31/12/2008

Papa Bento XVI

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE BENTO XVI PARA A CELEBRAÇÃO DO DIA MUNDIAL DA PAZ - 1 DE JANEIRO DE 2009

Combater a pobreza, construir a paz

1. Desejo, também no início deste novo ano, fazer chegar os meus votos de paz a todos e, com esta minha Mensagem, convidá-los a refletir sobre o tema: Combater a pobreza, construir a paz. Já o meu venerado antecessor João Paulo II, na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1993, sublinhara as repercussões negativas que acaba por ter sobre a paz a situação de pobreza em que versam populações inteiras. De fato, a pobreza encontra-se frequentemente entre os fatores que favorecem ou agravam os conflitos, mesmo os conflitos armados. Estes últimos, por sua vez, alimentam trágicas situações de pobreza. « Vai-se afirmando (...), com uma gravidade sempre maior – escrevia João Paulo II –, outra séria ameaça à paz: muitas pessoas, mais ainda, populações inteiras vivem hoje em condições de extrema pobreza. A disparidade entre ricos e pobres tornou-se mais evidente, mesmo nas nações economicamente mais desenvolvidas. Trata-se de um problema que se impõe à consciência da humanidade, visto que as condições em que se encontra um grande número de pessoas são tais que ofendem a sua dignidade natural e, consequentemente, comprometem o autêntico e harmônico progresso da comunidade mundial ».(1)

2. Neste contexto, combater a pobreza implica uma análise atenta do fenômeno complexo que é a globalização. Tal análise é já importante do ponto de vista metodológico, porque convida a pôr em prática o fruto das pesquisas realizadas pelos economistas e sociólogos sobre tantos aspectos da pobreza. Mas a evocação da globalização deveria revestir também um significado espiritual e moral, solicitando a olhar os pobres bem cientes da perspectiva que todos somos participantes de um único projeto divino: chamados a constituir uma única família, na qual todos – indivíduos, povos e nações – regulem o seu comportamento segundo os princípios de fraternidade e responsabilidade.

Em tal perspectiva, é preciso ter uma visão ampla e articulada da pobreza. Se esta fosse apenas material, para iluminar as suas principais características, seriam suficientes as ciências sociais que nos ajudam a medir os fenômenos baseados sobretudo em dados de tipo quantitativo. Sabemos porém que existem pobrezas imateriais, isto é, que não são consequência direta e automática de carências materiais. Por exemplo, nas sociedades ricas e avançadas, existem fenômenos de marginalização, pobreza relacional, moral e espiritual: trata-se de pessoas desorientadas interiormente, que, apesar do bem-estar econômico, vivem diversas formas de transtorno. Penso, por um lado, no chamado « subdesenvolvimento moral » (2) e, por outro, nas consequências negativas do « superdesenvolvimento ».(3) Não esqueço também que muitas vezes, nas sociedades chamadas « pobres », o crescimento econômico é entravado por impedimentos culturais, que não permitem uma conveniente utilização dos recursos. Seja como for, não restam dúvidas de que toda a forma de pobreza imposta tem, na sua raiz, a falta de respeito pela dignidade transcendente da pessoa humana. Quando o homem não é visto na integridade da sua vocação e não se respeitam as exigências duma verdadeira « ecologia humana »,(4) desencadeiam-se também as dinâmicas perversas da pobreza, como é evidente em alguns âmbitos sobre os quais passo a deter brevemente a minha atenção.

Pobreza e implicações morais

3. A pobreza aparece muitas vezes associada, como se fosse sua causa, com o desenvolvimento demográfico. Em consequência disso, realizam-se campanhas de redução da natalidade, promovidas a nível internacional, até com métodos que não respeitam a dignidade da mulher nem o direito dos esposos a decidirem responsavelmente o número dos filhos (5) e que muitas vezes – fato ainda mais grave – não respeitam sequer o direito à vida. O extermínio de milhões de nascituros, em nome da luta à pobreza, constitui na realidade a eliminação dos mais pobres dentre os seres humanos. Contra tal presunção, fala o dado seguinte: enquanto, em 1981, cerca de 40% da população mundial vivia abaixo da linha de pobreza absoluta, hoje tal percentagem aparece substancialmente reduzida a metade, tendo saído da pobreza populações caracterizadas precisamente por um incremento demográfico notável. O dado agora assinalado põe em evidência que existiriam os recursos para se resolver o problema da pobreza, mesmo no caso de um crescimento da população. E não se há de esquecer que, desde o fim da segunda guerra mundial até hoje, a população da terra cresceu quatro mil milhões e tal fenômeno diz respeito, em larga medida, a países que surgiram recentemente na cena internacional como novas potências econômicas e conheceram um rápido desenvolvimento graças precisamente ao elevado número dos seus habitantes. Além disso, dentre as nações que mais se desenvolveram, aquelas que detêm maiores índices de natalidade gozam de melhores potencialidades de progresso. Por outras palavras, a população confirma-se como uma riqueza e não como um fator de pobreza.

4. Outro âmbito de preocupação são as pandemias, como por exemplo a malária, a tuberculose e a SIDA, pois, na medida em que atingem os setores produtivos da população, influem enormemente no agravamento das condições gerais do país. As tentativas para travar as consequências destas doenças na população nem sempre alcançam resultados significativos. E sucede além disso que os países afetados por algumas dessas pandemias se vêem, ao querer enfrentá-las, sujeitos a chantagem por parte de quem condiciona a ajuda econômica à atuação de políticas contrárias à vida. Sobretudo a SIDA, dramática causa de pobreza, é difícil combatê-la se não se enfrentarem as problemáticas morais associadas com a difusão do vírus. É preciso, antes de tudo, fomentar campanhas que eduquem, especialmente os jovens, para uma sexualidade plenamente respeitadora da dignidade da pessoa; iniciativas realizadas nesta linha já deram frutos significativos, fazendo diminuir a difusão da SIDA. Depois há que colocar à disposição também das populações pobres os remédios e os tratamentos necessários; isto supõe uma decidida promoção da pesquisa médica e das inovações terapêuticas e, quando for preciso, uma aplicação flexível das regras internacionais de proteção da propriedade intelectual, de modo que a todos fiquem garantidos os necessários tratamentos sanitários de base.

5. Terceiro âmbito, que é objeto de atenção nos programas de luta contra a pobreza e que mostra a sua intrínseca dimensão moral, é a pobreza das crianças. Quando a pobreza atinge uma família, as crianças são as suas vítimas mais vulneráveis: atualmente quase metade dos que vivem em pobreza absoluta é constituída por crianças. O fato de olhar a pobreza colocando-se da parte das crianças induz a reter como prioritários os objetivos que mais diretamente lhes dizem respeito, como por exemplo os cuidados maternos, o serviço educativo, o acesso às vacinas, aos cuidados médicos e a água potável, a defesa do ambiente e sobretudo o empenho na defesa da família e da estabilidade das relações no seio da mesma. Quando a família se debilita, os danos recaem inevitavelmente sobre as crianças. Onde não é tutelada a dignidade da mulher e da mãe, a ressentir-se do fato são de novo principalmente os filhos.

6. Quarto âmbito que, do ponto de vista moral, merece particular atenção é a relação existente entre desarmamento e progresso. Gera preocupação o atual nível global de despesa militar. É que, como já tive ocasião de sublinhar, « os ingentes recursos materiais e humanos empregados para as despesas militares e para os armamentos, na realidade, são desviados dos projetos de desenvolvimento dos povos, especialmente dos mais pobres e necessitados de ajuda. E isto está contra o estipulado na própria Carta das Nações Unidas, que empenha a comunidade internacional, e cada um dos Estados em particular, a ‘‘promover o estabelecimento e a manutenção da paz e da segurança internacional com o mínimo dispêndio dos recursos humanos e econômicos mundiais para os armamentos'' (art. 26) ».(6)

Uma tal conjuntura, longe de facilitar, obstaculiza seriamente a consecução dos grandes objetivos de desenvolvimento da comunidade internacional. Além disso, um excessivo aumento da despesa militar corre o risco de acelerar uma corrida aos armamentos que provoca faixas de subdesenvolvimento e desespero, transformando-se assim, paradoxalmente, em fator de instabilidade, tensão e conflito. Como sensatamente afirmou o meu venerado antecessor Paulo VI, « o desenvolvimento é o novo nome da paz ».(7) Por isso, os Estados são chamados a fazer uma séria reflexão sobre as razões mais profundas dos conflitos, frequentemente atiçados pela injustiça, e a tomar providências com uma corajosa autocrítica. Se se chegar a uma melhoria das relações, isso deverá consentir uma redução das despesas para armamentos. Os recursos poupados poderão ser destinados para projetos de desenvolvimento das pessoas e dos povos mais pobres e necessitados: o esforço despendido em tal direção é um serviço à paz no seio da família humana.

7. Quinto âmbito na referida luta contra a pobreza material diz respeito à crise alimentar atual, que põe em perigo a satisfação das necessidades de base. Tal crise é caracterizada não tanto pela insuficiência de alimento, como sobretudo pela dificuldade de acesso ao mesmo e por fenômenos especulativos e, consequentemente, pela falta de um reajustamento de instituições políticas e econômicas que seja capaz de fazer frente às necessidades e às emergências. A má nutrição pode também provocar graves danos psicofísicos nas populações, privando muitas pessoas das energias de que necessitam para sair, sem especiais ajudas, da sua situação de pobreza. E isto contribui para alargar a distância angular das desigualdades, provocando reações que correm o risco de tornar-se violentas. Todos os dados sobre o andamento da pobreza relativa nos últimos decênios indicam um aumento do fosso entre ricos e pobres. Causas principais de tal fenômeno são, sem dúvida, por um lado a evolução tecnológica, cujos benefícios se concentram na faixa superior da distribuição do rendimento, e por outro a dinâmica dos preços dos produtos industriais, que crescem muito mais rapidamente do que os preços dos produtos agrícolas e das matérias primas na posse dos países mais pobres. Isto faz com que a maior parte da população dos países mais pobres sofra uma dupla marginalização, ou seja, em termos de rendimentos mais baixos e de preços mais altos.

Luta contra a pobreza e solidariedade global

8. Uma das estradas mestras para construir a paz é uma globalização que tenha em vista os interesses da grande família humana.(8) Mas, para guiar a globalização é preciso uma forte solidariedade global (9) entre países ricos e países pobres, como também no âmbito interno de cada uma das nações, incluindo ricas. É necessário um « código ético comum »,(10) cujas normas não tenham apenas caráter convencional mas estejam radicadas na lei natural inscrita pelo Criador na consciência de todo o ser humano (cf. Rm 2, 14-15). Porventura não sente cada um de nós, no íntimo da consciência, o apelo a dar a própria contribuição para o bem comum e a paz social? A globalização elimina determinadas barreiras, mas isto não significa que não possa construir outras novas; aproxima os povos, mas a proximidade geográfica e temporal não cria, de per si, as condições para uma verdadeira comunhão e uma paz autêntica. A marginalização dos pobres da terra só pode encontrar válidos instrumentos de resgate na globalização, se cada homem se sentir pessoalmente atingido pelas injustiças existentes no mundo e pelas violações dos direitos humanos ligadas com elas. A Igreja, que é « sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano »,(11) continuará a dar a sua contribuição para que sejam superadas as injustiças e incompreensões e se chegue a construir um mundo mais pacífico e solidário.

