30/12/2009

Dom Demétrio Valentini


Década de amostra

Dom Demétrio Valentini é Bispo de Jales (SP) e Presidente da Cáritas Brasileira
Fonte: Adital 






Era grande a expectativa para a chegada do ano dois mil. Em torno dele tinha se criado denso imaginário, onde não faltavam cenários apocalípticos, próprios de contextos do milenarismo.

A realidade se encarregaria de mostrar que a natureza continua com seu ritmo, e a história com sua dinâmica. O novo milênio carrega a herança do anterior, e precisa enfrentar os desafios recebidos.

Agora, já se passou a primeira década do novo século. Olhada com atenção, pode servir de amostra para o que nos aguarda no futuro próximo.

Alguns acontecimentos se destacam. O atentado de onze de setembro, o poderio econômico da China, e a crise ambiental, para ficarmos com alguns sintomas mais evidentes.

A virulência da derrubada das torres gêmeas, a 11 de setembro de 2001, se paramentou perfeitamente com a liturgia midiática dos grandes espetáculos. Mas não deixou de transmitir um recado claro e contundente. As torres gêmeas eram símbolo da escandalosa concentração econômica, eticamente perversa, e ecologicamente insustentável. Num mundo cada vez mais globalizado, vão ficando sempre mais intoleráveis as injustas desigualdades sociais, produzidas por um sistema econômico explorador e excludente. Os excluídos já não toleram os injustos privilégios excludentes.

O atentado de 11 de setembro levanta o claro desafio, de uma nova ordem econômica mundial, como tarefa impostergável para este século. Só assim, o mundo poderá cultivar uma razoável expectativa para o milênio. Se continuar do jeito como está, a economia mundial ficará inviável dentro de pouco tempo.

Um fato que chama a atenção, neste início de novo século, é a surpreendente ascensão da China no cenário mundial da política e da economia. A China está desequilibrando o mundo. Ela conseguiu a proeza inesperada, de juntar os dois piores ingredientes produzidos pelos embates dos últimos séculos, e colocá-los a serviço do seu crescimento econômico, às custas do verdadeiro desenvolvimento humano mundial. De um lado, ela continua com um regime político estatizante e ditatorial, no exercício de um comunismo radical e intolerante. De outro lado, adotou as práticas do pior dos liberalismos econômicos, explorando a mão de obra barata de centenas de milhões de chineses que estão na fila dos desempregados. Assim a China consegue invadir o mundo com uma gama de produtos cada dia mais ampla, fruto de uma nova forma de escravidão, que é repassada ao mundo inteiro, que se vê forçado a pagar menos os operários para manter a competitividade dos seus produtos. O "fator China" se faz presente em todas as situações.

Um dos claros desafios da política mundial, neste início de século vinte e um, é integrar a China no convívio da democracia, no respeito mínimo aos direitos humanos elementares.

Mas a amostra mais evidente desta primeira década do novo milênio vem revestida das cores da crise ambiental. No início deste milênio, está caindo a ficha da consciência ecológica. Os sinais são cada dia mais evidentes. O desequilíbrio se manifesta de muitas maneiras. O sintoma mais incontestável é o rápido derretimento das geleiras, que se constituem na maior reserva de água doce do planeta.

Ou a humanidade reverte este quadro, ou as conseqüências serão catastróficas, com o risco de inviabilizar o sistema vital em nosso planeta.

Entramos no novo milênio carregando nas costas as conseqüências de equívocos acumulados nos últimos séculos. A vantagem pode estar na consciência de que chegou a hora de enfrentá-los, com determinação e coragem.

O fracasso de Copenhague mostra que ainda não estamos preparados. Vamos mudar em tempo?

24/12/2009

Iara Tatiana Bonin


Uma crônica de Natal: E se o menino Jesus escolhesse nascer brasileiro em 2009?


Iara Tatiana Bonin é doutora em Educação pela UFRGS e professora do PPG da Universidade Luterana do Brasil - Ulbra.
Fonte: UNISINOS

E se o menino Jesus resolvesse nascer novamente entre nós, para sentir na própria pele os efeitos de seus sagrados ensinamentos? Se escolhesse nascer de uma família humilde, como aquela de Nazaré, que hoje estivesse seguindo, junto ao seu povo, numa longa caminhada? Neste caso, nos dias atuais, Ele escolheria nascer Guarani-Kaiowá!

Nasceria como parte de um povo a caminho, um povo em busca de justiça e de paz. Ele faria parte de uma coletividade que luta para viver, não numa “terra prometida”, e sim numa terra tradicional, lugar de morada dos espíritos ancestrais, onde se sepultaram os corpos de intermináveis gerações. Uma coletividade que, em seu modo de pensar, ironicamente mantém viva a crença na Terra sem Mal.

Ele seria, enfim, parte de um povo que entende seu território como espaço amplo de relações sociais e de convivência com diferentes culturas, mas que se vê, hoje, expulso desse mesmo território pela intolerância de quem acredita poder decretar qualquer espaço como propriedade privada, através da violência, da força bruta e da covardia.

Se o menino Jesus viesse, neste Natal, acalentar-se nos braços afetuosos de uma mulher Guarani, ele seria acolhido como alguém muito desejado. Antes mesmo que seu corpo se formasse no ventre materno Ele seria anunciado como boa notícia, nos sonhos de seus pais, tal como ocorre quando se gera uma nova vida entre os Guarani. E ele nasceria cercado por pessoas que, no afeto cotidiano, estabeleceriam os vínculos familiares e o parentesco com esse novo ser, esse verbo feito carne, com essa palavra-alma!

Seu nome seria, possivelmente, anunciado por um Pajé, um ancião que, entre os Guarani, conhece os segredos da vida e da morte e sabe pronunciar as “belas palavras”, aquelas que chamaríamos de “língua dos anjos” na tradição judaico-cristã. Seu nome seria um sinal do que, neste mundo, ele poderia realizar, das virtudes e dons que carregaria consigo e que, no viver, deveria alimentar e fazer crescer, tal com as viçosas roças de milho.

