uma pergunta. Uma resposta extremamente destrutiva, porque autodestrutiva. E nós estaremos desesperados, se não conseguirmos recomendar-lhes, em tempo útil, uma resposta diferente.


21/01/2009

Frei Luiz Carlos Susin

Fórum Mundial em Belém/PA

Concebido no interior de Fórum Social Mundial de janeiro de 2003, em Porto Alegre, chega à terceira edição o Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Desta vez, como a aproximação ao Fórum Social Mundial se tornou um critério, vai acontecer em Belém/PR, às vésperas do Fórum Social Mundial, de 21 a 25 de janeiro. Com três edições, a primeira em 2005, em Porto Alegre/RS, a segunda em 2007, em Nairóbi, capital do Quênia, e agora a terceira em Belém, já temos um pouco de história para contar: como o Fórum Social Mundial, começamos em poucos, de tal forma que o primeiro pareceu mais um “congresso constituinte”, já que foi um fórum apenas sob convite, mantendo representatividades continentais, para que houvesse não só uma primeira aproximação do estado atual das teologias cristãs ao redor do mundo, mas também algumas decisões sobre o caminho a ser percorrido. Foi portanto, um primeiro fórum “fundador”. Na ocasião, adotando o mesmo lema esperançoso do Fórum Social Mundial – Outro Mundo é Possível - foram desenvolvidos alguns traços muito gerais sob os quais aconteceram os debates: Deus para outro mundo possível, Religião para outro mundo possível, Teologia para outro mundo possível. As conferências e painéis, juntamente com um panorama global da teologia por continentes, foram publicados no livro Teologia para outro mundo possível (SUSIN Luiz Carlos [org], São Paulo: Paulinas, 2006). O livro está traduzido para espanhol e inglês.

O Fórum Mundial de Teologia e Libertação se estruturou com um Comitê Organizador, composto das instituições e organizações que criaram o processo inicial, um Comitê Internacional para representar as regiões, e uma secretaria permanente em Porto Alegre. Para cada Fórum se cria um Comitê Local de sustentação da realização. Assim nos lançamos para a segunda edição, em Nairóbi. As consultas nos levaram a focar como grande lema do segundo Fórum, a experiência espiritual: Espiritualidade para outro mundo possível! Houve grande unanimidade em tratar do coração da experiência cristã, a relação circular entre espiritualidade e engajamento no mundo. Em Nairóbi houve uma abertura para diálogo inter-religioso, o que ocorreu com grande liberdade e confiança mútua, com fortes interrogações mútuas também. Esta é a vantagem de um Fórum sem oficialidade das autoridades das Igrejas ou Religiões, mas de pessoas preocupadas e intelectualmente preparadas para um debate franco num mundo em que a relação das diferentes tradições religiosas se torna importante para a convivência e a paz.

Esta terceira edição, que acontece em plena Amazônia, se volta para o cuidado ecológico, e também nisso a teologia quer dar sua contribuição. As crenças, a sensibilidade espiritual, os valores sagrados, são uma faca de dois gumes: podem potencializar a destruição ou a redenção da mãe terra. Uma sacralização do domínio, da apropriação, do crescimento sem medidas, torna impossível a mudança que hoje necessitamos para a continuidade da vida na terra. As tradições espirituais têm potencial, no entanto, para focar a sacralidade que envolve toda forma de vida, inclusive, é claro, a forma frágil da carne humana. Na Amazônia, o planeta é mais água do que terra, e o casamento de água e terra é tão intenso que os amazônidas insistiram para que o lema juntasse “Água e Terra para outro mundo possível”. É assim que vamos a Belém, com um crescimento expressivo de participantes já inscritos, com uma multiplicidade de ofertas de oficinas, com algumas novidades, como um espaço de “Café teológico”, outro espaço para audiovisuais, e com uma participação expressiva não apenas de teólogos e teólogas, mas de membros de movimentos e pastorais sociais, de pessoas interessadas na proposta do Fórum, que pode ser consultada no site: www.wftl.org.


19/01/2009

Pe. Jaime Carlos Patias, imc

FSM 2009: A participação dos missionários e missionárias da Consolata


Teólogos, estudantes e professores, além de pessoas ligadas aos movimentos populares, pastorais e educação popular estão sendo esperados para as discussões teológicas a partir do tema "Água, Terra, Teologia - para outro mundo possível".

Depois de Porto Alegre ter sido a sede em 2001, 2002 e 2003, o Fórum Social Mundial - FSM migrou para Mumbai, na Índia, em 2004, retornando à capital gaúcha em 2005. No ano seguinte, o evento foi descentralizado e se realizou em três lugares: Bamako, em Mali, Caracas, na Venezuela, e Karachi, no Paquistão. Já a sua sétima edição, em 2007 foi realizada em Nairóbi, no Quênia. A dinâmica do Fórum suscitou uma série de atividades e iniciativas paralelas e ao mesmo tempo integradas, como por exemplo, o Fórum Mundial de Teologia e Libertação - FMTL.

Com mais de dois milhões de habitantes, Belém do Pará, a principal cidade da região amazônica, no norte do Brasil será sede, entre os dias 21 e 25 de janeiro do III FMTL e de 27 de janeiro a 1º de fevereiro, da 8ª edição do FSM, reunindo boa parte da população mundial que segue acreditando e sonha com um mundo justo, humano, equilibrado e ecológico e trabalha nas mais diversas frentes em favor dele. A secretaria do evento já recebeu mais de 80.000 inscrições. O poder público local e federal já investiu mais de 145 milhões de reais com obras para receber o Fórum em Belém. É importante esclarecer que o FSM não é uma entidade, nem uma organização, mas um espaço de debate democrático de ideias, aprofundamento da reflexão, formulação de propostas, trocas de experiências e articulação de movimentos sociais, redes, ONGs e outras organizações da sociedade civil que trabalham para “outro mundo possível”. Após sua 1ª edição em 2001, o FSM tornou-se um processo mundial permanente, de busca e construção de alternativas às políticas neoliberais. O evento se caracteriza também pela pluralidade e pela diversidade, tendo um caráter não confessional, não governamental e não partidário.

