20/11/2009

"Construindo pontes de justiça e equidade"


Sob o lema “Construindo pontes de justiça e equidade” o Seminário Evangélico de Teologia, de Matanzas, Cuba, abrigou encontro nacional de reflexão bíblico-sócio-teológico e pastoral a respeito de temas pontuais como a perspectiva de gênero, a problemática da mulher, a masculinidade. A reportagem é de José Aurelio Paz e publicada pela Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação - ALC, 19-11-2009.
Fonte: UNISINOS
Foto: Ivonte Gebara


O evento, encerrado na quinta-feira, 12, integrou a Década de Luta contra a Violência, instituída pelo programa de Mulher e Gênero do Conselho de Igrejas de Cuba (CIC).

Propostas e desafios atuais da teologia feminista na América Latina e Cuba” foi o tema que reuniu as teólogas Ivone Gebara, do Brasil, Rebeca Montemayor, do México, a doutora Ofélia Ortega, de Cuba, e a pastora Miriam Laranjeira, da Igreja Presbiteriana Reformada de Cuba.

Ivone Gebara destacou que é importante trabalhar o tema voltado às massas, também para analisar as novas identidades femininas, “já que construímos a identidade desde o patriarcado, mas ao mesmo tempo construímos outras, para as quais temos que achar um significado”.

Em entrevista para a ALC, Gebara disse que “vivemos um momento crítico de dogmatismo e autoritarismo nas instituições religiosas”.

A teologia feminista no continente, disse, não se considera que ande muito bem, sobretudo dentro das igrejas onde quase não a suportam “porque significa aceitar uma crítica ao poder hierárquico que se concentra em mãos de uma elite masculina”, assim como os conteúdos, que “também estão no poder hierárquico”, afirmou.

É insuportável ouvir que a teologia é obra criativa somente dos homens, declarou. “Se a teologia é uma maneira de pensar os valores que constroem a vida, por aí vai a teologia feminista”, agregou.

A maior parte da produção teológica cubana sobre gênero não está nos livros, mas em artigos de revistas ou em teses do Seminário Evangélico de Matanzas, arrolou Ofélia Ortega.

O encontro também se dedicou a projetar as perspectivas teológicas e pastorais do futuro, de prática e raiz ecumênica, que leve em conta a problemática feminina, as masculinidades e as relações de gênero.

Pe. John W. O'Malley


Um novo horizonte católico

Publicamos a seguir a resenha crítica do novo livro do vaticanista norte-americano John L. Allen Jr., "The Future Church: How Ten Trends Are Revolutionizing the Catholic Church" [A Igreja do futuro: Como dez tendências estão revolucionando a Igreja católica] (Ed. Doubleday). O artigo foi escrito por John W. O'Malley, padre jesuíta, historiador da Igreja e professor de teologia da Georgetown University, de Washington, nos EUA. O'Malley é autor de"What Happened at Vatican II" [O que aconteceu no Vaticano II] (Ed. Harvard) e "A History of the Popes" [Uma história dos Papas] (Ed. Sheed and Ward). O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 10-11-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Perceptivo, imparcial, provoca o pensamento, expande horizontes, incrivelmente bem informado – palavras como essas pulam em minha cabeça enquanto leio o novo livro de John L. Allen Jr., "The Future Church: How Ten Trends Are Revolutionizing the Catholic Church". Eu pensei em ter detectado em sua introdução uma nota de desculpas por escrever como "um jornalista, não um padre, um teólogo ou um acadêmico". Suas credenciais, como os leitores do NCR sabem, são muito boas. Se você tem dúvidas, o livro irá dissipá-las.

O título é provocativo por prometer mais do que qualquer um pode oferecer. Allen tem muito senso para tentar oferecer isso. Ele não fornece nenhum plano para o futuro, nenhum projeto de Igreja. Ele faz exatamente o oposto.

Suas análises das tendências deixam duas coisas claras. Primeiro, estamos à beira de mudanças que, tomadas em conjunto, irão remodelar radicalmente a Igreja. "Revolucionar" é a palavra de Allen. Segundo, as tendências irão seguir seu próprio curso, interagindo entre si e com a cultura em geral, de forma que é impossível dizer quais poderão ser os resultados finais da revolução. Um revolução radical até que ponto? Essa é a dúvida de qualquer um, suponho. As tendências apresentam desafios cuja novidade e magnitude fazem o coração falhar uma batida. Elas, em sua importância cumulativa – falo como historiador – pressagiam mudanças nos padrões católicos sem paralelo no passado. Allen traça essas tendências imparcialmente e, como ele diz, descritivamente, não prescritivamente. Com isso, ele se refere ao fato de não apresentar as tendências nem como boas, nem como más para a Igreja. Ele as apresenta simplesmente como a forma pela qual as coisas estão se movendo.

As tendências, claro, não estão desrelacionadas entre si. "Igreja mundial", não surpreendentemente a primeira tendência com a qual Allen lida, está intimamente relacionada com "A nova demografia", com "Multipolaridade" e com "Globalização".

Até a metade do século, Nigéria, Uganda e a República Democrática do Congo estarão entre os 10 países mais católicos do mundo, tirando a Polônia e a Espanha da lista. Mas essa recente Igreja mundial, um resultado, em parte das mudanças demográficas, é afetada pela globalização. Ela eleva à proeminência valores e prioridades culturais diferentes daqueles do mundo do Atlântico Norte que ainda demarcam as nossas sensibilidades católicas, o que causa a questão multipolar. Uma tendência ameniza ou intensifica a outra, assim como a globalização faz com a afirmação dos valores e prioridades indígenas.