Se o menino Jesus decidisse ficar entre nós para ver se sua história seria diferente, em pleno século XXI, talvez ele encontrasse desafios bem semelhantes daqueles que enfrentou para semear sua palavra de amor, há mais de dois mil anos. Viveria em um acampamento à beira da estrada, como centenas de Guarani-Kaiowá que aguardam ainda a regularização de suas terras. Cresceria alimentado por tradições que preparam a pessoa para viver numa coletividade e não na individualidade. Seria uma criança entre as muitas que crescem cercadas de cuidados e de atenção, mesmo quando o alimento é escasso. Mas, com dois anos de vida, talvez Ele morresse prematuramente, vítima da falta de assistência e da negligência do Poder Público, tal como a pequena Tatirrara, em Kurussu Ambá, que morreu no dia 18 de dezembro por falta de assistência. Apesar dos contínuos apelos da comunidade para obter medicamentos, a Fundação Nacional de Saúde negou-se a prestar assistência porque a terra está “em litígio”.

Se Jesus sobrevivesse, aos 15 anos talvez decidisse participar, junto com sua comunidade, de uma retomada de terra tradicional – o tekohá, a “terra prometida” para viver plenamente o Nandê Recó, “o jeito de ser Guarani”. Neste caso, talvez Ele fosse mais um jovem assassinado brutalmente, tal como Osmair Fernandes, encontrado morto em uma escola, com indícios de espancamento e de tortura.

Vamos imaginar que, com sorte, o jovem Jesus escapasse a essas violências e tivesse a chance de estudar. Afinal, Ele nasceu para ser Mestre! Quem sabe, hoje escolhesse ser professor! Conhecendo um pouquinho da história de Jesus, vivida há mais de dois mil anos, podemos imaginar que ele também não se calaria diante das injustiças e, assim, utilizaria o “dom da palavra” para ensinar, para abrir os olhos, para aconselhar, para reivindicar que a justiça fosse a medida de toda a nossa vida. Neste caso, talvez seu destino fosse o mesmo que o de Genivaldo ou Rolindo Verá, os dois professores Guarani-Kaiowá seqüestrados e arrastados pelos cabelos por homens encapuzados, de dentro de sua comunidade.

E se não fosse, ainda, a hora de entregar o corpo em sacrifício, o Filho de Deus seguiria um pouco mais, junto a seu povo, cultivando a esperança cotidiana, tecendo a vida como quem trama fibras de taquara, que se transformam em cestos para transportar os frutos da vida e do trabalho. Ele viveria transitando entre um lugar e outro, em acampamentos provisórios e, junto com os seus, sofreria com as precárias condições para a sobrevivência, tal como qualquer povo que vive em exílio, impedido de ocupar definitivamente o seu próprio lugar.

Seria, como há dois mil anos, um homem de paz, desses que buscam construir a harmonia, que buscam falar a sua verdade calmamente, manifestando, pela argumentação, as razões de sua esperança, de suas lutas, de seus anseios. Ele aprenderia esse jeito de ser com os próprios Guarani, quando fosse, por exemplo, fazer uma reivindicação junto a qualquer órgão público ou quando fosse conversar com qualquer visitante, em sua aldeia.

Para os Guarani, essa forma de lutar só é rompida quando a espera se estende em demasia, e não há mais como resistir, se não retomando uma porção de terra. Nessas ocasiões, eles seguem em grupo, com suas famílias, seus animais de estimação, e os poucos objetos que possuem. Armam seus acampamentos e ali permanecem, pacificamente, à espera de providências legais. Quase sempre são recebidos com violências, são ameaçados com rajadas de tiros, são agredidos, espancados, impedidos de obter água, alimentos, medicamentos. Por isso, nascendo novamente hoje, penso que Jesus estaria entre eles e, possivelmente, se tornaria um Pajé, um líder religioso dedicado a curar doenças, a dizer as “belas palavras”, a aconselhar aqueles que vivem à sua volta.

Envelhecendo entre os Guarani-Kaiowá, Ele seria respeitado por adquirir a sabedoria dos anos – a idade é, para este povo, “o tempo que age sobre a pessoa” e que torna a alma mais aproximada da divindade. Como Pajé, talvez liderasse uma retomada, quando a vida num certo acampamento se mostrasse impossível. Ele, então, conduziria um grupo de famílias para uma terra tradicional, onde se pudessem ouvir melhor os conselhos dos espíritos ancestrais. E, nesse lugar, talvez seu grupo fosse vítima da ação criminosa de alguns jagunços de fazendeiros, armados e encapuzados. No embate, poderia Ele ser assassinado a tiros, como foi vítima a anciã e rezadora Xuretê Lopes, numa expulsão comandada por jagunços, em 2007.

Se Jesus Cristo decidisse nascer novamente entre nós, e se fizesse gente entre os Guarani-Kaiowá, correria o risco de ser, novamente, humilhado, torturado, assassinado, com a mesma crueldade daqueles tempos em que se crucificavam os homens que desafiavam as leis, e também aqueles que desafiavam o poder político e econômico para fazer cumprir as leis.

Por isso, neste Natal, é melhor pedirmos a Jesus que permaneça lá mesmo, à direita de Deus Pai, pelo menos por enquanto, pois a maioria dos homens e mulheres que vivem no Brasil contemporâneo ainda não entendeu o significado de suas lições de amor e de solidariedade. Mas acreditamos que um dia todos nós formaremos uma multidão que já não grita “soltem Barrabás”, mas que brada “Demarcação já”! Justiça para os Povos Indígenas!



FELIZ NATAL!
Enoisa

20/12/2009

Entrevista - José Maria Castillo

O poder da Igreja de hoje me dá pena e coragem, diz teólogo espanhol

José María Castillo é um dos grandes da Teologia na Espanha e no mundo. É um teólogo de fibra, que sabe combinar perfeitamente o ensaio profundo, o livro sério, com a divulgação. Por isso, se converteu em um teólogo de referência, tanto a nível clerical como a nível das bases. Há alguns anos deixou a Companhia de Jesus. Dizia, naquela época, que para se sentir mais livre. É um teólogo, como todos os que estão em campos de fronteira, perseguidos pela Congregação para a Doutrina da Fé (com vários monitums [advertências] contra ele), mas que segue na luta. Não se queimou. É daqueles que seguem dando o pão de seus livros às pessoas. Por exemplo, seu novo ensaio editado pela Trota: La humanización de Dios. A entrevista é de José Manuel Vidal e está publicada no sítio espanhol Religión Digital, 09-12-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS


José María, bom-dia. É um prazer que estejas conosco.

