27/01/2011

Manuel Fraijó

O olhar crítico e necessário de Hans Küng  
Artigo de Manuel Fraijó, professor de Filosofia da Religião e decano da Faculdade de Filosofia da UNED, publicado no jornal espanhol El País, 25-01-1011. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS



Passaram-se 15 anos desde que 1.300 pessoas, emocionadas e em pé, aplaudiam a última aula magistral de Hans Küng (foto). Não menos emocionado que seu auditório, o grande teólogo percorria a saída do abarrotado salão de atos cochichava um apenas perceptível “gostaria de continuar contando com seu afeto”. Era o dia de sua aposentadoria.

A Espanha, país que tantas vezes visitou e onde seus livros alcançam uma extraordinária difusão, sempre o honrou com seu afeto; mas estava pendente a tarefa de plasmá-lo em imagens, de lhe outorgar importância e solenidade. É o que se propõe fazer a UNED no próximo dia 27 de janeiro, por proposição de sua Faculdade de Filosofia. Fizeram-no, antes que ela, outras 14 universidades de diferentes países. Hans Küng, além de ser um dos mais destacados teólogos atuais, apresentou notáveis serviços à filosofia, especialmente à Filosofia da Religião. Mais: pertence a uma tradição, a alemã, que não separa a teologia da filosofia.

Quase todos os grandes teólogos alemães criaram apaixonantes teologias filosóficas. É possível inclusive que a passagem do tempo, tão impiedosa com as criações humanas, só respeite aqueles projetos teológicos profundamente enraizados em uma rigorosa e exigente reflexão filosófica. É, sem dúvida, o caso de Hans Küng (Sursee, Lucerna, 1928).

Tudo começou em 1957 com uma fascinante tese de doutoramento. Tinha o título A justificação. A doutrina de Karl Barth e uma interpretação católica. Küng se atreveu com um tema que, desde os inícios da Reforma, havia dividido católicos e protestantes. Com coragem e juventude, estendeu pontes de diálogo e compreensão. Barth deu um simpático visto bom à obra, qualificando o seu autor de “israelita sem dolo” e desejando-lhe que viesse sobre ele o Espírito.

Na década de 1960 suscitaram grande entusiasmo e esperança obras como Estruturas da Igreja (1962) e A Igreja (1967). Küng desenhava o perfil de uma Igreja humilde, fiel à mensagem de Jesus, atenta às necessidades do mundo e sempre disposta a se reformar. Nem nos momentos mais conflitivos de sua relação com a Igreja pensou Küng em abandoná-la. O seu serviço é crítico, vigilante, incômodo e arriscado, mas necessário. Em 1965, no transcurso de uma conversa privada, Paulo VI lhe fez uma “oferta de trabalho” que poderia ter mudado sua biografia: conta-o, com invejável maestria literária, no primeiro volume de suas memórias, Liberdade Conquistada (p. 553ss.). “Quanto bem você poderia fazer (...) se pusesse seus grandes dotes a serviço da Igreja”, lhe disse o Papa. Küng lhe responde: “Ao serviço da Igreja? Santidade, eu já estou a serviço da Igreja”. Mas o papa se referia à Igreja especificamente romana e acrescentou: “deve confiar em mim”. De novo Küng: “Eu tenho confiança em Sua Santidade, mas não em quantos estão ao seu redor”. A oferta não foi aceita e Küng continuou o seu caminho de professor universitário.

Um caminho que o levou, se seguimos a sequência cronológica, a um estudo intenso, guiado pelo método histórico crítico, da figura de Jesus. Em 1974 apareceu um dos seus livros mais geniais, Ser Cristão. Era, e continua sendo, uma obra repleta de informação histórica e paixão crente. Afirmava-se a fé cristã de sempre, mas era expressa de forma diferente. Küng não partia de fórmulas abstratas. Seu ponto de partido era o grande protagonista da aventura cristã: Jesus de Nazaré.

Mas o teólogo sabe que tem sempre um encontro com o último do último. São Paulo diz que Cristo é Deus. Deus é, com efeito, o assunto final da teologia, sua noite e seu dia, sua prova máxima.

Küng enfrentou este desafio em sua monumental obra Existe Deus? Resposta ao problema de Deus em nosso tempo (1978). A suas páginas se assomam todas as sacudidas experimentadas pelo tema “Deus” desde que Descartes deu carta de cidadania à dúvida. Küng responde afirmativamente à pergunta pela existência de Deus. Sem Deus, afirma, o ser humano ficará sem chão firme debaixo dos pés. No horizonte apareceria o sem sentido. Sem sentido ao qual fazem frente algumas religiões com a promessa da ressurreição. Küng se atreveu também com este tema em seu livro Vida eterna? (1982).

Mas o final, a ressurreição, leva à origem, à criação, ao começo de tudo. É o tema que aborda em O princípio de todas as coisas. Ciência e religião (2007). As últimas páginas constituem um rotundo “não” ao “nada”, uma aposta na “outra vida” que, inclusive se ao final se perde, terá ajudado a viver esta com mais ilusão e esperança. Sobre suas ilusões e esperanças volta, em tom pessoal, quase confidencial, no livro Em que eu creio (2011).

Desde que, incompreensivelmente, um 15 de dezembro de 1979, o papa João Paulo II “premiou” esta folha de serviços à Igreja afastando este brilhante defensor da fé cristã a venia docendi e declarando-o “teólogo não católico”, Küng se adentrou em terrenos pelos quais não costuma transitar o teólogo.

Nasceram assim seus volumosos estudos sobre as religiões: O judaísmo (1991), O cristianismo (1994), e O islamismo (2004). Previamente, em 1984, havia publicado o volume O cristianismo e as grandes religiões, em que se senta o cristianismo a dialogar com o islamismo, o hinduísmo e o budismo. Küng não esquece que a secularização é um fenômeno quase exclusivamente ocidental; no resto do mundo, as religiões seguem configurando a realidade. É, pois, necessário contar com seu impulso.

Desembocamos, por último, em sua contribuição mais recente, aquela dedicada à ética. Hans Küng é fundador e presidente da Fundação Ética Mundial, com sede em Tubingen e Zurique, mas com representação em numerosos países. Representantes da educação, da cultura, da religião e da política acodem a esta fundação em busca de orientação em valores e compromisso educativo. O substrato desta fundação se encontra no seu livro Projeto de ética mundial (1990). Seu autor está convencido de que, sem um consenso ético básico sobre determinados valores, normas e atitudes, é impossível uma convivência humana digna, tanto em pequenas como em grandes sociedades. Um consenso que só é alcançável mediante o diálogo e o mútuo reconhecimento e apreço. A ética mundial deve partir de um princípio tão básico quanto antigo: “todo ser humano deve receber um trato humano”.

Finalmente: Hegel deixou escrito que os grandes homens não são apenas os grandes inventores, “mas aqueles que cobraram consciência do que era necessário”. A tais homens pertence, creio, o pensador que por estes dias a UNED se propõe a honrar. Acabamos de enumerar alguns de seus méritos.

Desde já, Küng nunca poderia ser o destinatário da grosseria que seu grande amigo, o ex-chanceler social-democrata Helmut Schmidt, cometeu contra um grupo de jornalistas. Cansado de que reprovassem sua realpolitik e sua falta de espírito utópico (governou a Alemanha depois do carismático Willy Brandt), lhes obsequiou, meio em tom de brincadeira, meio a sério, com um “quem tiver visões que vá ao médico”.

Evidentemente, a UNED não convidou o professor Küng para “enviá-lo ao médico”, mas para acrescentá-lo ao nosso claustro de professores e agradecer-lhe seu espírito visionário, suas utopias e suas esperanças de dias bons, melhores que os atuais, para o futuro de todos os seres humanos.

Juan José Tamayo

Dez lições que aprendi de Hans KüngArtigo é de Juan José Tamayo publicado no jornal espanhol Diario Vasco, 26-01-2011. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS


Eis aqui algumas.

