24/08/2009

Dom Bruno Forte

A parábola do humanismo ateu


"É possível uma ética sem Transcendência? Pode haver um código moral normativo e compartilhado sem a referência a Deus, ao 'Deus último'?" Essas são as perguntas colocadas por Bruno Forte, arcebispo e teólogo italiano, em artigo para o jornal Avvenire, da Conferência Episcopal Italiana, 19-08-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



No debate aceso nestes dias na imprensa sobre o conceito de niilismo e de humanismo ateu, a partir da frase pronunciada por Bento XVI no Ângelus do dia 09 de agosto com relação aos "campos de concentração nazistas, símbolos extremos do mal, como o niilismo contemporâneo", gostaria de me inserir concentrando-me em uma única pergunta, a que, do ponto de vista das consequências práticas, parece-me a mais decisiva: é possível uma ética sem Transcendência? Pode haver um código moral normativo e compartilhado sem a referência a Deus, ao "Deus último"?

Se sim, ele deve fundamentar a exigência absoluta de fazer o bem e de evitar o mal, a partir do momento em que não existiria nenhum absoluto no qual ancorar-se? Ou o bem se justifica por si mesmo e se impõe com uma evidência tal que não requeira motivações ulteriores? E o mal? Ele também é tão evidente que não supõe qualquer imperativo categórico em relação ao qual se coloca como contraponto, negação obstinada e até irônica do "assim chamado bem"?

Muitas vozes em séculos de história responderam a essas perguntas em uma mesma direção: o bem existe e é absoluto. Ele se identifica também com o próprio Absoluto, do qual é o rosto atraente, o esplendor irradiante, a exigência amável, o dom perfeito. O mal é a resistência oposta a esse apelo, o apaixonado permanecer na negação, a luta vivida em nome de uma causa falsa, a da própria liberdade entendida como absoluto contra o Absoluto.

Entre o mal e o bem, a escolha não seria então mais do que uma: com Deus ou contra Deus. Pelo Absoluto, ou pelas onívoras garras do nada? Do ethos clássico à moral dos Dez Mandamentos, ligadas ao Grande Código da aliança com o Deus bíblico, do sermão da montanha às exigências de justiça do direito romano, é essa implantação de uma moral fundada na transcendência que regeu os destinos da vida pessoal e coletiva do Ocidente.

É com o surgimento moderno do valor central da subjetividade que mudam também os termos do problema: da heteronomia – em que se queria forçar todo o complexo acenado de uma ética pela fundação objetiva e absoluta –, pretende-se sair para passar para o mundo da autonomia, rumo aos prados de uma vida moral emancipada, onde a coragem de existir autonomamente seja estendido do cognoscitivo "sapere aude!" – ousa saber! – ao decisório "libere age! – age segundo o código de uma liberdade absoluta!. A autonomia aparece como o desafio irrenunciável sobre o qual pode-se medir qualquer imperativo moral, para verificar se ele nos torna mais ou menos livres, mais ou menos humanos.

Dar normas a si mesmos, ser sujeito e não objeto do próprio destino, esse parece ser o projeto a ser seguido. A embriaguez desse sonho contagia os espíritos mais diversos, em formas burguesas ou revolucionárias, de progresso ou de conservação, de cálculo frio ou de paixões emotivas. Bem rapidamente, porém, a consciência da impossibilidade de uma ética totalmente subjetiva se impõe à reflexão dos modernos: que bem seria o bem que fosse tão somente para mim? E em nome de qual critério válido para todos se deveria evitar o mal? Não é também a fronteira entre a minha liberdade e a dos outros o limite de toda autonomia? E por que, se uma escolha me resultasse mais vantajosa – em termos morais ou econômicos ou políticos – deveria seguir um critério diferente do simples benefício e agir de maneira diferente?

Se, depois, um comportamento incorreto é difundido – justificado pelo "todos fazem isso!" – em nome de qual valor moral deveria evitá-lo, se a escolha é deixada ao arbítrio pessoal? É a partir do crisol dessas perguntas – as de uma modernidade ferida, insatisfeita com o passado e inquieta sobre si mesma – que se perfila como tema verdadeiramente urgente o da fundação da ética, em uma época em que a passagem do fenômeno ao fundamento parece tão necessário, assim como muito evadido. Além do declínio das pretensões absolutas de uma certa modernidade e a incompletude do niilismo da pós-modernidade enfraquecida, retorna com toda a sua força a necessidade de uma ética da transcendência, que, se faltar, tudo é permitido. Quatro teses poderão ajudar a compreender seu sentido, que, a meu ver, esclarece e motiva, da maneira mais adequada, as palavras do Papa. Formularei assim a primeira tese: não há ética sem transcendência.

Não pode haver agir moral onde não houver o outro, reconhecido em toda a espessura irredutível da sua alteridade. A fundação da ética é inseparável desse reconhecimento: quem afirma a si mesmo a ponto de negar conscientemente ou de fato todos os demais sobre os quais se mede, no ato mesmo dessa afirmação cheia, idolátrica, nega a si mesmo como sujeito moral, nega também a possibilidade mesma de uma escolha ética entre bem e mal, porque afunda toda diferença no oceano asfixiante da própria identidade. Nenhum homem é uma ilha: e quem pensa ou quer ser isso, no ato mesmo de pensá-lo ou querê-lo, anularia assim a si mesmo como sujeito de relação, e por isso de vida e de história real. A negação do outro é negação de si. Fazer do outro o "estrangeiro moral" é fazer-se estrangeiro à verdade de si mesmos, é renegar a mais profunda dignidade do próprio ser pessoal e do próprio destino. Não há responsabilidade e vida moral sem um movimento de êxodo de si para ir rumo ao outro, principalmente se frágil, indefeso e sem voz ou capacidade de fazer valor seus próprios direitos. A essa primeira tese se une diretamente a segunda: não há ética sem gratuidade e responsabilidade.

Essa segunda tese recorda como todo movimento de transcendência tem um caráter gratuito e potencialmente infinito: sair de si em vista de um retorno, calcular com o outro ao fim de um interesse próprio é esvaziar de todo valor a escolha moral, tornando-a simplesmente um comércio ou uma troca entre pares. Aqui, a lição de Kant conserva toda a sua verdade: o imperativo moral ou é categórico e portanto incondicional, ou não é. Ou ou destinar-se ao outro é um ato gratuito e sem condições, motivado apenas pela exigência e pela indigência do outro – "exode de soi sans retour", diria Lévinas – , ou não é autotranscendência, mas reflexo, projeção de si fora de si em vista do retorno egoístico a si mesmo. Nesse caráter gratuito e potencialmente infinito da transcendência moral, compreende-se como a alma mais profunda dela é o amor, o dar sem cálculo e sem medida pela única força irradiante do dom. O bem é razão em si mesmo!

A terceira tese dilata a segunda às formas da objetividade social e comunitária: não há ética sem solidariedade e justiça. É no próprio movimento de autotranscendência que se descobre a rede dos outros que circunda o eu como fonte um conjunto complexo de exigências éticas: harmonizá-las de modo que o dom feito a um não seja ferida ou fechamento aos outros é conjugar a moral com a justiça. Regular de forma coletiva essa rede de exigências é medir-se na necessidade do direito: não é a abstrata objetividade da norma, nem o despotismo do soberano que funda a autoridade da lei, mas a urgência de harmonizar as relações éticas para que nenhuma esteja em vantagem exclusiva de alguns e a despeito da dignidade de outros. A ética da solidariedade integra aqui a ética da responsabilidade, retirando-a do risco sempre próximo de um seu destruir-se no absolutismo infecundo da intenção apenas. O bem comum é medida e norma do agir individual, especialmente no campo dos deveres cíveis.