Muito prazer, obrigado.

É um duplo prazer, porque contamos também com teu blog, que dignifica ainda mais a nossa página.

Isso para mim também é um presente. Me sinto bem à vontade, e o considero uma generosidade da parte de vocês.

Qual é a tese fundamental do teu novo livro?

Creio que a tese está suficientemente indicada no título. Deus, na história das religiões, é considerado como um ser transcendente e, portanto, distante e inalcançável. Em uma ordem completamente diferente e inacessível ao ser humano. Portanto, as religiões ao máximo que chegam é falar da relação do homem com Deus. A originalidade do cristianismo está em que fala da união do homem com Deus. E a partir desse momento é preciso se perguntar se é o homem que deve ser elevado à condição divina, ou se Deus desce e se identifica com a condição humana.

Como o texto dos Filipenses?

Claro, porque não há um termo médio. É preciso optar por um ou outro. É verdade que a definição dogmática do Concílio de Calcedônia, no século V, optou por uma solução que parecia intermediária: dizer que Deus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, mas que Nele há uma única pessoa que é divina. Dessa maneira, sem dizê-lo, está dizendo que é mais Deus que homem.

E pretendes dar a volta?

Pretendo simplesmente tomar como ponto de partida um mistério central do cristianismo: a Encarnação. Que Deus se faz carne, como diz o Novo Testamento. E fazer-se carne é descer e identificar-se com o mais profundamente humano. Deste ponto de vista, temos todo o direito do mundo para dizer que Deus, em Jesus, se humanizou. E, portanto, se identifica com tudo o que é humano. Ao extremo de poder dizer, no famoso texto do Juízo Final: “O que fizestes a um destes pequeninos foi a mim que fizestes”.

Mas isso também é doutrina da Igreja?

Isso está no Evangelho, e por isso a Igreja tem o dever sagrado de ensiná-lo, defendê-lo e explicá-lo.

E no Credo.

Sim, mas acontece que o Credo, tanto em sua fórmula curta (do Concílio de Nicéia) como na mais longa (do I Concílio de Constantinopla) foi redigido em condições marcadas por uma forte influência política. Dos imperadores. Não esqueçamos que os quatro primeiros Concílios da Igreja não foram convocados pelos Papas, mas pelos imperadores. Foram pagos, aprovados e promulgados por eles. E que até Teodósio I (final do século IV) utilizavam o título de Sumo Pontífice.

Ou seja, que a nossa fé descansa sobre os imperadores romanos?

Não diria tanto, mas que os imperadores tiveram uma influência determinante na formulação daqueles Concílios. A ponto de que um dos grandes temas que se estuda sobre aqueles tempos é o cesaropapismo, que foi o fato da intervenção dos imperadores na teologia, impondo seus critérios e seus pontos de vista. Eu, no livro, dou o exemplo muito eloquente e atual: imaginemos que Obama convoque um concílio ecumênico na Casa Branca. Que reúna ali todos os bispos do mundo, custeie sua estadia, aprove os documentos e os promulgue. Muita gente ficaria com reservas.

Evidentemente.

É verdade que não se pode transpor o século IV ou V para o século XXI, porque seria uma injustiça histórica e uma ingenuidade pedagógica. Mas não esqueçamos que há grandes paralelismos entre uma coisa e outra.

Então, esse cesaropapismo arrastou a definição de Cristo mais para o divino, em detrimento da parte humana.

Efetivamente. O empenho de Nicéia contra o imperador Constantino foi afirmar como dogma a identidade de substância, de ser, de Jesus Cristo com Deus, com o Pai. Nesse sentido, se salvou a divindade de Cristo, ao afirmar que a sua natureza era a mesma que a do Pai. Mas se carregou tanto a mão nos séculos seguintes no aspecto da divindade (e aqui aparecem os Padres da Igreja), que aquilo terminou em que no Concílio de Calcedônia o que se teve que defender foi a humanidade. Porque o que o monofisismo do monge Êutiques defendia era que Jesus não era um ser humano como os outros. Divino, mas não humano. E isso a Igreja também condenou.

Acontece que a Igreja segue tendo um monofisismo eterno oculto, dissimulado. Há muitas pessoas que estão convencidas de que Jesus Cristo é Deus. Santo Tomás, na Suma Teológica, se pergunta se Jesus fazia as necessidades humanas.

Se ia ao banheiro como qualquer ser humano.

Claro. Um velho professor meu dizia que isso que Santo Tomás disse é uma estupidez, porque Jesus era um ser humano, e tudo o que é humano é próprio de Jesus.

Dá a sensação de que a Igreja tem certa vergonha dessa realidade. Não só esse tema, mas o do desejo sexual de Cristo. Teve ou não desejos sexuais?

Se isso é humano, teve que tê-los.

E por que esse medo de reconhecê-lo?

Porque há certas constantes na experiência humana. Nos séculos I, II e III era o agnosticismo, que antepunha o divino ao humano. Espírito-matéria, sobrenatural-natural. Depois, essa tendência foi reaparecendo de diferentes formas. No fundamentalismo e nas tendências mais liberais.

A Igreja continua tendo medo da humanização de Cristo?

E não apenas de Cristo, que era plenamente humano, mas de Deus. A chave está na pergunta de Felipe na Última Ceia, quando disse a Jesus: “Senhor, mostra-nos o Pai”. Jesus lhe responde: “Felipe, ainda não me conheces?”. Se eu fosse Felipe lhe teria dito: “Sim, eu te conheço. O que quero é conhecer Deus”. Mas é que Jesus acrescentou, sem que esta intervenção fizesse falta: “Aquele que me vê, vê o Pai”.

Ver Jesus era ver Deus. Ouvi-lo era ouvir Deus. Tocar Jesus era tocar Deus. Portanto, desde o momento em que Deus se humaniza, se funde com a carne. Com o mais frágil da condição humana.

Assumindo todas as consequências.

Toda a fraqueza, menos o pecado. Menos a maldade, que é desumana, desumanização. Assume tudo o que é plenamente humano.