"Catolicismo evangélico" e "Pentecostalismo" também estão intimamente relacionados e, de certa forma, se relacionam com "Islã". Essas três tendências juntas fazem com que o futuro pareça mais conservador em questões sexuais e de gênero. Mas então existe a "Revolução biotécnica", que, junto a outros desenvolvimentos no mundo científico como o "Universo em expansão", desafia os princípios fundamentais da doutrina católica da forma como a conhecemos. Além da clonagem humana, da pesquisa com células-tronco embrionárias e outros assuntos relacionados que geralmente ouvimos falar, a revolução biotécnica cava fundo nos fundamentos da própria religião quando aquela pensa que descobriu um gene de Deus. Em comparação, a tendência "Ecologia" pode parecer inofensiva, mas, como Allen demonstra, ela também derruba padrões estabelecidos de pensamento, de comportamento e teológicos.

Os leitores podem se surpreender ao encontrar "Papéis dos leigos em expansão" entre as tendências, o que levanta a questão de como uma tendência chega às 10 principais. Allen desenvolveu seis critérios: uma tendência deve ser global, deve ter impacto nas bases, deve envolver lideranças oficiais, deve ter potencial para explicar uma ampla variedade de fatores, deve conter poder preditivo e não deve ser movida ideologicamente. Esses critérios permitiram que Allen eliminasse alguns suspeitos habituais, como a crise dos abusos sexuais, João Paulo II e as mulheres. O capítulo sobre "Tendências que não estão", embora curto, irá envolvê-lo tanto quanto os outros.

Para as tendências que estão, Allen divide cada um dos 10 capítulos em duas seções. A primeira, "O que está acontecendo", faz o que promete. Apresenta e analisa informação. Essas seções são, para mim, o que há de mais satisfatório e impressionante no livro. Allen fez a sua lição de casa. Ele estimula o leitor em um curso intensivo sobre o que está acontecendo não apenas na Igreja, mas também na economia, na diplomacia, na política mundial e em temas semelhantes. Eu não sei como os especialistas irão julgar as análises de Allen nesses campos. Tudo o que eu posso dizer é que aprendi muito e acho que você também irá aprender.

A segunda seção, "O que isso significa", especula sobre as consequências das tendências em ordem decrescente de certeza – de quase certo, provável, possível, a poucas chances. O modo subjuntivo domina essa seção. "Poderia" e "deveria" aparecem frequentemente, junto com seus companheiros de viagem "talvez" e "possivelmente". As tendências demográficas podem parecer sólidas, mas elas se reverteram no passado. Uma pandemia ou duas poderiam fazer o mesmo no futuro.

A dieta subjuntiva pode se tornar cansativa. Mas ela deixa claro que forças estão em jogo lá fora, de uma forma totalmente imprevisível. Elas são forças verdadeiramente grandes, com uma mudança errática em seu núcleo. Curingas e cartas surpresa abundam nesse jogo. Talvez essas tendências não irão, no fim, gerar o equivalente eclesial ao Big Bang, mas certamente devem chegar perto.

O livro validou o que eu acredito ser o significado mais duradouro do Concílio Vaticano II (1962-65). Em seu maior objetivo, o Concílio tentou fazer com que a Igreja enfrentasse o mundo da forma como ele é e então lidar com ele da forma como é. Ele tentou desfazer a nostalgia das "idades da fé" medievais, da ordem do mundo perfeito que prevaleceu antes da Revolução Francesa e de outras ilusões históricas.

A Igreja decidiu encarar os fatos do "mundo moderno", incluindo o pluralismo cultural e religioso e todos os enigmas que a ciência moderna nos impôs com relação a nossas origens, nossa sobrevivência e nosso bem-estar.

Enfrentar os fatos é exatamente o que Allen está pedindo que a Igreja faça – que nós façamos.

O livro também confirma uma verdade básica sobre a trajetória histórica da Igreja: o que acontece fora da Igreja é mais importante para ela do que aquilo que acontece dentro. As reformas da Igreja como a Controvérsia da Investidura do século XI, o Concílio de Trento no século XVI e o Vaticano II no século XX foram mudanças introduzidas na vida e na prática da Igreja pelos líderes da Igreja e operacionalizadas por eles. Essas mudanças, embora importantes, podem parecer quase insignificantes em comparação com o impacto de coisas como o reconhecimento da Igreja por Constantino no século IV ou algo tão mundano no século XIX como a invenção do telefone.

"The Future Church" não é uma leitura casual para a hora de dormir. Sua mensagem requer uma mente alerta, disposta a digerir informações e a compreender complexidades. Allen acredita, e eu também, que o impacto dessas tendências, independentemente de como elas irão ocorrer concretamente, requer um novo tipo de coragem de nossa parte. Ele requer coragem "para pensar além dos interesses de nossa própria tribo católica", a coragem de se levantar para um novo horizonte, que também é católico. Ler o livro é, em si mesmo, um primeiro passo.

John L. Allen Jr.