Movidos pelos mesmos ideais alguns missionários e missionárias da Consolata no Brasil, participam desse processo desde a sua origem. As decisões do XI Capítulo Geral do Instituto Missões Consolata - IMC, (São Paulo, 2005) sinalizam claramente que “além do anúncio aos não-cristãos, a pobreza urbana, as minorias étnicas, justiça, paz e integridade da criação e os novos areópagos são um desafio ao nosso empenho Ad Gentes (cfr. XI CG nn. 23-32). O Capítulo confirma ainda que, “faz parte do nosso carisma a opção preferencial pelos pobres na sua situação de sofrimento, ânsia de justiça e caminhada de fé e de esperança” (XI CG 24). Uma das propostas operativas prevê que “as nossas comunidades apoiarão as iniciativas de Justiça e Paz e Integridade da Criação - JPIC promovidas pelo Instituto e colaborarão com outras entidades civis e religiosas que trabalham neste setor, como o Fórum Social Mundial e continentais”(XI CG, 76.6). Nessa perspectiva as escolhas do Instituto estão em plena sintonia com a Carta de Princípio do FSM e com os objetivos de ação traçados para a edição de Belém. Apenas para citar: “pela construção de um mundo de paz, justiça, ética e respeito pelas espiritualidades diversas, livre de armas, especialmente as nucleares; pela defesa da natureza (Amazônia e outros ecossistemas) como fonte de vida para o Planeta Terra e aos povos originários do mundo (indígenas, afrodescendentes, tribais, ribeirinhos) que exigem seus territórios, línguas, culturas, identidades, justiça ambiental, espiritualidade e bom viver”, são dois dos dez objetivos do FSM 2009.

Em janeiro de 2007, em Nairóbi, os missionários e missionárias da Consolata reuniram, durante o FSM, os responsáveis pelo setor de JPIC atuando nas diversas circunscrições da África e os diretores das 13 revistas editadas pelos dois Institutos, para no espírito do evento, participar do II FMTL e caminhar em sintonia com os princípios defendidos pelas organizações e movimentos que participam do FSM. Dando continuidade a essa experiência, em 2009, os dois Institutos levam a Belém do Pará, cerca de 60 missionários e missionárias, entre religiosas, padres, leigos e leigas, ligados aos trabalhos de evangelização e promoção humana para participar do III FMTL e do VIII FSM. Teólogos, estudantes e professores, além de pessoas ligadas aos movimentos populares, pastorais e educação popular estão sendo esperados para as discussões teológicas a partir do tema "Água, Terra, Teologia - para outro mundo possível". A seguir, os participantes juntam-se às atividades do FSM.

Com o apoio da ONG Missionini Consolata ONLUS, missionários e colaboradores apresentarão projetos desenvolvidos em quatro países, com a participação das comunidades e em sintonia com a soberania dos povos e culturas, os direitos da pessoa humana, o respeito pela biodiversidade e a valorização das culturas como patrimônio da humanidade. As iniciativas incluem a resistência dos Povos Indígenas de Roraima no Brasil, a Escola de Perdão e Reconciliação - ESPERE e o projeto com o povo Nasa do Cauca na Colômbia, a captação sustentável de água na floresta de Mukululu, no Quênia e valorização da língua, arte e cultura do povo Macua em Moçambique. Com o título “Retratos da sabedoria de povos e culturas como garantia da sobrevivência do Planeta e da Humanidade”, o Painel acontece nos dias 30 e 31 de janeiro, nas instalações da UFPA, Pavilhão Lp, Sala Lp 02, e faz parte do 6º eixo temático das atividades do FSM. Além disso, dois estandes farão exposição de material e informações sobre o trabalho dos dois Institutos no mundo.

Conforme padre Antônio Fernandes, conselheiro Geral IMC, “a participação dos missionários e missionárias da Consolata em eventos dessa natureza, torna-se fundamental no caminho da ‘Continentalidade’ contribuindo para a construção coletiva da nossa Missão, em estreita colaboração com as demais forças em ação. A intensa programação nos oferece inúmeras possibilidades para aprofundar temas em debate na construção de um outro mundo possível e criar aliança com organismos e movimentos articulados”. O objetivo do Painel sob a responsabilidade da ONG Missioni Consolata ONLUS é “socializar saberes e riquezas dos povos na convivência sustentável e harmoniosa entre si e com a natureza, dando visibilidade da sua contribuição como sujeitos de um outro mundo”. Espera-se com isso, fomentar a reflexão e a troca de experiências como meios de luta pelo acesso responsável aos bens comuns da humanidade e da natureza. Com o mundo mergulhado em mais uma crise já estamos saindo da hegemonia total do neoliberalismo. Nesse sentido, o Fórum realizado no coração da Amazônia, ganha força na busca de alternativas.

Informações: www.imconsolata.org.br/fsm2009
Site FSM: www.fsm2009amazonia.org.br
Fórum de Teologia e Libertação: www.wftl.org

Fonte: CEBs Sul-1

16/01/2009

Pe. Xavier Léon-Dufour

Artigo do teólogo e professor Faustino Teixeira sobre o Padre Xavier Léon-Dufour, jesuíta francês falecido em 13 de novembro de 2007.