Enfim, quase se reconhece que o movimento de transcendência para com o outro e a rede de outros na qual estamos postos apresenta um caráter de exigência infinita, no horizonte da ética perfila-se uma outra transcendência, última e escondida, da qual a próxima e penúltima é rastro e atualização: a ética remete à transcendência livre e soberana, última e absoluta. No rosto dos outros está o imperativo categórico do amor absoluto que me alcança, e na absolutez da urgência da solidariedade com o mais frágil está um amor infinitamente indigente que me chama.

Essa transcendência absoluta, essa absoluta necessidade do amor é o princípio que une a ética filosófica à ética teológica: aqui, a ética da responsabilidade e a ética da solidariedade apelam à ética do dom, à moral da Graça. Aqui, o amor – soberana exigência moral – remete ao Amor como eterno evento interpessoal do único Deus. Aqui, nas formas do ser o um para o outro, está o impossível amor, gratuitamente doado ao outro, que deve ser narrado no tempo: a caridade, que "nunca terá fim (1 Cor 13,8). Sobre ela, medir-se-á a verdade profunda das nossas escolhas: no entardecer da vida, seremos julgados pelo amor! Compreende-se assim como o Papa da "Deus caritas est" e da "Caritas in veritate" é a chave interpretativa mais autêntica e iluminadora da frase pronunciada no Ângelus do dia 09 de agosto passado.

[grifos do blog]

Para ler mais:


23/08/2009

Monge Thomas Merton

Um livro impublicável

[Carta a Jacques Maritain, fevereiro de 1963]

“Não quero importuná-lo com uma grande quantidade de minhas coisas, mas estou postando um exemplar mimeografado de meu livro ‘impublicável’ sobre ‘Paz na Era Pós-Cristã’*.

Impublicável porque proibido por nosso corretíssimo Abade Geral que não quer deixar a civilização cristã sem a bomba para coroar sua história de honra. Ele sabe que minha defesa da paz fausserait le message de la vie contemplative [falsificaria a mensagem da vida contemplativa]. O fato de um monge preocupar-se com este problema é considerado – pelos ‘bons monges’ – escandaloso. Uma distração odiosa que afasta a atenção do Menino Jesus no Berço. É estranho dizer, mas ninguém parece preocupado com o fato de que o berço está diretamente sob a mira da bomba.”

Um pensamento para a Reflexão: “Rezemos uns pelos outros e pelo mundo, e que Deus tenha piedade de nós e nos dê a luz que tanto necessitamos, a força, a paciência e todas as outras coisas que, pelo menos a mim, fazem total falta. Pareço completamente esvaziado de tudo.”

Fonte: Reflexões de Thomas Merton

12/08/2009

Jürgen Moltmann

Evangelho: compreendes o que lês?


A seção Teologi@ Internet, nº 136, 04-06-2009, do sítio da editora italiana Queriniana, publicou a “Lectio Magistralis” do teólogo alemão Jürgen Moltmann, proferida no Festival de Teologia, em Piacenza, Itália, neste ano. No artigo, Moltmann aborda suas experiências e ideias sobre a relação entre a teologia e o estudo do Novo Testamento. A tentativa é a de responder a seguinte questão: “O que dizem os estudiosos do Novo Testamento aos teólogos e o que dizem os teólogos a quem estuda o Novo Testamento na leitura comum da Sagrada Escritura?”. A tradução é de Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS




Compreendes aquilo que estás lendo? A exegese do Novo Testamento e a questão hermenêutica em teologia

A relação entre os estudiosos do Novo Testamento e os teólogos, e vice-versa, nem sempre foi das melhores, como bem sabeis, porque os primeiros precisam conduzir uma indagação crítica e os segundos devem dar formulação à certeza da fé.

Eu vos proponho, hoje, minhas experiências e minhas idéias sobre a relação entre a teologia e o estudo do Novo Testamento. Na realidade, a exegese do Novo Testamento está marcada pela tendência moderna de ceder ao historicismo, enquanto a teologia está marcada pela tendência de se autocompreender como filosofia cristã da religião, e assim ambas se afastam igualmente uma da outra, quem sabe, para não interferirem nem se perturbarem reciprocamente. Mas, existem também os alertas ao que nos é comum. A base de nossa leitura é o mesmo livro: o Novo Testamento no contexto do cânone bíblico. Certamente o lemos com olhos diversos e com diferentes interesses, mas trata-se das mesmas palavras e idéias e é a mesma mensagem que lemos. O que dizem, então, os estudiosos do Novo Testamento aos teólogos e o que dizem os teólogos a quem estuda o Novo Testamento na leitura comum da Sagrada Escritura?

A resposta é ao mesmo tempo simples e difícil, precisamente como acontece no encontro do apóstolo Felipe com o “funcionário etíope de Candace”. Este, em sua carroça, lia o profeta Isaías e exatamente no momento em que estava lendo o cap. 53 chegou em “Gaza, que é deserta” (como hoje). Filipe para o carro e interpela o leitor da Bíblia com a pergunta hermenêutica: “Entendes o que estás lendo?” e, “partindo daquele ponto da Escritura, anunciou-lhe (o Evangelho de) Jesus” (At 8,35). Compreendemos nós o que lemos, e entendemos bem aquilo que sabemos? Esta é a pergunta comum a exegetas do Novo Testamento e a teólogos, e se esta é a pergunta teológica dirigida aos exegetas do Novo Testamento que conhecem os seus textos do ponto de vista da crítica textual e do ponto de vista histórico, isso pressupõe, no entanto, nos teólogos, que também eles leiam o Novo Testamento com a ajuda dos exegetas: por conseguinte, a pergunta hermenêutica é dirigida a nós: “Aquilo que queres compreender, também o lês?“. Feliz o exegeta do Novo Testamento que sabe unir em si ambas as coisas, como o soube fazer Charles Moule; infeliz o teólogo que não o sabe fazer. Mas, como é possível unir as duas coisas, para responder à pergunta hermenêutica de tal modo que se possa acreditar?

No decurso dos meus estudos em Göttingen, entre 1948 e 1952, tive dois mestres do Novo Testamento, famosos em nível internacional: Joachim Jeremias e Ernst Käsemann. Com o professor Jeremias se podia aprender a exegese histórica, trabalhando com precisão sobre os textos. Sua teologia era, no entanto, uma devoção pessoal a Jesus, que ele aprendera na comunidade dos Fratelli de Herrnhut. Com Ernst Käsemann se era constrangido à mesma fadigosa análise dos textos, mas também sempre se era provocado imediatamente a uma decisão teológica. Sobre os evangelhos sinóticos era forte Jeremias; na Carta aos Romanos do apóstolo Paulo, Käsemann se sentia no seu elemento teológico. Na minha juventude segui Käsemann e estudei o que Jeremias propunha somente por dever. Na minha velhice comecei a apreciar sempre mais Jeremias. Como posso unir o melhor dos meus dois mestres do Novo Testamento?

1. Os métodos exegéticos e o problema teológico

Tenho grande respeito pelos métodos científicos, com os quais os meus colegas de Novo Testamento indagam os textos, mas eu também me permito levantar interrogações teológicas.