A dimensão horizontal da Igreja

Publicamos a seguir um trecho do livro do vaticanista norte-americano John L. Allen Jr. (foto), intitulado "The Future Church: How Ten Trends Are Revolutionizing the Catholic Church" [A Igreja do futuro: Como dez tendências estão revolucionando a Igreja católica] (Ed. Doubleday Religion, 2009). O texto foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 10-11-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



O jesuíta e sociólogo norte-americano Pe. John Coleman observou que, apesar de seus ricos recursos intelectuais e humanos, o Catolicismo desempenhou um curioso papel "subalterno" em grande parte dos debates contemporâneos sobre globalização, com a única exceção talvez no Jubileu do ano 2000, com a campanha pelo cancelamento da dívida. Na tentativa de dar conta desse desajuste entre o potencial da Igreja e seu impacto real, Coleman cita um estudo sobre ONGs de 1998, intitulado "Activists Beyond Borders" [Ativistas além das fronteiras], de Margaret Keck e Kathryn Sikkink, que defende que hoje os atores mundiais de sucesso geralmente são redes políticas frouxamente organizadas e sem múltiplas camadas de comando. Talvez, sugere Coleman, o modelo de organização hierárquico do Catolicismo não possui a flexibilidade necessária para se manter no intenso ritmo em que as coisas mudam em um mundo globalizado.

Para ser franco, o Catolicismo tem sim uma ampla variedade de atores horizontais de sucesso, na forma de ordens religiosas, movimentos leigos e uma ampla variedade de coalizões de base. Quando esses sujeitos somam forças, eles podem produzir resultados surpreendentes. Um exemplo disso surgiu nos debates nos Estados Unidos sobre o destino de Terri Schiavo, a mulher da Flórida em um estado vegetativo persistente que morreu em 2005 depois que seu suporte vital foi removido. Grande parte da energia católica em favor de manter Schiavo viva veio não das lideranças oficiais da Igreja, mas sim de uma ampla variedade de grupos pró-vida e movimentos formados largamente pela Internet para esse fim. Independentemente do posicionamento que se possa ter sobre essa instância, o fato ilustra a capacidade de um Catolicismo horizontal energizado mobilizar opiniões e obter resultados. Nesse caso, o movimento não evitou a morte de Schiavo, mas gerou um exame de consciência nacional em torno de questões sobre o fim da vida, que ainda é um trabalho em andamento.

Porém, Coleman indica que essa dimensão horizontal do ativismo católico continua subdesenvolvida, pelo menos em comparação com as estruturas verticais da Igreja. Remediar esse déficit não é primeiramente uma tarefa para a hierarquia. De fato, em muitos casos, sua contribuição mais valiosa pode ser ficar fora do caminho. A construção de um setor horizontal mais convincente e articulado na Igreja sobre questões esboçadas acima depende de uma parcela crescente de católicos leigos, especialmente da ampla maioria que não pertence a nenhum movimento ou grupo formais, que assumam sobre si a tradução de sua fé em ação. O autêntico Catolicismo horizontal não pode vir à existência por meio de um "fiat" hierárquico. Ele deve brotar das bases, refletindo uma determinação popular para que algo seja feito.

Esperar que o Vaticano ou os bispos ajam, ou culpá-los por fazer da forma errada, não é suficiente. É o cúmulo do clericalismo acreditar que tudo na Igreja depende de seu clero, ou que nada de útil pode ser feito até que Roma vire uma nova página. Essa posição lê erroneamente tanto a teoria quanto a prática de como a mudança funciona na Igreja. Quando todo o resto é removido, a responsabilidade principal da hierarquia é assegurar que, quando Cristo voltar, a fé ainda possa ser encontrada sobre a Terra. Por definição, de muitas maneiras, esse é um papel conservador, cauteloso, defensivo. Esperar também que a hierarquia seja o "agente de mudança" primordial no Catolicismo, a fonte principal de sua visão e de sua nova energia, é tanto injusto quando irreal. Emprestando-me de uma metáfora esportiva, é como esperar que a defesa marque todos os pontos. Quando um bispo se apresenta como um visionário, deveríamos receber isso como uma graça, mas esperar que isso seja o curso normal dos fatos é uma prescrição de azia.

Na realidade, a mudança no Catolicismo infiltra-se tipicamente pelas bases e então é sujeita a um longo período de discernimento teológico e espiritual em múltiplos níveis, bem antes de ser ratificada e assimilada pela hierarquia. A Igreja gerou ordens medicantes nos séculos XII e XIII, por exemplo, não por causa de um decreto papal que assim determinou, mas porque indivíduos criativos como São Domingos e São Francisco viram uma necessidade emergente e responderam a ela. Da mesma forma, a grande explosão de novos ensinamentos e ordens missionárias no século XIX foi o trabalho de católicas e católicos visionários que aproveitaram a iniciativa, geralmente lutando pelas suas vidas com superiores e bispos recalcitrantes, preocupados sobre aonde as coisas iriam parar.

A realidade simples é que, se o Catolicismo deve gerar a imaginação requerida para enfrentar os desafios das tendências que pesquisamos, essa não é principalmente uma tarefa para a hierarquia. Ela deve ser desenvolvida em comunhão com as lideranças da Igreja, claro, mas não pode depender delas. Pensar de outra forma é sucumbir a uma espécie de "eclesiologia lilás", na qual a Igreja é reduzida aos seus bispos. Sim, os bispos às vezes podem abusar de sua autoridade e podem reprimir artificialmente energias criativas. Sua precaução natural às vezes se traduz em rigidez ou fechamento. Em última instância, porém, o tempo e as marés não podem ser parados, e as boas ideias irão perdurar independentemente de qual seja a sua recepção inicial pelos poderes.

A questão real, entretanto, não é se os bispos estão à altura dos desafios do século XXI. A questão é se o resto de nós está.