9. No campo do comércio internacional e das transações financeiras, temos hoje em ação processos que permitem integrar positivamente as economias, contribuindo para o melhoramento das condições gerais; mas há também processos de sentido oposto, que dividem e marginalizam os povos, criando perigosas premissas para guerras e conflitos. Nos decênios posteriores à segunda guerra mundial, o comércio internacional de bens e serviços cresceu de forma extraordinariamente rápida, com um dinamismo sem precedentes na história. Grande parte do comércio mundial interessou os países de antiga industrialização, vindo significativamente juntar-se-lhes muitos países que sobressaíram tornando-se relevantes. Mas há outros países de rendimento baixo que estão ainda gravemente marginalizados dos fluxos comerciais. O seu crescimento ressentiu-se negativamente com a rápida descida verificada, nos últimos decênios, nos preços dos produtos primários, que constituem a quase totalidade das suas exportações. Nestes países, em grande parte africanos, a dependência das exportações de produtos primários continua a constituir um poderoso fator de risco. Quero reiterar aqui um apelo para que todos os países tenham as mesmas possibilidades de acesso ao mercado mundial, evitando exclusões e marginalizações.

10. Idêntica reflexão pode fazer-se a propósito do mercado financeiro, que toca um dos aspectos primários do fenômeno da globalização, devido ao progresso da electrônica e às políticas de liberalização dos fluxos de dinheiro entre os diversos países. A função objetivamente mais importante do mercado financeiro, que é a de sustentar a longo prazo a possibilidade de investimentos e consequentemente de desenvolvimento, aparece hoje muito frágil: sofre as consequências negativas de um sistema de transações financeiras – a nível nacional e global – baseadas sobre uma lógica de brevíssimo prazo, que busca o incremento do valor das atividades financeiras e se concentra na gestão técnica das diversas formas de risco. A própria crise recente demonstra como a atividade financeira seja às vezes guiada por lógicas puramente auto-referenciais e desprovidas de consideração pelo bem comum a longo prazo. O nivelamento dos objetivos dos operadores financeiros globais para o brevíssimo prazo reduz a capacidade de o mercado financeiro realizar a sua função de ponte entre o presente e o futuro: apoio à criação de novas oportunidades de produção e de trabalho a longo prazo. Uma atividade financeira confinada no breve e brevíssimo prazo torna-se perigosa para todos, inclusivamente para quem consegue beneficiar dela durante as fases de euforia financeira.(12)

11. Segue-se de tudo isto que a luta contra a pobreza requer uma cooperação nos planos econômico e jurídico que permita à comunidade internacional e especialmente aos países pobres individuarem e atuarem soluções coordenadas para enfrentar os referidos problemas através da realização de um quadro jurídico eficaz para a economia. Além disso, requer estímulos para se criarem instituições eficientes e participativas, bem como apoios para lutar contra a criminalidade e promover uma cultura da legalidade. Por outro lado, não se pode negar que, na origem de muitos falimentos na ajuda aos países pobres, estão as políticas vincadamente assistencialistas. Investir na formação das pessoas e desenvolver de forma integrada uma cultura específica da iniciativa parece ser atualmente o verdadeiro projeto a médio e longo prazo. Se as atividades econômicas precisam de um contexto favorável para se desenvolver, isto não significa que a atenção se deva desinteressar dos problemas do rendimento. Embora se tenha oportunamente sublinhado que o aumento do rendimento pro capite não pode de forma alguma constituir o fim da ação político-econômica, todavia não se deve esquecer que o mesmo representa um instrumento importante para se alcançar o objectivo da luta contra a fome e contra a pobreza absoluta. Deste ponto de vista, seja banida a ilusão de que uma política de pura redistribuição da riqueza existente possa resolver o problema de maneira definitiva. De fato, numa economia moderna, o valor da riqueza depende em medida determinante da capacidade de criar rendimento presente e futuro. Por isso, a criação de valor surge como um elo imprescindível, que se há de ter em conta se se quer lutar contra a pobreza material de modo eficaz e duradouro.

12. Colocar os pobres em primeiro lugar implica, finalmente, que se reserve espaço adequado para uma correta lógica econômica por parte dos agentes do mercado internacional, uma correta lógica política por parte dos agentes institucionais e uma correta lógica participativa capaz de valorizar a sociedade civil local e internacional. Hoje os próprios organismos internacionais reconhecem o valor e a vantagem das iniciativas econômicas da sociedade civil ou das administrações locais para favorecer o resgate e a integração na sociedade daquelas faixas da população que muitas vezes estão abaixo do limiar de pobreza extrema mas, ao mesmo tempo, dificilmente se consegue fazer-lhes chegar as ajudas oficiais. A história do progresso econômico do século XX ensina que boas políticas de desenvolvimento são confiadas à responsabilidade dos homens e à criação de positivas sinergias entre mercados, sociedade civil e Estados. Particularmente a sociedade civil assume um papel crucial em todo o processo de desenvolvimento, já que este é essencialmente um fenômeno cultural e a cultura nasce e se desenvolve nos diversos âmbitos da vida civil.(13)

13. Como observava o meu venerado antecessor João Paulo II, a globalização « apresenta-se com uma acentuada característica de ambivalência »,(14) pelo que há de ser dirigida com clarividente sabedoria. Faz parte de tal sabedoria ter em conta primariamente as exigências dos pobres da terra, superando o escândalo da desproporção que se verifica entre os problemas da pobreza e as medidas predispostas pelos homens para os enfrentar. A desproporção é de ordem tanto cultural e política como espiritual e moral. De fato, tais medidas detêm-se frequentemente nas causas superficiais e instrumentais da pobreza, sem chegar às que se abrigam no coração humano, como a avidez e a estreiteza de horizontes. Os problemas do desenvolvimento, das ajudas e da cooperação internacional são às vezes enfrentados sem um verdadeiro envolvimento das pessoas, mas apenas como questões técnicas que se reduzem à preparação de estruturas, elaboração de acordos tarifários, atribuição de financiamentos anônimos. Inversamente, a luta contra a pobreza precisa de homens e mulheres que vivam profundamente a fraternidade e sejam capazes de acompanhar pessoas, famílias e comunidades por percursos de autêntico progresso humano.

Conclusão

14. Na Encíclica Centesimus annus, João Paulo II advertia para a necessidade de « abandonar a mentalidade que considera os pobres – pessoas e povos – como um fardo e como importunos maçadores, que pretendem consumir tudo o que os outros produziram ». « Os pobres – escrevia ele – pedem o direito de participar no usufruto dos bens materiais e de fazer render a sua capacidade de trabalho, criando assim um mundo mais justo e mais próspero para todos ».(15) No mundo global de hoje, resulta de forma cada vez mais evidente que só é possível construir a paz, se se assegurar a todos a possibilidade de um razoável crescimento: de fato, as consequências das distorções de sistemas injustos, mais cedo ou mais tarde, fazem-se sentir sobre todos. Deste modo, só a insensatez pode induzir a construir um palácio dourado, tendo porém ao seu redor o deserto e o degrado. Por si só, a globalização não consegue construir a paz; antes, em muitos casos, cria divisões e conflitos. A mesma põe a descoberto sobretudo uma urgência: a de ser orientada para um objetivo de profunda solidariedade que aponte para o bem de cada um e de todos. Neste sentido, a globalização há de ser vista como uma ocasião propícia para realizar algo de importante na luta contra a pobreza e colocar à disposição da justiça e da paz recursos até agora impensáveis.

15. Desde sempre se interessou pelos pobres a doutrina social da Igreja. Nos tempos da Encíclica Rerum novarum, pobres eram sobretudo os operários da nova sociedade industrial; no magistério social de Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI e João Paulo II, novas pobrezas foram vindo à luz à medida que o horizonte da questão social se alargava até assumir dimensões mundiais.(16) Este alargamento da questão social à globalidade não deve ser considerado apenas no sentido duma extensão quantitativa mas também dum aprofundamento qualitativo sobre o homem e as necessidades da família humana. Por isso a Igreja, ao mesmo tempo que segue com atenção os fenômenos atuais da globalização e a sua incidência sobre as pobrezas humanas, aponta os novos aspectos da questão social, não só em extensão mas também em profundidade, no que se refere à identidade do homem e à sua relação com Deus. São princípios de doutrina social que tendem a esclarecer os vínculos entre pobreza e globalização e a orientar a ação para a construção da paz. Dentre tais princípios, vale a pena recordar aqui, de modo particular, o « amor preferencial pelos pobres »,(17) à luz do primado da caridade testemunhado por toda a tradição cristã a partir dos primórdios da Igreja (cf. Act 4, 32-37; 1 Cor 16, 1; 2 Cor 8-9; Gal 2, 10).

« Cada um entregue-se à tarefa que lhe incumbe com a maior diligência possível » – escrevia em 1891 Leão XIII, acrescentando: « Quanto à Igreja, a sua ação não faltará em nenhum momento ».(18) Esta consciência acompanha hoje também a ação da Igreja em favor dos pobres, nos quais vê Cristo,(19) sentindo ressoar constantemente em seu coração o mandato do Príncipe da paz aos Apóstolos: « Vos date illis manducare – dai-lhes vós mesmos de comer » (Lc 9, 13). Fiel a este convite do seu Senhor, a Comunidade Cristã não deixará, pois, de assegurar o seu apoio à família humana inteira nos seus impulsos de solidariedade criativa, tendentes não só a partilhar o supérfluo, mas sobretudo a alterar « os estilos de vida, os modelos de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder que hoje regem as sociedades ».(20) Assim, a cada discípulo de Cristo bem como a toda a pessoa de boa vontade, dirijo, no início de um novo ano, um caloroso convite a alargar o coração às necessidades dos pobres e a fazer tudo o que lhe for concretamente possível para ir em seu socorro. De fato, aparece como indiscutivelmente verdadeiro o axioma « combater a pobreza é construir a paz ».

Vaticano, 8 de Dezembro de 2008.

(1) Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1993, 1.
(2) Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio, 19.
(3) João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 28.
(4) João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 38.
(5) Cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio, 37; João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 25.
(6) Bento XVI, Carta ao Cardeal Renato Rafael Martino por ocasião do Seminário Internacional organizado pelo Conselho Pontifício « Justiça e Paz » sobre o tema « Desarmamento, desenvolvimento e paz. Perspectivas para um desarmamento integral », 10 de Abril de 2008: L'Osservatore Romano (13/IV/2008), p. 8.
(7) Carta enc. Populorum progressio, 87.
(8) Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 58.
(9) Cf. João Paulo II, Discurso na Audiência às Associações Cristãs de Trabalhadores Italianos [ACLI] (27 de Abril de 2002), 4: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XXV/1 [2002], 637.
(10) João Paulo II, Discurso à Assembleia Plenária da Academia Pontifícia das Ciências Sociais (27 de Abril de 2001), 4: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XXIV/1 [2001], 802.
(11) Concílio Ecum. Vaticano II, Const. dogm. Lumen gentium, 1.
(12) Cf. Conselho Pontifício « Justiça e Paz », Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 368.
(13) Cf. ibid., 356.
(14) Discurso na Audiência a Dirigentes de Sindicatos de Trabalhadores e de grandes Empresas, (2 de Maio de 2000), 3: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XXIII/1 [2000], 726.
(15) N. 28.
(16) Cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio, 3.
(17) João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 42; cf. Carta enc. Centesimus annus, 57.
(18) Leão XIII, Carta enc. Rerum novarum, 45.
(19) Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 58.
(20) Ibid., 58.