1. O método histórico-crítico: Na minha juventude teológica este foi o primeiro método que aprendemos. O luminoso resultado de tal método foi a Leben-Jesu-Forschung (Pesquisa sobre a vida de Jesus). Albert Schweitzer publicou sua história em seu maravilhoso livro de 1906. É a história da progressiva libertação do verdadeiro “Jesus da história”, do Cristo em quem se crê com os dogmas cristãos. Albert Schweitzer escrevia com admiração: “A pesquisa sobre a vida de Jesus foi, para a teologia, a escola da veracidade. Uma luta pela verdade, tão dolorosa e plena de renúncias como é condensada nas Vidas de Jesus dos últimos cem anos, o mundo jamais a havia visto e nunca mais a verá”. Quais são as fontes, e como são avaliadas, quando se trata de lendas? Como pode a exposição histórica acertar-se com os “milagres sobrenaturais” de Jesus? O Jesus histórico se considerou pessoalmente o messias, o Cristo? Quais os ditos que remontam ao próprio Jesus, e quais lhe foram atribuídos pelos evangelistas? Conhecemos melhor Jesus compreendendo-o como personalidade histórica? Albert Schweitzer chegou a um resultado negativo: “Na pesquisa sobre a vida de Jesus as coisas andaram de modo estranho. A mesma partiu para encontrar o Jesus histórico e achou que depois podia inseri-lo, assim como ele é, na nossa época, como mestre e salvador. Esta pesquisa escolheu os elos com os quais há séculos ele era fixado à rocha da doutrina da Igreja, e se alegrou quando... viu chegar-lhe ao encontro o homem histórico Jesus. Ele, no entanto, não parou, mas seguiu além de nossa época e retornou à sua” (631-632). E sua época, de 2000 anos atrás em Israel, nos é estranha. Tudo há muito tempo já é tão longínquo que, como se diz na Suécia, “quase quase não é mais verdadeiro”. Todavia, segundo Albert Schweitzer, como um “desconhecido e anônimo”, ele vem ao nosso encontro como aos homens junto ao lago de Genesaré, e diz somente: “Segue-me”, e nos coloca diante das tarefas que ele deve enfrentar em nossa época. Aqui, somente a “vontade moral” sobrenatural nos liga hoje ao Jesus de Nazaré, o qual viveu e morreu há dois mil anos em terras da Judeia. Este é o resultado ao qual chegou Albert Schweitzer, já que ele não podia crer na ressurreição de Jesus.

Entrementes, os pressupostos do historicismo não são para nós tão evidentes. A relação histórica com a história conduz ao conhecimento de “fatos” e a separá-los das interpretações. Todavia, os fatos podem ser ou não ser conhecidos. Eles se tornaram mudos e nós não os entendemos. Na realidade, todavia, não há fatos sem interpretações. Em cada fato habita o seu significado e os próprios fatos começam a nos falar de acordo com a problemática com a qual nos aproximamos deles. O historicismo “historicizou” e reduziu ao silêncio a história viva, separando assim o presente do seu passado. Mas, se a história nada mais tem a nos dizer, por que devemos ocupar-nos dela?

Através de que, propriamente, uma pessoa da história se torna histórica? Através de seu passado, através de sua morte. O Jesus histórico é o Cristo morto, para dizê-lo de modo duro, mas com clareza. “Nós históricos – assim escrevia um conhecido homem de ciência de Göttingen, que foi Reinhard Wittramfazemos uma estranha atividade: habitamos cidades dos mortos, ocupamo-nos de sombras, cadastramos os desaparecidos... A história passada é uma cidade dos mortos. Jamais vamos além disso” (Das Interesse an der Geschichte [O interesse na história], Göttingen 1958, 16.30). Foi este o erro dos estudiosos da Leben-Jesu-Forschung [Pesquisa da vida de Cristo]: o fato de indagar a história de um morto e considerar Jesus sob a perspectiva da história de morte? Como aparece a história de Jesus se nós, na base de sua ressurreição, a lemos como a “História de um vivente”, como Eduard Schillebeeckx intitulou o seu livro sobre Jesus? Talvez nos encontremos então no mesmo comprimento de onda dos evangelistas, os quais contam a vida de Jesus, sua obra e sua morte, à luz da ressurreição, tornando-a, assim, atual? Não devemos considerar o passado como o conjunto dos tempos perdidos, mas podemos considerá-lo também como “futuro passado”, como propôs Reinhard Kosellec. Interrogamo-nos, então, sobre o futuro presente no passado.

2. Nos anos vinte do século passado apareceu o método da história das formas (Formgeschichte), cujos representantes na Alemanha foram Martin Albertz e Rudolf Bultmann. Deixou-se de lado a indagação sobre os fatos e se investigaram os significados. Assim se descobriu que todos os testemunhos do Novo Testamento tem o seu específico “Sitz im Leben” [= inserção na vida]: se é um dito, o Sitz im Leben é procurado num diálogo; se é uma parábola, num discurso religioso; se são partes de uma liturgia ou um anúncio em pregações, se são cantos ou preces na comunidade. Os textos começaram a ser lidos em seus contextos e, para obter a melhor compreensão, se indagaram os contextos sociais que os textos deixaram reconhecer. É verdade que os interesses eram absolutamente ambivalentes: foram investigados os contextos sociais, econômicos e políticos para compreender melhor os textos, ou será que se usaram os textos para procurar os contextos? No final, penso eu, é o texto que faz tornar-se contexto o seu Sitz im Leben, e não vice-versa: nem todos os exegetas são, no entanto, da mesma opinião. Das diversas “teologias contextuais” modernas também se aprende mais sobre os contextos da pobreza em diversos países, do que sobre o texto bíblico que fala de sua libertação. O método da história das formas é um método típico das ciências sociais e, para quem o utiliza, ele determina a base socioeconômica da superestrutura espiritual e religiosa. Rudolf Bultmann, que soube utilizá-lo magistralmente em exegese, deve tê-lo entendido: enquanto utilizava este método para explicar os evangelhos sinóticos, ele o transformou na interpretação existencial para compreendê-los teologicamente, de modo que a interpretação do texto permitisse, ao mesmo tempo, ao leitor a interpretação de si mesmo. Para esta interpretação a religião é “uma questão privada” (Privatsache), priva de qualquer relevância social ou política.

3. Após o método da história das formas foi desenvolvido o método histórico-social. Estamos agora bem informados sobre as condições econômicas na terra da Judéia e da cidade de Jerusalém e, além disso, sobre a sociedade escravagista do império romano. Seguiram os métodos da antropologia cultural, que aprendi a conhecer dos escritos do estudioso do Novo Testamento Gerd Theissen (Evangelische Theologie, fasc. 6, 2008). Na teologia isto é considerado como “cultural turn”: o conhecimento da igreja se torna ciência da cultura religiosa e no estudo do Novo Testamento a hermenêutica científico-cultural toma o lugar do paradigma hermenêutico-bíblico. Em lugar da responsabilidade eclesial da teologia se investiga a relevância cultural da religião cristã. A exegese antropológico-cultural enriquece a exegese histórico-social com perspectivas culturais. Como Paulo, assim também os cristãos das origens se puseram em relação com as culturas do judaísmo e da Grécia, enquanto isso possa ter ocorrido de modo crítico. Com respeito às imagens de Jesus dos evangelhos há tanto analogias internas às culturas como também entre as culturas: por exemplo, Jesus o taumaturgo, os taumaturgos presentes no judaísmo e na Grécia de seu tempo, e os xamãs ativos em culturas distantes ou no presente. Em perspectiva antropológico-cultural o antigo código de honra e vergonha adquire significado para a veneração do Crucifixo, e o código de pureza e impureza é importante para a compreensão da cura, da parte de Jesus, da mulher hemorroíssa. A exegese antropológico-cultural faz tomar consciência do ambiente da Bíblia. A Bíblia vem de um mundo diverso e é ambientada numa cultura diferente com respeito à nossa. A antropologia cultural pode documentar o aspecto irritante e o que é considerado loucura da fé cristã, como também as adaptações cristãs ao mundo cotidiano da antiguidade, como se vê, por exemplo, nas tabuletas domésticas para a vida familiar cristã. Na Alemanha, a moderna teologia protestante da cultura, que veio depois da velha teologia liberal, mostra um forte interesse legitimador ante as primeiras culturas cristãs.