15/11/2009

'Dom Romero e tu': Carta de Jon Sobrino a Ignacio Ellacuría


Publicamos aqui a carta póstuma do jesuíta e teólogo espanhol Jon Sobrino a Ignacio Ellacuría, um dos seis jesuítas assassinados em El Salvador, há 20 anos. Na verdade, segundo ele, esta é uma homenagem principalmente a Julia Elba e Celina, a funcionária da residência dos jesuítas e sua filha de 15 anos, que também foram assassinadas naquele 27 de outubro de 1979, na UCA, Universidad Centroamericana José Simeón Cañas. "Elas são o símbolo de centenas de milhões de homens e mulheres que morreram e morrem inocente e indefesamente aqui, no Congo, na Palestina, no Afeganistão, sem que ninguém faça muito caso delas", afirma. A carta foi publicada no sítio Religión Digital, 27-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto Fonte: UNISINOS


Dom Romero e tu

Querido "Ellacu": Este ano é o 20º aniversário do seu martírio e logo chegará o 30º de Dom Romero. Cabe-nos falar de vocês com frequência, com responsabilidade especial e também com algum escrúpulo. Vocês, os jesuítas, são mártires bem conhecidos, mas Julia Elba e Celina, nem tanto. Porém, elas são o símbolo de centenas de milhões de homens e mulheres que morreram e morrem inocente e indefesamente aqui, no Congo, na Palestina, no Afeganistão, sem que ninguém faça muito caso delas.

Praticamente, elas não existem, nem em vida, nem em morte, para as sociedades da abundância. E a instituição Igreja também não sabe o que fazer com tantas pessoas que morreram assassinadas. Se é difícil que canonizem um mártir da justiça como Dom Romero, muito mais difícil é que canonizem esses homens e mulheres que viveram e morreram em pobreza e opressão. E, no entanto, muitas vezes te ouvi dizer que eles são "os preferidos de Deus".

Deveria escrever-te, pois, sobre Julia Elba e Celina, mas conheço pouco delas. De Julia Elba, sei que passou trabalhando toda a sua vida nas podas, na cozinha. E tudo isso desde que tinha 10 anos. Não sei muito mais sobre ela. Sim, me perguntei "quem é mais mártir, Ellacuría ou Julia Elba", e seria terrível que os mártires jesuítas fizessem esquecer dessas duas mulheres que morreram assassinadas a 50 metros do jardim de rosas. Nesses dias, escrevi que "Ellacuría não viveu nem morreu para que o esplendor de sua figura opacasse o rosto de Julia Elba". Ellacu, este é o escrúpulo.

Mas Julia Elba e muitas mulheres salvadorenhas como elas me perdoarão, talvez até se alegrarão, pelo fato de que nesta carta eu te fale sobre o nosso Monsenhor, pois elas não têm ciúmes de uma pessoa muito querida. E eu a intitulei: "Dom Romero e tu". Minha intenção é ajudar as novas gerações, àqueles que não sobra orientação cristã e salvadorenha. Que saibam que uma vez houve um país e uma Igreja extraordinária: a de Dom Romero. E tu és um mistagogo de luxo para introduzir-nos em sua pessoa. Por isso, vou recordar como vocês dois se relacionaram.

As pessoas sabem que os dois foram eloquentes profetas e mártires. Mas gosto de lembrar outra semelhança importante sobre como começaram. Os dois receberam uma tocha cristã e salvadorenha e, sem discernimento algum, fizeram a opção fundamental de mantê-la ardendo. Monsenhor recebeu-a de Rutilio Grande na noite em que o mataram. E, morto Monsenhor, tu a retomaste. É verdade que tu já tinhas começado antes, mas após seu assassinato tua voz ficou mais poderosa e começou a soar mais como a do Monsenhor. Ouvi uma senhora dizer na UCA: "Desde que mataram o Monsenhor, ninguém aqui no país falou como o Pe. Ellacuría".

O que me interessa recordar e reforçar é que, em El Salvador, existiu uma tradição magnífica: a entrega e o amor aos pobres, o enfrentamento aos opressores, a firmeza no conflito, a esperança e a utopia que passavam de mão em mão. E, nessa tradição, resplandecia o Jesus do evangelho e o mistério de seu Deus. Não podemos dilapidar essa herança e devemos fazer com que ela chegue aos jovens.

O início de tua relação com Dom Romero não foi positiva. No começo dos anos 70, tu já eras conhecido como um perigoso jesuíta de esquerda por tua defesa da reforma agrária, o apoio à greve dos professores da Andes [Associação Nacional de Educadores Salvadorenhos] e a análise da fraude eleitoral de 1972. Mas com o teu livro "Teologia Política", de 1973, começaste a tocar temas mais explicitamente cristãos: salvação e história, o messianismo de Jesus, a missão da Igreja, violência e política... E mesmo que no país não se falasse ainda de teologia da libertação – e de como seus defensores eram perigosos –, os bispos se assustaram com o Ellacuría teólogo que emergia com força. E coube a Dom Romero escrever uma crítica de sete páginas sobre o teu livro. Fez isso em tom sério e educado, diferentemente da crítica que chegou de um teólogo de uma cúria romana, chamado Garofallo. O primeiro encontro entre vocês foi um choque.

As coisas seguiram seu curso. Tu, com ciência e profecia, e às vezes com humor e ironia. Em uma pequena revista da UCA, escreveste um breve artigo com este título: "Um bispo disfarçado de militar e um núncio disfarçado de diplomata" – os da minha geração saberão a quais hierarcas tu te referias. Não era o teu estilo, mas sim a tua convicção.