Nesses tempos de “inverno eclesial” algumas perdas se fazem sentir de forma muito dolorosa. Ficamos um pouco mais órfãos depois de 13 de novembro, quando partiu um dos mais brilhantes exegetas da tradição cristã, o jesuíta Xavier Léon-Dufour. Esse notável pensador nasceu em Paris no ano de 1912. Ordenou-se sacerdote no ano de 1943, tendo decidido seguir os estudos na área de exegese do Novo Testamento. Foi responsável pela cadeira de exegese durante muitos anos na Faculdade Teológica de Lyon-Fourvière (1957-1974), e depois no Centre Sèvre de Paris. São clássicas as suas produções na área exegética, com destaque para o Vocabulário de Teologia Bíblica (1962) e o monumental Comentário sobre o Evangelho de João (1988-1996), em quatro volumes. Pode-se ainda destacar suas publicações envolvendo os temas da ressurreição (1971) e a eucaristia (1977).

Nessa minha breve reflexão vou me servir de dois livros recentes que traduzem o rico itinerário acadêmico de Léon-Dufour: Un bibliste cherche Dieu (2003) e Dieu se laisse chercher. Dialogue d´un bibliste avec Jean-Maurice de Montremy (1995). Ele mesmo se define num de seus livros como um buscador do mistério: “no ponto de partida, Deus. No ponto de chegada, Deus”. A seu ver, a melhor maneira de definir o mistério de Deus foi apontada por um padre da Igreja: Deus Pai como o “olho da fonte”. Trata-se de um mistério que se expande gratuitamente no rio do mundo. Da fonte invisível jorra sem cessar a água da generosidade divina. Deus é, assim, movimento incessante e dilatação infinita. É o Logos que “ilumina todo ser humano” (Jo 1,9) desde o início da criação e ao longo da história da revelação. Léon-Dufour argumenta que essa imagem do “olho da fonte” expressa de forma bem mais feliz a idéia de Deus do que a veiculada pela tradição cristã, ao simbolizar Deus como o olho inserido no centro de um triângulo. Para essa abertura teológica foi de grande importância uma longa viagem feita por Léon-Dufour na Ásia em 1968. Ele mesmo reconhece que foi a ocasião propícia para novas interrogações que transformaram sensivelmente sua compreensão cristã. Firma-se a partir dali uma mirada teológica livre e ousada, bem como uma tomada de consciência das limitações greco-latinas que obstruem a afirmação de uma linguagem cristã mais arejada.

A passagem pelo Oriente possibilita uma reavaliação das formulações tradicionais sobre a Trindade, de forma a favorecer um melhor diálogo com outras tradições religiosas: “Se digo que as 'pessoas' (da trindade) são antes de tudo manifestações de uma única e mesma realidade na ordem da nossa experiência, não suprimo o mistério, mas torno possível uma discussão com aqueles que invocam, adequadamente, a unicidade de Deus”. A seu ver, as formulações dogmáticas captam apenas rincões limitados de uma paisagem que é bem mais ampla. Há que alargar as janelas e mudar as angulações para garantir a vitalidade da visada. Na busca de superação de uma linguagem que pode pecar pela arrogância, Léon-Dufour encontra na “universalidade do evangelho do amor” um caminho alternativo.

Para ele, é o amor que está no centro da mensagem de Jesus: “do mesmo amor com que o Pai me amou, eu também vos amei” (Jo 15,9). Nesta admirável tradução feita por Léon-Dufour visa-se acentuar a “novidade” da natureza do amor que Jesus recebe do Pai e que vai vincular os discípulos entre si. Na dinâmica do mistério da trindade, Jesus vive uma relação única com Deus, sem porém apagar a irrevogável alteridade do Pai. Jesus é aquele que se preenche com a água da fonte, sendo o Espírito o rio que a difunde universalmente. Em seus estudos sobre o evangelho de João, Léon-Dufour busca garantir a alteridade do Pai. Não há ali nenhum sinal de cristolatria ou culto a Jesus. A seu ver, “Jesus nada é senão em relação ao Pai”, uma relação que é incessante e que revela o núcleo (coração) de um mandamento novo: “amai-vos uns aos outros”.

As pistas exegéticas de Léon-Dufour serviram de base para singulares reflexões de teólogos que vêm trabalhando o tema do pluralismo religioso, como Jacques Dupuis. Vale lembrar, em particular, a questão da ação contínua do Logos na história, que instaura uma aliança vital e substantiva entre Deus e todos os seres humanos. A morte desse grande exegeta deixa-nos mais tristes, mas também mais conscientes da importância de levar adiante sua reflexão e a fazer ecoar o amor por todos os cantos. Como ele bem salientou, seremos todos julgados não pelas formulações das doutrinas que aderimos em nossa tradição, mas pelo “amor vivido”.

Fonte: UNISINOS

14/01/2009

O deserto fértil de Dom Helder

Artigo do jornalista Eugênio Mattos Viola estraído da ADITAL


"Se eu dou comida a um pobre, me chamam de santo, mas se eu pergunto por que ele é pobre, me chamam de comunista".

Talvez essa frase possa servir como síntese da vida de Helder Pessoa Camara, nascido em 7 de fevereiro de 1909, em Fortaleza, no Ceará.

Combatido pelas elites insensíveis ao sofrimento humano e carregando a cruz do preconceito, ele não se deixou abater e chegou a ser indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel da Paz. Percorreu o mundo na luta contra todo tipo de opressão. Mereceu o reconhecimento internacional, enquanto no Brasil seu nome era proibido de ser mencionado pela mídia durante mais de dez anos, no triste período de total cerceamento da ditadura militar, em seguida ao AI-5, em 1968. "A justiça e a paz serão estabelecidas ao fim de tortuoso caminho, de longas marchas e contramarchas em que os homens se irão depurando dos ódios, das vaidades e dos preconceitos. Se o ódio pode ser mais forte e intenso do que o amor, num curto espaço de tempo, só o amor construirá para sempre", escrevia o editor Ênio Silveira na apresentação de um dos livros de Dom Helder (O Deserto é Fértil), publicado pela Civilização Brasileira, naquele período de trevas. Como Gandhi, abraçou a perseverança - a Força da Verdade (Satyagraha). Sabia discernir com sua abençoada sabedoria a diferença entre a caridade, que vê no pobre apenas o objeto de sua generosidade - do expurgo de suas culpas conscientes e inconscientes -, daquela que é a verdadeira caridade: a que tenta resgatar os desamparados, ofertando possibilidades concretas de alcançar o que não lhe foi proporcionado na infância ou ao longo da vida, como direito à educação, saúde, salário digno, moradia descente, ou seja, esperança e não apenas esmola.