1. Deus. Küng (foto) coloca o problema de Deus seguindo os passos do pensamento moderno europeu através de alguns de seus principais filósofos e sistemas de pensamento. Em diálogo com eles e atento às suas críticas, responde com três “sim” à pergunta pela existência de Deus: sim à realidade como alternativa ao niilismo, sim a Deus como alternativa ao ateísmo, sim ao Deus cristão, que se revela em Jesus de Nazaré. Analisa também as concepções de Deus nas religiões não cristãs, o judaísmo, o islamismo, o hinduísmo, incluindo a ideia de Deus nas religiões chinesas e a religiosidade não-teísta do budismo.

2. Jesus de Nazaré. A cristologia de Küng é uma das mais inovadoras e melhor fundadas nas últimas décadas, que contribuiu para recuperar o Jesus histórico e para reformular e interpretar a doutrina sobre Jesus de Nazaré em perspectiva histórica e no contexto dos novos climas culturais. À pergunta pela verdadeira imagem de Cristo responde que o Cristo real, que não é um mito, mas um personagem, cujo contexto sociocultural, mensagem, conflitos com as autoridades políticas e religiosas, morte e nova vida analisa com rigor exegético.

3. A Igreja. Küng se pergunta se a Igreja pode apelar razoavelmente a Jesus e se está fundada no Evangelho. A partir daí elabora uma eclesiologia crítica que parte da Igreja real encarnada no mundo, e não de uma Igreja ideal que se encontra nas abstratas esferas celestes da teoria teológica e destaca sua índole carismática como parte de sua estrutura fundamental. A Igreja não se encontra no mesmo nível que o Reino de Deus, mas está ao seu serviço.

4. O diálogo ecumênico. O teólogo suíço vai em busca das convergências entre catolicismo e protestantismo. E o faz falando como católico diante do espelho do Evangelho, desejando que os irmãos protestantes se tornem mais evangélicos, e assim se reencontrar não em torno da figura do papa, mas em torno do Evangelho. Após ler sua tese de doutoramento, Barth só pode se perguntar se todas as guerras de religião, as lutas teológicas e as divisões não teriam sido um imenso erro. Tinha razão!

5. A unidade das igrejas cristãs. As igrejas cristãs não devem se fechar no estreito círculo de sua própria confissão, caindo em um confessionalismo excludente. Deverão se abrir ao ecumenismo em todos os terrenos. A unidade dos diferentes cristianismos não se consegue com o retorno de uma igreja a outra, e menos ainda com a submissão ou rendição de todas a uma. Consegue-se através da mútua aceitação e da conversão de todas a Jesus de Nazaré e à sua mensagem libertadora. Os acordos doutrinais devem vir acompanhados de práticas ecumênicas.

6. As mulheres como sujeitos morais, eclesiais e teológicos. As igrejas cristãs não podem seguir presas em concepções teológicas que inferiorizam ou consideram menores de idade as mulheres, nem nos modelos organizativos hierárquico-patriarcais, que as excluem do exercício dos ministérios e das funções de direção. Devem ser reconhecidas como sujeitos morais, eclesiais e teológicos e, enquanto tais, com o protagonismo que tiveram no movimento de Jesus e no cristianismo primitivo.

7. O diálogo inter-religioso. Nenhuma religião pode reivindicar o monopólio da verdade, nem da ética, nem da libertação. Por sua vez, toda religião tem uma verdade originária que, além de verdade teórica e reto conhecimento, se torna verdade na práxis, o reto comportamento e a atitude ética. As religiões podem proporcionar um horizonte global de sentido, inclusive diante da dor, da culpa, e do sem sentido, dar um sentido último à vida frente à morte, garantir valores supremos e motivações profundas e impulsionar manifestações contra as situações injustas. Nesse horizonte se situa a necessidade do diálogo inter-religioso.

8. O projeto de ética mundial. Küng é pioneiro na proposta de uma ética mundial na era da globalização, na qual hão de convergir as religiões e as ideologias seculares, em torno das seguintes tarefas: defesa da vida, trabalho pela paz, proteção do meio ambiente, cultura da não violência, da solidariedade, da tolerância, de uma vida veraz, da igualdade e da colaboração entre homens e mulheres. Propõe uma ética mundial para a economia e a política, que critica as situações realmente existentes, apresenta alternativas construtivas e racionalmente realizáveis, assim como impulsos para a sua realização. Nesta ética hão de convergir as religiões e as ideologias seculares.

9. Renúncia a servir ao sistema romano. Küng nunca se viu tentado a entrar no serviço do sistema romano. Se o tivesse feito, como o fizeram outros colegas seus, teria que ter dito sim e amém a muitas coisas contrárias à sua consciência e teria vendido sua alma pelo poder da Igreja.

10. Liberdade, verdade e veracidade. Que orientações segue hoje a vida de Küng? Ele mesmo responde: “Continuo resistindo em aras da verdade, tendo a liberdade em alta estima, avançando na pesquisa e lutando por uma Igreja que não se considere a si mesma infalível”.

24/01/2011

Entrevista - Pe. José Comblin

''A Igreja Católica suspeita da democracia''

 
Pode parecer curioso que um sacerdote indique que Marx "foi o primeiro filósofo cristão". Essa é a posição que José Comblin (foto) tem a respeito da sustentação do cristianismo, religião que, com a influência de filósofos como Aristóteles, naturalizou a ordem do mundo, até se convencer de que não é possível mudá-lo, já que foi dado por Deus.  A reportagem é de Cristóbal Cornejo, publicada no sítio El Ciudadano, 20-01-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Nascido na Bélgica (1950), Comblin se doutorou em teologia na Universidade de Louvain (capital do país). Viveu no Brasil e, em 1972, expulso pela ditadura, foi ao Chile para ensinar na Universidade Católica. No entanto, em 1981, Pinochet lhe impediu de reingressar depois de uma viagem, por isso voltou para o Brasil, onde trabalhou nessa década com comunidades de base.

Como o senhor caracteriza Jesus Cristo?

Ele vem mostrar em sua vida o que é a nova humanidade e anunciar a transformação. Busca os que sofrem, os doentes, os que não tiveram sorte. Depois, anuncia aos pobres que a situação mudará, que tenham confiança e força, porque eles têm a sabedoria de Deus e a entendem. Por outro lado, os ricos e poderosos nunca entendem e não querem entender. Eles defendem seus privilégios e nada mais. Depois, ele reuniu uma comunidade e lhes deu uma recomendação básica fundamental: que ninguém queira ser mais do que os outros. Isso basta, é a única instrução. Se respeitarem isso, todo o resto funciona. Depois, denunciou a todos os que mantêm o sistema de dominação, e que o defendem, porque lhes beneficia. Por fidelidade a essa mensagem, todas as autoridades de Israel querem matá-lo e vão pôr-se de acordo com o governador romano que, de fato, sente que ele é um revolucionário que ameaça seu sistema e ao qual é melhor suprimir. Jesus mostrou o caminho para construir um mundo novo, não só para salvar a alma, que é mais fácil.

Como se projeta a imagem desse Jesus na Igreja Católica que se institui?

Em um momento crítico, os imperadores romanos adotaram o cristianismo como religião do Estado. E isso está muito longe do evangelho de Jesus! Começam a representar Jesus em mosaicos vestido como Imperador, com as insígnias do poder, com o manto imperial, o que, por sua vez, confirma o poder do Imperador. Aí, aparece todo um sistema de culto que não existia, porque as religiões anteriores ofereciam sacrifícios, tinham templos, mas os cristãos não. Com esse sistema, todo o mundo é obrigado a ser cristão, as pessoas se batizam porque a polícia os está vigiando, e assim aparece um monte de discípulos de Jesus que, na realidade, não o entendem.

E qual é o papel dos sacerdotes?

A tarefa da organização eclesiástica é de cuidar da transmissão da fé, mas, na prática, fazem isso à medida que não seja um perigo para a sua carreira. No momento em que é um perigo, há coisas que é melhor não dizer nem explicar. Não dizem que Jesus morreu porque lutou contra todos os dominadores e denunciou o sistema. Dizem que sacrificou sua vida para que Deus perdoe os pecados das pessoas, e ninguém se sente ameaçado.