Assim chegou 1976. Dom Luis Chávez y González, benemérito e bom amigo, depois de 38 anos, deixava a responsabilidade da arquidiocese. Na ECA [revista da UCA], reunimo-nos para escrever um editorial sobre um assunto tão importante: "Quem será o novo arcebispo". Apoiamos Dom Rivera e nos distanciamos criticamente daquele que parecia ser um possível candidato: o bispo Oscar Arnulfo Romero. A eleição, certamente, deu errado para o Vaticano, e mais tarde tu escreverias que "Dom Romero não foi eleito para que fosse o que foi; foi eleito quase para o contrário".

Chegaram a conversão do Monsenhor e uma profunda mudança em tua relação com ele. Quando, em março de 1977, mataram Rutilio, tu estavas na Espanha e, de Madri, no dia 09 de abril, lhe escreveste uma carta, que chegou em minhas mãos, por casualidade, muitos anos depois. Publicamo-la em "Carta a las Iglesias", março de 2006.

"Tenho que vos expressar, em minha modesta condição de cristão e sacerdote de vossa arquidiocese, que me sinto orgulhoso de vossa atuação como pastor. Deste longínquo exílio, quero mostrar-vos minha admiração e respeito, porque vi, na ação de Vossa Eminência, o dedo de Deus. Não posso negar que vosso comportamento superou todas as minhas expectativas, e isso me produziu uma profunda alegria, que quero comunicar-vos neste sábado de gloria".

Ellacu, essa carta é um dos teus textos mais bonitos. Falas com Monsenhor com total verdade e te mostras em facetas desconhecidas para quem só te conheceu como professor e reitor. Depois do assassinato de Rutilio, lhe agradeces por "vossa valentia e prudência evangélicas diante de claras covardias e prudências mundanas", pelo acerto ao "ouvir todos, mas decidindo o que parecia ser mais arriscado a olhos prudentes". Referias-te à missa única, à supressão das atividades nos colégios católicos, a promessa do Monsenhor de não participar de nenhum ato oficial... Felicitas-lhe: "O senhor fez Igreja e fez unidade na Igreja". A maioria do clero, religiosos e religiosas se aglutinaram ao redor do Monsenhor. E tu voltas a lhe desejar no final: "Se conseguirdes manter a unidade de vosso presbitério mediante vossa máxima fidelidade ao evangelho de Jesus, tudo será possível".

Na carta, aparece a dialética evangélica e inaciana, recorrente em ti: "conseguistes não pelos caminhos da bajulação ou da dissimulação, mas sim pelo caminho do evangelho: sendo fiel a ele e sendo valente com ele". "Não poderíeis ter começado melhor a fazer Igreja". Eu também escrevi que, mesmo que tudo parecia ter começado muito mal para Monsenhor, tudo começava muito bem. E assinaste: "Este membro da arquidiocese, que agora se vê afastado contra a sua vontade".

Quando voltaste em 1978, te colocaste, com entrega e devoção, ao serviço do Monsenhor. Escreveste para a YSAX, a rádio do arcebispado, uma longa série de comentários à sua terceira carta pastoral, "A Igreja e as organizações políticas populares". Ajudaste-lhe a redigir a parte central sobre as idolatrias na quarta carta pastoral, "A Igreja na atual situação do país". Em suas últimas semanas, estiveste com ele na coletiva de imprensa depois da homilia dominical, e ele te dava a palavra quando lhe perguntavam sobre a situação política. Com ele estiveste na véspera de seu assassinato, depois daquela homilia irrepetível: "Em nome de Deus e em nome deste sofrido povo, cujos lamentos sobem até o céu, peço-lhes, rogo-lhes, ordeno-lhes, em nome de Deus: cesse a repressão!". E, no funeral, carregaste o caixão. Vemos-te com Walter Guerra, Jesús Delgado e Juan Spain.

O que fizeste pelo Monsenhor não foi simplesmente mais um de teus muitos serviços ao país. Também não o consideraste um serviço estratégico, dada a imensa influência de Monsenhor. Dom Romero chegou a ser para ti alguém muito especial, diferente de como havia sido Rahner ou Zubiri. Ele se meteu dentro de ti e tocou tuas fibras mais profundas. Eu tive essa sensação desde o começo. E ficou gravada para sempre em tua homilia na missa de funeral que tivemos na UCA. Nela, disseste: "Com Dom Romero, Deus passou por El Salvador".

Muitas vezes citei essas palavras, Ellacu. São muito tuas, pela precisão da linguagem e pelo peso do conceito. Conhecendo-te, estavas dizendo a verdade. E uma verdade teologal: neste El Salvador, massacrado e esperançado, teimoso e valente, cruel e generoso, sentiu-se a passagem do mistério. A passagem de Deus. Por isso, Dom Romero se converteu para ti em referência de Deus e em princípio e fundamento de tua teologia. Vou recordar disso brevemente.

Comecemos com a eclesiologia. O "povo de Deus" não era um tema qualquer e menos ainda quando o Vaticano II já estava em declive, e a hierarcologia voltava a ressurgir. Sobre ele, escreveste um artigo sistemático em 1983, mas antes, em 1981, tinhas escrito: "El verdadero pueblo de Dios, según Monseñor Romero". Não tentavas analisar as ideias de algum teólogo importante, mas sim ir ao fundo do problema a partir da fonte que tu tinhas mais à mão e que te parecia a mais frutífera.

Mencionaste quatro características do verdadeiro povo de Deus:

- A opção preferencial pelos pobres;

- A encarnação histórica das lutas do povo pela justiça e pela libertação;

- A introdução do fermento cristão nas lutas pela justiça;

- A perseguição por causa do reino de Deus na luta pela justiça.