Fonte: Vaticano

30/12/2008

Padre José Comblin


Como vários amigos, fiquei estupefato quando li as acusações feitas por Clodovis Boff à teologia que ele chama de teologia de libertação. Não existe nenhuma instituição chamada teologia da libertação de tal modo que muitos podem perguntar-se se são da teologia da libertação ou não. A acusação feita à chamada teologia da libertação é totalmente indefinida.

Clodovis não cita nomes e não dá nenhuma referência, nenhuma a obras de alguns autores que seriam incriminados. Não cita as páginas em que estão os erros. A acusação é a seguinte: a teologia da libertação substituiu Cristo pelo pobre. O pobre ocupa o lugar de Cristo do cristianismo. Essa substituição é tão forte que os teólogos da libertação substituíram a cristologia por uma pobrelogia.

Essa acusação é espantosa. Suprimir o lugar central de Cristo é deixar de ser cristão. Na palavra de Clodovis os teólogos da libertação - cujo nome não aparece - já não são cristãos. Já estão fora da Igreja. Os sacramentos que celebram ou recebem são sacrilégios. Clodovis é muito mais severo do que a Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, porque condena muitos de uma vez. Além disso, os teólogos da libertação ficam totalmente desacreditados no povo de Deus. Deveriam ser evitados porque poderiam contaminar almas inocentes. Não existe lista oficial dos teólogos da libertação. Mas há alguns nomes que eventualmente poderiam entrar numa lista não oficial, e sujeita à revisão se alguns não aceitam essa identificação.

Quero dar testemunho de que os teólogos da seguinte lista, que conheci ou conheço pessoalmente crêem no lugar central de Cristo no cristianismo e não defendem a pobrelogia. Quero defender publicamente Gustavo Guitiérrez, Juan Luis Segundo, Ronaldo Muñoz, João Batista Libânio, Luiz Carlos Susin, Cleto Caliman, Leonardo Boff, Carlos Palácio, F. Taborda, Agenor Brighenti, Jon Sobrino, I. Ellacuría, Pedro Trigo, Luis del Valle, Carlos Bravo, Miguel Concha, Virgilio Elizondo, Hugo Echegaray, Víctor Codina, Alberto Parra, Roberto Oliveros, José Luis Caravias, Pablo Richard, Paulo Suess, Diego Irrarázaval, Marcelo Barros, Juan Hernándes Pico. Estes teólogos acreditam no lugar central de Cristo e não substituem Cristo pelos pobres. Todos querem destacar o lugar que ocupam os pobres na revelação cristã, mas ninguém os coloca no lugar de Cristo. Mas todos são suspeitos. Não quero citar nomes de teólogas para que não sejam expostas à suspeita, mas nenhuma se aproxima nem de longe da tese da pobrelogia. Aliás, elas se identificariam mais com a teologia feminina do que com a teologia da libertação.

Eu mesmo não sei se posso estar na lista e me pergunto se eu também não coloco os pobres no lugar de Cristo e já não seria mais cristão. No entanto, muitas pessoas me consideram como cristão. Eu estaria enganando-as? Como sair da dúvida?

Há com certeza teólogos que não conheço pessoalmente. Os culpados estariam entre eles? De qualquer maneira, já que a acusação é geral, ela atinge todos os nomes citados.

Achei muita petulância, para não dizer inconsciente arrogância, essa maneira de acusar todos os colegas teólogos latino-americanos, como se ele fosse o dono da verdade.

Se encontrou em alguns escritos algumas expressões que não entendeu bem, ou suscitam dúvidas que se lembre do princípio de caridade: quando não entendo bem uma expressão, preciso dar ao autor o benefício da interpretação mais favorável, até que argumentos convincentes venham demonstrar o contrário.

O autor poderia dizer que escreveu dentro de um gênero literário, o gênero de requisitório, o que explicaria e justificaria as suas expressões inflamadas. Usou um linguajar de procurador. Não se deveria tomar tão literalmente as acusações que são, antes de mais nada, exercícios de eloqüência.

Sucede que há leitores que vão tomar literalmente as acusações. Podem inclusive abrir processos. Estas denúncias lembram um fato histórico que poderia ser um precedente. Lembro-me do padre Roger Vekemans, que, para minha confusão, era do país em que nasci. Depois de Medellín, Vekemans declarou a guerra a Gustavo Gutierrez e lhe prometeu que iria destruí-lo. Deixou o Chile, foi para Colômbia e fundou um centro DESA, dedicado exclusivamente a atacar e denunciar a teologia da libertação. Vekemans lançou o tema da teologia da libertação como fachada que esconde o marxismo na Igreja. Segundo ele, a teologia da libertação era a penetração do marxismo na Igreja. Era uma corrupção total do cristianismo.

Vekemans fundou uma revista para repetir indefinidamente as mesmas denúncias. Há uma frase famosa de Voltaire em que diz que repetindo sempre a mesma mentira, sempre produz um efeito. Foi o que fez Vekemans. Teve bastante êxito. Forneceu a Alfonso Lopez Trujillo toda a documentação para atacar os teólogos da libertação. Este foi mais alto. A Instrução do cardeal Ratzinger sobre a teologia da libertação repete todos os argumentos de Vekemans.

É verdade que o Papa João Paulo II proclamou que a teologia da libertação estava morta. Mas de repente agora em Roma podem descobrir que ainda não estava totalmente morta e precisa de um golpe final.

A nova heresia já recebeu um nome: pobrologia. Dar um nome é muito perigoso porque as pessoas se contentam como repetir o nome, o que as dispensa de ler as obras. O nome inclusive não é muito adequado literariamente. Mistura o português com o grego. Todas as palavras que terminam em -logia, começam com uma palavra grega: teologia, cristologia, pneumatologia antropologia, cardiologia, oftalmologia, ecologia, psicologia, oncologia, dermatologia, etc. Aqui devia ser "ptochologia" já que em grego pobre se diz ""ptochos".

Clodovis multiplica os argumentos para mostrar que Jesus está no centro do cristianismo. Ninguém vai discordar. É como ensinar o catecismo ao senhor vigário.. Mas essa repetição dos argumentos parece insinuar que os teólogos da libertação são muito ignorantes da cristologia. Então muitos leitores vão pensar que esses teólogos são mesmo muito ignorantes. O que se consegue com isso?

Quem vai sofrer com essas controvérsias, são os pobres. Os teólogos têm comida garantida, casa garantida. Se são condenados, não vão sofrer muito. Quem vai sofrer serão os pobres na medida em que a Igreja se desinteressa deles por medo de cair numa heresia. Sempre ouvi Gustavo Gutiérrez dizendo que a teologia da libertação pode morrer e não importa. O que importa, são os pobres. Para um cristão a teologia é algo completamente secundário e dispensável. Mas os pobres não são dispensáveis. Não se pode ser cristão sem acolher a mensagem que vem dos pobres.

Alguns podem ficar exasperados pela preocupação constante pelos pobres. Lembro-me de uma frase que ficou famosa e que foi pronunciada por um alto dignitário eclesiástico. Dom Leonidas Proaño foi bispo de Riobamba no Equador durante 30 anos. Na sua diocese os índios constituem 80º% da população. Quando chegou na diocese, descobriu o estado de horrível miséria dos índios tratados como animais. Dedicou a sua vida à libertação dos índios, a libertação cristã. Viveu pobre, visitou constantemente os miseráveis povoados da montanha onde moram os índios. A sua casa estava sempre aberta para os índios que vinham à cidade para vender as poucas coisas que podiam vender. A primeira coisa que fez dom Leônidas foi organizar uma casa de acolhida na cidade para que os índios pudessem tomar banho. Pois nas suas montanhas falta água. A segunda coisa que fez, foi a reforma agrária em duas fazendas da diocese em que descobriu os instrumentos de tortura que se usavam para forçar os índios a trabalhar.

Foram 30 anos de luta. Basta ver os índios hoje em dia para ver que o seu trabalho não foi em vão. Há alguns meses atrás o presidente da república foi a Riobamba para proclamar Proaño patrimônio da pátria. A assembléia constituinte decidiu que seria obrigatório em todas as escolas do país ensinar a vida e os ensinamentos de Proaño. Um dia um jornalista perguntou a essa alta personalidade eclesiástica o que pensava de dom Leônidas Proaño. A personalidade respondeu "É um homem muito bom. Mas ele tem a mania dos índios!"

Então poderíamos também dizer de alguns teólogos: "É um homem bom, mas ele tem a mania dos pobres!".

Compreendi melhor a centralidade dos pobres no cristianismo num episódio da minha vida. Foi no Equador também. Foi em 1976, quando 17 bispos foram presos em Riobamba . Havia também umas 40 pessoas, padres, religiosas, leigos e leigas. Entre estes estava Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz. Eu estava no meio. Fomos todos levados por soldados armados de metralhetas até um quartel de Quito e deixados numa sala, sem explicação. No meio da noite, alguns bispos acharam que seria muito bom celebrar a eucaristia. Mas como achar pão e vinho? Uma senhora equatoriana foi falar com os soldados e conseguiu convencê-los que trouxessem algo de pão e de vinho.

Celebraram a eucaristia. Ora, nesse mesmo dia, um dos bispos, dom Parra León, bispo de Cumaná na Venezuela, celebrava os seus 50 anos de sacerdócio. Estava tão emocionado que chorava. Então ele disse: "Faz 50 anos que celebro a eucaristia todos os dias sem perder nenhum dia. Mas só agora estou entendendo!".

Pode-se celebrar a eucaristia pensando em tudo o que ensinam os teólogos e os liturgistas. Pode-se celebrar com muita piedade e devoção, com muitos sentimentos de amor, mas sem entender. Não se entende a eucaristia e de modo geral não se entende Jesus Cristo a partir da piedade, dos sentimentos religiosos, ou a partir dos conhecimentos teológicos. Tudo isso é secundário e não permite penetrar na realidade. Quando o bispo estava preso ( uma prisão ainda bem suave), estava numa situação de impotência, era pobre. Então entendeu.

Clodovis quer salientar que o fundo da teologia é professar: "Cristo é o Senhor". Acho que todos os teólogos sabem disso e ninguém vai discutir. Mas o problema é outro. O problema é "quem diz "Cristo é Senhor"? Onde? Quando?

O general Videla dizia "Cristo é Senhor". O general Pinochet dizia "Cristo é Senhor" Era fé? Ou era blasfêmia? A elite latino-americana que oprimiu os povos durante 500 anos sempre proclamou: "Cristo é Senhor". Era ato de fé? Ainda é ato de fé? Este é o nosso problema. Os teólogos latino-americanos afirmaram: quem pode dizer "Cristo é Senhor" com sinceridade, como expressão de toda a sua vida, são os pobres. Daí o lugar central dos pobres, que não afeta em nada o lugar central de Cristo, pelo contrário, o confirma.