Ordenado padre em 15 de agosto de 1931, em 1952 era nomeado bispo-auxiliar no Rio de Janeiro. Participou da criação do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM). Dom Helder alcançou altos cargos na hierarquia eclesial, mas a humildade nunca o afastou do povo de Deus. Teve influência marcante nos novos rumos adotados pela Igreja durante e pós o Concílio Vaticano II, que abriu as janelas do Vaticano para que os ventos da História tirassem a poeira do trono de Pedro. Seu espírito se manifestou leve e sábio nos tantos livros que deixou publicado. Os profetas não se calam. Tornam o deserto fértil, mesmo sob o martírio.

"É bom que ninguém se iluda, ninguém aja de maneira ingênua: quem escuta a voz de Deus e faz sua opção interior e arranca-se de si e parte para lutar pacificamente por um mundo mais justo e mais humano, não pense que vai encontrar caminho fácil, pétalas de rosa debaixo dos pés, multidões à escuta, aplausos por toda a parte e, permanentemente, como proteção decisiva, a Mão de Deus. Quem se arranca de si e parte como peregrino da Justiça e da Paz, prepare-se para enfrentar desertos". E ele soube enfrentar os desertos com firmeza e mansidão de espírito.

Schopenhauer dizia que "talento é quando um atirador atinge um alvo que os outros não conseguem; gênio é quando um atirador atinge um alvo que os outros não vêem". Quando muitos se esforçavam para ‘catequizar’ os jovens, Dom Helder enxergava além e serenamente apontava o caminho: "Os jovens estão sempre com suas antenas ligadas, e sabem muito bem como captar os sinais do amor apaixonado e apaixonante de Deus. Por que falar sempre de ‘prática religiosa’e jamais de ‘prática evangélica’, feita de amor e de coragem, sempre a serviço dos outros? Ao que tudo indica, essa prática não foi abandonada. Muito pelo contrário, eu a vejo em plena ação por onde quer me passe. Se os jovens vão menos à igreja, talvez seja porque nela não encontram adequadamente reunidas a Vida e o Evangelho". Era uma visão profética, nos idos de 70, do esvaziamento dos templos e seminários, principalmente na Europa e na América do Norte, como constata-se atualmente."O desespero, na juventude, é a coisa mais terrível que há, tão terrível que mal posso pensar nisso. E, no entanto, me dizem que ele existe aqui, que está ao lado e em torno de vocês! Exorto-vos a não aceitarem de braços cruzados, jamais! A pior coisa que se pode retirar de um jovem é sua esperança no futuro. Tenham coragem e firmeza para auxiliá-los a reconquistá-la".

Como diz Frei Betto "procura-se incutir nos jovens a idéia de que não adianta querer mudar o mundo, exceto no que se refere à tecnologia e à ciência. Mas há os jovens que lutam por ‘um outro mundo possível’, que preferem injetar utopia na veia do que drogas". E Dom Helder foi um eterno jovem. A santa utopia corria em suas veias, em seu coração, em suas palavras, dando o fôlego necessário para enfrentar desertos e tempestades.

Não é difícil imaginar o quanto seria enriquecedora a participação de Dom Helder nas atuais divergências entre os irmãos Clodovis Boff e Leonardo Boff sobre a teologia da libertação.

"Não devemos ficar tão presos assim às palavras. É possível que muitas pessoas não hajam compreendido bem a essência da ‘teologia da libertação’, pois ouviram dizer que ela tinha influência marxista, ou coisa parecida. Mas há também os que a entendem, adequadamente, como a redescoberta do poder revolucionário do amor de Deus na história dos homens, o que lhes parece muito perigoso. É por isso que se vê tanto debate em torno da ‘teologia da libertação’, embora seja indiscutível que o Cristo queira que todos os homens lutem pela libertação de seus semelhantes. O progresso humano, a campanha contra as causas das injustiças, a conquista da dignidade, são a maneira mais direta dos homens poderem cooperar para a sua própria redenção e salvação, causas pelas quais o Senhor deu sua vida". Sem aprofundar muito os pontos de vista levantados por cada um, observo que a síntese do pensamento de Clodovis é de que o pobre não leva necessariamente ao Cristo. O pobre estaria ocupando lugar do Cristo, o que seria uma heresia. Enquanto a visão de Leonardo é justamente contrária, de que "o Cristo leva necessariamente ao pobre, é a Face do Cristo. Diante dessa polêmica, bem ressaltou o teólogo José Comblin: "Quem vai sofrer com essas controvérsias, são os pobres. Os teólogos têm comida garantida, casa garantida. Se são condenados, não vão sofrer muito. Quem vai sofrer serão os pobres na medida em que a Igreja se desinteressa deles por medo de cair numa heresia. Sempre ouvi Gustavo Gutiérrez dizendo que a teologia da libertação pode morrer e não importa. O que importa, são os pobres. Para um cristão a teologia é algo completamente secundário e dispensável. Mas os pobres não são dispensáveis. Não se pode ser cristão sem acolher a mensagem que vem dos pobres".

Quem terá perdido um pouco da Compaixão? Quem teria trocado - como os fariseus-, o Amor pela Lei? Os que acusam os teólogos da libertação de terem se valido de elementos do marxismo na leitura da História ou os que propõem uma atuação pastoral vertical, voltada para uma dimensão que coloca em segundo plano a Condição Humana?