Nem toda a novidade provinha do Monsenhor, mas a mais nova, por assim dizer, as três últimas características, provinham dele. Pelo menos, Dom Romero te fez aprofundar nelas.

Monsenhor te pôs na pista da "Igreja dos pobres", que nem sequer no Concílio teve êxito, apesar dos desejos de João XXIII, do cardeal Lercaro e de alguns poucos bispos. E certamente te inspirou a falar do martírio, realidade fundante para a Igreja, como a cruz de Jesus. Várias vezes citaste umas palavras escandalosas de Dom Romero: "Alegro-me, irmãos, que a Igreja seja perseguida. É a verdadeira Igreja de Cristo. Seria muito triste se, em um país onde está se assassinando tão horrorosamente, não houvesse sacerdotes assassinados. São o sinal de uma Igreja encarnada". Melhor e mais profundamente do que com muitos conceitos, Monsenhor define a Igreja a partir de duas relações essenciais: com o destino de Cristo e com o destino do povo. Alguém, com boa intenção, questionou uma vez o fato de que Dom Romero corresse tantos riscos, até de sua vida. Mas tu lhe respondeste: "Isso é o que ele tem que fazer". E isso é o que tu também fizeste com a tua vida. A eclesiologia não era um conjunto de conceitos tomados da realidade com alfinetes, mas sim surgidos dela.

Em cristologia, coincidiste com Monsenhor em muitas coisas. Só vou recordar uma, para mim a mais decisiva hoje, certamente no terceiro mundo, mas também no primeiro: ver Cristo no povo crucificado, considerar este como a continuação do servo de Javé. São hoje as centenas e milhares de milhões de pobres, famintos, oprimidos, mortos violentamente, massacrados, inocentes e indefesos, desconhecidos em vida e em morte. Com eles, comecei esta carta ao recordar de Julia Elba e Celina.

Em 1978, em preparação para Puebla, escreveste "El pueblo crucificado. Ensayo de soteriología histórica", em que analisas a realidade dos pobres e vítimas como o servo sofredor de Javé. Em 1981, em teu segundo exílio de Madri, escreveste "El pueblo crucificado como 'el' signo de los tiempos". No primeiro texto, reforças seu caráter salvífico. No segundo, seu caráter de revelação.

Dom Romero disse em 1977, em Aguilares, aos agricultores perseguidos e assassinados: "Vocês são o divino Transpassado". E, em uma homilia de 1978, mostrou sua alegria porque os estudiosos do Antigo Testamento não sabiam dizer se o servo, do qual Isaías fala, é "todo um povo" ou é "Cristo que vem libertá-los".

Não sei dizer "quem copiou quem" ou se aconteceu como com Leibnitz e Newton, que descobriram os fundamentos do cálculo infinitesimal independentemente um do outro. O que, sim, me parece certo é que vocês tiveram a mesma assombrosa intuição de equipar a humanidade sofredora com o crucificado e o servo de Javé. E, pelo que eu sei, só vocês dois. Isso não aparece em encíclicas, nem em concílios. Normalmente, também não nas teologias. E depois que vocês morreram, parece que não há vigor nem rigor para falar assim de um mundo que hoje está evidentemente crucificado.

E uma coisa mais. Em teu segundo exílio, escreveste outro breve texto ao qual deste muita importância: "Por qué muere Jesús y por qué lo matan". O título é mais do que uma demonstração de gênio. Trata-se de esclarecer o sentido transcendente dessa morte e de suas causas históricas. Em teologia, podem-se encontrar reflexões afins, mas não assim, certamente não com essa radicalidade, em textos oficiais da Igreja. Para o primeiro, é preciso ter presente, antes de tudo, o desígnio de Deus. Para o segundo, é preciso ter em conta a historicidade radical da vida de Jesus: defensor daqueles a quem os poderosos ofendem. Por essa razão, Jesus denunciou o poder, entrou em conflito com ele, perdeu e foi crucificado. Isso, tão evidente, costuma ser oficialmente silenciado – inclusive em Aparecida, um bom documento por causa de outros capítulos.

Dom Romero não silenciou isso. Na missa fúnebre de um dos sacerdotes assassinados, ele disse peremptoriamente: "Mata-se quem incomoda". E os que incomodavam não eram demônios ou poderes transcendentes, mas sim oligarcas, militares, órgãos de segurança, esquadrões da morte. Assim se entende o "por que mataram Jesus", como tu perguntavas.

Termino com a teologia, com Deus e com tua fé. Na primeira carta, te escrevi que a tua fé em Deus não pôde ser ingênua. Em 1969, falaste em Madri sobre as dúvidas de fé que Rahner levava com elegância – e entendi que dizias algo parecido sobre ti mesmo. Acredito que lutaste com Deus como Jacó, naqueles anos duros para a fé. E, aos teus 47 anos, Dom Romero "apareceu" a ti – e uso o termo "aparecer", opthe, conscientemente, para expressar o que houve nisso de inesperado, desorientador, questionador e bem-aventurado. Disso, só se pode falar com temor e terror, mas penso que, em contato com Monsenhor, tiveste uma experiência nova da realidade última, de Deus. E acredito que isso se notou em teu falar sobre Deus.