Como o senhor vê o momento atual da Igreja Católica?

Neste momento, sua preocupação principal é se manter, continuar, já que há muitos que foram embora. Estão buscando manter sua posição de poder, embora, na prática, isso não tenha muita influência. Estão preocupados em reconquistar a influência que tinham antes, embora não saibam como fazer isso. Quanto ao mundo exterior, não há muita preocupação. Entrar em conflito com os poderes dominantes? Isso não, nada disso.

A Igreja teve alguma vez a possibilidade de impulsionar a mudança social?

Como instituição não, só mudança social até o ponto em que as classes dirigentes aceitam. Daí a confrontar... isso é feito por algumas pessoas, alguns padres, alguns bispos, mas não a instituição. Toda instituição tende a permanecer, essa é a sua natureza, não ter conflitos com outros poderes. Por isso, o melhor seria a instituição mais frágil possível, ter o necessário para manter a unidade e a organização, sem concentração de poder, com dispersão, que cada lugar possa se organizar e definir.

O que lhe parece a figura e a liderança do Papa Bento XVI?

Ele é mais discreto do que o anterior, não tem o mesmo carisma, nem o desejo de se mostrar tanto. É um intelectual, dedica o tempo para estudar. Não conhece muito sobre as realidades dos povos. É muito amável, muito acolhedor, mas nas ideias é muito tradicional, conservador.

E sobre suas relações com o nazismo?

É que todo sistema é autoritário. Na democracia, critica-se discute-se, vota-se e decidem-se coisas, mas a Igreja não gosta disso, tem medo. A Igreja suspeita da democracia, por isso um sistema autoritário coincide melhor com seus interesses, porque aí tudo se decide conversando com o ditador.

Em que difere a concepção da Igreja sobre o pecado da que Jesus teve?

Quando judeus se tornaram discípulos de Jesus, eles traziam toda a sua herança, muito concentrada no Antigo Testamento: a insistência de fazer com que as pessoas aplicassem toda a moral e todas as normas e as regras. Jesus não se preocupou muito com o pecado, porque Deus perdoa. Ele teve simpatia pelos pecadores, porque eram menosprezados, mal considerados. Deu-lhes mais ânimo, valor e força. O pecado é o sistema de dominação que reaparece sempre em toda a história, o contrário da fraternidade e do amor. Toda forma de dominação que diminui a vida é matar o outro, isso é dominação, opressão, pecado.

Se Jesus estivesse vivo, onde estariam postas as suas energias?

Jesus queria mudar este mundo. Iria buscar as pessoas simples e pobres, porque com os ricos é inútil. Eles não vão querer mudar, estão aproveitando bem. Iria buscar os pobres, criaria comunidades, lhes daria o sentido de sua dignidade, de seus direitos, de lutar por uma vida melhor.

Quando o senhor fala de mudar o mundo, fala de revolução social?

Não, de mudar a humanidade, a forma de se relacionar entre as pessoas, isso é o que é preciso mudar. Como fizeram as comunas medievais, as comunidades de base, as empresas cooperativas, em que todos participam. No final, o império cairá como todos os anteriores, e os oprimidos se libertarão graças à sua luta.

21/01/2011

Entrevista - Monsenhor Jacques Gaillot

Não é a velha Europa que dá o exemplo, é a América Latina

São poucos os franceses que conhecem o nome da máxima autoridade da Igreja Católica no país, mas a imensa maioria sabe quem é o Monsenhor Jacques Gaillot (foto). Homem, de olhar sereno e voz pausada, que fez de sua vocação religiosa uma opção pelos direitos humanos, especialmente os direitos dos pobres e priosineiros da injustiça. Em entrevista ao jornalista Hernando Calvo Ospina, Gaillot denuncia o clima de injustiça reinante na França hoje, diz que a Igreja Católica virou às costas para o povo pobre e caminha para virar uma seita, e aponta a América Latina como a região que deve servir de exemplo para os que lutam contra a injustiça. Hernando Calvo Ospina é jornalista colombiano residente na Europa, autor de vários livros, entre os quais: Salsa, Don Pablo Escobar, Perú: los senderos posibles y Bacardí: la guerra oculta. Tradução: Katarina Peixoto.
Fonte: Carta Maior


O que significou para você ter vivido essa guerra?

Esta experiência começou a mudar a minha vida. Ali me encontrei com o Islã, uma religião muito diferente da católica e sobre a qual nada conhecia. Fiquei sabendo que os muçulmanos tinham fé em um Deus, que oravam e que eram hospitaleiros. Eles foram como meus irmãos. Esta interreligiosidade influiu em minha fé. Também vivi a violência da guerra, razão pela qual fui me convertendo em um militante da não violência. Realmente, a Argélia foi um seminário para mim.

Após 22 meses na Argélia, você foi enviado a Roma e, em 1961, foi ordenado sacerdote. Até que, em 1982, foi nomeado bispo da cidade de Evreux, na França. Mas em 13 de janeiro de 1995, o Vaticano decidiu retirar-lhe essa missão pastoral. O que aconteceu?

Alguns dias antes dessa data fui chamado a comparecer diante das autoridades do Vaticano sem saber por quê. Ante minha incredulidade, em algumas horas fui declarado culpado e, em menos de um dia, foi decretada minha expulsão da diocese. O cardeal Bernardin Gantin, prefeito da Congregação dos Bispos, me propôs que eu assinasse minha demissão e assim poderia manter o título honorífico de bispo emérito de Evreux. Não assinei nada. Então me nomearam bispo de Partenia, uma diocese que não existe desde o século V, situada na atual Argélia.

Com minhas poucas roupas deixei a diocese de Evreux. Como não tinha onde ficar, me instalei durante um ano em um prédio recuperado por famílias sem teto e estrangeiros sem documentos, em Paris. Depois fui acolhido por uma comunidade de missionários.

O que levou o Vaticano a tomar uma decisão tão drástica? Talvez suas posições políticas e compromissos sociais? Porque, vejamos: em 1983, foi um dos bispos que não votou a favor de um texto episcopal sobre a dissuasão nuclear. Em 1985, apoiou o levante palestino nos territórios ocupados por Israel, além de se encontrar com Yasser Arafat em Tunís. Em 1987, preferiu viajar até a África do Sul para visitar um preso, militante contra a segregação racial, ao invés de ir à peregrinação pela Virgem de Lourdes. Em 1988, defendeu na revista “Ele” a ordenação de homens casados. No mesmo ano se declarou a favor de dar a benção a homossexuais. No dia 2 de fevereiro de 1989, publicou na revista “Gai Pied” um artigo intitulado “Ser homossexual e católico”. Desde 1994, você se envolveu diretamente na fundação de associações de apoio a marginalizados, passando a ser conhecido como “O bispo dos sem”: sem documentos, sem teto...Não acredita que isso já seja o suficiente para conseguir inimigos entre os círculos de poder eclesiástico e civil?

Ainda que siga sem provas concretas até hoje, fontes confiáveis me disseram que o governo francês, em particular o ministro do Interior da época, Charles Pascua, tem a ver com a decisão do Vaticano. Não esqueçamos que, na França, este ministério está encarregado dos Cultos. Tenho certeza que um livro meu contra a lei de imigração foi a gota d’água que entornou o copo.

O Vaticano e o governo francês quiseram me isolar. Mas em 1996, no primeiro aniversário de minha partida de Evreux, alguns amigos criaram na internet a Associação Partenia (1), fazendo de mim um “bispo virtual”. Não imaginaram que eu iria acabar animando a única diocese em expansão, com mais fiéis no mundo e em diferentes idiomas.

Imediatamente agradeci ao Vaticano e a Pascua, porque eles me fizeram dar mais passos na direção da outra margem, onde encontrei outra vida. Agora tenho toda a liberdade, vivo na ação com os excluídos da sociedade. Posso viver com as pessoas, compartilhar suas alegrias e suas angústias. Tem sido maravilhoso conhecer todas as pessoas que conheci. Enquanto isso, Pascua está sendo processado por vários delitos e a Igreja a cada dia perde mais cristãos.