Os poderosos proclamam "Cristo é Senhor", mas a sua vida diz: "Senhor, sou eu!" O grito de Paulo "Cristo é Senhor" é um protesto contra todos os "Senhores", uma denúncia da opressão, um desafio lançado contra os que se acham os Senhores. É uma negação de todos os poderes opressores. Há somente um Senhor!

O papel da teologia não consiste em buscar quais são as palavras que expressam a fé, mas o que é a fé realmente vivida.

Pois, não se entende Jesus a partir da teologia, seja ela de libertação ou de prosperidade. A questão não é saber o que significam as palavras atribuídas a Jesus nas celebrações ou na teologia. Não se trata de entender as palavras escritas na Bíblia para entender a realidade. Jesus aparece no seu verdadeiro sentido, como realidade, a partir de uma situação na qual o cristão se assimila a ele. Vivendo o que ele viveu, se pode entender. Somente os pobres dizem de modo autêntico "Cristo é Senhor!" Todos os outros podem dizer as palavras corretas que no seu caso, somente expressam figuração, imaginação, sensibilidade, até comédia. A piedade pode enganar muito, criando a ilusão de fé quando se trata de uma fantasia mental, ou de uma fórmula administrativa de um bom funcionário que é pago para dizer essas coisas.

Quem não é pobre, pode aprender dos pobres, com a condição de ser muito humilde. Jesus viveu a impotência, a fragilidade dos pobres. Para entendê-lo é preciso entrar na mesma condição.

Jesus Cristo é o centro do Reino de Deus, o centro de toda a história da salvação, o centro de cada vida de discípulo. Mas não se trata do nome "Jesus Cristo", mas da realidade. Ora, essa realidade de Cristo somente se manifesta a quem vive nele, com ele, fazendo a mesma experiência humana. Por isso há uma centralidade da pobreza como acesso à centralidade de Jesus Cristo.

Isto não é novidade. Em todas as fases da história da Igreja houve cristãos que entenderam bem isso. Na América latina, depois de séculos de dependência e de passividade colonial com os olhos fechados sobre a condição dos índios ou dos negros, houve um despertar. Os olhos abriram-se. Bispos, sacerdotes, religiosas, religiosos, leigos e leigas, converteram-se quando descobriram a realidade da humanidade e o vazio da sua religião.

Por isso houve a Conferência de Medellín que foi como o descobrimento de Jesus Cristo na sua realidade, na sua presença. Era preciso descobrir os pobres para descobrir Jesus Cristo. A Conferência de Medellín foi preparada pelo Pacto das Catacumbas. No dia 16 de novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio, 40 bispos do mundo inteiro reuniram-se na catacumba de Santa Domitila em Roma e assinaram o Pacto das Catacumbas. Cada um se comprometia a viver pobre, a rejeitar todos os símbolos ou os privilégios do poder e a colocar os pobres no centro do seu ministério pastoral. Não era comédia, porque já estavam agindo assim. Nesses quarenta havia um número importante de brasileiros e latino-americanos e , mais tarde, outros subscreveram também.

Alguns acham que a opção pelos pobres é expressão de caridade para com os pobres. Acham que significa amor aos pobres É isso também, mas é secundário. A grande questão é o conhecimento de Jesus Cristo. O que é conhecer Jesus? Onde e como se conhece Jesus Cristo? A centralidade dos pobres vem do fato que os pobres entenderem o que é Jesus Cristo. Não se quer dizer que todos os pobres fazem essa experiência, mas que o conhecimento se faz dentro dessa condição. Nós podemos aprender deles. Nada vamos aprender nocionalmente, mas vivencialmente.

A centralidade dos pobres não compromete em nada a centralidade de Cristo. Pelo contrário, permite que se entenda melhor.

Um sacerdote pode ser um bom funcionário do culto, que celebra com muita piedade, sempre bem comportado, um desses padres que nunca dão problema ao bispo. Mas não entende nada. Provavelmente nunca teve oportunidade de aprender. A culpa não é dele.

Por outro lado, nos evangelhos Jesus identifica-se com os pobres. O que se dá aos pobres, é dado a ele. A sabedoria popular transmitiu fielmente esse ensinamento. Encontrar um pobre no caminho é encontrar Jesus Cristo. O problema aparece nas grandes cidades. A gente encontra tantos pobres que é impossível evocar Jesus Cristo cada vez. Somente alguns podem fazer isso.

Por outro lado, muita gente tem dificuldade em aceitar que a consideração dos pobres muda toda a cristologia, como muda a pneumatologia, a eclesiologia e as representações usadas para falar de Deus. Muda toda a teologia tradicional, pelo menos no Ocidente. Isto não pode surpreender. A cristologia tradicional concentrou-se em torno dos dogmas dos 4 primeiros Concílios, e da teoria anselmiana da redenção. Isto quer dizer que era muito parcial, muito particular, centrada em poucas questões. Historicamente, novas questões aparecem que obrigam a situar tudo de uma nova maneira. Novas leituras da Bíblia fazem com que apareçam novas perspectivas.

É significativo que os bispos da geração de Medellín, os padres que os seguiram, tiveram que passar por uma conversão. De repente, descobriram que a teologia que tinham aprendido no seminário escondia uma parte da realidade e que fatos evidentes obrigaram a descobrir, por exemplo, o que a Bíblia diz dos pobres.

Um obstáculo é o preconceito de que Jesus anuncia uma boa nova para todos. Ora ele anuncia uma notícia péssima para os ricos que vão perder tudo, para os sacerdotes que vão perder o templo e desaparecer, para os doutores cuja ciência se torna irrelevante, para os fariseus cuja santidade fica desmascarada para Herodes.

A boa noticia é para os pobres, os desarmados, os perseguidos. Mas sucede que muitos cristãos fazem questão de apagar as diferenças e lêem o evangelho como se se dirigisse a todos igualmente, como se Jesus falasse para os homens em geral, sem nenhuma referência à sua situação, assim como fazem os filósofos gregos. O próprio documento de Aparecida apresenta o evangelho como boa noticias válida para todos, sem nenhuma diferença. De fato, para quem estudou somente a teologia tradicional, não há problema. Para eles o evangelho é o mesmo para todos, embora os textos bíblicos e inúmeros documentos da Tradição manifestem a cada página que não é verdade. A teologia podia esconder o evangelho. Desconfio que ela não era completamente inocente, mas que tinha alguns motivos menos religiosos para silenciar certos aspetos dos evangelhos.

Um dia um camponês do sertão pernambucano disse-me: "Eu sou alfabeto, mas quando ouço o vigário explicar o evangelho, acho que ele não lê tudo, porque o que lê, sempre dá razão a ele". Esse camponês era muito inteligente. Pois o vigário escolhe sempre o que é favorável a ele.

Claro está que Clodovis sabe tudo isso. Mas muitos leitores não sabem e podem ficar confirmados nos seus preconceitos. Continuarão achando que os pobres não têm nada a ver com a doutrina cristã, em particular com a cristologia. Pensarão como sempre que os pobres são objeto da caridade dos cristãos e os cristãos devem reconhecer esse dever de caridade. Como dizia um dia o cardeal Daniélou: "os pobres têm lugar num parágrafo de um artigo de um capítulo do tratado sobre a caridade". Os pobres seriam objeto da compaixão dos cristãos porque sofrem muito.

Se essa fosse a opção preferencial pelos pobres, esta seria totalmente inofensiva e irrelevante.

Os pobres não tomam o lugar de Cristo, mas eles têm um lugar especial, fundamental, central em Cristo.Que a teologia da libertação morra ou não, não importa. Mas depois de Medellín a teologia não poderá continuar sendo o que era.

Fonte: ADITAL

Para ler Frei Clodovis M. Boff, OSM, no texto Teologia da Libertação e volta ao fundamento, clicar aqui.

29/12/2008

Entrevista - Frei Carlos Mesters

Carlos Mesters é frade Carmelita, doutor em Teologia Bíblica. É natural da Holanda e ligado à caminhada das Comunidades Eclesiais de Base, ajudou a criar o CEBI (Centro de Estudos Bíblicos). Escreveu, entre outros, Esperança de um povo que luta (São Paulo: Paulus, 1983), Círculos bíblicos (São Paulo: Paulus, 2001), Paulo apóstolo: um trabalhador que anuncia o evangelho (São Paulo: Paulus, 2002), Bíblia: livro feito em mutirão (São Paulo: Paulus, 2002), e Por trás das palavras (Petrópolis: Vozes, 2003). A entrevista a seguir foi elaborada em parceria com a equipe de Teologia Pública do Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Entrevista realizada em 20/10/2008. O Sínodo dos Bispos sobre Bíblia aconteceu entre os dias 5 a 26 de outubro de 2008, no Vaticano. Fonte: UNISINOS

IHU On-Line - A leitura orante da Palavra de Deus tem tido muita difusão nas comunidades eclesiais, através dos círculos bíblicos. Qual é para o senhor a riqueza deste método e qual o seu limite?

Carlos Mesters - A riqueza deste método é que a leitura orante da Palavra de Deus provoca no povo um contato direto com a Bíblia, sem intermediários, num ambiente comunitário de fé, dentro da realidade do dia-a-dia da vida. Deste modo, vai nascendo um confronto entre Bíblia e Vida. A Bíblia se torna um espelho, no qual as pessoas descobrem dimensões mais profundas da sua própria vida que antes não tinham percebido. Você pergunta: “Qual o seu limite?”. Tudo o que é humano é limitado. Um limite aparece quando os participantes do Círculo Bíblico se fecham em si mesmos e esquecem a realidade da vida ao redor. Pois a Palavra de Deus não está só na Bíblia, mas também na Vida, na natureza, nos fatos, em tudo que acontece.

IHU On-Line - Qual é a importância de um Sínodo sobre a Bíblia no momento atual? Qual é a sua apreciação do "Instrumentum Laboris” para o Sínodo?

Carlos Mesters - A importância de um sínodo sobre a Bíblia no atual momento é muito grande por vários motivos:
1) permite uma partilha entre os bispos, participantes do Sínodo, em torno das experiências e dos problemas no uso e na leitura que o povo faz da Bíblia nas várias partes do mundo, sobretudo nos países da América Latina, África e Ásia. Uma partilha assim enriquece a todos, ajuda relativizar os problemas e faz perceber melhor o caminho, o rumo do Espírito;
2) favorece o aprofundamento que a Palavra de Deus pode trazer para a vida humana e ajuda a descobrir melhor o alcance e o significado do documento “Dei Verbum ” do Vaticano II sobre a Revelação;
3) faz perceber a importância da presença da sabedoria de Deus na leitura que os pobres do mundo inteiro fazem da Bíblia. Isto ajudará para que a exegese científica descubra melhor qual a sua contribuição para a vida das Comunidades, para a Igreja;
4) o Sínodo sobre a “Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja” completa a caminhada iniciada no Sínodo anterior sobre a Eucaristia. Quanto ao Instrumentum Laboris, a opinião geral é de que se trata de um documento bom que está dando ao Sínodo um rumo positivo. O Instrumentum Laboris é o resultado das contribuições do mundo inteiro. Mostra como a Palavra está presente em todos os setores da vida da Igreja.