Descrevi assim somente um desenvolvimento dos métodos praticados na exegese do Novo Testamento. Há, além disso, uma multiplicidade de outros métodos para ler os textos: métodos lingüísticos, retóricos, psicológicos. Todos estes métodos são utilizados universalmente e são aplicáveis também ao Corão, à Bagavadgita ou Al Taoteking. Há também uma pluralidade de interesses com os quais são lidos os textos. E eis agora a minha pergunta teológica, que anunciei acima: Como seriam lidos os textos do Novo Testamento, na hora em que se queira ler no sentido dos seus autores e no sentido daquilo de que eles falam? Em tal caso, de objetos de pesquisa eles se tornariam sujeitos do discurso, e nós nos tornaríamos em primeiro lugar ouvintes da palavra. O que, de fato, nos querem dizer os textos do Novo Testamento? Para dizê-lo de modo claro e simples: eles querem anunciar-nos o Evangelho de Jesus Cristo, querem contar-nos e comunicar-nos o Evangelho para despertar a fé. Naturalmente, podem-se indagar os dramas de Shakespeare que falam de reis também do ponto de vista histórico-crítico, para conhecer a história desses reis, mas pode-se, então, entender o seu drama?

Para explicar a coisa de modo um pouco mais forte, recorro a um íncubo: eu me imagino subir ao púlpito, numa igreja, para anunciar o evangelho e, se possível, para suscitar a fé. Porém, não há ouvintes das minhas palavras: nos bancos senta um historiador que analisa criticamente os fatos dos quais falo: depois, há um psicólogo que analisa minha psique, assim como a revelo através do meu discurso; e, além disso, há um antropólogo da cultura, que observa o meu estilo pessoal; e ainda um sociólogo, que indaga a classe social a que pertenço, da qual me considera um representante, e assim por diante. Todos analisam a mim e o meu contexto, mas nenhum escuta o que eu quero dizer. E, a coisa pior: nenhum me contradiz, nenhum quer discutir comigo sobre aquilo que eu disse.

2. Exegese teológica de textos teológicos

Naturalmente, com meu íncubo eu evidenciei a crítica e fiz aparecer alguns colegas meus na melhor luz. Mas, um bom estudo do Novo Testamento não se exaure no emprego daqueles múltiplos métodos de interpretação contextual, embora seja sempre concentrado na leitura e na escuta atenta dos próprios textos e na compreensão do objeto do qual eles falam. Já que os textos do Novo Testamento, como também os do Antigo Testamento, são textos teológicos, no estudo do Novo Testamento trata-se de exegese teológica. Objetivo de todo estudo do Novo Testamento de minha geração, que eu conheça, é o de escrever, pelo menos uma vez na vida, um comentário a um escrito bíblico e, como ideal máximo, é considerado o fato de redigir uma teologia inteira do Novo Testamento, como aquela produzida por Rudolf Bultmann. Nem todos atingem o objetivo e somente poucos conseguem realizar o ideal ao ponto de poder mensurar-se com o livro de Bultmann. Com estas observações penso poder reobter a aprovação dos exegetas do Novo Testamento aqui presentes, já que, em definitivo, no Novo Testamento se trata de textos teológicos e não de documentos históricos ou de análises sociológicas relativas àquela época.

Caso se queira compreender os textos do Novo Testamento no sentido dos seus autores, deve-se entrar em relação com sua mensagem cristã, a mensagem que eles pretendem comunicar. Eu devo compreender o que eles querem anunciar, contar ou descrever como Evangelho de Jesus Cristo. Isso não significa que eu deva estar de acordo ou que somente cristãos possam hoje compreender os cristãos de então. Nem devo ser necessariamente um crente para poder estudar teologia. Mas, a exegese teológica de textos neotestamentários toma os textos ao pé da letra e procura captar o seu conteúdo. Nisto desempenham papel importante, ao qual é preciso prestar sempre atenção, o contexto, o kairós e a comunidade de origem destes textos, mas os textos não tem somente estes ambientes de referência, mas também o seu conteúdo específico, tanto que devemos considerar as suas afirmações também segundo aquilo que é dito.

Uma indagação teológica sobre a teologia do apóstolo Paulo na Carta aos Romanos, em sua época e em sua situação, é, todavia, somente um lado da exegese teológica. Do outro lado se coloca a pergunta sobre o que esta mensagem teológica pode significar para nós hoje. Aqui se levanta a ponte hermenêutica from what meant to what it means (daquilo que tem significado àquilo que significa), e aqui inicia o trabalho do teólogo. Ele deve ler a Carta de Paulo aos Romanos como se ela não fosse escrita somente aos cristãos da Roma de então, mas também a ele, leitor, e aos seus contemporâneos de hoje. Pode então, o teólogo, prescindir do trabalho teológico do exegeta do Novo Testamento e fazer aparecer, como por encanto, sua própria exegese?

Tomemos por exemplo Karl Barth. Seu livro "A Carta aos Romanos" aparece em 1922, deu vida à nova teologia dialética e foi, para muitos, a obra teológica mais importante da primeira metade do século vinte. O prefácio inicia com as frases:

Paulo falou aos seus contemporâneos como um filho de seu tempo. Mas, muito mais importante do que esta verdade é esta outra, de que ele fala como profeta e apóstolo do Reino de Deus a todos os homens de todos os tempos”.

Toda a minha atenção tem sido dirigida no sentido de penetrar com o olhar através do aspecto histórico, segundo o espírito da Bíblia, que é o Espírito eterno”.

É preciso confrontar-se com o texto e com aquilo que nele se encontra até que o muro entre o primeiro século e nosso século se torne transparente, até que Paulo fale lá e o homem escute aqui, até que “o diálogo entre o documento e o leitor seja todo concentrado no conteúdo em questão... enquanto eu, aquele que compreende, devo impelir-me em frente até o ponto em que me encontro ainda quase só diante do enigma do objeto e quase não mais diante do enigma do documento”; portanto, até o ponto em que “esqueço que eu não sou o autor, mas deixo-o falar em meu nome e ele pode, da mesma forma, falar em seu nome”.

Os exegetas do Novo Testamento do seu tempo, ligados ao método histórico, estavam horrorizados: Adolf von Harnack relegou a obra de Barth, em sua biblioteca, ao compartimento “Bela literatura”; somente Rudolf Bultmann a acolheu benevolamente, porque ele compreendeu esta forma de apropriação existencial como teólogo, embora se, como historiador, considerasse estranho que Barth realmente não se tenha interessado “na língua estrangeira judaico-vulgar-cristã-helenística de Paulo”. Com efeito, Barth provoca os seus leitores, já no prefácio, com a declaração que, se tivesse devido escolher entre o método histórico-critico e a velha doutrina da inspiração, ele decididamente teria adotado esta: “Sua validade é maior, mais profunda, mais importante, porque a tarefa que se propõe é o próprio entendimento do texto”.

Barth, no entanto, não teve que escolher e recusou a alternativa que ainda hoje é colocada por fundamentalistas. Ele nem sequer se lançou sobre a Carta aos Romanos com a “Hybris de um pneumático” (Julicher), de modo de todo despreparado e desinibido. Ele, após Calvino, utilizara o comentário, do ponto de vista bíblico-teológico bastante preciso, do exegeta do Novo Testamento de Tubinga, Johann Tobias Beck, mas sem citá-lo particularmente, suponho porque ele queria provocar a corporação [dos exegetas], a qual depois o puniu negando-lhe atenção. Mas, isto é história passada. Karl Barth fixou de modo muito pertinente o lado presente da ponte hermenêutica, a ponte daquilo que tem significado àquilo que significa (what it meant to what it means). Ao meu ver, não existe nenhum entre os teólogos do século vinte que o tenha feito melhor, mais radicalmente e mais eficazmente. Compreendes o que lês tão a fundo que isso vive em ti e se exprime através de ti: Paulo escreve em seu tempo como apóstolo à comunidade de Roma, mas, o que ele diz enquanto apóstolo de Cristo é, no conteúdo, tão extraordinário que atravessa os tempos e promete um futuro diante do qual nós nos encontramos ainda hoje.