Escrevi que, para Jesus, Deus é "Pai" em quem se pode descansar, e que o Pai continua sendo "Deus", que não deixa descansar. Em Dom Romero, em sua compaixão para com os sofredores, sua denúncia para defendê-los, o amor sem arranjos, viste o Deus que é "Pai" dos pobres. Em sua conversão, em seu adentrar-se no desconhecido e no não controlável, em seu caminhar sem apoios institucionais eclesiásticos, em seu manter-se firme, fosse aonde o caminho fosse, viste o Pai que continua sendo "Deus". E talvez no Monsenhor também viste que, apesar de tudo, o compromisso é mais real do que o niilismo; o gozo, mais real do que a tristeza; a esperança, mais real do que o absurdo. Assim interpreto suas simples palavras: "Com esse povo, não custa ser um bom pastor". Nelas, surge a utopia.

Termino. Não era a primeira vez que te encontravas com alguém que ia influenciar importantemente em tua vida, como bem analisa Rodolfo Cardenal. No entanto, encontrar-te com Dom Romero significou algo diferente. E essa diferença radica no fato de que te encontraste com a profecia, com a entrega, a bondade do Monsenhor, mas sobretudo com a sua fé, o que configura toda a pessoa. Por isso, nunca te consideraste "colega" do Monsenhor. Nunca ouvi de ti, sendo tu de estilo crítico, uma crítica ao Monsenhor. E em teu nome e no da UCA, disseste que "Dom Romero já se havia adiantado a nós". E insististe: "Não há dúvida sobre quem era o mestre e quem era o auxiliar, quem era o pastor que marca as diretrizes e quem era o executor, quem era o profeta que desentranhava o mistério e quem era o seguidor, quem era o animador e quem era o animado, quem era a voz e quem era o eco". Dizias isso com total sinceridade.

"Dom Romero, um enviado de Deus para salvar o seu povo", escreveste. E o Monsenhor te falou sobre o que há, em Deus, de "mais aqui". Mas também te falou do que há, em Deus, de inefável, de mistério bem-aventurado, do que há, em Deus, de "mais além". "Nem o homem nem a história se bastam. Por isso, [o Monsenhor] não deixava de chamar à transparência. Em quase todas as suas homilias, saía este tema: a palavra de Deus, a ação de Deus rompendo os limites do humano". Dom Romero veio ser como o rosto de Deus em nosso mundo.

Ellacu, termino esta carta com as palavras com as quais terminaste teu último escrito de teologia. São para aqueles que não te conheceram, para todos os que te conheceram e especialmente para que ajudem que a Igreja retome o seu rumo.

"A negação profética de uma Igreja como o velho céu de uma civilização da riqueza e do império e a afirmação utópica de uma Igreja como o novo céu de uma civilização da pobreza é um clamor irrecusável dos sinais dos tempos e da dinâmica soteriológica da fé cristã historizada em homens novos, que continuam anunciando firmemente, mesmo que sempre às escuras, um futuro sempre maior, porque, além dos sucessivos futuros históricos, se vislumbra o Deus salvador, o Deus libertador".

Dom Vincenzo Paglia


Romero, santo pela liberdade

Dom Vincenzo Paglia, arcebispo de Terni, recém voltou de El Salvador. Lá naquele país de diversas belezas, os salvadorenhos vão agora às praças há meses. O que querem? Simplesmente, querem dar uma acelerada no processo de beatificação de Dom Óscar Arnulfo Romero. E sobre essa questão que envolve amor e liturgia, vão periodicamente às praças "para exigir que o Estado peça perdão publicamente pela morte assassina de Dom Romero". A reportagem é de Igor Man, publicada no jornal La Stampa, 13-11-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Fonte: UNISINOS


Como excelente diplomata, Dom Paglia diz e não diz, buscando tranquilizar um pouco todos. Romero foi nomeado arcipreste de San Salvador com a permissão das 14 famílias salvadorenhas que o consideravam um "padre alinhado". Mas um longo reconhecimento de fiéis de sua confiança o convenceu a descer à realidade – verdadeira –, e foi assim que a sua homilia dominical assumiu o papel de uma denúncia, mas cristã, de uma acusação dos parafascistas da Arena.

Em resumo: sob o impulso de uma opinião popular sempre mais forte, a homilia de Dom Romero se tornou uma espécie de apontamento da esperança, uma denúncia corajosa das intrigas do poder.

Nunca se havia visto a catedral transbordando em El Salvador, nunca a denúncia do celebrante foi tão participativa. O pequeno escritório de Romero na catedral se transformou em sucursal do Correio.

A quem lhe recomendava "prudência, prudência", Romero respondia sereno: "Mas no máximo poderão me tirar. E daí?". Embedidos de ódio, os neofascistas da Arena decidiram em um encontro mafioso que "apagariam a vela". E a morte de Romero foi marcado. No dia 24 de março de 1980, o major d’Aubuisson e dois assassinos irromperam na capela de uma clínica privada. Dom Romero não piscou e, exatamente enquanto elevava a hóstia da comunhão, o assassino disparou. Um só tiro, um só cartucho que acertou a veia jugular de Dom Romero.

O sacerdote curvou-se sobre si mesmo na vã tentativa de proteger a hóstia – e com ela entre os dedos, caiu. O seu sangue de agricultor manchou os paramentos.

A morte de Dom Romero foi o prelúdio, o longo prelúdio do retorno. Simplesmente para a liberdade. Teoricamente, a guerra prolongada saiu da porta de serviço, mas de fato não terminou.

El Salvador é um país mártir, porque, se é verdade que não se combate mais e que há um Parlamento etc., também é verdade que quem comanda são sempre as 14 famílias, habilíssimas em perpetuar uma espécie de pós-moderno medieval, em que imperam os senhores, e os agricultores labutam, labutam sempre, em troca de escassas mercadorias. E, lenta, aparece a justiça social.