O que é inquestionável é que a Conferência de Medellín, em 1968, foi o ‘aggionarmento’ da Igreja na América Latina, deixando no passado uma atuação condenável em relação aos índios, aos escravos, aos desamparados, firmando pacto com os Estados e a aristocracia, com as forças opressoras que de cristã nada tinham. Essa chama não pode morrer, ainda que muitos apontem que haveria ‘poeira ideológica’. É um debate rico, que convida à participação até de ‘não-crentes’ na busca de um mundo mais digno e fraterno, como fez o Cardeal Carlo Maria Martini ao se abrir no belo diálogo epistolar com o escritor Umberto Eco no livro "Em que crêem os que não crêem?". Dom Helder com o olhar voltado para o Ecumenismo já tinha declarado anos antes: "desculpem-me se porventura lhes dei a impressão de que apenas os crentes, os cristãos, é que podem trabalhar por um mundo melhor. Não é assim que penso de modo algum. Quando olho em torno de mim, logo percebo que nem todos os que se dizem crentes têm esperança verdadeira de paz, justiça e felicidade para os homens, para os que vivem nesse mundo de riscos e incertezas, ao passo que muitos daqueles que em nada crêem, que sequer reconhecem a existência de Deus, estão dispostos a participar nos combates da esperança sem receio de colocar suas próprias vidas em jogo. Bem imagino a surpresa que muitos terão quando souberem que o Senhor dirá àqueles que sem O conhecerem - ou reconhecerem - viveram a fraternidade universal: "Agradeço-vos por me terdes acolhido, tratado, vestido, alimentado, defendido e amparado contra a injustiça’. Muitos cristãos, muitos católicos terão surpresa ao constatar que não serão eles os únicos convidados a entrar na casa Pai. Pois o coração do Pai é muito mais amplo do que os registros de todas as paróquias do mundo, e o Espírito Santo sopra em todas as direções, mesmo aquelas onde os pés dos missionários não tenham ainda pousado".

Nesses dias de angústia em que nos sentimos impotentes diante do ‘holocausto dos palestinos’, da fúria israelense sobre Gaza - sem poupar crianças, mulheres e idosos -, Dom Helder dizia ‘por mais que o homem avance na ciência e na técnica, enquanto houver guerras no mundo daremos um triste atestado de falta de amadurecimento espiritual’.

Como as muitas vozes que hoje apontam para a urgência de aprofundamento dos avanços do Concílio Vaticano II de João XXIII, como a necessidade do fim do celibato, da eleição direta dos bispos, da maior participação dos leigos na construção do Reino, da maior inserção das mulheres na hierarquia eclesiástica, do fim da condenação ao homossexualismo. Como as vozes dos apaixonados pela Igreja, que enxergam além de nosso tempo cronológico e sofrem com o esvaziamento dos templos, abrindo espaço ao surgimento e fortalecimento dos falsos pastores e profetas que arrebatam multidões aflitas e assumem o controle da mídia. Como vozes que não atingem o coração da Cúria Romana e são até perseguidos. Como vozes que vêem da América Latina do bispo Dom Clemente Isnard ou da Europa do Cardeal Martini, Dom Helder também já havia se manifestado e deixado como legado em sua biografia espiritual: "sou um velho bispo, e não tenho receio em pedir-lhes que jamais se conformem com as fraquezas, os compromissos, ou talvez até mesmo com as traições da Igreja, assim como jamais perderem a confiança no Espírito do Senhor, que sempre está dentro dela".

Certa vez, questionado por um grupo de jovens franceses sobre a razão de Deus permitir o sofrimento humano, Dom Helder despiu-se de todas as doutrinas, de toda fria intelectualidade e, numa demonstração de humildade, de quem também chorou no Monte das Oliveiras, respondeu: "Eu bem que gostaria, quando chegar a minha hora de partir para a eternidade, de levar comigo um bom número de perguntas que desejo fazer, um bom número de questões sobre as quais preciso ser esclarecido, um bom número de hipóteses que pretendo verificar. E isso sem falar nos mistérios que jamais chegarei a esclarecer, a respeito dos esforços que Deus faz para ser entendido perfeitamente. Bem sabemos que o Senhor conheceu o sofrimento. Ele foi capaz de chorar. Ele teve de alimentar, de curar, de consolar. Ele já teve de reconduzir um filho aos braços de seus pais. No entanto, quando a agonia O acometeu, Ele próprio não teve dúvida em implorar piedade. Ele jamais nos disse que o sofrimento era bom, necessário ou Justo".

Dom Helder Camara foi ao encontro do Senhor no dia 28 de agosto de 1999, aos 90 anos de idade. Para ele, já não há mais mistérios ou dúvidas. Para nós, ficou a certeza de uma vida dedicada em plenitude ao amor, humildade e fé. Em fevereiro do ano passado, a Comissão Nacional de Presbíteros, vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), encaminhou à Congregação para a Causa dos Santos o pedido de beatificação de Dom Helder Pessoa Camara. Em seu deserto, nasceram flores.

Os negritos são do blog.

12/01/2009

Dom Sérgio da Rocha

















A paz: dom e tarefa


O início do novo ano tem sido ocasião de manifestação renovada do anseio de paz. As pessoas oram pela paz e desejam a paz nas felicitações de ano novo. Paz é dom! Por isso, pedimos a Deus este precioso dom, que acolhemos com gratidão e louvor, reconhecendo nele a fonte da paz. Paz é tarefa! Por isso, acolhemos com responsabilidade o dom da paz a ser cultivado em cada dia do novo ano.

Aqueles que acolhem o dom da paz, fruto do amor de Deus, tornam-se coresponsáveis pela construção da paz no mundo. É preciso construir a paz na vida cotidiana, através de gestos concretos de amor fraterno, solidariedade, compaixão e perdão. As pessoas e as famílias necessitam de paz. Contudo, o anseio e a necessidade de paz ultrapassam os muros de nossas casas e os nossos gestos pessoais. O clamor pela paz brota por toda parte, especialmente, nas periferias sofridas das grandes cidades, nas zonas marcadas pela violência e marginalidade, nas áreas rurais atingidas por conflitos de terra. Espalha-se pelo mundo em meio à destruição e ao sofrimento causado por conflitos armados.