IHU On-Line - Que leitura o senhor faz da presença de 25 mulheres e do rabino chefe de Haifa, Israel, Shear-Yashuv Cohen, neste Sínodo?

Carlos Mesters - Acho muito importante a presença das mulheres, mas ainda é pouco. Só 25 entre mais de 200 participantes. O olhar feminino descobre e revela aspectos da Palavra de Deus que o olhar masculino não percebe, e vice-versa. Os dois olhares se completam e se enriquecem mutuamente. Limitando tudo ao olhar masculino, empobrecemos a riqueza que a Palavra de Deus poderia proporcionar às Igrejas e à humanidade. Quanto à presença do Rabino chefe de Haifa, Shear-Yashuv Cohen, ela é muito significativa e muito importante nos nossos dias. Ela nos ajuda a recuperar a memória. Não podemos esquecer nunca que Jesus era judeu, nasceu judeu, viveu como judeu e morreu como judeu. Todo o Novo Testamento é uma interpretação do Antigo Testamento à luz de Jesus. Temos muito a aprender uns dos outros. No passado, essa perda de memória a respeito da nossa origem nos levou a erros e crimes ao longo dos séculos. Recuperar a memória significa recuperar nossa identidade através do diálogo com nossos irmãos judeus. Em mim nasce o desejo de que, um dia, possa fazer o mesmo com nossos irmãos muçulmanos. Judeus, cristãos e muçulmanos, somos irmãos, filhos do mesmo pai Abraão.

IHU On-Line – Por que os livros apócrifos atraem tanto ao público? Não é tempo de fazer uma leitura de como foram selecionados os livros que hoje formam a Bíblia e revisar os que ficaram de fora?

Carlos Mesters - Acho que não há o que revisar. Os livros chamados apócrifos atraem porque são considerados proibidos. Tudo que é proibido atrai. Na realidade, nunca foram proibidos. Apócrifico quer dizer que estes livros não fazem parte da lista oficial. Deveriam ser chamados de livros “não-canônicos”. É bom notar que os livros apócrifos mais tardios, escritos entre o século V e VIII, têm uma tendência anti-semita, o que não é bom. É deplorável. Alguns chegam quase a considerar Pilatos como um homem honesto que foi enganado pelos judeus para condenar Jesus. Isto não corresponde à verdade histórica.

IHU On-Line - Que hermenêuticas o senhor apontaria como importantes, hoje, na leitura da Palavra, para não cair em fundamentalismos, literalismos ou leituras ideológicas?

Carlos Mesters - Todas as hermenêuticas que ajudam o povo a descobrir a presença da Palavra de Deus na vida são importantes: a hermenêutica feminina, a negra, a indígena, a leitura que os pobres fazem da Bíblia, enfim, tudo que faz a gente olhar os textos com um olhar a partir da realidade das pessoas. Resumindo, acho importante seguir os três passos do método ou da hermenêutica que Jesus usou com os discípulos na estrada de Emaús.

O primeiro passo: aproximar-se das pessoas, escutar sua realidade e seus problemas; ser capaz de fazer perguntas que as ajudem a olhar a realidade da vida com um olhar mais crítico (Lc 24,13-24).

O segundo passo: com a luz da Palavra de Deus iluminar a situação que os fazia sofrer e os levou a fugir de Jerusalém para Emaús; usar a Bíblia para fazer arder o coração (Lc 24,25-27).

O terceiro passo: criar um ambiente orante de fé e de fraternidade, onde possa atuar o Espírito que abre os olhos, faz descobrir a presença de Jesus e transforma a cruz, sinal de morte, em sinal de vida e de esperança. Assim, aquilo que antes gerava desânimo e cegueira, torna-se luz e força na caminhada (Lc 24,28-32).

O resultado do uso da Bíblia é o de criar coragem e voltar para Jerusalém, onde continuam ativas as forças de morte que mataram Jesus, e experimentar a presença viva de Jesus e do seu Espírito na experiência de Ressurreição (Lc 24,33-35). O objetivo último da Leitura Orante da Bíblia ou da Lectio Divina não é interpretar a Bíblia, mas sim interpretar a vida. Não é conhecer o conteúdo do Livro Sagrado, mas, ajudado pela Palavra escrita, descobrir, assumir e celebrar a Palavra viva que Deus fala hoje na nossa vida, na vida do povo, na realidade do mundo em que vivemos (Sl 95,7); é crescer na fé e experimentar, cada vez mais, que “Ele está no meio de nós!”

Dom Luciano Pacomio

“Pode-se discordar de como a União Européia formulou a moção sobre a homossexualidade, mas ser gay não poder mais ser crime”. Dom Luciano Pacomio, bispo de Mondovì, na Itália, e membro da Conferência Episcopal Italiana para a Doutrina da Fé e a Catequese, continuará sua “pastoral” dos homossexuais. A reportagem é de Giacomo Galeazzi, do jornal La Stampa, 02-12-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Fonte: UNISINOS

O que o senhor irá dizer aos seus fiéis homossexuais?

Uma coisa são as enunciações de princípio mais ou menos equivocadas, uma outra é o caminho de compartilhar com as pessoas em carne e ossos. Eu não devo pedir a orientação sexual de quem tenho na minha frente, são eles que devem dizê-lo a mim quando se sintam incômodos e queriam entender o pensamento de Jesus e as resoluções da Igreja. A vida é uma oscilação de alegrias e tristezas para todos. Dar sentido ao sofrimento atinge a sexualidade de qualquer um, heteros ou gays têm a mesma exigência de aprender a ser pessoas que sabem amar. As pessoas não devem ser culpadas. Cada um deve viver a sua orientação de itinerários pessoais, experiências ou condições individuais e merece respeito e atenção. Para mim, é centrar dar-lhes uma mão para a vivência de sua condição. Os gays são meus fiéis assim como os outros.

Teme repercussões por causa das palavras de dom Migliore?

As tomadas de posição oficiais sempre têm a necessidade de ser claras e peremptórias para não serem equivocadas. Manter a própria identidade gay ou iniciar um percurso existencial de verificação é uma escolha pessoal. Eu tento pedir uma grande confiança em Deus. São Paulo dizia que “já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre”. Assim, eu acrescento: “não há mais homossexual ou heterossexual” na identificação profunda da relação com Deus. Fazer o bem aos outros é a estrada mestra para qualquer um. Não é que os heterossexuais não vivam a fragilidade. Fidelidade e castidade são valores que valem para todos. O importante é a serenidade, a alegria, o viver sem levar a existência como um jogo. Dizer que a via comum é a relação homem-mulher não deve ostracizar todos os outros caminhos. Devem ser considerados os casos singulares, não agredindo, não condenando a priori, mas esclarecendo que podem existir diversidades. E eu ajudo a entender como atuar e viver essas diversidades com misericórdia.

Como o senhor se relaciona com os gays?

Às vezes, me perguntam: “O senhor quer que todos os gays se tornem heterossexuais?”. Eu respondo: “Não, eu quero que todos os gays vivam uma vida digna, feliz e colocando na balança não apenas a sua orientação, mas também a relação com Deus”. A minha ajuda é a ver como viver melhor no bem aquilo que experimentam. Não fecho a porta a ninguém. Uma coisa é o fundamento da lei divina, da Sagrada Escritura e do magistério, outra é o caminho para chegar a observá-lo. A catequese dos homossexuais vai ao encontro das exigências reais. Devemos estar atentos às palavras que parecem uma discriminação dos gays. Não é o caso de entrar muito no aspecto legislativo em escala nacional e internacional. Tudo o que respeita a liberdade, que não faz mal à decisão dos outros, deve ser guardada e avaliada em uma chave global.

Melhor não se prestar a instrumentalizações?

Exato. Concretamente, me interessa dar motivos às pessoas para observar os preceitos da Igreja e para apreciar as tentativas de caminhar na estrada da consciência madura. Ao invés das reações e das declarações fortes, produzem mais efeito o caminho junto às pessoas e o empenho concreto para dar a elas motivos de fazer escolhas fortes e construtivas.

27/12/2008

Cardeal Odilo Pedro Scherer











Credibilidade política

A lei 9840, apresentada no Congresso Nacional por iniciativa popular e aprovada em 1999, tornou possível a punição, pela Justiça Eleitoral, de políticos já eleitos, com a perda do mandato. Os processos por “corrupção eleitoral” geralmente envolveram a compra de votos ou o uso da máquina administrativa pública para se beneficiar nas eleições. Para conseguir sua aprovação, foram recolhidas mais de um milhão de assinaturas por várias entidades da sociedade, lideradas pela OAB e a CNBB. O mote da campanha era: “voto não tem preço, tem conseqüências”.

O Comitê Nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, articulado em todo o Brasil (cf. www.lei9840.org.br), monitora a aplicação da lei 9840; desde o ano 2000, quando a lei entrou em vigor, até outubro de 2007, já foram cassados bem 623 mandatários, que incluem desde vereadores (84) até governadores e vices (4); o número mais expressivo de afastados do mandato foi o de prefeitos: ao todo, 508! Para a sua eficácia, essa lei conta com a vigilância da população, que segue atentamente o desempenho dos candidatos durante a campanha eleitoral. Não há dúvida: a lei 9840 estimulou o povo brasileiro a assumir o seu papel de sujeito político e fiscalizador das ações daqueles que se apresentam para exercer mandatos públicos.

A lei já tem grande efeito moralizador na política brasileira. Mas será possível proteger a moralidade no exercício do mandato e assegurar a probidade administrativa? Certamente sim, na medida em que houver uma mobilização da população para isso. E já está em andamento uma nova iniciativa popular para conseguir isso. Durante a assembléia geral anual da CNBB, em Itaici, no início de abril passado, foi lançada a campanha de apoio a um Projeto de Lei complementar à lei 9840, para impedir a candidatura de cidadãos que estejam respondendo a processos criminais, ou até já tenham sido condenados em primeira instância por crimes graves. A nova proposta de lei de iniciativa popular já conta com a adesão firme da OAB, da CNBB, da Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais, além de um grande número de outras organizações da sociedade.

É constatável, e não raro, que em campanhas eleitorais passadas se apresentaram candidatos com ficha criminal a seu desfavor; por vezes, mesmo com processos por homicídio, tráfico de drogas, violência sexual e desvio de recursos públicos. A legislação atual não impede tais candidaturas e só ficam impedidos de disputar eleições aqueles que já tiveram condenação definitiva. Uma vez eleitos, os mandatários adquirem foro privilegiado e se colocam praticamente a salvo de qualquer condenação.

Evidentemente, a nova proposta de lei de iniciativa popular não pretende antecipar a declaração de culpa de quem está respondendo a processos criminais, mas quer impedir tais candidaturas até que os interessados fiquem livres de pesadas e fundadas acusações contra eles. O projeto de lei também prevê o veto à candidatura, por oito anos, de políticos que renunciam ao mandato para escaparem à cassação; na atual legislação, eles podem se apresentar livremente já nas eleições sucessivas à renúncia. Finalmente, pelo texto desse novo projeto, seriam ampliados os atuais prazos de inelegibilidade previstos na lei e também estão propostas medidas para agilizar o andamento dos processos na Justiça Eleitoral. De fato, hoje ainda há processos por crimes eleitorais referentes às eleições de 2004, sendo que os eleitos naquele ano já encerram seu mandato em 2008. É preciso tornar simples e mais rápida a tramitação de tais processos, para não esvaziar o efeito da lei 9840.