Mas também teve que se zangar.

Claro que sim. Na sinagoga, no episódio do coxo, perguntou se a religião permitia salvar ou condenar uma vida. Aqueles que queriam colocá-lo à prova se calaram, e o Evangelho de Marcos diz que Jesus lhes dirigiu um olhar de ira. Ira, não indignação!

Na famosa cena do Templo, que se coloca às vezes como exemplo disso, quando pega o chicote, sentiu indignação ou também ira?

Provavelmente as duas coisas, porque haviam convertido o Templo em uma cova de ladrões.

A humanização segue trazendo problemas? José Antonio Pagola é um exemplo atual claro disso.

Evidentemente. Há uma resistência não confessada, mas muito forte. Porque o humano é a coisa mais básica da nossa condição, anterior ao cultural, ao religioso, etc. E Deus se identifica com isso. Deus se encontra sobretudo no laico, no comum a todos os seres humanos. Estas foram as grandes preocupações de Jesus. E para isso apelava a Deus. Porque Jesus sabia muito bem que sem fé, sem profundas convicções, a condição humana não é capaz de nada. Porque o desumano predomina em nós. O Pecado Original. Então, me parece que a originalidade do meu livro está em dizer que devemos buscar a Deus, sobretudo, no humano. E que o cristianismo existe para nos humanizarmos.

Isso não quer dizer que negues que Deus era também perfeito?

Não, de jeito nenhum. Estou afirmando: o perfeito Deus se expressa, se revela, na perfeita humanidade. Este é o grande mistério de Jesus.

E uma das questões pendentes da teologia é a perfeita humanidade. Por que se pesquisou pouco nessa área?

É que os teólogos muitas vezes dão a impressão de que conhecem mais a Deus do que o homem. Prova disso é que se perguntam: “Jesus é Deus?”. Se analisam essa pergunta, te dás conta de que no fundo estão dizendo que sabem o que é Deus. E perguntam se isso se pode aplicar a Jesus. Eu perguntaria a quem faz essa pergunta: “Você sabem quem é Deus? O viu, o conhece?”.

Conhecemos Jesus pela história evangélica. Pode-se discutir sobre o valor histórico, mas aí há a realidade de um galileu, trabalhador do século I, que viveu de determinada forma, teve tais convicções, fez tais coisas e morreu de tal maneira; sabemos disso com muita segurança. A partir daí temos que conhecer a Deus.

Seria mais fácil conhecer o Jesus homem do que o Jesus deus?

Claro. A partir do Jesus homem podemos começar a conhecer o Jesus deus. Porque se eu vou diretamente ao deus em si, o que posso saber? Disse-o Aristóteles, é a metafísica dos gregos. A especulação dos intelectuais merece respeito, mas o Evangelho tem mais credibilidade.

Ou seja, o que sabemos de Deus sabemo-lo porque Jesus o disse?

Evidentemente. Por isso, ele é revelador e revelação de Deus. É a imagem de Deus invisível. Ou, como diz a Carta aos Hebreus, “Deus finalmente nos falou em seu Filho”. Por meio de seu filho, que é Jesus.

Uma lacuna que assinalas na cristologia é a cristologia política da Igreja antiga. O que queres dizer com isso?

Me refiro ao cesaropapismo, à influência dos interesses políticos na teologia. Compreende-se que isto tenha acontecido, porque era o tempo da decadência do Império. Aquilo estava naufragando e se agarraram ao que era possível. Como viram que o cristianismo estava crescendo, se agarraram a ele. Mas, claro, não lhes interessava um Deus crucificado. E o problema com o qual se defrontaram foi que o cristianismo pregava que o deus no qual acreditavam era um crucificado. E isso significava um escravo, ou um estrangeiro, ou um subversivo. Como resolveram isso? Criando um deus Todo Poderoso. Um pantocrator, que era um título imperial, que colocaram em Jesus Cristo. Mas o Deus que emerge dos Evangelhos é um Deus misericordioso.

“Todo Poderoso”.

É isso. As pessoas não necessitam de poderes que as dominem, mas compreensão, misericórdia, respeito, tolerância, ajuda para a nossa debilidade. Este seria o melhor serviço que a Igreja poderia prestar.

E isso a igreja do poder, identificada com o Vaticano, pode cumprir? Olhando para o Vaticano dá a sensação de que estamos diante de um grande poder.

Não é apenas uma sensação, é uma realidade. A cúpula da Praça de São Pedro, a imponência de um cardeal revestido com todos os seus ornamentos, são uma expressão simbólica de uma realidade. A Igreja prega constantemente o Evangelho. Há muitas pessoas na Igreja que pregam e vivem e sofrem por causa do Evangelho. Há bispos e sacerdotes e religiosos e religiosas em lugares onde não vai ninguém. Por exemplo, na América Latina. Padres que estão nos piores lugares. Mas isso não é notícia em nenhuma parte. O que é notícia são as grandes reuniões na Praça de São Pedro ou em qualquer lugar para onde o Papa vai para ser recebido como um grande deste mundo, como um chefe de estado.

E as pessoas não são esclarecidas. Porque, como juntar essas imagens com o que se lê no Evangelho? Jesus também deu muita importância a isto. E quando mandou os apóstolos a evangelizar, lhes disse: “Não levem dinheiro, nem bastão, nem sandálias; não levem duas túnicas”. Porque assim se evangeliza. Eu creio que São Francisco de Assis evangelizou mais na sua humildade e na sua simplicidade – ou a boa gente por aí perdida, padres, freiras, leigos... – que estes personagens que aparecem com essa pompa. Muitos ficam desconcertados e a outros causa mal-estar. Mesmo que haja grupos que sentem necessidade disso.

E o pior, do meu ponto de vista, é que essa tendência está crescendo ultimamente. Vamos rumo a uma Igreja da pompa e da liturgia e nos afastamos dos pobres.

Claro, porque a Igreja, à medida que vai perdendo poder no tecido social, se aferra a essas coisas.

Pela perda de influência?