Barth não encontrou muitos seguidores que adotassem seu tipo de meditação teológica dos textos neotestamentários. No entanto, há hoje uma série de filósofos que procuram este encontro direto com as idéias do apóstolo Paulo e desenvolvem sua filosofia em diálogo com a Carta aos Romanos, como por um tempo Kierkegaard creu poder viver a “contemporaneidade” com o Novo Testamento. São Alain Badieu, Giorgio Agamben e Slavoj Zizek. Eles se entusiasmam pela radicalidade e os paradoxos presentes no pensamento de Paulo.

Eu próprio creio que nós temos necessidade de ambas as coisas, da New Testament Theology e da Present Theology. Creio também que a New Testament Theology perde interesse se não tende à teologia do presente e que a teologia do presente perde o seu fundamento se não se põe à escuta da teologia do Novo Testamento. Infelizmente, todavia, nos dois campos não há muitos teólogos que lêem os escritos uns dos outros. Por isso, no próximo parágrafo enfrento a questão:

3. O que podem dizer-se reciprocamente a exegese do Novo Testamento e a teologia

Creio que devemos distinguir acuradamente a teologia do Novo Testamento e a teologia do presente, entrelaçando-as, todavia, uma com a outra.

1. A teologia do presente não deveria atribuir os próprios pensamentos ao apóstolo Paulo, para depois divulgá-los com a autoridade dele. Karl Barth escreveu, de fato, sua Carta aos Romanos como se Paulo e ele próprio fossem uma só pessoa, e por isso também o seu título soa simplesmente "Carta aos Romanos". Por amor a Paulo deve-se respeitar o caráter peculiar e a estraneidade da teologia do apóstolo, que remonta a dois mil anos. Deve-se ter respeito também pela própria liberdade e pela própria responsabilidade teológica. Não é permitido apropriar-se da teologia de Paulo, nem é lícito consignar-se à sua teologia, a ponto de renunciar a si próprio. O presente deve conservar o seu direito em relação à tradição. Muitas coisas, nos evangelhos e nas cartas do apóstolo, são condicionadas pelo tempo e não exprimem o “Espírito eterno”. Muitas coisas são decididas hoje e para estas decisões não encontramos nenhuma orientação na Sagrada Escritura. Por isso, eu distingo entre o evangelho de Jesus Cristo que vale para todos os tempos até que ele retorne, e a forma que o texto encontrou no Novo Testamento há dois mil anos.

2. Por isso, a teologia do presente, diversamente da teologia do Novo Testamento, deve entrar num intenso diálogo com o texto e com seu autor sobre o que é dito no texto. Para dizê-lo de modo prático: eu leio o texto segundo a edição crítica do Novo Testamento grego (ed. Nestlé/Aland) e interpelo os respectivos comentários sobre a passagem em questão, depois confronto o que ali é dito com outras passagens que expressam a mesma coisa; além disso, me pergunto se o que é entendido nessa passagem basta e se foi bem expresso, com o resultado de que aceito o texto ou o critico antes de escrever o meu texto ou de fazer a minha prédica. Aceitação e crítica não se orientam segundo o espírito do presente, mas com base no confronto entre o que é dito e o que deve ser dito. Este é o círculo entre a exegese do texto e a exegese (objetiva) do conteúdo.

Forneço um exemplo para o aspecto positivo e dois para o negativo:

a) As afirmações de Paulo sobre o significado do dom de Cristo até a morte de cruz e sobre sua ressurreição dos mortos introduzem tão profundamente nos mistérios da salvação que eu acabo imergindo nestes textos com grande estupor e procuro continuar a pensá-los também para o futuro. Não chego a nenhum fim e de fato não tomo distância da crítica: somente escuto o evangelho de Deus.

b) Os reformadores e todos os teólogos protestantes pensam da mesma forma a doutrina da justificação na Carta aos Romanos, ou seja, “que o homem é justificado por graça”. Também eu creio e retenho que estes capítulos sejam o evangelho dos pecadores. Todavia, quanto mais neles reflito e confronto a doutrina paulina sobre a justificação com a mensagem do reino de Deus anunciada por Jesus aos pobres segundo os evangelhos sinóticos, me surgem dúvidas sobre se o apóstolo não teria entendido unilateralmente somente a justificação dos pecadores, não, porém, a justificação das vítimas. Segundo o cap. 7 da Carta aos Romanos, o homem é aquele que faz o mal e que transcura o bem. Mas, onde estão os outros seres humanos, que “sofrem injustiça e violência” e se tornaram vítimas dos pecados de quem pratica o mal? Deus não procura, quem sabe, “justiça àqueles que sofrem violência”? Não faz justiça aos “órfãos e às viúvas” que são privadas de ajuda? A partir de Paulo e de Agostinho e dos reformadores em diante, na doutrina eclesial sobre a justificação e no sacramento eclesial da penitência somos unilateralmente centrados sobre aquele que pratica o mal. Não devemos considerar e anunciar a justiça de Deus, que cria vida, tendo presentes também as vítimas? Aqui, ao meu aviso, em nome do que nos é comum, é necessária uma integração da teologia do apóstolo: o evangelho das vítimas.

c) Com isto chego, enfim, a tocar dois pontos críticos, nos quais avança uma crítica às afirmações de Paulo, a qual não se refere somente ao tempo em que foram feitas, mas, a meu ver, também ao seu conteúdo: o que Paulo escreve em 1 Cor 14 e 1 Tm 2 sobre a submissão da mulher ao homem e sobre o silêncio da mulher na liturgia hoje não é só anacronístico, mas não corresponde sequer à mensagem de Jesus Cristo, da qual Paulo escreve: “... não há macho e fêmea, porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gal 3, 28); e não corresponde sequer à realidade de sua colaboradora Phoebe, guia de comunidade, e de sua co-apóstola Junia (Rm 16, l..7). Isso, enfim, contradiz a mensagem pascal das mulheres. Por conseguinte, nestas passagens eu não o seguirei, mas o contradirei.

Uma coisa análoga vale em relação aos judeus que, segundo aquilo que se diz, “mataram o Senhor Jesus” (1Ts 2, 14.15). Paulo sabia bem que tinham sido Pôncio Pilatos e os romanos “que mataram” Jesus, e não os judeus. Destes, no máximo se pode dizer que recusaram a mensagem de Jesus. Que por este motivo os judeus “são inimigos de todos os homens” e “não agradam a Deus”, eu, nos capítulos 9-11 da Carta aos Romanos, capítulos que me convencem, não o encontro. “Após Auschwitz”, então, aquela passagem da Carta aos Tessalonicenses é inoportuna, e não é um bom testemunho do Evangelho aos judeus e aos pagãos.

4. Por que devemos ler o Novo Testamento, por que devemos compreendê-lo e interpretá-lo para o presente?

A questão hermenêutica é a questão do ‘como’: como devo compreendê-lo? A hermenêutica não dá respostas à questão do ’por que’: por que devo compreendê-lo? Ela supõe a resposta positiva. Por isso: por que fazemos este esforço?

Talvez porque o Novo Testamento é o documento fundador da tradição cristã e caracterizou a história da nossa cultura européia? Para isso, no entanto, bastariam a pesquisa histórica sobre os documentos e sobre a história dos seus efeitos no cristianismo.

- Talvez porque o Novo Testamento seja lido, explicado e pregado em toda liturgia da Igreja? Isto é verdade: o Novo Testamento não tem o seu Sitz im Leben somente na terra da Judéia de 2000 anos atrás, mas também nos altares e nos púlpitos das igrejas e nas mãos dos leitores de hoje. A palavra que suscita a fé, que motiva o amor e encoraja a esperança, torna Cristo presente. Para compreender esta palavra, a exegese teológica e uma correspondente teologia eclesial do presente são necessárias. Mas, tudo isto basta?