A paz é fruto da justiça; sem justiça social não poderá haver verdadeira paz. Por isso, a construção da paz implica na superação das múltiplas formas de violência e desrespeito à vida, à dignidade e aos direitos das pessoas e dos povos. É importante recordar a concepção bíblica de paz expressa pelo termo hebraico “shalom”, que é de um conteúdo tão rico que dificilmente pode ser bem traduzido. Não se trata de mera ausência de conflitos ou guerras; não se confunde com passividade, acomodação ou vida fácil. “Paz” no sentido bíblico significa plenitude de vida, felicidade completa, o que inclui as condições de vida digna para a pessoa, a família e o povo.

Por isso, para se ter paz verdadeira e duradoura na sociedade, é preciso assegurar o cumprimento da justiça social. A propósito, temos o sugestivo e desafiador título da Mensagem de Bento XVI, publicada por ocasião do Dia Mundial da Paz, celebrado no primeiro dia do ano: “Combater a pobreza, construir a Paz”. Nela, destacam- se a “luta contra a pobreza”, a superação da “marginalização dos pobres” e a necessidade de “solidariedade global” entre países ricos e pobres, como também, no âmbito interno de cada nação, a fim de se construir a paz. Somos todos responsáveis pela paz; ninguém pode ficar de fora do mutirão permanente de construção da paz, que se faz de gestos pequenos do dia-a-dia até as grandes decisões políticas. Os cristãos têm a grave responsabilidade de oferecer sua contribuição, assumindo com esperança e renovado empenho esta tarefa da qual depende em grande parte o futuro da humanidade.

Fonte: Arquidiocese de Teresina

10/01/2009

Thomas Merton

Imaturidade e narcisismo do amor

“ (…) Os psicólogos usam palavras bem ásperas para a imaturidade e o narcisismo do amor em nossa sociedade mercadológica, na qual ele é reduzido a uma necessidade puramente egoísta que exige satisfação imediata ou manipula os outros de maneira mais ou menos inteligente a fim de obter o que deseja. Mas a pura verdade é esta: o amor não é uma questão de se obter o que se deseja. Muito pelo contrário. A insistência em sempre ter o que se deseja, em sempre obter satisfação, em sempre ser saciado, torna o amor impossível. Para amar, você precisa sair do berço, onde tudo é ‘obter’, e crescer para a maturidade da doação, sem se preocupar em obter alguma coisa especial em troca. O amor não é uma transação, é um sacrifício. Não é marketing, é uma forma de culto.

Na realidade, o amor é uma força positiva, um poder espiritual transcendente. É, de fato, o poder criativo mais profundo na natureza humana. Enraizado nas riquezas biológicas de nossa herança, o amor floresce espiritualmente como liberdade e como resposta da criatura à vida num encontro perfeito com uma outra pessoa. É uma apreciação viva da vida como valor e como dom. Responde à fecundidade, à variedade e à total riqueza da própria experiência viva; ele ‘conhece’ o mistério interior da vida. Deleita-se com a vida como uma fortuna inesgotável. O amor aprecia essa fortuna de uma maneira impossível ao conhecimento. O amor tem a sua própria sabedoria, sua própria ciência, sua própria maneira de explorar as profundezas interiores da vida no mistério da pessoa amada. O amor sabe, compreende e satisfaz as exigências da vida, na medida em que responde com calor, abandono e entrega.”

Um pensamento para reflexão: “O amor é o nosso verdadeiro destino. Não encontramos o sentido da vida sozinhos ­— nós o encontramos com um outro. Não descobrimos o segredo de nossas vidas apenas pelo estudo e pelo cálculo em nossas meditações isoladas. O sentido de nossa vida é um segredo que nos tem de ser revelado no amor, por aquele que amamos.”

Fonte: Reflexões de Thomas Merton

06/01/2009

O mundo íntimo e os combates de um trapista rebelde

por Leonardo Fróes (poeta, tradutor e ensaísta)

A atual barbárie humana, com um consumismo perdulário de um lado e, do outro, multidões de famintos, acha-se prefigurada no horror que Thomas Merton expressa, em seus diários, pela sociedade americana que instituiu e globalizou o modelo. "Penso que o mundo americano em 1967 – Escreve ele em 27 de maio desse ano, quando já estava há mais de um quarto de século em seu mosteiro rural do Kentucky – é um mundo de estupidez crassa, cega, hiperestimulada, falsa e enganadora."

Quer no restante da anotação em pauta, quer nas de igual teor que se sucedem sem conta, Merton assume posturas tão radicais quanto as dos jovens dissidentes da América, os poetas da beat generation e os membros de movimentos conexos, que nas décadas de 50 e 60 tudo fizeram para demolir os valores do sonho capitalista montado sobre as premissas do ódio, da segregação, do materialismo vulgar e do egoísmo.

Muitos desses dissidentes, como os poetas Gary Snyder e Lawrence Ferlinghetti, tornaram-se amigos e correspondentes de Merton. Já as obras nada canônicas de outros, como Allen Ginsberg e Gregory Corso, ele lia e comentava com o maior interesse. Em junho de 1966, em A Midsummer Diary for M., uma das partes mais explosivas dos diários, o monge se pergunta se seria adequado, para um trapista eremita, gostar de Bob Dylan. Mas, superando a dúvida, ouve-o na solidão do claustro e garante: "Para mim ele significa pelo menos tanto quanto algumas partes da nova liturgia e, talvez, de certo modo, até mais."