Sim. Já está perdendo influência por toda a Europa; em todas as partes do mundo, à medida que a cultura vai avançando. Por isso, a Igreja se agarra ao integrismo dogmático, à política, etc., pensando que com isso vai compensar as carências em outros âmbitos. Que são os decisivos. Decisivo é o Sermão da Montanha, que determina a convivência entre as pessoas. Por isso, não se transmite, não se contagia a opinião pública, o povo.

Vês alguma saída? Há alguma possibilidade de que esta crescente involução seja reversível? É a Igreja uma instituição sábia? Se soubesse equilibrar, ao passar para um lado, o movimento pendular teria que ir para o centro, para admitir a todos.

Bom, a esperança que temos é que vão esbarrar neste limite, que vão se dar conta de que por aí já não se avança mais. Há muita gente convencida disso, não apenas entre leigos e seculares, mas também entre os bispos. Acontece que nos ambientes clericais há muito medo. E, portanto, falta de liberdade.

Medo da perda do poder?

Sim. E das reprimendas que vêm de Roma. Quando era jesuíta, um bispo me falou com toda a confiança. Estava em uma diocese da Espanha e me contou como são controlados por Roma, mediante um monitum, uma advertência. E me contou o exemplo do cardeal de Barcelona, que morreu há alguns anos, a quem mandavam monitum após monitum por coisas muito estranhas. Até que um dia se cansou, tomou um avião, foi a Roma e perguntou: “O que está acontecendo aqui?”.

Na época de Paulo VI ou de João Paulo II?

Creio que de Paulo VI.

A coisa já começou aí?

A coisa vem de muito tempo atrás, de muito longe. O mundo interno na Cúria romana é um mistério, inclusive para os que estão dentro dela. O caso é que procuraram, e descobriram que aqueles monitums vinham de Roma para o cardeal de Barcelona nada menos que por denúncias de um sacerdote que estava em um hospital psiquiátrico.

Que barbaridade.

Claro. E se em Roma dão atenção a um anônimo ou a uma denúncia de um demente para intimidar um cardeal, há algo que não funciona bem.

Há medo entre os teólogos que estão na fronteira?

Sim.

E autocensura, portanto?

Acontece que muitos de nós estamos conscientes do medo. Há uma afirmação de um psicanalista francês que diz: “A obra-prima do poder consiste em fazer-se amar”. E se o poder é religioso, se faz amar muito mais. Amamos a quem nos controla, a quem nos proíbe, nos ameaça e não nos deixa pensar com liberdade.

E isso impede a rebelião.

Claro. Eu penso, por exemplo, em Santo Antonio de Pádua. Eu recomendaria a muitos bispos e sacerdotes ler seus sermões. Ou o Tratado de Consideratione de São Bernardo. Ou Santa Catarina de Sena. E não estou citando teólogos da Libertação, mas santos dos séculos XII e XIII, místicos da Idade Média.

É esse círculo que rompes quando decides que não há espaço suficiente para respirar (dentro da Companhia de Jesus)?

Sim, isso me influenciou notavelmente para tomar a decisão que tomei e que, aos 78 anos, não é fácil tomar. Tive dificuldades para pensar com liberdade e dizer livremente o que pensava. E falei para mim mesmo: “O pouco tempo de vida que me resta, que não será muito, quero poder pensar e falar com liberdade, até onde me seja possível”.

E isso é algo que se agradece, porque há poucas vozes absolutamente livres, que possam expressar o que sentem. Porque na Igreja se murmura muito, se critica por baixo, mas há poucas pessoas que se atrevem a dizer publicamente, por exemplo, o que tu estás dizendo.

O que eu sinto é que há pessoas que podem se escandalizar. Que vão se irritar ou sentir mal lendo meus livros ou esta entrevista. Mas também penso que nos Evangelhos (Deus me livre de nem sequer querer assemelhar-me ao Senhor) Jesus escandalizou muita gente. E Monsenhor Romero, ou Dom Hélder Câmara, também escandalizaram muita gente. Lembro dessa frase tão conhecida: “Quando eu dou de comer aos pobres, me chamam de santo. Quando eu pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista!” Quer dizer, se escandalizam. Mas eu creio que isto é inevitável.

Mas os simples não se escandalizam. Quem se escandaliza, ou diz que se escandalizar, são os talibans que defendem a Igreja esclerosada.

É verdade. Eu sempre digo uma coisa: Jesus foi extremamente tolerante. Mas foi intolerante com os intolerantes. Essa é a razão da dureza e da firmeza com que trata a escribas e fariseus, segundo os relatos evangélicos.

Uma questão de atualidade. Houve nomeações, uma muito polêmica: a do Monsenhor Munilla para San Sebastián, sem consultar a diocese, etc. Quem manda na Igreja espanhola neste momento?

O cardeal Antonio María Rouco [presidente da Conferência Episcopal Espanhola] tem um poder muito grande.

Sem contrapesos?

Ele os tem, mas estão ocultos, segundo dizem aqueles que conhecem o mundo interno da Conferência Episcopal. Rouco se deu conta de que a linha que ele tomou é bastante similar àquela que domina atualmente no Vaticano. Alguém dirá: “Mas é isso que tem que ser feito”. Mas eu diria: “Cuidado”. Porque essa linha é coincidente com o fundamentalismo religioso mais taxativo, e com a direita política.

Eu respeito o fato de que querem seguir essa linha, são livres para fazê-lo. Mas que não queiram impô-la a todos. Porque há muitas pessoas de uma esquerda saudável, de uma postura mais respeitosa, liberal e tolerante do ponto de vista religioso, que são bons cristãos. Mas na Espanha se tem a impressão de que, como não te identificas com a direita para além da qual já está a parede, como dizia alguém outro dia, não podes identificar-te com Roma.

E isso inclusive fecha o “mercado religioso”, o potencial. Se a Igreja somos todos, sejamos todos, não?

Uma das esperanças que tenho é que se vejam cada dia mais angustiados economicamente. Porque a cruz vai colocar cada vez menos gente na casinha da declaração de renda, porque cada vez menos gente vai à Igreja e, portanto, as doações diminuem vertiginosamente. E se verão numa situação em que não lhes resta outro remédio – e é duro e desagradável dizê-lo – que rever muitas coisas.

Deveriam rever muitas coisas por esgotamento? O celibato dos padres, a ordenação de mulheres, que me parece...