Como, você avalia atualmente a Igreja Católica?

A Igreja nos ensinou que Deus quis trazer-nos as desgraças e assim nos leva à resignação. Isso não é cristão. A Igreja procura fazer Deus intervir para nos forçar a obedecer e a não pensar. Muitos discursos sobre Deus falam dele, mas quando alguém fala bem do ser humano, isso me diz muito de Deus. A Instituição segue impávida em seu pedestal, longe do povo e de Deus. A seguir assim, se converterá em uma seita, porque muitas pessoas estão partindo para outras religiões. A Igreja vive uma hemorragia.

A Igreja deve mudar, modernizar-se, reconhecer que os casais têm direito a se divorciar e a usar a camisinha, que as mulheres podem abortar, que homens e mulheres podem ser homossexuais e se casar, que as mulheres podem chegar ao sacerdócio e ter acesso às esferas de decisão. Deve-se revisar a disciplina do celibato para que os sacerdotes possam amar como qualquer outro ser humano, sem ter que viver relações clandestinas, como delinquentes.

A situação atual é perversa e destruidora tanto para os indivíduos como para a Igreja. O Vaticano é a última monarquia absoluta da Europa. A Igreja deve aceitar a democracia em todos os níveis. E deve mudar de modelo porque o atual não é evangélico.

O que você pensa da Teologia da Libertação, que teve um desenvolvimento importante na América Latina?

Eu me interessei por ela porque é uma teologia que fala dos pobres. Não se fala da liturgia, nem do catecismo, nem da Igreja; fala-se do povo pobre. Ensina que são os próprios pobres que devem tomar consciência da necessidade de sua libertação.

Alguns de nós fomos muito tocados pelos ensinamentos de Dom Helder Câmara, no Brasil, um grande teólogo (2); do Monsenhor Leónidas Proaño, no Equador (3); de Oscar Romero, em El Salvador, e outros sacerdotes latino-americanos, principalmente. Para mim foi um choque brutal quando Romero foi assassinado celebrando a missa, em 24 de março de 1980. Ele havia deixado a Igreja dos poderosos para estar com os pobres. Achei admirável essa conversão.

Na América Latina, existiram alguns padres e freiras que pegaram em armas (4). Eu respeito sua decisão, não os julgo, ainda que não esteja de acordo com ela por ser um adepto da não-violência.

Evidentemente, a Teologia da Libertação é perigosa para os poderosos. Quando os pobres são submissos aceitam seu triste destino, então não há nada que temer, são pão abençoado para os poderosos. Os detentores do poder podem dormir tranquilos. Mas se os pobres despertam e adquirem consciência de sua condição, convertendo-se em atores da mudança, então isso produz medo no poder.

Parece que é terrível quando os pobres tomam a palavra e questionam a instituição eclesiástica. No mesmo instante, ela diz: “Atenção, cuidado com esses comunistas”. Porque sempre prevaleceu a obsessão da infiltração comunista. Por isso, regularmente, as ditaduras, os governos repressivos e o Vaticano se unem em um combate comum. Infelizmente não existem muitos rebeldes na Igreja, porque a instituição sempre formou para a obediência e para a submissão.

Como você vê a situação social e econômica na França hoje?

Eu julgo uma sociedade em função do que ela faz pelos mais desfavorecidos. E é claro que eu só posso fazer um juízo severo, porque na França não se respeita a todos os seres humanos. Para mim o problema número um é a injustiça que reina por toda parte. Os que estão no poder não investem nos pobres. Temos um governo que só favorece os ricos. Por isso temos três milhões de pobres.

Muitos de nossos cidadãos acreditam que os trabalhadores ilegais se aproveitam do sistema, sem saber que eles recebem o formulário de impostos em suas casas. Ou seja, eles são conhecidos pelo governo, mas como não estão com os papéis em dia não podem se beneficiar de nenhuma ajuda social. Isso é uma extorsão por parte do Estado!

E a Igreja o que faz? Tomemos como exemplo o que ocorreu em 23 de agosto de 1996, quando quase mil policiais das forças especiais forçaram a ponta de machado as portas da Igreja Saint-Bernard-de-la-Chapelle em Paris, tirando a força 300 estrangeiros em situação irregular. Eu estava escandalizado e desgostoso porque o próprio bispo havia pedido sua expulsão. E quando alguém expulsa humanos que se protegem em uma igreja, está dessacralizando essa igreja. Desgraçadamente, isso continua acontecendo.
E o que se faz com os estrangeiros ilegais? São jogados em centros de detenção, e recebem um tratamento próprio de campos de concentração. Isso é o que ocorre hoje na França. Nas prisões, ocorre um suicídio a cada três dias. É um número enorme. O único horizonte para muitos desses presos é o suicídio, Nunca se viu algo igual. Na Europa, a França tem o recorde de suicídios por enforcamento na prisão.

E o discurso sobre a crise econômica, onde se situa?

Nesta crise, não são os ricos que estão em crise, são os mais pobres. Protestamos o ano passado contra as leis propostas pelo governo porque elas penalizavam os pobres. Hoje, muitos franceses só vão ao médico, ao dentista, ao oftalmologista quando é algo verdadeiramente de urgência. E às vezes já é tarde. Os direitos sociais estão sendo eliminados. E a crise atinge as famílias. Se alguém comprou uma casa, perde o trabalho e não arruma outro, deve revendê-la. Isso traz muitos problemas de droga e delinquência.

A moradia social não é uma prioridade política, porque aqueles que estão no poder possuem boas mansões. Constrói-se pouco e as pessoas não sabem aonde ir, restando-lhes as ruas ou algum sótão insalubre. E isso não importa, ainda que existam muitos edifícios vazios em Paris. Quando chega o inverno, o governo fala de “planos”. Então, abrem-se ginásios ou algumas salas para abrigar os milhares que não tem onde morar. Mas esses “planos” não são solução para o frio. A solução é construir habitações dignas. É uma vergonha, é desumano e não é cristão deixar que centenas de pessoas morram de frio nas calçadas e ruas da França.
Como disse o escritor Victor Hugo: “Fazemos caridade quando não conseguimos impor a justiça”. Porque não é de caridade que necessitamos. A justiça vai às causas; a caridade, aos efeitos. Eu não estou dizendo que não se deve ajudar com um prato de sopa ou um abrigo a quem está nas ruas. Existem urgências. Eu faço isso, mas minha consciência não fica tranquila, porque penso que devemos lutar contra as causas estruturais que prendem essas pessoas na injustiça. O mais triste é que as pessoas vão se acostumando com a injustiça. E eu digo: Despertem! Tenham vergonha! Vamos nos indignar contra a injustiça!

Hoje, a injustiça está presente por toda a França. Existem oásis de riqueza, de luxo exorbitante, e extensos guetos de miséria. Na França, há uma violação flagrante dos Direitos Humanos. Por isso devemos combater, para que os direitos das pessoas sejam respeitados.

No ano passado, ocorreram manifestações massivas de protesto contra diferentes projetos do governo, que se fez de surdo para o barulho das ruas.

Eu acredito que, quando não se respeita o povo que se expressa nas ruas, não se tem em conta o futuro. Na França, ficou um sentimento de raiva. Isso não pode seguir assim. Não se pode seguir metendo a polícia por todas as partes para conter a inconformidade do povo. Isso está nos levando na direção de um regime policial. A injustiça não traz paz. É exatamente o contrário. Existe fogo sob uma panela que querem manter fechada. Ela pode explodir.

As suas lutas pela justiça não se dão só na França. Sua palavra e ação se manifestam em outros lugares também. Poderia dar alguns exemplos?