- Agora eu falo como teólogo: a ponte hermenêutica, à qual por mais vezes se acena e que leva do Jesus histórico e de seu Evangelho a nós hoje, é a ponte sobre o rio Lete, o rio do esquecimento. Ela é também a ponte sobre o rio daquilo que passa, já que no fundo é, em primeiro lugar e em definitivo, a ponte do Jesus histórico ao Cristo presente. Se partirmos da presença do Ressurgido, recordaremos a vida, a obra e a morte de Jesus como “a história de um vivente”, precisamente como os evangelistas contaram sua vida e sua paixão à luz de sua ressurreição.

A ponte hermenêutica tem o seu fundamento nesta virada não dedutível e inesperada da morte à vida, que nós reconhecemos como tendo ocorrido em Jesus Cristo: o seu fim temporal tornou-se o seu início eterno. Sobre a ponte hermenêutica percebemos a história da morte de Jesus Cristo à luz do futuro da vida. Olhamos para trás, ao futuro passado de Cristo e vivemos no presente daquele que virá. Na história da morte dos historiadores Jesus se torna ‘histórico’ e permanece a nós estranho; na história do futuro da vida eterna nós o compreendemos e realmente acendemos a chama da esperança nos cemitérios da história, já que Jesus não só ressurgiu de sua morte de cruz, mas ressurgiu “dos mortos” também como o primogênito daqueles que adormeceram e como o autor da verdadeira vida. De tal maneira se chega ao horizonte universal daquilo de que fala o Novo Testamento. No Cristo da Igreja há mais do que a igreja: trata-se da vinda de Deus e do futuro do novo mundo da vida, que supera a morte.

Compreendemos o que lemos? Quando lemos o Novo Testamento e temos dele profunda compreensão, aproximamo-nos de recordações surpreendentes e da fulgurante luz de uma grande esperança.

Filipe tinha, pois, provavelmente razão, quando “começando desta passagem da Escritura, anunciou o Evangelho de Jesus”.

Para ler mais:

10/08/2009

Superioras religiosas dos EUA na encruzilhada

A análise de Ken Briggs, jornalista do The New York Times e escritor especialista em catolicismo. É autor do recente livro "Double Crossed: Uncovering the Catholic Church’s Betrayal of American Nuns". O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 07-08-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Da forma como eu vejo, a Leadership Conference of Women Religious [Conferência das Líderes Religiosas Femininas], que se reúne na próxima semana em New Orleans, está diante de uma escolha muito sombria: ou morrer ou sobreviver com um grande custo à sua integridade e dignidade.

O Vaticano já lançou o desafio. A escolha é severa: consentir com uma "avaliação doutrinal" dos pontos de vista da conferência de líderes religiosas – sobre a ordenação feminina, o primado do Catolicismo Romano e a homossexualidade – ou rejeitar a investigação como um teste injustificado e inclinado a acabar com a organização.

O que temos aqui, creio, pode ser a maior luta sobre uma forma de compreender o que significa ser católico. As religiosas retiveram mais do "ethos" e do espírito do Vaticano II do que qualquer outro grupo da Igreja, em face à formidável oposição por parte dos dois últimos papas a amplos segmentos seus.

Se Roma conseguir destruir esta última reminiscência organizacional do Vaticano II, então todo o catolicismo norte-americano sofre uma grande perda. Porém, a vontade de resistir parece ter se dissipado. Sem um protesto ativo, a LCWR, assim como é conhecida, não existirá mais. Vozes de apaziguamento que aconselham ter confiança nas intenções do Vaticano parecem desconectadas com os objetivos da linha dura de Roma.

Enquanto isso, as duas investigações sobre religiosas estão dando passos largos, apresentadas em termos de check-ups de rotina. Uma examina a "qualidade de vida" nas congregações femininas. Ela aborda os principais componentes do governo, do trabalho e da espiritualidade, áreas que se tornaram as bases da renovação. A outra investigação está apontada diretamente sobre a conferência de líderes religiosas, considerada há muito tempo como um espinho na pele do Vaticano.Tendo falhado durante décadas em quebrar a identidade inspirada no Vaticano II da conferência, a última ofensiva parece determinada a terminar o trabalho.

Renovação foi a palavra que resumiu a busca pela nova vida ordenada pelo Concílio. É uma palavra raramente falada, principalmente porque sua prática pertence amplamente ao passado. Mas a conferência de líderes religiosas continuou sustentando muitos de seus valores.

As superioras das congregações mantiveram quase total silêncio em resposta às investigações. Alguns acreditam nas garantias do Vaticano de que elas não têm com o que se preocupar. E, pelo fato de acreditarem que não fizeram nada de errado, elas não parecem estar preocupadas.

Eu acho, porém, que, se não olharem diretamente para o que está acontecendo e não se pronunciarem contra isso, a luta para preservar mesmo que uma aparência do passado vibrante da LCWR estará perdida. Essa dinâmica conferência, nascida em meio a controvérsias, porque o Vaticano objetou firmemente contra o termo "liderança" em sua mudança de nome, pode perder seu legado de defender não só irmãs, mas também um grupo mais amplo de mulheres católicas e o interesse em renovação do catolicismo norte-americano.

As sementes da subversão da Leadership Conference of Women Religious foram semeadas em 1971, quando as oponentes organizaram um grupo separado chamado Consortium Perfectae Caritatis. Em 1992, o grupo ganhou reconhecimento oficial de Roma e rebatizou-se como Council of Major Superiors of Women [Conselho de Superioras Religiosas].

A conferência alternativa se apresentava como estritamente tradicional e duramente oposta à direção liberal da LCWR. Os EUA, assim, se tornaram o único país do mundo a ter duas organizações de religiosas consagradas reconhecidas. Apenas uma delas, claro, encontrou acolhida no Vaticano. O grupo liberal era suspeito por promover o "feminismo radical", vendendo-se à cultura secular e questionando a autoridade. Para muitos prelados, a conferência de líderes religiosas femininas era tão irritante quanto ameaçadora.

O grupo insurgente se tornou a cunha da separação. Ao longo dos anos, ele empregaria vários meios para tomar vantagem de um grupo de religiosas enfraquecido pela crítica constante dos oficiais da Igreja e retirando o interesse dos ideais do Vaticano II daqueles que estavam cansados de lutar. Entre os seus últimos esforços está o fato de mostrar que as jovens estão afluindo para as ordens "tradicionais" que obedecem as velhas regras, em contraste às grandes perdas entre comunidades envolvidas na renovação. A verdade é um pouco diferente.

Há poucos anos, eu escrevi um livro sobre o destino das religiosas norte-americanas desde antes do Vaticano II até o começo do século XXI. Eu não estava procurando causas particulares das flutuações dramáticas nos números de religiosas e de seu bem-estar, mas compreendi, a partir da pesquisa inicial, que havia muitos fatores envolvidos.

O estabelecimento da CMSW foi um dos principais eventos que me levaram à conclusão de que a hierarquia da Igreja foi a razão principal do fato de a renovação não ter sido capaz de acabar a tarefa e, por isso, ter contribuído vigorosamente para o declínio de tantas comunidades religiosas femininas.

Os críticos de minha conclusão disseram que ela era simplista e colocava a culpa no lugar errado. Alguns disseram que as irmãs chegaram à crise por si mesmas, traindo a verdadeira missão da vida religiosa – e da intenção do Concílio – pelo fato de viverem fora de conventos, exercendo uma variedade de profissões em vez de exercer um serviço comum e escolhendo formas alternativas de culto (não surpreendentemente, "abusos" semelhantes são agora citados em defesa da investigação). O dano causado pelas divisões dolorosas em muitas ordens ao longo dessas grandes mudanças foi citado pelos críticos como uma prova a mais de que as religiosas chegaram a isso por si mesmas.

A menos que as religiosas se tornem obedientes e retornem aos papéis prescritos, disseram os críticos, a ordem não poderia ser restaurada, e eu teria interpretado profundamente mal a história.