...vidente. Começando porque Cristo não ordenou mulheres, mas tampouco homens. Cristo não ordenou ninguém. Outro dia, no blog de Rebelión Digital, coloquei uma entrada sobre isso: a ordem não é bíblica nem evangélica, é uma instituição política do Império. Havia três ordens: a dos cavaleiros, dos senadores e da plebe. E isso foi tomado pelo clero no século III. Dizer que Jesus ordenou os apóstolos sacerdotes é um despropósito teológico e histórico. Portanto, por que não vão poder ordenar mulheres para sacerdotes? O Concílio diz que o povo cristão tem direito a que seja atendido com a pregação da Palavra e a administração dos sacramentos pela Hierarquia. Hoje, mais da metade das paróquias do mundo não tem pároco, porque não há sacerdotes suficientes. Acima do direito da Igreja de impor sacerdotes célibes ou só homens, está o direito dos fiéis de serem atendidos. Porque a Comunidade está em primeiro lugar.

Outro assunto que o cardeal Rouco trouxe novamente à pauta são as aulas de religião. Diz que estão marginalizadas, que os acordos Igreja-Estado não estão sendo cumpridos, que não há alternativa... As aulas de religião nas escolas públicas devem continuar?

Do jeito que a questão está colocada, as aulas de religião (para isso é preciso ver os livros e manuais usados pelos colégios, censurados pela Conferência Episcopal), creio que também teria que haver aulas de religião para os muçulmanos, para os budistas, etc. Ou seja, se a Constituição diz que as crenças religiosas são livres e que o Estado não é confessional, não pode converter-se em um assunto tão importante como é o ensino. A Igreja quer obrigar o Estado a ensinar religião porque ela se sente incapaz de transmiti-la aos jovens. Então, são adoutrinados no colégio.

Que opinião tem sobre o Papa Ratzinger?

E primeiro lugar, não deveríamos nunca esquecer que a Igreja é uma instituição de mais de um bilhão de crentes. E, para governá-los todos, colocar um homem com essa idade, com um cargo vitalício que pode prolongar-se como nos últimos papados, como João Paulo II, que, devido à idade e à saúde, não podia mais governar, em uma instituição de poder centralizado, nenhuma outra instituição no mundo o faria. Nem o faz.

A igreja lança mão do Espírito Santo quando lhe convém. Caso contrário, oculta padres pederastas. O Espírito Santo também inspira isso? Vamos ser coerentes. Eu creio que o Papa Ratzinger foi um grande teólogo, mas que já não está, devido à idade e à saúde, em condições de ocupar o cargo que ocupa, dado o sistema organizativo que a Igreja tem, de um poder concentrado todo em um só homem.

Vês que a Igreja é capaz de mudar o sistema? Por exemplo, apresentar a renúncia, dar passagem a outros...

Não creio que o faça.

Não é nem o tempo nem a pessoa?

Não. Pode nos preparar uma bela surpresa no dia em que menos esperamos, mas não creio. A mudança na Igreja não virá de cima. A renovação também não virá pelos movimentos antieclesiásticos (como os Pobres de Lyon e todos aqueles grupos da Idade Média). Por aí, também não. A mudança na Igreja tem que vir em comunhão com a Igreja.

Reivindicando a partir de dentro?

Todos se tornando responsáveis por sua caminhada. Na paróquia e nas dioceses. Acontece que as pessoas foram educadas para ficarem caladas. Para que vão à missa no domingo e digam que o resto é “coisa de padres”.

E os movimentos mais reivindicativos dentro da Igreja são estigmatizados, taxados de “vermelhos”, marginalizados...

Sim, complica-se a vida deles. Não são ouvidos. Eu gostaria que os bispos em cada diocese recebessem cada movimento como recebem os kikos [referência a Kiko Argüello, fundador do Caminho Neocatecumenal]. Me parece bem que sejam recebidos com entusiasmo, porque são pessoas de muita generosidade religiosa e de muita entrega, que merecem todo o respeito. Mas os bispos não deveriam esquecer que também há muitas pessoas que, por motivos que nem eles mesmos se atrevem a confessar, estão aí, marginalizados. Não são nem ouvidos nem recebidos. Tenhamos magnanimidade de coração. Jesus comia com os pecadores, recebia pessoas mais marginalizadas e pior vistas, colocava um samaritano como modelo, acolhia um centurião romano, não fazia diferenças...

E deixava as 99 [ovelhas] para ir atrás da desgarrada.

Claro. Se perdia uma, ia em busca dela. E agora, a impressão que se tem é que quem está perdido é o bispo.

Mas, então, “largo me lo fiáis” [que prazo me dais]. Há esperança de uma mudança real próxima?

A curto prazo, não. Seria preciso convocar um novo Concílio, mas hoje, assim como é a política de nomeações de bispos de Bento XVI, e assim como foi a de João Paulo II, daria na mesma. Porque na maioria das dioceses colocaram homens orientados numa linha que um concílio não poderia mudar. Seria preciso pensá-la.

João XXIII o fez numa época tão difícil ou mais que a nossa.

É verdade, mas há uma diferença. Pio XII foi um Papa de uma mentalidade muito tradicional e conservadora, que tentou degolar os movimentos renovadores, por exemplo, a Nouvelle Teologie, dos anos 1940-50. E aqueles grandes teólogos, como Karl Rahner, foram condenados. Mas Pio XII, sendo tão conservador como era, não teve medo de nomear grandes personalidades como bispos e cardeais. E por isso o Concílio foi possível. Porque não deu tempo para João XXIII renovar o episcopado nem de mudá-lo. O Concílio veio na sequência. Entretanto, os dois últimos papas tiveram esse medo.

Preferem nomear bispos mais facilmente controláveis?

Preferem homens submissos.

E Jesus nunca foi um submisso.

Não! Também não foi um revolucionário alegremente, nem muito menos perigoso. Andava sempre com os últimos. Foi um homem de uma liberdade absoluta e surpreendente.

Eu lembro da passagem do Evangelho de Lucas em que conta que Pilatos havia degolado alguns galileus que estavam oferecendo um sacrifício no templo ou num lugar sagrado. Então, certa ocasião queriam colocar Jesus à prova, e Jesus nada disse. O que disse foi: “Se não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo”.