Seguimos lutando pelos direitos do povo palestino. Israel é um Estado colonialista que rouba terra palestina e exclui esse povo pela força. Há mais de 60 anos que a Palestina vive sob a ocupação israelense e a injustiça. E a chamada “comunidade internacional” faz bem pouco ou nada. Por isso estamos nos mobilizando em todas as partes para exercer uma pressão sobre o governo israelense. E uma das ações é boicotar os produtos vindos de Israel, principalmente aqueles que são produzidos nos territórios ocupados. Cerca de 50 produtos agrícolas são produzidos na Palestina para benefício israelense. Enquanto os palestinos viverem na injustiça, não haverá paz.

Cuba. Este é um país que tem futuro. Eu pude constatar que é um povo digno, corajoso e solidário. Em Cuba pode haver pobreza, mas não existe a miséria que se vê em qualquer país da América Latina, ou na França, ou nos Estados Unidos. Apesar do bloqueio imposto pelos EUA, todos têm saúde e educação gratuita, e ninguém dorme nas ruas. É incrível!

Eu faço parte do Comitê Internacional pela Libertação dos Cinco Cubanos presos nos EUA. Eles lutaram contra as ações terroristas que estavam sendo preparadas em Miami. Resolvi participar do Comitê porque me dei conta da injustiça cometida contra eles e que não pode ser tolerada.


Qual a sua avaliação sobre a maneira pela qual a imprensa francesa trata os processos sociais e políticos alternativos que se desenrolam na América Latina? Por que essa imprensa tem a tendência a ridicularizar presidentes como Evo Morales e Hugo Chávez?

Esse comportamento da imprensa deve-se ao fato de que, regularmente, a França apóia a quem não deveria apoiar. É uma questão de interesses. Estes presidentes não fazem o que os ricos querem, assim a França se coloca ao lado dos ricos. É como faz na África também.

Agora, a participação das mulheres latino-americanas na política é sensacional. Uma mulher na presidência do Brasil é algo extraordinário! Na França, não fomos capazes nem de ter uma primeira ministra: somos tão machos! Ah, sim, uma vez tivemos a senhora Edith Cresson, mas ela não pode ficar por muito tempo já que tentaram massacrá-la em função de sua condição de mulher. Somos machos e vulgares como não se pode imaginar! Hoje, não é a velha Europa que dá o exemplo, é a América Latina. Devemos olhar para lá.


Duas últimas perguntas: o que outros altos membros da Igreja Católica pensam do senhor? E, como cidadão e ser humano, vê alguma alternativa para a situação social da França?

Em geral, minhas relações com os outros bispos são cordiais, ainda que alguns prefiram me ignorar. Não me enviam nenhum documento da Conferência Episcopal, não me convidam para a assembleia anual em Lourdes. Tampouco dizem o porquê, e eu também não perguntei, embora outros sacerdotes tenham perguntado, sem receberem uma resposta até hoje. Às vezes, isso não é confortável, mas o que me conforta é que estou em paz com minha consciência, por dizer o que penso, por denunciar a injustiça.

Quanto à segunda pergunta, tenho confiança e esperança nos homens e mulheres. Vamos seguir avançando. Existem movimentos cidadãos que estão criando um tecido associativo alternativo. Vejo muitas lutas que nascem e se desenvolvem pouco a pouco. É formidável! Cada um deve encontrar o caminho onde outros lutam. A unidade: é isso que pode ajudar a salvar a democracia e os direitos das pessoas. Eu tenho esperança.


Notas:

1) http://www.partenia.com/
2) Foi arcebispo de Olinda e Recife. Morreu em 27 de agosto de 1999.
3) Chamado de « Bispo dos Índios », e também de « O bispo vermelho». Exercia seu trabalho pastoral na cidade de Riobamba. Morreu em 31 de agosto de 1988.
4) Vários sacerdotes e freiras somaram-se às guerrilhas. O precursor foi Camilo Torres, na Colômbia, que morreu em combate em 15 de fevereiro de 1966. Na Nicarágua, durante a guerra contra a ditadura de Somoza, muitos seguiram seu exemplo, sendo Ernesto Cardenal o mais famoso.

Entrevista - Pe. Thomas Reese

O declínio das vocações é a forma de Deus 'desclericalizar' a Igreja
  
Thomas J. Reese (foto) entrou para a Companhia de Jesus em 1962, tendo sido ordenado em 1974. É membro sênior do Woodstock Theological Center, centro jesuíta independente de pesquisa teológica da Universidade de Georgetown, em Washington. É mestre em ciências políticas pela Universidade de St. Louis e em teologia pela Escola Jesuíta de Teologia de Berkeley. Possui doutorado em ciências políticas pela Universidade da Califórnia. Entre 1998 e 2005, foi o editor-chefe da revista America, a renomada revista católica dos EUA, fundada em 1909. Porém, por pressão do Vaticano, que discordava de suas decisões editoriais, principalmente com relação a temáticas como o celibato sacerdotal e a ordenação de mulheres, Reese pediu para deixar o cargo. É autor de diversos livros que examinam a política e a organização eclesial. Em português, publicou O Vaticano por Dentro: A Política e a Organização da Igreja Católica (Edusc, 1998). Por Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


IHU On-Line – Neste início da segunda década do século XXI, como o senhor avalia os episódios ocorridos em 2010 no Vaticano? Que expectativas centrais o senhor tem para 2011?

Thomas Reese – O que é surpreendente com relação às notícias que surgiram sobre o Vaticano, no ano passado, é como o Papa teólogo foi forçado a desempenhar um papel no cenário internacional. Joseph Ratzinger era um teólogo acadêmico, mais confortável em uma biblioteca e em uma sala de aula do que em uma coletiva de imprensa ou em uma negociação diplomática. No entanto, os eventos o obrigaram a assumir um papel para o qual ele nunca foi treinado. A violência contra cristãos no Oriente Médio, Ásia e África, o secularismo agressivo na Europa, os terremotos no Haiti e um colapso econômico mundial não estão na agenda normal de um teólogo, mas foram lançados sobre o Papa como o líder de 1,1 bilhão de católicos. Infelizmente, este ano provavelmente será mais do mesmo.

IHU On-Line – Em 2010, Bento XVI também publicou seu livro-entrevista Luz do Mundo. Que face de Bento XVI surge desse livro, além dos seus gestos e pronunciamentos ao longo do ano?

Thomas Reese – Bento, em seu coração, é um professor. Se ele pudesse, ele iria gastar seu tempo mais escrevendo e menos em reuniões com líderes mundiais. Francamente, ele é um professor melhor do que o Papa João Paulo II, cujos escritos eram muitas vezes ininteligíveis até mesmo para os leitores instruídos. Bento XVI é mais acessível como professor quando responde a perguntas, como ele faz em seu novo livro Luz do Mundo. Ele é capaz de extrair uma riqueza de conhecimento e explicar as questões para as pessoas. Às vezes, ele também deseja falar como um simples teólogo (sujeito à correção) e não como Papa. Embora muitas pessoas achem isso refrescante, algumas autoridades do Vaticano não gostam, porque acreditam que isso reduz a mística de sua autoridade. Elas também objetam que seu livro foi publicado sem ser revisto e revisado dentro do Vaticano.

Esses funcionários curiais têm razão. Depois de décadas tratando cada palavra de um Papa como escritura sagrada, é difícil para os católicos simples entenderem que algo que o Papa diz pode estar aberto ao debate. No curto prazo, isso é confuso e, no longo prazo, será saudável para a Igreja. Também é constrangedor quando as palavras do Papa não são claras, como foi com o trecho sobre os preservativos, que exigiu uma semana de esclarecimentos para explicar o que ele quis dizer. Se ele, que não é um teólogo moral, tivesse consultado teólogos morais na elaboração de seus parágrafos sobre os preservativos, essa confusão poderia ter sido evitada. Por outro lado, a sua vontade de dizer que, sob certas circunstâncias, o uso de preservativos por pessoas com Aids pode ser moralmente responsável foi uma ruptura corajosa com o passado. Se ele tivesse consultado a burocracia do Vaticano, ele poderia não ter dito isso.