A motivação do novo projeto de lei de iniciativa popular é melhorar ulteriormente a vida política brasileira. De fato, que moral tem para legislar para a comunidade local ou para o País inteiro quem tem ficha criminal pendente na justiça? Como confiar a administração dos bens do município, do Estado ou da Nação a quem já tivesse prevaricado na gestão do patrimônio público? Quem se propõe para o exercício de cargos políticos precisa ter ficha limpa para merecer a confiança dos cidadãos. E não basta argumentar que os eleitores têm a liberdade de escolher a quem eles querem: também é preciso resguardar a dignidade e a credibilidade no exercício dos cargos políticos.

Através do apoio da CNBB à nova proposta de lei, a Igreja Católica, somando esforços com um grande número de organizações da sociedade civil, deseja fazer sua parte para a reabilitação da ética na política. Existem soluções para os lamentáveis fatos de corrupção no desempenho de cargos políticos, desvio de recursos e apropriação indevida do patrimônio público: a triagem conscienciosa dos candidatos nas urnas, depois de um processo eleitoral livre e participativo, e a constante vigilância da cidadania sobre aqueles que exercem cargos públicos. Melhor ainda, se pessoas não-idôneas forem barradas de se candidatarem para o desempenho de missões que requerem, além de competência, alta confiabilidade moral.

A nova campanha já está nas ruas e precisa recolher pelo menos um milhão e duzentas mil assinaturas em todo o Brasil; se for bem sucedida e conseguir a aprovação em tempo curto, a proposta de lei complementar para combater a corrupção na política poderá valer até mesmo para as eleições municipais deste ano. As adesões poderão ser dadas, com o título de eleitor na mão, numa infinidade de lugares relacionados com as instituições e organizações promotoras da campanha.

Fonte: CNBB

Dom Demétrio Valentini













Pobreza e Paz


Para o Dia Mundial da Paz, Bento 16 propõe à reflexão de todos a vinculação entre a pobreza e a paz. Começa constatando a dinâmica, onde a pobreza se encontra entre os fatores que desencadeiam os conflitos, que por sua vez acabam agravando ainda mais as situações de pobreza.

Diante desta constatação, Bento 16 lança o desafio, para ser assumido solidariamente, neste tempo de globalização em que nos encontramos: "combater a pobreza - construir a paz".

O ano de 2009 começa cheio de apreensões, face à crise econômica, nascida no centro do sistema, trazendo em conseqüência uma dinâmica inerente de propagação. As interrogações se referem não só à extensão da contaminação da crise, mas também à profundidade que ela terá, levantando sérias questões sobre o agravamento das situações de pobreza no mundo.

Em meio aos desafios que a situação de crise generalizada do sistema econômico mundial está levantando, é muito oportuno o apelo do Papa para uma convicta atitude de solidariedade para com as populações que serão mais atingidas pelas conseqüências da crise, tanto nos países centrais como nos países periféricos do sistema econômico mundial.

O desencadear da crise já mostrou uma desproporção evidente na destinação dos recursos. Quando se trata de socorrer instituições financeiras, as cifras são astronômicas, e parece não existirem limites para salvar os bancos. Mas quando se faz as contas de quanto se precisaria para acabar com a fome no mundo, o montante nem seria tanto, mas paira sempre no ar a constrangedora impressão de que não vale a pena gastar dinheiro para salvar os pobres.

O apelo do Papa, vinculando a pobreza com a paz, independente do que ele diz ou deixa de dizer, traz consigo o ineludível desafio de colocar a questão básica da finalidade verdadeira da economia: ela está a serviço da vida, ou não? E se está, o critério de averiguação do seu sucesso não pode ser o lucro, mas o atendimento das necessidades vitais de toda a população mundial, independentemente das regiões geográficas em que esta população se encontre.

A atual crise econômica mundial oferece a oportunidade para repensar as finalidades essenciais e as condições básicas para um verdadeiro projeto de desenvolvimento sustentável, em nível mundial, compatível com os recursos que o planeta nos oferece, e que precisam ser usados com critério e com responsabilidade.

Para evitar caminhos equivocados de combate à pobreza, o Papa aponta alguns âmbitos que mais necessitam de atenção. O primeiro deles é ligado à demografia, em que entra em jogo o tamanho da população mundial. Ele observa que os países que mostram dinamismo demográfico são os que apresentam hoje melhores índices de crescimento econômico, e com isto fica desmentida a suposição de que as taxas de natalidade são empecilho para o crescimento econômico. Mas é de observar que, neste contexto, ao mesmo tempo o Papa cita a surpreendente cifra da duplicação da população mundial a partir da segunda grande guerra até hoje, numa evidente alusão à responsabilidade com que deve ser olhado hoje o crescimento demográfico, que transcende a dimensão da ética individual para assumir dimensão de espécie humana.

O Papa faz também referência às pandemias, citando a malária, a tuberculose e a aids, para cujo combate ele advoga, corajosamente, a quebra dos patenteamentos, em vista da urgência de sua utilização em defesa da vida das populações pobres. Ele questiona com força os gastos que ainda hoje são destinados a programas armamentistas sem sentido e sem justificativas. Lembra que as primeiras vítimas da fome são as crianças, e observa que a crise alimentar atual está elevando as cifras dos desnutridos no mundo.

Uma mensagem, portanto, carregada de razões, e dirigida à consciência de todos.

Fonte: ADITAL

Dom Sergio da Rocha















Ética da Solidariedade


A tragédia que se abateu sobre o povo de Santa Catarina, vitimado pelas enchentes, tem comovido o País, despertando inúmeros gestos de solidariedade. A catástrofe natural ocorrida faz pensar, comovendo e movendo à ação solidária.

Seu significado ambivalente revela fragilidade, sofrimento, destruição, e ao mesmo tempo, resistência animada pela fé, esperança sustentada pelo amor, testemunhadas pelas vítimas, assim como, sensibilidade ética, compaixão, capacidade de mobilização solidária, manifestadas pelo povo brasileiro. A ética da compaixão e da solidariedade reaviva-se trazendo esperança de vida nova, tornando o mundo mais humano, segundo o querer de Deus.

Nosso povo piauiense e teresinense, marcado também pela dolorosa experiência das enchentes no último inverno, tem participado deste mutirão de solidariedade em favor das vítimas das enchentes do Sul, pois não há limites geográficos ou culturais para o amor fraterno, a compaixão e a solidariedade.

Entretanto, a situação de Santa Catarina deve ser objeto de atenta análise e reflexão; seu caráter sócio-ambiental não permite que seja reduzida simplesmente a mais uma catástrofe natural.

Trata-se de um sinal a ser interpretado com consciência crítica e serenidade, em seu múltiplo significado: social, ambiental e ético, exigindo medidas que ultrapassam as iniciativas pessoais e emergenciais.

É preciso considerar, em primeiro lugar, o fenômeno ocorrido no contexto da crescente destruição da natureza, violada pelo desmatamento, especialmente, em áreas urbanas de encostas e morros. Catástrofes naturais sempre ocorreram; é preciso analisar a forma como elas ocorrem em tempo de aquecimento global.

A ética da compaixão e da co-responsabilidade pela vida no planeta requer o cuidado e a preservação da casa comum, dom do Criador que o homem e a mulher deveriam "cultivar" e "guardar", como jardineiros do mundo, segundo o Gênesis.

Além disso, o fenômeno das enchentes deve ser analisado sob a perspectiva social. Para diminuir o impacto dos fenômenos naturais é preciso prevenir e planejar.

A problemática da ocupação desordenada das áreas urbanas, a falta de planejamento e de investimento público, as populações vivendo em áreas de risco, favorecem e agravam as tristes conseqüências das chuvas torrenciais.

Apesar da situação de Santa Catarina não ter poupado áreas mais desenvolvidas, os pobres têm sido as maiores vítimas revelando que a pobreza e a miséria têm favorecido a tragédia.

Em grande parte das enchentes que se abatem sobre o País, incluindo as sofridas pelo Nordeste, a pobreza e a falta de condições dignas de moradia têm sido a causa principal dos sofrimentos e não apenas a chuva como tal.

Por isso, é preciso aproveitar a ocasião para refletir e agir, de modo a prevenir, senão o fenômeno natural, ao menos o seu impacto social, por meio de políticas públicas que contemplem a justiça social, a ocupação urbana e a preservação ambiental, bem como, de iniciativas da sociedade civil, especialmente, o voluntariado organizado.

Ao mesmo tempo, deve continuar o exercício permanente da compaixão e da solidariedade, como parte do cotidiano. Diante dos sofrimentos causados por catástrofes naturais ou injustiças sociais, tal exercício cotidiano nos tornará mais aptos para traduzir a comoção em ação solidária.

Fonte: Arquidiocese de Teresina

26/12/2008

Entrevista - Jerome Murphy O’Connor

Reconhecido mundialmente como uma autoridade no NT, em particular as cartas de Paulo, publicou os livros: Biografia crítica (SP: Loyola, 2000) e Paulo de Tarso. História de um apóstolo (SP: Loyola, 2007), ambos traduzidos para diversos idiomas. Sacerdote dominicano, O’Connor é professor de Novo Testamento na École Biblique, em Jerusalém.
Fonte: UNISINOS



Paulo: um novo sentido para a Igreja de hoje

IHU On-Line – Qual é o significado da celebração do segundo milênio de nascimento de Paulo para o mundo cristão?

Jerome Murphy O'Connor – Eu imagino que a intenção do Papa Bento em declarar 2008-2009 o Ano de São Paulo foi a de trazer o Apóstolo mais à frente na mente da Igreja. Partes das cartas de Paulo são lidas na missa durante grande parte do ano, mas são curtas, complicadas e tiradas do contexto. Assim, seu sentido não é compreendido na leitura, e muitos pregadores preferem se concentrar na leitura do evangelho, que normalmente é muito mais fácil desde um ponto de vista teológico. Eu espero que, em resposta ao apelo do Papa, as paróquias e as escolas façam algo para introduzir os fiéis no gênio de São Paulo. Poderia ser uma versão pequena e simples da sua vida, com ênfase em como suas idéias teológicas cresceram muitas vezes fora de suas experiências. Outra possibilidade poderia ser reunir um grupo para trabalhar com uma das cartas mais curtas e mais simples, por exemplo, a Carta a Filemon, que tem apenas um capítulo e que lida com o interessante problema de um escravo fugitivo.

IHU On-Line – Paulo de Tarso é uma figura complexa. Como podemos considerá-lo enquanto figura singular na sua relação com o judaísmo e as origens cristãs?