Em 10 de dezembro do mesmo ano, Merton registra a visita que Joan Baez lhe fizera. Encantado com a cantora rebelde, durante toda uma tarde, entre cervejas e discos e passeios nos bosques de seu distante mosteiro, descreve-a como "moça muito pura e honesta", como "criança meiga e viva" que era com toda razão considerada "uma espécie de santa do movimento pacifista".

O próprio Thomas Merton, embora recolhido desde 1941 à abadia de Gethsemani, da qual só costumava sair para escapadas em torno, era a essa altura um ferrenho opositor da guerra do Vietnã e um líder respeitado e atuante na luta pelos direitos civis dos negros. Ambos os temas se espraiam com persistente relevo pelas anotações dos diários. Em 26 de abril de 1967, Merton afirma que essa guerra tornara os Estados Unidos "mais ricos do que nunca", para em seguida redigir um desabafo dramático: "Encaro o fato de estar vivendo numa sociedade imoral, cega e até mesmo, em certo sentido, criminosa, que é hipócrita, arrogante, virtuosa a seus próprios olhos e incapaz de enxergar seu verdadeiro estado – de modo geral as pessoas estão ‘bem’ enquanto não são perturbadas em suas vidas cômodas e complacentes. Não conseguem ver o preço de sua ‘respeitabilidade’. E eu sou parte disso e não sei o que fazer a respeito – além de gestos simbólicos e fúteis."

Para os leitores católicos das décadas de 50 e 60, Merton passara a ser, sobretudo após a publicação de The Seven Storey Mountain (A Montanha dos Sete Patamares), sua autobiografia de 1948 que fez enorme sucesso em todo o mundo, um guia espiritual voltado para a procura de Deus. Quem hoje o aborda nos diários, seja ou não seja adepto de uma religião qualquer, percebe que seu discurso, naquela época, incorporou uma mudança de rota, transferindo-se cada vez mais da esfera neutra do sagrado para as candentes complicações profanas.

A fé do monge do Kentucky e antigo morador do Greenwich Village nunca sofreu nenhum abalo. Mas agora, na intimidade desses escritos que nem ele nem ninguém censurava, ei-lo a descrever-se como "um homem que não tem idéias claras sobre Deus, mas que apenas anda de um lado para outro à espera de ser fulminado por Deus como se por um raio". Na condição de escritor que luta com as palavras para dar sentido e clareza ao pensamento, e de inteligência hipercrítica que jamais compactuaria com as soluções pastosas dos santarrões sem conteúdo, ele afirma que "é desastroso falar de Deus". E, não ocultando seus conflitos, nem mesmo os de ordem sentimental, acrescenta: "Tanto Deus como eu estamos perdidos. E isso é o começo de tudo."

A repulsa pelos Estados Unidos torna-se mais compreensível quando se sabe que Merton, nascido na França em 31 de janeiro de 1915, só se radicou em solo americano já por volta dos 20 anos, depois de uma passagem por Cambridge e com uma boa formação européia. Ora provinda da percepção de injustiças, ora motivada por ostentações de força e riqueza, tal repulsa é um dos fatores que o levam a idealizar a América Latina como região quase virgem, cheia de contradições e problemas, mas a seu ver ainda imune à religião do dinheiro. Insatisfeito com os rigores do abade dom James Fox, que nunca o deixa sair para grandes vôos mundanos, e aborrecido com admiradores incômodos que o assediavam cada vez mais no mosteiro, Merton registra várias vezes seu desejo de se mudar para o Chile, a Nicarágua ou o México, em busca de maior solidão e de realidades menos ofensivas para sua sensibilidade de artista.

Antes de entrar para a ordem dos trapistas, em 10 de dezembro de 1941, Merton fez uma viagem a Cuba, que ficaria como sua única experiência direta dos latinos e da qual talvez se origine o interesse crescente que nutriu por eles. Datado de fevereiro a maio de 1940, o Cuban Interlude, que descreve essa viagem, integra o primeiro volume dos diários e é uma perfeita ilustração dos contrastes que ele supunha existir entre as duas bandas da América.

As igrejas arruinadas, mas com marcas de devoção sincera e humilde, os bares bem abertos que se prolongam nas ruas, os risos hospitaleiros, a displicência e as espertezas e o colorido tropical dos cubanos dão um banho de simplicidade e pureza na sofisticação do inquieto viajante, que saíra de Cambridge para concluir seus estudos em Columbia e aí fazer o mestrado em Letras com uma tese sobre a poesia de Blake. "Havana – escreve Merton – não é menos barulhenta que Nova York. Mas é menos cruel e preocupada. É um lugar mais feliz e mais bonito e mais louco que, por estranho que pareça, não tem nada da grosseria e brutalidade de Nova York, nada da precipitação e amargor de Nova York, nada da vulgaridade de Nova York, exceto o tanto que a própria Nova York e Miami já exportaram para Cuba."

Lugar idílico de fuga para a falta de empatia de Merton com a América triunfalista do Norte, todo o vasto rincão ao sul do dólar tornar-se-ia para ele ainda mais cativante pela leitura sistemática de seus muitos poetas, como Cesar Vallejo, Octavio Paz, Pablo Neruda e Ernesto Cardenal. Este, que o teve por mestre de noviços quando passou por Gethsemani, permaneceu para sempre um grande amigo e foi um elo do monge com o mundo literário da América hispânica. O pendor de Merton pelos latinos, não raro associado a críticas à política de Washington em relação à área, acabou por estender-se ao Brasil, onde 41 de seus livros foram publicados na época em que sua influência se fez notar com mais força. Além de registrar a correspondência mantida com brasileiros como dom Helder Câmara, Alceu Amoroso Lima e a irmã Maria Emmanuel de Souza e Silva, freira beneditina de Petrópolis que traduziu a metade desses livros, os diários se referem à grande atração que ele sentia pelos nossos poetas, em especial Bandeira, Drummond e Jorge de Lima, os quais lia no original.