Na sua última homilia na catedral, Dom Romero concluiu assim, com a voz destroçada de emoção: "Os Estados Unidos colocam as armas. A URSS coloca as armas. El Salvador coloca os mortos. Em nome de Deus: deixem-nos a sós".

No dia seguinte, 24 de março de 1980, o major d’Aubuisson o matava, durante a Elevação.

10/11/2009

Ignacio Ellacuría. Um pensador, negociador e cristão



No dia 09 de novembro de 2009, Ignacio Ellacuría, filósofo e teólogo jesuíta, assassinado como reitor da Universidade Centro Americana - UCA - de El Salvador, em 1989, completaria 79 anos. Ana Formoso, doutoranda em teologia e colaboradora do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, é autora do artigo "Na fragilidade de Deus a esperança das vítimas. Um estudo da cristologia de Jon Sobrino", publicado pelos Cadernos Teologia Pública, no. 29, que recorda a vida e o martírio de Ellacuría. O Instituto Humanitas Unisinos - IHU, celebrará a memória do martírio de Ignacio Ellacuría e companheiros e das duas mulheres, no dia 10 de dezembro de 2009, com a apresentação do debate "Memory and Its Strength: The Martyrs of El Salvador" [A memória e sua força: Os mártires de El Salvador], que irá ocorrer no Boston College, nos Estados Unidos, no dia 30 de novembro. Participam do debate Noam Chomsky, Jon Sobrino e J. Donald Monan.
Fonte: UNISINOS



No meio acadêmico, um importante filósofo e teólogo, na sociedade civil, um negociador para pôr fim à guerra, tudo isto por um homem que buscou a justiça junto com seu povo e sua comunidade acadêmica.

Ignacio Ellacuría, um homem que soube contribuir com as ciências, especialmente a filosofia e teologia, e, com lucidez, buscou junto à comunidade dar respostas aos desafios sociais de El Salvador. Não temos pessoas sozinhas, temos um grupo de pessoas que dedicaram tempo, estudo, reflexão, oração e escuta às pessoas mais injustiçadas. Como reitor, buscou conduzir a universidade com pesquisa, reflexão e, sobretudo, colaborar para resolver os problemas sociais.

Não se pode entender Ellacuría sem Xavier Zubiri e sem Karl Rahner. A filosofia de Zubiri ajudou a buscar sempre a relação que há entre a inteligência e a fé. A questão em Zubiri não consiste tanto em saber se nosso pensamento encontra algo que possa designar por Deus, mas em qual via concreta se coloca seu acesso e qual é o problema a que corresponde. As provas clássicas da existência de Deus se moviam em esquemas puramente objetivistas. Por isso, Zubiri sentiu a necessidade de uma nova fundamentação para o tema de Deus. Não é o espaço para um desenvolvimento do pensamento de Zubiri, mas compreender como este autor marcou o pensamento de Ellacuría. Para ele, o problema de Deus já está dado na realidade pessoal do homem. O homem descobre Deus a partir desta realidade e como meio de realização de seu viver. Desenvolve uma nova “via de religação”, da qual vislumbramos as verdadeiras consequências. Zubiri opõe-se a qualquer concepção de Deus como algo alheio ao mundo. Deus se manifesta no mundo, fundamentando a realidade última das coisas, e, ainda que racionalmente, é preciso estabelecer seu caráter transcendente. Trata-se de uma transcendência na realidade – nunca fora dela.

Karl Rahner (1904-1984) é considerado um dos maiores teólogos católicos do século XX. Seu pensamento se caracteriza pela seriedade do pensar, preocupou-se com definições de abertura ecumênica e diálogo inter-religioso. Os escritos de Ellacuría, de Sobrino e de Rahner refletem uma pergunta que tem que continuar sendo feita: O que é ser cristão/a e como se pode realizar esse estilo de vida com honestidade intelectual?

Zubiri, uma transcendência na realidade, Rahner escreveu um artigo memorável que “a realidade quer tomar a palavra”. Na expressão de Sobrino, se me permitem um jogo de palavras, se “a palavra se fez realidade (carne, sarx), a realidade quer fazer-se palavra” (Sobrino, p.76, 2007). Ellacuría insistiu que há sempre um sinal dos tempos que é principal: o povo crucificado. Este conceito tem um vigor conceitual hoje perdido na descrição da realidade, e, muitas vezes, banalizado. “Crucificado”, na realidade, tem a conotação de: a) conceitualmente morte, não simples dano, limitação ou carência; b) “provocar a morte” – não morte natural; c) uma “morte infame e injusta”; d) afinidade com Jesus e seu destino, importante a partir da perspectiva da fé, como o que se eleva à realidade última- teológica – a realidade de grande parte da humanidade .

A realidade dos povos crucificados nos interpela? A natureza que está sendo crucificada nos interpela? Assim podemos seguir fazendo-nos perguntas. O pensamento de Ellacuría nos interpela a olhar a realidade com honestidade intelectual e social.

Termino com as palavras de Ignacio Ellacuría que usou com precisão conceitual ao falar do que deve ser e fazer uma universidade:

A universidade deve encarnar-se entre os pobres intelectualmente para ser ciência dos que não têm voz, o respaldo intelectual dos que, na sua própria realidade, têm a verdade e a razão, embora, às vezes, seja à maneira de despojo, mas que não contam com as razões acadêmicas que justifiquem e legitimem sua verdade e sua razão” .