O que os discursos e os livros de Bento XVI mostram é um teólogo que, às vezes, se expressa com confiança, sem necessariamente se consultar com alguém dentro ou fora do Vaticano. Isso lhe permite falar em um estilo menos burocrático, mas também o coloca em apuros quando ele diz algo que um crítico amável poderia tê-lo protegido de dizer, por exemplo o que ele disse em sua visita ao Brasil, que o colonialismo foi uma bênção para a índios da América Latina por ter trazido o cristianismo.

IHU On-Line – Qual a sua análise da Visitação Apostólica às religiosas dos EUA? Já se tem algum resultado prévio? Está sendo uma iniciativa válida, em sua opinião?

Thomas Reese – Durante décadas, os católicos conservadores falaram mal das religiosas dos EUA. Alguém poderia ter a impressão de que todas elas são bruxas que celebram a missa sem um sacerdote. Infelizmente, o Vaticano ouve esses conservadores. Na verdade, as religiosas dos EUA são mulheres majoritariamente generosas e dedicadas, que trabalharam arduamente para implementar o Vaticano II em suas comunidades e ministérios. Elas cometeram algum erro? Claro que sim. Mas elas também aprenderam com os seus erros. Elas estão constantemente refletindo sobre como podem viver melhor o Evangelho e seus carismas particulares. A maioria delas é a favor da ordenação de mulheres? Certamente, assim como a maioria dos católicos norte-americanos. Elas estão fugindo e sendo ordenadas? Não.

A maioria dos católicos norte-americanos tem uma visão muito positiva das irmãs, com base em sua experiência com elas nas paróquias, escolas e hospitais. As irmãs são amadas e respeitadas. Quando os bispos norte-americanos fizeram uma coleta especial para criar um fundo de aposentadoria para as irmãs idosas, a coleta arrecadou mais do que todas as outras coletas nacionais somadas.

Grande parte do problema com a visitação foi a forma com ela foi instigada. Não houve consulta com as irmãs sobre isso, embora as lideranças nacionais das irmãs estivessem em Roma um mês antes da visitação ser anunciada. O objetivo da investigação não foi bem explicado. A impressão que ficou é que as religiosas haviam ficado loucas, e que os homens iriam endireitá-las. Muitos leigos pensaram que não eram as irmãs, mas sim os bispos norte-americanos que deveriam ser submetidos a uma investigação do Vaticano por causa da sua má gestão da crise dos abusos sexuais. As pessoas erradas estavam sendo investigadas.

IHU On-Line – Em 2010, foi nomeado o novo secretário da Congregação para a Vida Religiosa, o norte-americano Joseph Tobin, e recentemente o Papa indicou o brasileiro João Bráz de Aviz como prefeito desse dicastério. Como o senhor recebe essas indicações? Que rumos e tendências Bento XVI deseja para a vida religiosa?

Thomas Reese – As religiosas norte-americanas têm respondido muito positivamente à indicação do arcebispo Tobin como secretário da Congregação para os Religiosos. Mesmo antes de se apresentar em Roma, ele reconheceu que a visitação estava com problemas e disse que iria ouvir as irmãs e transmitir suas opiniões a Roma. Palavras francas como essas de um recém-indicado ao Vaticano são inéditas. A nomeação de Dom João Braz de Aviz como prefeito só pode ser uma melhoria com relação ao cardeal [Franc] Rodé, que foi um desastre completo. As opiniões de Rodé acerca da vida religiosa eram pré-Vaticano II. Se o novo prefeito se aproximar das irmãs norte-americanas com uma mente aberta e ouvir o arcebispo Tobin, a crise será evitada.

IHU On-Line – Em sua opinião, qual o papel da vida religiosa hoje, especialmente das grandes e tradicionais congregações, como os dominicanos, franciscanos, jesuítas etc.?

Thomas Reese – O papel das congregações religiosas é providenciar uma base institucional para os carismas a serviço da comunidade cristã. Enquanto a hierarquia proporciona estrutura e estabilidade para a Igreja, as comunidades religiosas proporcionam criatividade e espontaneidade. Quando a Igreja hierárquica se torna burocrática, a vida religiosa providencia espaço para a inovação e a reforma. Não é de surpreender que a história da Igreja narra inúmeros conflitos entre as congregações religiosas e os bispos. As congregações religiosas são muitas vezes locais de teste para a teologia, para as devoções e os ministérios, que, se se provarem bem-sucedidos, podem ser implementados em todo o mundo na Igreja.

Ao mesmo tempo, hoje existe claramente um declínio no número de religiosos no Norte global e até mesmo em partes do Sul global. A maior conscientização e respeito ao papel dos leigos e à vocação da vida matrimonial abalou o mito de que a vocação religiosa é, de alguma forma, melhor ou mais santa. Os pais com poucos filhos não incentivam as vocações. Considerando que a vocação ao sacerdócio ou à vida religiosa de uma família analfabeta levava a um melhor status social no passado, hoje uma vocação é vista, às vezes, como um rebaixamento cultural. O crescente afastamento dos jovens da Igreja também tem o seu preço. As congregações religiosas da primeira metade do século XXI serão muito menores do que as de meados do século XX. O declínio das vocações pode ser uma forma de Deus forçar a Igreja a empoderar os leigos.

Ao mesmo tempo, o século XXI oferece novas oportunidades para a vida religiosa. O aquecimento global e outras questões ambientais certamente exigem uma sensibilidade franciscana para com a natureza e um estilo de vida simples. Da mesma forma, a espiritualidade inaciana do discernimento e de encontrar Deus em todas as coisas pode oferecer uma abordagem às novas questões que podem surgir.

IHU On-Line – Por outro lado, como o senhor analisa os novos movimentos religiosos? A que realidades e necessidades concretas do nosso tempo eles respondem? Quais são suas limitações?

Thomas Reese – Os novos "movimentos" não têm sido muito bem sucedidos nos Estados Unidos, por isso minha resposta será tentativa. Um razão pela qual os movimentos não têm sido bem sucedidos aqui é que a vida paroquial nos EUA é muito mais viva do que na Europa. Desde o início do catolicismo nos EUA, os padres foram próximos do seu povo. Desde o início, os bispos e padres dependeram dos seus paroquianos, e não do Estado, para apoio financeiro. Depois do Concílio Vaticano II, também tivemos programas de renovação paroquial de sucesso, como o "Renew", que começou na Arquidiocese de Newark. Como resultado, as paróquias norte-americanas têm uma vitalidade, uma riqueza de ministérios e um senso de comunidade que está ausente na Europa, onde os movimentos surgiram.

Os movimentos religiosos surgiram em resposta a uma necessidade sentida de comunidade, espiritualidade e participação ativa no ministério. Quando as paróquias não atendem a essas necessidades, então as pessoas se voltam para os movimentos ou para outras Igrejas, como os evangélicos. Assim como as ordens religiosas, os movimentos também podem oferecer inovação e criatividade. Eles também podem ser locais de teste para novas ideias e práticas, embora a maioria dos movimentos tendam a ser bastante tradicionais, o que os levou a servir aos que já estão salvos em vez dos mais afastados. Resta saber se eles poderão perdurar a longo prazo, sem o compromisso permanente e a longa formação dos religiosos professos. Serão divididos pelas facções e pelas políticas internas? Seus membros e suas lideranças irão envelhecer ao longo do tempo?

IHU On-Line – Como jesuíta, como o senhor analisa os cenários futuros da Companhia de Jesus nos EUA e no mundo? Que ações ainda são necessárias para uma ação mais eficaz?

Thomas Reese – Qualquer pessoa que prediz o futuro pode ter certeza de apenas uma coisa: vai estar errado. Se em 1970 alguém tivesse me dito que, na virada do século, os jesuítas norte-americanos abririam mais escolas de ensinos fundamental e médio, eu perguntaria o que eles estavam fumando. De fato, abrimos ou financiamos dezenas de escolas Cristo Rey [1] e Nativity [2], quando, na década de 1970, falávamos em fechar escolas. Essas escolas não saíram de nenhum plano nacional. As primeiras foram fundadas por indivíduos criativos, com o apoio de seus provinciais. As escolas funcionaram e foram replicadas por outros. As congregações gerais podem oferecer visão e inspiração, mas os novos ministérios vêm de indivíduos criativos que respondem às oportunidades e são encorajados e apoiados por suas comunidades. Infelizmente, a Igreja de hoje não é boa para encorajar a criatividade.