Jerome Murphy O'Connor – Paulo de Tarso é uma figura complexa porque muitos fatores colaboraram para torná-lo o que ele é. Seus pais eram de Giscala, no norte da Galiléia. Quando ele era ainda pequeno, os romanos venderam seus pais como escravos em Tarso. Isso significa que Paulo cresceu como um judeu na diáspora, em contato diário com pagãos em uma cidade muito cosmopolita. Isso também significa que ele recebeu uma educação excepcionalmente boa, tanto judaica como secular. Sua capacidade altamente desenvolvida na retórica pode ser explicada pela sua participação no que hoje chamaríamos de Universidade de Tarso. Ele foi treinado para ter sucesso no mundo pagão. Aos 20 anos, foi a Jerusalém, e lá, como fariseu, se comprometeu com igual entusiasmo ao estudo da Lei Judaica. Quando adulto, relembrou o fato de que havia sido o melhor no grupo da sua idade. Durante esse período, certamente se casou. Era uma obrigação para os judeus se casar e ter filhos. Se Paulo nunca mencionou sua esposa ou seus filhos, eu só posso acreditar que eles morreram em um acidente tão traumático, que Paulo não suportava pensar sobre isso.

IHU On-Line – Como entender a experiência de Paulo, o “homem que cai do cavalo”, do encontro com Jesus Cristo no caminho de Damasco?

Jerome Murphy O'Connor – O que as pessoas pensam que sabem a respeito da Bíblia muito freqüentemente não provém da Bíblia. A conversão de Paulo é um exemplo. Em grandes pinturas, ele é representado caindo de seu cavalo, mas nenhum cavalo é mencionado na Bíblia, e é certo que ele não andou a cavalo. Os estribos foram inventados pelos chineses apenas no século IV d.C., e teria sido extremamente doloroso, para um estudioso sedentário como Paulo, cavalgar sem sela durante muito tempo.

Paulo nos conta apenas que foi semelhante às aparições pós-ressurreição a Maria Madalena, aos dois discípulos no caminho a Emaús etc. Esses discípulos reconheceram o Senhor Ressuscitado, que eles haviam conhecido em sua existência terrena. Mesmo que Paulo e Jesus tenham estado em Jerusalém no mesmo período, não há nenhum sinal de que eles tenham se conhecido. Então, como Paulo sabia quem era a pessoa que se encontrou com ele na estrada de Damasco? Nós não sabemos a resposta. Mas, pelas conseqüências, podemos ter certeza de que Paulo estava totalmente convencido de que era Jesus de Nazaré, que ele sabia que havia sido crucificado pelos romanos. Assim, ele deve ter compreendido imediatamente que Jesus era o Senhor e Messias. Como um judeu profundamente comprometido, isso significa que ele poderia apenas submeter-se totalmente a Jesus. A conseqüência mais importante para Paulo foi que essa aceitação de Jesus como o Messias significou que a Lei Judaica não tinha mais nenhum direito sobre ele. Ela não era mais o único caminho de salvação. Poder-se-ia ser salvo acreditando em Jesus Cristo. Por isso, a reação imediata de Paulo foi sair correndo para espalhar as boas notícias (= evangelho) aos pagãos mais próximos, que eram os nabateanos da Arábia.

IHU On-Line – Onde Paulo encontra os fundamentos para a grande liberdade que foi cultivando?

Jerome Murphy O'Connor – Para Paulo, a liberdade era uma propriedade da comunidade, não uma posse do indivíduo. Ele acreditava que aqueles que não conheciam Cristo, tanto judeus quanto gentios, viviam sob o poder do Pecado. Este era uma força gerada pelo falso sistema de valores da sociedade, que fazia as pessoas ser outra coisa do que elas gostariam de ser. Por exemplo, quando viajava sozinho, Paulo costumava presumir que qualquer um que tivesse a oportunidade iria roubar os utensílios dos quais o seu sustento dependia. Se ele não tomasse precauções e desse prioridade à sua própria segurança, ele poderia não ser capaz de viajar e trabalhar. Mesmo como um seguidor de Cristo, Paulo queria acreditar no melhor dos outros. Ele foi forçado a se dar conta de que eles eram egoístas pela mesma razão que ele tinha que ser egoísta. Se eles não cuidassem de si mesmos, iriam se afundar. Isso forçou Paulo a perceber que a liberdade era possível apenas em um ambiente alternativo, em que a força do bom exemplo mais do que contrabalançasse a força do mau exemplo proveniente da sociedade. Por essa razão, a base da liberdade de Paulo era a qualidade da vida cristã na comunidade na qual ele estivesse vivendo em um dado momento. Essa também é a razão pela qual ele viajou acompanhado. Ele não precisaria se preocupar que os seus utensílios poderiam ser roubados se ele tivesse companheiros para cuidá-los enquanto ele dormia ou ia ao banheiro. Por conseqüência, o maior desafio de Paulo à Igreja contemporânea é a sua insistência de que a liberdade não é individual, mas corporativa. Há um ensinamento comum que diz que, porque somos batizados, gozamos da liberdade dos filhos de Deus. Paulo cairia na risada com tal absurdidade, porque todos os cristãos, hoje, sentem a pressão de ser desonestos de uma forma ou de outra. Corajosamente, Paulo teria esboçado a conclusão óbvia: eles não são livres. Nós, infelizmente, preferimos a ilusão.

IHU On-Line – É bastante conhecida a importância de Paulo para o encontro da fé cristã com as culturas da sua época. Que continuidades e que rupturas culturais possibilitaram a expansão do cristianismo pela ação missionária de Paulo e de seus colaboradores e colaboradoras?

Jerome Murphy O'Connor – Uma das razões pelas quais a pregação de Paulo teve tanto impacto na cultura helenística é que esta, nesse período, estava passando por um período de depressão. Em um festejado livro, “Pagan and christian in an age of anxiety” (Pagãos e cristãos na era da ansiedade), o historiador E. R. Dodds mostra que, nos primeiros três séculos da nossa era, uma visão profundamente pessimista da humanidade permeou as diferentes culturas no Leste Mediterrâneo. Havia um sentimento profundo de que algo havia dado errado, o qual, quando aliado à assunção da responsabilidade humana, produziu sentimentos de culpa amplamente difundidos. Como estes não se focavam em nenhum objeto específico, eles deram origem a um sentimento de futilidade, uma vaga convicção de que a humanidade não tinha sentido, de que era um “absurdo”. Daí vem a popularidade do mito de Sísifo. Uma vez que o rei de Corinto estava no mundo subterrâneo, foi condenado a gastar seus dias rolando uma grande pedra até o cume de uma montanha, só para vê-la escorregar de suas mãos a cada vez e cair de volta à base. Um tremendo gasto de energia por nada.

Os sentimentos das audiências às quais Paulo falava são graficamente ilustradas pela cabeça de bronze do Homem de Delos, agora no Museu de Atenas. A identidade da pessoa sentada é desconhecida, mas ele era certamente um indivíduo com problemas. A boca tristemente magoada e os olhos infelizes revelam uma personalidade cercada de dúvidas e ansiedade. O olhar levemente para cima se dirige a um vazio, como se todas as certezas íntimas tivessem sido percebidas, de repente, como ilusões. A modelagem da testa sulcada e da face frouxa carrega um profundo sentido de perda e vazio. Ele encarou o futuro sem fé ou esperança. Eram pessoas como ele que acharam atrativas as Boas Novas pregadas por Paulo. Elas davam sentido à existência.

IHU On-Line – Como podemos compreender a relação de Paulo com as mulheres que colaboram e participam de sua missão e sua visão sobre o lugar e a participação das mulheres nas comunidades eclesiais?

Jerome Murphy O'Connor – Paulo tem uma má reputação entre as feministas, que o consideram um anti-mulher. De fato, Paulo foi o mais ativo promotor do ministério das mulheres no Novo Testamento. Lídia, Evódia e Síntique tiveram um papel ativo na evangelização de Filipos, e Paulo situa a participação delas precisamente no mesmo nível que a dos apóstolos homens. Ele reconhece Febe como uma líder da igreja de Cêncris, o porto mais ao leste de Corinto. Priscila liderava uma igreja doméstica com seu esposo, primeiro em Éfeso e depois em Roma. Ápia era uma integrante do comitê de três pessoas que dirigiam a igreja de Colossos. Em Corinto, Paulo assumiu como dado que as mulheres, assim como os homens, podem rezar e profetizar nas assembléias litúrgicas. A profecia para Paulo é um dom de liderança, e a oração articula publicamente as necessidades da comunidade. São papéis de liderança.

De acordo com Gênesis 2, o homem foi criado antes da mulher. Os judeus usavam essa diferença cronológica para provar que as mulheres eram inferiores. Paulo refuta esse argumento indicando que, de acordo com a vontade de Deus, todo homem hoje tem uma mãe. Por isso, se o argumento cronológico é invocado, isso prova que o homem é inferior. Em 1Coríntios 11,11, Paulo insiste que a mulher é totalmente igual ao homem na Igreja.

A escolha de Paulo de usar imagens femininas de uma mulher durante o parto (Gálatas 4,19) [2] e do cuidado feminino (1Tessalonicenses 2,7) [3] para descrever seu próprio ministério evidencia o seu reconhecimento de que os talentos do profeta são encontrados mais freqüentemente entre as mulheres do que entre os homens. Como a graça está baseada na natureza, não surpreende que as mulheres apareçam tão freqüentemente entre os líderes das igrejas paulinas.

IHU On-Line – Paulo está sendo relido hoje por vários filósofos da atualidade, como, por exemplo, como Alain Badiou, Giorgio Agamben, Jacob Taubes, Jean-François Lyotard e Slavoj Zizek. A que se deve esta relevância contemporânea da figura e atuação de Paulo?

Jerome Murphy O'Connor – Se Paulo é lido por filósofos contemporâneos, deve ser porque eles finalmente acordaram para o poder dos insights e o amplo alcance de suas sínteses teológicas. No passado, os filósofos desprezaram automaticamente o que a Igreja venerava, para grande prejuízo deles.

IHU On-Line – Quais são os principais elementos da teologia paulina que deveriam ser recuperados tendo em vista o diálogo intercultural hoje?

Jerome Murphy O'Connor – O aspecto-chave da teologia de Paulo que precisa ser enfatizado hoje é a sua visão da sociedade e da igreja. A sociedade, como ele a viu, era caracterizada acima de todas as divisões. No nível macro, havia blocos religiosos (judeus-gentios), econômicos (mestres-escravos) e sociais (homem-mulher), enquanto no micro os indivíduos eram separados por limites de medo ou dúvida. Essa era a descrição do mundo que ele tinha que salvar. Em minha opinião, ainda é uma descrição perfeita do mundo em que vivemos. Isso nos força a perguntar: o que o cristianismo conquistou de fato?

A igreja de Paulo é, acima de tudo, comunidade. Somente quando essa comunidade é uma realidade é que o ensinamento de Jesus tem sentido e se torna vivo. Somente quando a igreja local é Cristo na terra (o Corpo de Cristo) é possível ter uma eucaristia válida. Somente quando a igreja local está ardendo com o fervor do bom exemplo nós estamos livres do falso sistema de valores da sociedade. Somente quando vivemos em uma comunidade em que o amor é sempre ativo é que nossas orações são respondidas. Paulo intima a igreja de hoje a um novo sentido de realidade, que repudia o nominalismo e o verbalismo que caracteriza a Igreja hoje.