Certo ou errado, meu pensamento a esse respeito não apenas não mudou, como também a investigação o fortalece. Tendo falhado, pelo contrário, em persuadir a LCWR e muitas de suas líderes a abandonar seu compromisso com a renovação, da forma como interpretavam-na a partir do documento do Vaticano II dirigido a elas (o único grupo da Igreja indicado em um prudente documento), o Vaticano parece ter escolhido outro duro instrumento para fomentar a cooperação.

Dependendo de como a conferência e várias líderes religiosas responderem, o Vaticano já pode ter alcançado seu objetivo ao injetar intimidação suficiente para influenciar que muitas irmãs relutantes sigam as diretivas em silêncio.

Eu não estou em posição de julgar se o silêncio é justificado ou não e respeito profundamente as consciências daqueles que viveram, na verdade, um longo período de juízo. Algumas irmãs dizem que o fato de se pronunciarem poderia colocar em perigo o bem-estar de suas comunidades, especialmente de seus membros mais idosos. Outras sentem que é necessário um bom esforço de fé. Outras ainda esperam que, sendo discretas, reduzirão as chances de os funcionários do Vaticano as chamarem. Sentemo-nos e esperemos até que isso passe. Mas é difícil ver propósitos caritativos como força motivadora.

Sem se decidirem a resistir, parece muito provável que a LCWR será engolida pelo conselho das religiosas conservadoras, que parece estar próximo de chegar à vitória em uma disputa por corações e mentes sobre o caráter do catolicismo que foi causado pela instalação do grupo rival pelo Vaticano.

A LCWR pode perder seu caráter mesmo se uma casca de sua estrutura continuar. Mas não nos equivoquemos: Roma está comprometida a resolver essa disputa em seu favor.

Aqueles que confiam que a melhor resposta é a não-resistência ou a resignação pacíficas podem estar certos.Quem não gostaria de ter respostas para alguns dos sérios problemas que causam dificuldades em tantas comunidades, mesmo se elas requeressem compromisso? Ao mesmo tempo, pensamentos confiantes e ilusórios podem piorar esses problemas. De qualquer forma, Roma deu a essas mulheres tão pouco apoio que há pouco a ser tirado. Sobre a questão da obediência, Roma já alcançou o seu objetivo.

Para ler mais:



01/08/2009

Marcial Marciel: a verdade é perigosa


Para o psicanalista e pesquisador na UNAM [Universidad Nacional Autónoma de México] Fernando M. Gonzalez, autor do livro "La Iglesia del silencio: de mártires y pederastas" [A Igreja do silêncio: de mártires a pedófilos], os acordos tácitos da hierarquia católica e entre suas ordens impedirão que a comissão nomeada pelo Papa Bento XVI chegue a fundo nas transgressões cometidas pelo fundador dos Legionários de Cristo, Marcial Maciel. Entre os riscos que eles evitarão está, por exemplo, o de envolver o então cardeal Joseph Ratzinger na proteção da qual Marcial Maciel se beneficiou durante o papado de João Paulo II. A reportagem é de Rodrigo Vera, publicada na revista mexicana Processo, 31-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


A cúpula dos Legionários de Cristo, liderada pelo sacerdote mexicano Álvaro Corcuera, corre o risco de ser completamente destituída pelo Para Bento XVI na conclusão da auditoria realizada pelo Vaticano nessa congregação, devido, entre outras razões, às acusações contra ela por proteger uma rede de sacerdotes pedófilos.

Essa é a conclusão do pesquisador Fernando M. Gonzalez, autor do livro "La Iglesia del silencio: de mártires y pederastas", no qual aborda a investida papal contra a congregação fundada por Marcial Maciel.

"O mais provável é que, ao concluir a investigação, o Vaticano destitua a cúpula dirigente dos Legionários para que a nova direção se encarregue de ir limpando lentamente a instituição", assegura Gonzalez.

A cúpula atual é liderada por mexicanos. É conveniente que ela continue sendo mexicana?

O mais adequado é que ela comece a variar, e que entrem pessoas novas, menos cúmplices do passado. Por exemplo, quando foram abertos os arquivos da KGB, o passado da União Soviética ficou totalmente incerto. O mesmo acontece aqui: com a atual condenação de Marcial Maciel, o fundador dos Legionários, o passado da congregação também fica totalmente incerto, não apenas seu futuro. Assim, se essa instituição quer sobreviver, há coisas que não devem continuar acontecendo nela.

O investigador considera como "cúmplices" de Maciel o atual diretor-geral da Legião Álvaro Corcuera; Luis Garza Medina, seu vigário geral, e Cristóforo Fernández, procurador-geral, todos eles mexicanos e colocados por Maciel na liderança da congregação.

Acrescenta Fernando M. Gonzalez: "Nas pesquisas, suas cumplicidades com Maciel vão aparecer. O Vaticano bem que poderia dizer a os três: 'Vão para fora, porque vocês sabiam das redes de pedofilia e, no entanto, se calaram'. Cristóforo, por exemplo, foi mancebo de Maciel e, além disso, conseguia menores de idade para que ele abusasse deles. E, no entanto, ele continua ali, como terceiro na hierarquia".

De Álvaro Corcuera, descendente de uma família conservadora de Guadalajara, diz-se que sofreu abuso sexual de Maciel, que, mais tarde, em janeiro de 2005, o nomeou seu sucessor (Processo 1474).

Em seu discurso de aceitação do cargo, pronunciado no dia 23 de janeiro desse ano, Corcuera deixou claro: "Quero manifestar meu desejo de continuar na mesma estreita fidelidade ao carisma da congregação e da pessoa do fundador. E continuar a obra por ele iniciada ao serviço da Igreja".

Embora nesse tempo Maciel havia sido acusado de pedofilia e de consumo de drogas há muitos anos, ninguém imaginava então que Bento XVI puniria ele e sua congregação.

A estratégia papal iniciou em maio de 2006, quando condenou Marcial Maciel ao ostracismo, e continuou em 2007, ao remover dos membros da ordem os chamados "votos privados", que lhes proibiam criticar os atos de seu fundador, falecido em janeiro de 2008.

Em fevereiro passado, o Vaticano obrigou que os Legionários de Cristo revelassem publicamente que Maciel teve uma filha e tinha uma "vida dupla". E três meses depois, em maio, anunciou-se que os Legionários seriam investigadas por uma comissão de cinco visitadores apostólicos. Essas auditorias são intervenções pontifícias que são realizadas quando há falhas ou situações anômalas em uma ordem.

Essa comissão é composta pelo mexicano Ricardo Watty, bispo de Tepic e membro da congregação dos Missionários do Espírito Santo, Charles Joseph Chaput, arcebispo de Denver, Estados Unidos; Giuseppe Versaldi, bispo de Alexandria, Itália; Ricardo Ezzati Andrello, arcebispo de Concepción, Chile, e Ricardo Blázquez Pérez, bispo de Bilbao, Espanha.

A comissão começou a trabalhar na quarta-feira passada, dia 15. Cada um de seus membros é responsável por ouvir as instituições da Legião por áreas geográficas. Ao mexicano Watty coube o México e a América Central. Eles revisam os estatutos e as regras da congregação, seus desvios dos princípios básicos da fé, a administração dos seus recursos econômicos.

Psicanalista e pesquisador titular do Instituto de Pesquisas Sociais da UNAM, Fernando M. Gonzalez comenta:

"A Comissão tem muitas possibilidades de avançar em suas pesquisas, muitas e por vários lados. Mas o substancial não é a nomeação da comissão, mas sim até onde ela está disposta a chegar. Neste momento, é difícil prever, porque vai depender de várias negociações".

Como quais?

Bem, cito o caso do único mexicano na comissão, dom Ricardo Watty. Além de bispo, ele é um religioso que pertence à Congregação dos Missionários do Espírito Santo. E não esqueçamos que todas as congregações, assim como os Legionários, têm seus pedófilos, seus religiosos com mulheres e seus homossexuais com seus parceiros. Por essa razão, há entre elas uma espécie de Omertà: "Eu cubro seus pedófilos, e você cobre os meus". Existem pactos entre elas. Assim é que a estrutura da igreja opera.