Jesus interpelava à conversão de cada um. A conversão aos valores do Sermão da Montanha e de suas parábolas. Que os últimos são os primeiros, que os frágeis, as crianças, as mulheres, os pecadores, os excluídos e os indefesos são os que mais necessitam de cuidados.

Uma Igreja assim, teria hoje um poder e uma força incríveis. E o que me dá pena e às vezes coragem é que se agarram a poderes deste mundo.

José María, foi um prazer. Quem quiser aprofundar o seu pensamento teológico, pode comprar o seu ensaio de cristologia. E quem quiser, pode diariamente acessar o seu blog Teología sin censura, no sítio do Religión Digital.

17/12/2009

Antônio Cechin e Jacques Alfonsin


Os nossos mártires da caminhada


Artigo de Antonio Cechin, irmão marista e militante dos movimentos sociais; e, Jacques Távora Alfonsin,  advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.
Fonte: UNISINOS


A UNISINOS está celebrando, neste ano de 2009, o 20° aniversário do martírio de uma leva de militantes cristãos da Universidade Centro Americana (UCA). São os padres Jesuítas Ignácio Ellacuria, Segundo Montes, Ignácio Martín-Baró, Amando Lopez, Juan Ramón Moreno e Joaquín López y López, e a cozinheira da residência Elza Julia Ramos, juntamente com sua filha Celina, de 15 anos. A Comunidade inteira foi chacinada pelo governo salvadorenho de maneira brutal, no dia 16 de novembro de 1989. Fazia parte ainda dessa comunidade de Jesuítas o teólogo Jon Sobrino que, por se encontrar em viagem na Tailândia, sobreviveu ao massacre.

Quando iniciamos de maneira concreta a opção pelos pobres, propugnada no Brasil e depois em toda a América Latina por Dom Hélder Câmara, recuperamos a palavra Caminhada. Embora eminentemente bíblica, perdera-se na poeira dos tempos. O Homem Jesus de Nazaré se apresentara como o Caminho, a Verdade e a Vida. Na Igreja dos primórdios, descrita nos Atos dos Apóstolos, os cristãos, especialmente durante as perseguições implacáveis que lhes infligiam os imperadores romanos, se declaravam Seguidores do Caminho, em vez de “Seguidores de Jesus Cristo” a fim de não correrem riscos desnecessários de serem presos e condenados à morte.

Nada melhor que a palavra Caminhada para expressar o que é a inserção: ir para o meio dos pobres, nas periferias dos campos e das cidades e tomar como ponto de partida para qualquer trabalho, a situação bem concreta em que se encontram os excluídos, e junto com eles, desencadear um processo de mudança, passo a passo, rumo a uma fé adulta e a uma autêntica cidadania, criando assim Comunidades Eclesiais de Base. É o novo jeito de ser Igreja, outra expressão nova, inventada pelo Cardeal Aloísio Lorscheider, para designar a base da nova Igreja e ao mesmo tempo a base da nova sociedade com que sonhamos.

Dom Pedro Casaldáliga, devotíssimo de nossos mártires, erigiu em sua diocese, o santuário dos Mártires da Caminhada. na cidade de Ribeirão Bonito, no lugar exato em que sofreu o martírio outro jesuíta, o padre Burnier, De então a esta parte, todos os que sofrem o martírio pela justiça, são os mártires da CAMINHADA ou também mártires das Comunidades Eclesiais de Base, ou da Teologia da Libertação, ou mesmo dos Movimentos Populares.

O mesmo arcebispo Dom Hélder Câmara, por ocasião do Concílio Ecumênico Vaticano II, lutou bravamente para que a Igreja, como um todo, passasse a ser, mais do que Igreja dos pobres, uma Igreja pobre. Enquanto o Concílio encerrava suas atividades na Praça São Pedro no Vaticano, em solenidade transmitida pela mídia do mundo inteiro, Dom Hélder, acompanhado de várias dezenas de bispos, foi para debaixo da terra, nas catacumbas romanas. Com os Irmãos bispos que o acompanharam, celebrou o chamado Pacto das Catacumbas. Esse gesto tinha também o significado de uma reconciliação da Igreja de hoje com a Igreja das Catacumbas, que foi também a da CAMINHADA inicial, com seus milhares de mártires. Estava Dom Hélder profetizando também que o pós-concílio para nossa Igreja Latino-americana seria igualzinha àquela, com nova leva de mártires. Ontem eram os mártires por ódio explícito à fé cristã e hoje mártires pela justiça, em prol da libertação dos irmãos..

Em seus sermões e homilias, Dom Hélder costumava se referir ao martírio como “coisa fina, mas que é para poucos, pois Deus reserva esse privilégio só para pessoas muito especiais.” Dom Pedro Casaldáliga costuma dizer: “uma Comunidade que esquece seus mártires, não merece continuar existindo!” O Mestre Jesus mostrou que o ponto mais alto a que pode chegar um discípulo seu “é testemunhar o maior amor possível, dando a própria vida em favor dos outros”.

Em Roma, no começo da Igreja, quando tombasse algum cristão, vítima dos imperadores que se tinham na conta de deuses, os irmãos na fé imediatamente resgatavam o corpo do mártir, em geral à noite, o sepultavam com todas as honras nas catacumbas, invocando-o imediatamente como santo protetor. A fé lhes dizia que todo mártir era santo, sem necessidade de canonização oficial por parte da Igreja, convictos que estavam, de que Jesus ainda em vida, já canonizara todos os que o imitassem dando a própria vida em favor do próximo. Não tinham nenhum escrúpulo em transformar a pedra que cobria o tumulo em pedra de altar sobre a qual celebravam a missa. Até o Vaticano II, portanto durante 20 séculos, não se podia rezar missa sem ter a chamada pedra “ara” (de altar) dentro da qual tinha que haver uma relíquia de mártir.

O que é de todo estranho em nossa Igreja Católica de hoje, é que não tenhamos nenhum mártir da teologia da libertação reconhecido oficialmente como santo, pela cúpula da Igreja. O direito canônico continua dizendo que só há martírio, com direito a canonização imediata, quando a morte foi infligida por explícito ódio à fé. Ora, não raro, quem mata nossos irmãos mártires da caminhada, são governos, militares, ou pessoas que até fazem questão de se afirmar como cristãos. Nada estranho que isso aconteça, porque o próprio Senhor Jesus Cristo nos preveniu quando disse: “Haverá pessoas que vos hão de matar pensando fazer um bem.