Com um menor número, será difícil para que a Companhia [de Jesus] faça tudo o que queremos fazer. Com os números projetados, não será possível provermos nossas escolas com pessoal. Educamos os leigos, e agora entregamos as nossas escolas para eles. Esse é um sinal de sucesso, assim como de diminuição. Talvez, o declínio das vocações é a forma de Deus “desclericalizar” a Igreja. Quanto menos padres e religiosos houver, mais os leigos devem se lançar para fazer o trabalho da Igreja.

Mas enquanto a Companhia for verdadeira para com os Exercícios Espirituais de Santo Inácio, enquanto estivermos abertos para discernir os movimentos do Espírito, vamos encontrar formas de servir a comunidade cristã e construir o reino de Deus.


Notas:

 1. A rede de escolas Cristo Rey Rede é composta por 24 escolas de ensino médio para jovens que vivem em comunidades urbanas com poucas opções educacionais. Hoje, possuem 6.500 alunos, que de outra forma não teriam acesso à educação. A missão das escolas é possibilitar a entrada dos alunos Cristo Rey no ensino superior. A rede foi fundada em 2001, quando os líderes de Portland, Oregon, Cleveland, Denver e Nova York procuraram uma forma de repetir o sucesso da escola jesuíta de ensino médio Cristo Rey, de Chicago.

 2. As escolas da rede Nativity começaram com os jesuítas de Nova York na década de 1970, dirigidas às crianças pobres. As escolas cobram uma taxa mensal de 25 a 100 dólares – ou até mesmo nada – e sustentam-se por meio de doações de fundações, individuais e da ajuda de igrejas e ordens religiosas católicas que dirigem muitas das escolas. Os pais e tutores geralmente trabalham voluntariamente em algumas funções específicas da escola, como em atividades de escritório, cuidado do jardim etc.


[grifos do blog]

12/01/2011

Pe. Erico Hammes

A bondade a partir das vítimas: o ''caso'' François Houtart 
 Érico Hammes, padre, é doutor em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Leciona, atualmente, na PUCRS. Desenvolve, principalmente, os seguintes temas: Cristologia, América Latina e Religião. É autor de, entre outros, Filii in Filio. A divindade de Jesus como evangelho da filiação no seguimento. Um estudo em Jon Sobrino (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995).
Fonte: UNISINOS


O site informativo Le Soir, da Bélgica, do dia 29 de dezembro, publicou várias matérias sobre uma revelação escandalosa do que se poderia chamar de atentado violento ao pudor, cometido por François Houtart, no contexto de uma candidatura a prêmio Nobel da Paz.

A imprensa brasileira repercutiu as notícias no mesmo dia e as principais informações e reações estão disponíveis no sítio do IHU. Além da carta-denúncia do crime, o informativo belga publica também a manifestação do próprio Houtart, respondendo à acusação e reconhecendo, ao menos parcialmente os atos cometidos contra um primo de oito anos, há quarenta anos. Os comentários do próprio site e de outros meios lembram o papel desse clérigo católico nos debates e críticas aos modelos reinantes de relações econômicas e sociais mundiais.

O escândalo poderia ser facilmente assimilado e enquadrado se se tratasse de um “inimigo da humanidade”. Ou se fosse um grande banqueiro americano, envolvido em escândalos financeiros; ou, quem sabe, um empresário do setor de informática, ou um jornalista de um grande veículo de comunicação; um chefe de Estado, conhecido por suas aventuras machistas; ou ainda um general da guerra do Iraque, um instrutor de torturadores das ditaduras latino-americanas; por que não, até mesmo um fundador de um movimento eclesiástico reacionário; ou algum dos bispos alemães, americanos, austríacos e belgas, de todos os modos mal vistos por acobertarem ou estarem envolvidos em crimes semelhantes. Fosse assim, e já não haveria surpresa, porque seria parte da lógica maniqueísta  segundo a qual as pessoas se dividem entre cidadãs e cidadãos de bem e bandidos.

No entanto, era um candidato a prêmio Nobel, e Nobel da Paz, com enorme apoio de organizações e instituições transformadoras do mundo inteiro. Eu mesmo poderia ter assinado em seu favor, com outras organizações às quais me identifico, sua indicação. Desde os tempos de estudante de Teologia sempre de novo seu nome figurava entre os grandes conhecedores da Sociologia da Religião e mais recentemente se tornou uma das figuras-chave na organização do Fórum Social Mundial. É conhecido por sua atenção aos países do Hemisfério Sul, dentre os quais o próprio Brasil. Se o mundo estivesse dividido entre bons e maus, com os critérios sociológicos habituais, Houtart provavelmente não seria procurado daquele lado, do lado do mal.

Uma primeira reação ao que apareceu no dia 29 de dezembro, foi negar, atenuar, minimizar, universalizar, neutralizar, esvaziar as denúncias. Não pode ser verdade, mas se foi, foi há muito tempo, e não foi algo tão sério assim. Foi um ato fortuito. Enfim de contas, “quem estiver sem pecados, atire a primeira pedra”.

Num segundo momento veio a indignação. A imprensa quer desfazer todos os grandes ideais em nome de um crime que já prescreveu. E o próprio Houtart já reconheceu e já havia reconhecido no passado. Aliás, queria até mesmo ter deixado o exercício do seu ministério na época. Portanto, atacar seu passado, não faz sentido: é preciso reconhecer seus méritos, mesmo que não se possam aprovar ou negligenciar sua conduta passada e se deva buscar a reparação do erro cometido. A suspeita dolorosa que se levanta em meio a esses mecanismos é de que não é nem a pessoa de François que interessa e sim o que representa e representa para quem o defende.

A pergunta pela vítima

Sei que é muito difícil ver com clareza quando se está muito envolvido com eventos que nos dizem respeito. No caso, estamos diante de alguém de quem aprendemos muito e que fez um grande bem à humanidade; de um amigo nosso e grande colaborador. No fundo nos identificamos como ele, e é a nós que defendemos ao tentar protegê-lo. Qual mãe cujo filho é acusado, tendemos a negar e não aceitar o que está sendo dito. Reagimos com indignação ante a voracidade antropofágica dirigida contra alguém conhecido por sua crítica ao sistema econômico e hegemônico do mundo atual. E a vítima? Quem se importa, quem lembra?

Jon Sobrino traz à consideração, em artigo num dos últimos números de Concilium (fasc. 4/2010), que um dos grandes erros da Igreja (de todos nós), foi o de proteger os culpados e não considerar as vítimas.

Também vários bispos europeus têm se manifestado em direção semelhante. Houve um excesso de preocupação em proteger os agressores, sem cuidar das suas vítimas. Considerando essa perspectiva, a avaliação do que alguém faz ou se torna, depende das vítimas. Olhar a partir das vítimas, rompe a barreira das instituições e das classificações, das visões maniqueístas, paranoicas e esquizofrênicas. São as vítimas as primeiras a nos impor solidariedade, são o critério fundador da justiça, são os verdadeiros juízes que revelam quem somos como pessoas e sociedade. Quase poderíamos dizer, parafraseando o Evangelho, “pelas suas vítimas os conhecereis”!

A pergunta primeira a ser respondida, então, por doloroso que seja, não diz respeito a François Houtart e sim à sua vítima, o seu primo, de quem nem o nome sabemos. O que aconteceu com a vítima nesses quarenta anos? O que a vítima passou? Que lugar e importância lhe foram reservadas nesse mundo onde ela tinha todo o direito de ser uma pessoa acolhida, confiante, bem situada, resolvida e reconhecida? Ao responder essas perguntas, será possível voltar ao que se passa agora com Houtart. Como foi que ele lidou com sua culpa? O que se passou em seu interior nessas quatro décadas? Quantas vezes lhe foi dada oportunidade para se reconciliar ou para reparar o mal que fez? Pode ser julgado pela justiça civil?