25/12/2008

Dom Gianfranco Ravasi















O clandestino de Belém


No último período da sua vida, Renato Guttuso [1], que também tinha uma casa em Velate, nos arredores de Varese, foi convidado a decorar com afrescos uma das capelas do percurso que subia ao famoso Sacro Monte daquela cidade. Foi-lhe confiada a cena da “Fuga ao Egito”, um topos da iconografia cristológica, e ele decidiu representar Maria, José e o pequeno Jesus como uma família de refugiados palestinos, amedrontados, obrigados a abandonar a sua casa errando no deserto (hoje, se deveria pensar no dramático exílio em pátria que é a situação dos habitantes de Gaza).

O povo hebreu, ao qual Jesus estava ligado segundo a carne e o sangue, se autodefinia na Bíblia como uma comunidade de “forasteiros e peregrinos”. Tanto é verdade que eles codificaram esta extraordinária sobre a qual muitos falsos legisladores cristãos também deveriam refletir: “Haverá uma mesma lei para o natural e o estrangeiro que peregrina entre vós. [...] Se um estrangeiro vier habitar convosco na vossa terra, não o oprimireis, mas esteja ele entre vós como um compatriota, e tu o amarás como a ti mesmo, porque fostes já estrangeiros no Egito” (Êxodo 12, 49; Levítico 19, 33-34).

Ora, se lemos os 48 versículos dos dois primeiros capítulos do Evangelho de Mateus, a tradicional retórica natalícia se desfaz para deixar entrever uma trama profunda: Jesus nasce em uma gruta-estrebaria, é deposto não em um berço, mas em uma manjedoura, enfrenta logo o pesadelo de uma repressão sanguinária (o “massacre dos inocentes”) e a pequena família deve investir pelo caminho da clandestinidade, protegendo-se no fronteiriço Egito. Como fica evidente, não é nada artificiosa a aplicação da atribulada história dos imigrantes, dos nômades, dos clandestinos que ocupam os nossos jornais à história do menino Jesus de Belém. Podemos dizer que a sombra da cruz se projeta já nos primeiros dias de vida desse neo-nascido e não admira que a escola pictórica de Novgorod [2], a partir do século XV, não tenha hesitado em unir esses dois extremos ensangüentados, representado o pequeno Jesus envolto em faixas funerárias e deposto em um berço em forma de sarcófago!

Séculos depois, um poeta cristão chinês, forçado também ele à clandestinidade enquanto perseguido, Ai Qing (1910-1996), celebrava com estes versos o Natal de 1936: Da manjedoura, surgem lamentos que arrancam o coração. Com inumeráveis dedos / a multidão indica a jovem-mãe desprezada como imundície, ninguém se dispõe a levar-lhe um vaso para o sangue”. O pensamento se dirige a certas mães estrangeiras (mas não só...), que dão a luz sozinhas, escondidamente, espalhando o seu sangue por terra e arrancando escassamente o cordão umbilical. Deixemos por agora esses paralelos, que deveriam fazer refletir crentes e agnósticos, e voltemos ao texto de Mateus, que citamos na sua essencialidade, distante mil milhas – como veremos – da ênfase miraculosa dos Evangelhos apócrifos.

Um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse: Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito; fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar. José levantou-se durante a noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito. Ali permaneceu até a morte de Herodes para que se cumprisse o que o Senhor dissera pelo profeta: Eu chamei do Egito meu filho (2,13-15). Essas concisas palavras evangélicas estão mais preocupadas em oferecer uma interpretação teológica dessa fuga do que de documentar e motivar os mais reais componentes históricos (essa é uma característica geral dos Evangelhos e em particular dos chamados “Evangelhos da infância de Jesus”, presentes nos capítulo 1-2 de Mateus e de Lucas). De fato, com a citação final retirada do profeta Oséias (11, 1), Do Egito chamei meu filho – quer-se aludir ao evento capital da história do Israel bíblico que foi o êxodo da opressão faraônica: Cristo percorre emblematicamente suas etapas, encarnando sofrimento e salvação, opressão e libertação, emigração e repatriação. Assim, mais adiante ressoará no Egito o apelo voltado ao pai legal de Jesus, José: Levanta-te, toma o menino e sua mãe e retorna à terra de Israel, porque morreram os que atentavam contra a vida do menino (2, 20).

Sob o pano de fundo torcido, há, também, a figura do famoso rei Herodes, cuja biografia – que pode ser reconstruída por meio do historiador José Flávio – foi bem marcada por grandes sucessos políticos, mas também por um implacável punho de ferro aplacar todo mínimo aceno de oposição. Macrobio, historiador romano do século V, atribuirá a Augusto um ditado que se refere a Herodes: perto dele, tinham mais sorte os porcos (não comestíveis para os judeus) do que os filhos (em grego, as duas palavras tem um som semelhante), porque Herodes havia liquidados filhos, mulheres e parentes suspeitos de tramar às suas costas. O Egito, que faz fronteira com a Palestina, constituía uma terra de exílio ideal: já no século X a.C., o então rebelde (e futuro rei de Israel) Jeroboão protegeu-se lá para fugir das forças de Salomão.

Dito isso, devemos baixar as cortinas sobre o caso desse pequeno fugitivo e da sua família. Mas desde as origens a tentação de se refugiar nos céus dourados do mito, desligando-se do realismo histórico da Encarnação cristã, estava pronta para atacar. E eis o florescimento de uma fantasmagoria de prodígios que circundam com uma auréola gloriosa o que, na realidade, era o amargo e fatigante sobreviver de três clandestinos. Páginas e páginas de tantos Evangelhos apócrifos, fruto de uma constante necessidade de decolar do presente áspero rumo às ilusões de salvações fáceis, teceram narrações mirabolantes que se infiltraram até entre as Suras do Corão. Com esses relatos, podemos até desenhar uma espécie de mapa dessa migração clandestina: os pais de Jesus, descartando o chamado “caminho do mar” que costeava o Mediterrâneo e ultrapassava Gaza – caminho mais curto, mas perigoso por causa dos postos de bloqueio das tropas herodianas antes e egípcias depois – se dirigem rumo ao oriente, atravessando o Jordão e procedendo da atual Jordânia, ao longo de um complexo itinerário. Ainda mais minuciosa é a seqüência das etapas em território egípcio: o atual Cairo (que, entre outras coisas, é sede ainda hoje de esplêndidas igrejas dos cristãos coptas, indígenas do Egito, como diz o seu próprio nome, deformação do grego Aigyptos), Ermopólis, Assiut e assim por diante.

Nós nos contentamos agora em oferecer apenas dois exemplos dessa narrativa apócrifa, em que a ênfase do milagre apaga todo realismo da história. Eis alguns fragmentos do longo relato dos capítulos 18-20 do chamado Evangelho do Pseudo-Mateus (conhecido já no século IV-V):

Chegaram diante de uma gruta para repousar, mas, de repente, saíram muitos dragões. Jesus, então, saiu do colo de sua mãe e ficou de pé sobre seus pés diante dos dragões: eles se colocaram a adorar Jesus e depois foram embora diante deles... Assim também os leões e os leopardos o adoravam e acompanhavam-nos no deserto: em todo o lugar que José e Maria andavam, eles os precediam, mostrando a estrada e curvando a cabeça; serviam fazendo a festa com o rabo e o adoravam com grande reverência... No terceiro dia da viagem, Maria, cansada pelo grande calor do sol e do deserto, vendo uma palmeira disse a José: Repousarei à sombra dessa árvore. Maria olhou a folhagem da palmeira e viu-a cheia de frutos e disse a José: Gostaria de pegar os frutos dessa palmeira. E José: Admiro-me de que tu digas isso vendo a altura dessa palmeira. Eu penso sobretudo na falta de água... Então, o menino Jesus, que sereno repousava no colo de sua mãe, disse à palmeira: Árvore, dobra os teus ramos e restaura com os teus frutos a minha mãe. A essas palavras, a palmeira dobrou rapidamente a folhagem até os pés da beata Maria e permaneceu inclinada esperando a ordem de se levantar por parte de Jesus. Ele lhe disse: Abre com as tuas raízes a veia d’água que está escondida na terra. E logo começou a brotar, das razíes, uma fonte d’água limpíssima, fresca e clara.

O outro exemplo nós o resumimos do capítulo 23 do chamado Evangelho Árabe da Infância, que, em al-Moharraq, próximo da atual Assiut (350 Km ao sul do Cairo), reserva a mais surpreendente aventura egípcia do Jesus menino. Durante a noite, à procura de um refúgio, José e Maria são atacados nessa região infestada de delinqüentes: quem os ataca são dois bandidos, Tito e Dumaco. Tito se comove rapidamente frente a essa pobre família, tocado pela ternura da mãe e do esplendor da criança. Para poder salvá-los da avidez do roubo do sócio, está pronto a oferecer a Dumaco 40 dracmas das suas “economias”, para que deixe a pequena família incólume. Como é fácil imaginar, os dois serão os companheiros de Jesus na crucificação, condenados à morte com ele em Jerusalém, depois de vários episódios, e Tito nada mais é do que o bom ladrão a quem Cristo abre as portas do Paraíso.

Estamos, portanto, bem longes da sobriedade do sucinto relato do Evangelho canônico de Mateus e da realidade dos prófugos de então e de agora. O cristianismo quis certamente apresentar a vida do seu fundador na grandeza do seu mistério, mas também oculto sob as vestes do sofrimento e os trapos da miséria, desde a origem até o trágico desfecho na colina do Gólgota na crucificação. O Cristo real é irmão dos últimos da terra, e é por isso que Bertolt Brecht (sim, justamente o dramaturgo alemão ateu) tinha razão quando, nas suas Poesias (1918-1933), escrevia os versos do seu "Natal dos pobres": Hoje estamos sentados, na vigília de Natal, nós, gente mísera, em uma gélida salinha, o vento corre lá fora, o vento entra. Vem, bom Senhor Jesus, a nós, volta o olhar: porque Tu és verdadeiramente necessário.

Notas:

1. Renato Guttuso (26 de dezembro de 1911 – 18 de janeiro de 1987) foi um dos maiores pintores italianos do século XX. Suas pinturas mais famosas incluem “Flight from Etna” (1938-39), “Crucifixion” (1941) e “La Vucciria” (1974). Guttuso também criou para o teatro, incluindo cenários e figurinos para a peça “Histoire du Soldat” (Rome, 1940) e ilustrou diversos livros, muitos no mundo de língua inglesa. [voltar]

2. Nizhniy Novgorod (em russo, Нижний Новгород) é a capital de uma província da Rússia com o mesmo nome, fundada em 1221. A Escola de Novgorod refere-se à arte dos ícones e dos afrescos, cuja primeira referência foi a arte bizantina. A Escola alcança sua plenitude no final do século XIV e durante o século XV, quando a influência bizantina desaparece e acentua-se o toque nacionalista. Os pintores evitam o simbolismo abstrato e complicado, desenvolvendo temas simples de clara leitura. A paleta contém cores vivas, puras, intensas e vibrantes entre as quais se destaca os tons de vermelho. Clique nos links para ver alguns exemplos de imagens: "A Trindade do Antigo Testamento" e "O Nascimento da Virgem".


Fonte: UNISINOS