"Dom Watty irá se atrever a denunciar as redes de pedófilos da Legião de Cristo, que é muito mais poderosa do que a sua congregação? Essa é a questão. Watty considera isso muito difícil, porque os Legionários também podem denunciar os desvios dos Missionários do Espírito Santo. Watty e outros membros da comissão terão que chegar a negociações para depois saber o que dizer e o que vão calar. Esse é o problema das famosas comissões".

A verdade negociada

Entrevistado nos escritórios da Tusquets Editores, que acaba de publicar seu livro "La Iglesia del silencio" – no qual ele analisa o contraste entre a ocultação da pedofilia e a exaltação do martírio no seio da Igreja Católica mexicana – González defende que a rede de cumplicidades se estende à Cúria Romana:

"Para pode existir, um padre pedófilo sempre depende de uma relação social. E Marcial Maciel, durante mais de 50 anos, esteve protegido por três instâncias vaticanas: a Sagrada Congregação para os Religiosos, a Sagrada Congregação da Fé e da Secretaria de Estado. Até o Papa João Paulo II o protegeu. Ele teve cúmplices. E as investigações deveriam incluir os cúmplices".

Mas o Papa atual, seu acusador, esteve a cargo da Congregação da Fé durante o pontificado de João Paulo II.

Sim, mas nesse tempo Joseph Ratzinger também protegeu Maciel, bloqueando as denúncias contra ele que chegavam à Congregação da Fé, sob o argumento de que Maciel trazia muitos bens para a Igreja. Ele disse isso quando entregou-lhe uma carta na qual o Pe. Alberto Athié denunciou Maciel. Por que Ratzinger mudou agora? O que aconteceu aí? Eu não sei.

"O fato é que, na sua estratégia atual, Ratzinger tornando-se Papa começou eliminando primeiro Maciel, como se elimina um tumor cancerígeno que é retirado do resto do corpo. Essa foi sua sentença de 2006. Hoje, surge o corte cirúrgico da Legião. Um corte perfeito do cirurgião Ratzinger. Isso sim, sem envolver em nada as congregações vaticanas, como dizendo: 'Nós não tínhamos nada a ver, não somos cúmplices de nada', quando eles foram cúmplices de tudo."

O investigador indica que, até agora, os Legionários não admitiram a pedofilia nem a forte dependência de drogas de seu fundador, razão pela qual a comissão poderia questionar ambos os comportamentos:

"Os Legionários continuam sem admitir a pedofilia e a toxicomania de Marcial Maciel. Essas duas facetas ocorreram intramuros à congregação durante muitos anos e com a cumplicidade de muitos legionários, de modo que não podem ser demonstradas mais do que com testemunhos das vítimas. E é testemunho contra testemunho. Por isso continuam como se nada tivesse acontecido.
"Em vez disso, viram-se obrigados a aceitar que, pelo menos, Maciel teve uma filha, deixando aberta a possibilidade de que tivesse mais filhos. Isso porque, de acordo com algumas versões, a filha e mãe se apresentaram diretamente na Secretaria de Estado e pressionaram para que sua situação se tornasse pública. Não restou outra saída à Legião a não ser admitir o que já não podia esconder: que ele tem uma filha em Madri, na Espanha, produto de seus namoricos, dizem, com uma mulher mexicana."

E embora eles tenham tentado aparentar que não sabiam de nada, porque essa relação se desenvolveu fora das instalações da ordem, enfatiza o pesquisador, os dirigentes dos legionários a conheciam e a ocultaram durante anos. Se agora eles admitem só o caso da filha é porque adotam o que ele chama de " estratégia da vacina: tiro isto para não tirar outra coisa, aceito uma das partes para poder silenciar a mais contundente", a pedofilia.

"A última coisa que eles estão dispostos a aceitar – reitera – é a pedofilia, pois se o fizerem terão que admitir a existência de toda a rede de pedófilos dentro da instituição, e também em suas escolas, em cumplicidade com os leigos. Por aí é que a comissão investigadora pode avançar.

"Também pode avançar pelo lado da toxicomania de Maciel. Sobre esse ponto, há denúncias que estão nos Arquivos Secretos do Vaticano desde 1952. Existem testemunhos de um Marcial Maciel que caía no hospital totalmente drogado, o relatório de um farmacêutico enviado à Congregação dos Religiosos, dentre outros casos."

Alguns ex-legionários supõem inclusive que Maciel era traficante de drogas nos anos 50 e que, com o dinheiro da droga, impulsionou a Legião.

Sim, essas especulações existem, especialmente a versão de que, naquele então, ele costumava viajar com aquela famosa maleta de pele de crocodilo que tinha fundo falso. Diz-se que ali ele transportava um pó branco. Quando chegava ao aeroporto de Nova Iorque, dizia a seus jovens acompanhantes: "Meninos, carreguem minha maleta, eu espero vocês aqui fora". Existe a história de que, em uma ocasião, abriram a mala no aeroporto, e o pó branco se esparramou. Marcial interveio, dizendo: "É pó de gesso em pó para fabricar santos". E saiu dessa graças ao fato de o virem vestido de batina. Mas esses testemunhos não comprovam que ele traficava drogas. Não sabemos se a comissão vai esclarecer o assunto.

Então, a comissão não está obrigada a ir a fundo?

Só na teoria. As negociações podem neutralizá-la em boa medida. Depois, cada um dos seus cinco membros elaborará seu relatório secreto. Vão entregá-lo diretamente à Secretaria de Estado e à Congregação dos Religiosos, e estas, por sua vez, vão avaliar conjuntamente o que dizer e o que calar, já que, em sua estrutura, a Igreja está marcada pelo silêncio e pelo segredo. Por isso o título do meu livro é "A Igreja do silêncio".

Mas aqui disposição papal conta muito. Qual é a atitude atual dele diante dos Legionários como instituição?

Ele tem a Legião na mira, mas não acho que vão aventar a possibilidade de eliminá-la sem mais nem menos, porque ela traz muitas vantagens econômicas e políticas. Os Legionários mandam rios de dinheiro ao Vaticano. Ao criar essa comissão, o Papa tenta, pelo contrário, lançar uma mensagem simbólica às demais congregações para lhes dizer que sua política é de tolerância zero. No entanto, ela irá castigar os Legionários em alguma medida, mas será um castigo muito delimitado. Ele não irá a fundo nas cumplicidades com Maciel, porque ele mesmo estaria envolvido.

O que ele poderá fazer para dar a impressão de que as investigações de sua comissão investigadora foram eficazes?

Insisto: remover a cúpula dos Legionários, acusá-la de cumplicidade com Maciel. Será outra de suas incisões de cirurgião. Principalmente, Álvaro Corcuera, Luis Garza e Cristóforo Fernandez, as três cabeças cemtraos impostas por Maciel, irão para a rua. Com esse único ato, Bento XVI se cubrirá de glória, sem chegar ao fundo do problema.

Fernando M. Gonzalez assinala que essa medida não será tão difícil para o pontífice, em comparação com o golpe que ele desferiu à figura de Marcial Maciel:

"No plano simbólico, esse sim foi um golpe brutal para os Legionários de Cristo, já que a figura de seu fundador foi vituperada e insultada, sendo que eles até queriam torná-lo santo, já que, na bolsa de valores das congregações, todas aspiram a que seus fundadores sejam levados aos altares. Aquelas que não conseguem, passam para uma espécie de segunda classe."

Não há formas de compensar essa desvantagem?

Não vejo nenhuma. A Legião está configurada como uma seita, em que seu chefe e seu líder carismático é Maciel. De sua figura depende de toda a mensagem e a ordem simbólica. Ao contrário dos partidos políticos, aqui não se pode fazer uma mudança de líder. Não se pode!

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