A partir de 1963, quando o trabalho de escritor o absorvia de todo, com a ininterrupta encomenda de artigos e a constante publicação de seus livros em várias partes do mundo, Merton pôde eximir-se de muitas das rotinas monásticas ao montar uma espécie de escritório campestre numa casinhola afastada do corpo principal da abadia. Três anos depois, foi autorizado a se mudar para esse tosco eremitério no mato, onde, a princípio sem luz e até sem água encanada, pretendia devotar-se à sua busca de Deus na solidão mais completa. "A solidão é uma revolta e uma aceitação do absurdo", escreve ele nessa fase, em 18 de junho de 1966, quando lia com agrado os existencialistas, principalmente Camus, e autores das mais diversas vertentes então na ordem do dia, de Pavese a Marcuse, de Artaud e Faulkner a Bachelard e Lévi-Strauss.

Na nova vida do eremita, que então passava dos 50 anos e aos 26 se fizera monge, quatro tópicos se evidenciam nas anotações do diário: as desconfianças quanto ao monasticismo pétreo e a esperança de uma via ecumênica; uma abertura cada vez maior para as tradições espirituais do Oriente; o deslumbramento com a natureza; e a experiência do amor por M., a mulher que o desequilibra no voto de castidade e o faz atravessar uma crise na própria compreensão do amor por Deus.

Em 9 e 11 de junho de 1967, quando conta estar relendo O Castelo, de Kafka, Merton diz que esse romance é "um tratado irônico de eclesiologia", pois "descreve exatamente a vida na Igreja Católica", com sua rígida estrutura de mando e "a criação de um mundinho de mistério pseudo-sobrenatural de gabinetes curiais dos quais emanam instruções, recompensas e advertências incompreensíveis". A vida de castelo, cuja "angústia e alienação neurótica Kafka descreve tão sutilmente", não se resume para ele, de resto, à obediência intramuros dos religiosos: encontra-se também "na General Motors, no Pentágono, na Madison Avenue e no Kremlin", este último um dos alvos freqüentes de seus clamores ante o totalitarismo, um crime contra o ser humano e o que nele sobrevive como a parte divina.

Com a mesma intensidade com que se rebela contra a estrutura ainda fechada da Igreja, Merton se abre para as correntes islâmicas, em especial o sufismo, e pouco a pouco se torna, de tanto ler sobre o assunto, um especialista ocidental em zen-budismo. Sua visão somatória, embora se aproximasse das decisões tomadas pelo Concílio do Vaticano II, revela-se, porém, mais profunda que as regras de atualização e reforma originárias de Roma. O ecumenismo de Merton, que ele já punha em ação há vários anos, nas suas relações com pessoas das convicções mais diversas, leva-o a conhecer no eremitério uma dilatação do sagrado. Do respeito votado às tradições extrínsecas, como se todas as religiões fossem a mesma, segundo o axioma de seu mestre William Blake, o monge passa ao respeito pela vida temporal das espécies, perdendo até a consciência de si – a consciência tirânica e fictícia do ego – ao absorver-se na contemplação dos animais e das plantas que cercam sua casinhola feliz.

M. ingressa nos diários no começo de abril de 1966, tornando-se presença obrigatória até setembro do mesmo ano, quando então passa a surgir em ocasiões esporádicas e sempre mais esbatidas. Porém, durante todo um semestre, o amor por essa moça, enfermeira de um hospital de Louisville onde ele se internara para uma operação na coluna, leva o grande recluso a cometer pequenas transgressões e sandices, como qualquer adolescente enfeitiçado, para burlar a vigilância monacal a fim de comunicar-se ou encontrar-se com ela. Graças à conivência de amigos, os encontros não são poucos, e chegam à intimidade mais próxima. Um ano depois, em 10 de abril de 1967, já liberto do ardor dessa paixão, Merton comenta: "Foi bom para mim (nós) passar pela tormenta; era o único meio de aprender uma verdade que de outro modo seria inacessível."

Em 11 de maio do mesmo ano, ele deixa por escrito, no próprio corpo dos diários, uma instrução para que as quase quatro mil páginas desses textos tão pessoais, caso viessem a ser publicadas um dia, não o fossem senão 25 anos depois de sua morte. E acrescenta não querer que o caso com M. seja mantido em sigilo, pois foi parte importante de sua vida e, como ele mesmo escreve, "mostra minhas limitações, bem como um lado meu que é – bem, que precisa ser conhecido também, porque é parte de mim".

A partir de janeiro de 1968, com a eleição de um novo abade, dom Flavian Burns, para Gethsemani, a situação de Thomas Merton muda completamente e ele é autorizado a viajar ao Alasca, à Califórnia e à Ásia. Em outubro, embarca para o Oriente. Deveria participar de um seminário com lideranças católicas e de um grande encontro ecumênico, além de estabelecer contatos com monges e dirigentes budistas. Nos dias 4, 6 e 8 de novembro, entrevista-se em Dharamsala, na Índia, com o atual Dalai-lama.

Os diários, iniciados em 2 de maio de 1939 em Nova York, só se interrompem bruscamente em 8 de dezembro de 1968 em Bangcoc. Dois dias mais tarde, após ter feito na capital tailandesa uma palestra intitulada "Marxismo e Perspectivas Monásticas", Merton se recolheu para a sesta e, eletrocutado por um ventilador com defeito, morreu sozinho em seu quarto. Estava com 53 anos. Numa anotação datada de 14 de setembro de 1967, ele havia profetizado: "Espero morrer por volta dos 56 ou 57, já cansado de tanta estupidez."

De acordo com a vontade do autor, os sete volumes de The Journals of Thomas Merton só foram publicados, pela HarperSanFrancisco, entre 1995 e 1998. Em dezembro último, saiu a edição compacta de uma seleção de passagens, The Intimate Merton, His Life from His Journals, que a editora carioca Fisus já anuncia para breve em tradução brasileira.

Fonte: Mertoniano