Talvez apenas agora, quarenta anos depois, sofra as primeiras consequências mais graves de seu ato (crime). Ter seu nome retirado da lista de candidato a prêmio Nobel, é, quem sabe, a primeira grande chance de prestar contas publicamente de seu “ato inconsiderado e irresponsável”, como ele mesmo o qualifica. A reparação, enquanto relacionada imediatamente ao mal feito, é uma parte da restauração da justiça e que não pode ser compensada com méritos em outras áreas. A saúde das relações interpessoais depende, em grande parte, de instrumentos sociais de proteção à intocabilidade da vida e dignidade dos seres humanos, mas se consolida apenas se ao agressor é garantida a possibilidade reparadora do mal feito a outrem. E isso vale também do ponto de vista do Evangelho: “Se teu irmão tem algo contra ti, vai e reconcilia-te primeiro, e depois vem e apresenta a tua oferta”.

Todo crime e toda violação contra o ser humano, e mais ainda quando se trata de pessoas de confiança contra vidas indefesas, brada à condenação inequívoca e inadiável, sem olhar para todo o mérito anterior ou posterior do agressor. Por isso, não é possível deixar margem a desculpas ou subterfúgios de espécie alguma, pois significaria cair na odiosa cilada dos dois pesos e duas medidas. Qual seria a reação se François fosse a vítima? Ou se fosse uma pessoa não pertencente a nosso modo de pensar?

A resposta passa necessariamente por uma solidariedade com a culpa e o crime. O que François cometeu deve ser condenado inequivocamente, mas nós estamos com ele nesse crime e nessa culpa: somos suas irmãs e seus irmãos e o que ele fez, nós poderíamos ter feito, e de certo modo o fizemos, pois ele é dos nossos. Se somos irmãos verdadeiros e verdadeiras irmãs, somos convocados a reconhecer a culpa, a aceitar a acusação e pedir perdão com ele à sua vítima. Com ele “somos feito pecado” com aquele “que se fez pecado por nós”. Assim como seria equivocado minimizar a gravidade dos seus atos, não podemos deixar a um irmão pecador sozinho com sua culpa e seu crime, mas com ele queremos pedir perdão e colocar-nos em caminho, confiados na graça divina, a fim de nunca mais haver violação da dignidade de nenhum ser humano por parte nossa e de ninguém. Sem esse ato claro de responsabilidade e culpa, não seríamos mais do que hipócritas acusando outros e não assumindo nossa parte.

Portanto, se queremos apoiar ao François, o que é mais do que justo, não esqueçamos a vítima e nem a gravidade da ofensa sofrida, mas estejamos juntos num pedido de perdão e de compromisso absoluto (na medida do humano) de combate e resistência a qualquer violência contra seres humanos, especialmente os mais vulneráveis.

Em toda Europa, mas especialmente na Alemanha – onde me encontro desde setembro –, os Bispos, muitas vezes em públicas e solenes celebrações e declarações, se empenham no reconhecimento dos pecados e crimes que mancham a Igreja. A justiça civil exige medidas reparadoras enquanto a população em massa abandona a Igreja. Infelizmente, no Brasil, há indícios de uma cumplicidade interinstitucional a adiar e agravar a avalanche dos escândalos. Até o momento, quase nada se fez em âmbito eclesiástico e civil para ir ao encontro das vítimas, que se podem supor em número significativo. Por razões dificilmente explicáveis reina um silêncio e, ao que tudo indica, uma ocultação das demandas reparadoras e penais. É certo que a Igreja Católica não é a única instituição em que existem crimes de pedofilia, também no Brasil. Contudo, cabe a nós, pela gravidade do hora que vivemos, assumir a responsabilidade pelos atos de violação contra inocentes e pessoas confiadas a nós. Defender a Instituição ou seus representantes, contra as vítimas, é tornar-se parte da injustiça.

06/01/2011

Pe. José Comblin

A Igreja abandonou as classes populares 
José Comblin (foto), um dos criadores da Teologia da Libertação, afirmou que a eleição de João Paulo II e de Bento XVI foi manejada pelo Opus Dei "praticando a chantagem, intimidando os cardeais", e que na América Latina o Papa "é mais divino do que Deus". Comblin, belga que vive no Brasil e acaba de visitar o Chile, país em que esteve exilado em 1972, durante o governo da Unidade Popular, explicou ainda que os teólogos da libertação têm hoje mais de 80 anos e "não apareceu uma nova geração" que desse continuidade a esse pensamento. A reportagem é do sítio Religión Digital, 05-01-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


"A repressão foi muito forte, terrível, e a ditadura do Papa aqui na América Latina é total e global. Aqui, pode-se criticar Deus, mas não o Papa. O Papa é mais divino do que Deus", asseverou o teólogo.
Segundo Comblin, a Igreja Católica "abandonou as classes populares, salvo os velhos e algumas relíquias do passado".

"Hoje, as universidades e os colégios católicos são para a burguesia. O porvir da América Latina é ser um continente evangélico protestante, salvo sua classe alta. Assim, a Opus Dei e os Legionários de Cristo e todas essas associações que existem de ultradireita vão crescendo nesse setor", opinou, em declarações no Chile à revista El Periodista.

"Onde há um ou dois bispos da Opus Dei no episcopado, intimidam a todos os demais. Os outros ficam calados e só um fala. Esse é um problema de psicologia típico de ditaduras", defendeu.

Segundo Comblin, "foi a Opus el que elegeu João Paulo II e o atual, praticando a chantagem, intimidando os cardeais. O próximo Papa será igual porque a Opus tem um poder muito forte".

O teólogo, de 87 anos, defende que Deus está "em La Victoria e em La Legua (dois bairros populares de Santiago) e na prisão, mas de Roma desapareceu há muito tempo".

"Agora, sempre fica mais claro que o problema é o Papa, ou seja, a função do Papa, uma ditadura implacável com muitas formas de doçura e amabilidade, mas implacável", defendeu.

Comblin defendeu que "o porvir do cristianismo está na China, Coreia, Filipinas, Indonésia. Estima-se que só na China há 130 milhões de cristãos martirizados, porque estão praticamenteperseguidos".

O teólogo criticou a eventual canonização de João Paulo II porque seu papado "foi catastrófico". "Todos os que fizeram sua carreira com ele puderam ser cardeais, apesar de sua mediocridade pessoal. Não mereciam nada, mas ele os promoveu. Claro que agora querem canonizá-lo! Uma vez que canonizaram Escrivá, todo mundo sabe que se pode ser santo sem ter virtude alguma", destacou.

Sobre a Opus Dei e os Legionários de Cristo, Comblin afirmou que "têm a confiança da Cúria Romana e depois representam a plena liberdade dada a personalidades que são como os grandes Rockefeller, os conquistadores".

"Como Escrivá de Balaguer, que era um capitalista, o homem que vai triunfar, que vai desfrutar o mundo, que vai ganhar, ser rico, poderoso e que é capaz de criar pessoas totalmente subordinadas, soldados com mentalidade de soldado, esses são todos homens deformados psicologicamente, como são os futuros ditadores", detalhou.

Depois de recordar que do mexicano Marcial Maciel, dos Legionários de Cristo, foi descoberta uma vida paralela e uma fortuna de 50 bilhões de dólares, afirmou que "sua chantagem, sua palavra e sua exigência chegaram aos milionários".

"Hoje, os que trabalharam com ele, seus colaboradores, todos dizem e afirmam que não sabiam nada da vida paralela (de Maciel). Como? Trabalham 40 anos com ele e não sabem de nada, que ele tem uma família, três filhos, que praticou a pedofilia com as crianças, alunos de sua formação, de seus colégios, que tinha um mundo de amantes. Não sabiam de tudo isso? Supõe-se, então, que eles são cúmplices e também têm uma vida paralela", concluiu.