Acontece que o martírio pela Justiça está exaltado em todas as páginas da Bíblia. Por isso, nosso bispo Casaldáliga, sem escrúpulo nenhum, costuma chamar o bispo Romero, mártir centro-americano, de San Romero de América. E como Roma se nega até hoje em canonizar os mártires da Caminhada, nosso bispo-profeta, na Agenda Latino-Americana com edição anual, no calendário de cada dia, não faz preceder a nenhum nome o designativo são ou santo.

Já que estamos falando em mártires da Caminhada, ou mártires da Libertação, ou mártires pela Justiça, nossa Igreja que está no Rio Grande do Sul, nesse ano quatrocentão do início das Missões Jesuíticas, está com uma dívida para com o povo guarani e para com os pobres do Rio Grande do Sul. A consciência popular, tanto dos índios quanto do povão, canonizou Sepé Tiaraju, logo que foi abatido pelas armas assassinas dos exércitos de Espanha e Portugal no ano de 1756. Assim como Santo Estevão foi o protomártir cristão, São Sepé é o nosso protomártir pela Justiça, lutando bravamente em prol de Justiça e Paz para seus irmãos guarani. Nossos movimentos populares que lutam por Terra, Saúde, Habitação, Educação, de há muito viram em São Sepé, o mártir por excelência a indicar o caminho das transformações sociais de que todos estamos necessitados. Ele é “nosso Facho de Luz” como bem significa a palavra Sepé.

Na falta de beatificação ou canonização oficial de nossos mártires da Caminhada, por parte do Vaticano, corretíssimo está nosso bispo-profeta Dom Pedro Casaldáliga quando, todos os anos nos fornece sua “Agenda Latino-Americana” aonde no calendário de todos os dias nos fornece o nome dos santos, tanto dos antigos quanto dos da Caminhada. Na frente de todos nenhum adjetivo. Nem são, nem santo, a fim de marcar absoluta igualdade em santidade. Por exemplo, no dia 15 de dezembro, lá está: Valeriano e em 1975, Daniel Bombara, membro da JUC, mártir dos universitários comprometidos com os pobres da Argentina. Hoje, dia 16 de dezembro: Adelaide e em 1984, Eloy Ferreira da Silva, líder sindical, São Francisco, Minas Gerais. Em 1991, indígenas mártires do Cauca, Colômbia.

14/12/2009

Irmã beneditina quer imepdir vacina contra a gripe A


A irmã beneditina Teresa Forcades, doutora em medicina, começou um movimento civil na Internet para impedir que a vacina contra a gripe AH1N1 seja obrigatória e contra a gestão da doença. Em um vídeo que ela postou na rede, essa irmã faz um chamado à participação popular para que ninguém possa ser forçado a ser vacinado na Espanha e para que aqueles que sejam vacinados não percam seu direito a exigir responsabilidades se sofrerem efeitos colaterais. A reportagem é de Gaspar Hernández, publicada no sítio Religión Digital e no jornal catalão El Periódico, 08-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Teresa Forcades é autora de "Los crímenes de las grandes compañías farmacéuticas", um livro em que denuncia como o poder político e econômico que as grandes empresas farmacêuticas adquiriram serve-lhes para garantir enormes benefícios econômicos, mesmo às custas da saúde da população.

A freira e doutora explica que a vacina contra a gripe AH1N1 é obrigatória por causa da declaração de pandemia por parte da Organização Mundial da Saúde, já que, segundo lembra, desde 2005 a OMS pode dar ordens aos governos sobre vacinas em casos de pandemias.

Forcades explica em seu vídeo (clique aqui para assistir, em espanhol) que "a nova gripe"não é nova porque é do tipo A, nem por ser do subtipo H1N1. A única coisa que é nova é pertencer à cepa S-OIV. Ela lembra que a epidemia de gripe de 1918 foi do tipo AH1N1 e que, desde 1977, os vírus AH1N1 fazem parte da temporada de gripe de cada ano.

A religiosa destaca que, desde que essa enfermidade começou a ser detectada em abril de 2009 e até o dia 15 de setembro de 2009, morreram 137 pessoas na Europa e 3.559 em todo o mundo, quando, por sua vez, por causa da gripe estacional, falecem entre 40.000 e 220.000 pessoas.

Multiplicação de efeitos secundários

A doutora também alerta que a maioria dos laboratórios projetam vacinas em duas doses, que devem se somar à vacina da gripe estacional, algo que nunca se fez e que multiplica por três os possíveis efeitos secundários.

Ela também revela que os laboratórios que fazem vacinas usam coadjuvantes muito potentes para estimular o sistema imunitário, e que a vacina que o laboratório Glaxo-Smith-Kline está fabricando contém um, denominado AS03, que multiplica por dez a resposta imunitária, o que poderia provocar doenças autoimunitárias graves ao cabo de um tempo.

As empresas farmacêuticas, segundo essa freira, estão exigindo que os Estados firmem acordos ed imunidade para que, em caso de as vacinas terem mais efeitos secundários dos previstos, a indústria fique isenta de toda responsabilidade.

Eis a entrevista.

O que faz uma freira falando na Internet sobre os perigos da vacina da gripe A?

Nossa regra prescreve cinco horas de oração e seis de trabalho. Ora et labora. Eu dedico as horas de trabalhas em parte à pesquisa médica. Sou doutora em medicina e, em 2006, publiquei o estudo "Los crímenes de las grandes compañías farmacéuticas".

Quando decidiu que tinha que falar sobre a gripe A?

Em maio deste ano, me pediram uma conferência sobre a vacina do papiloma e fiquei muito impactada pela falta de base científica das recomendações oficiais. Ao final de alguns dias, falei com na TV-3 sobre essa vacina e, a partir daí, fui recebendo pedidos para que opinasse sobre a vacina da gripe A.

A Organização Mundial da Saúde não merece confiança?

Não entendo os motivos que levaram a OMS a atuar da maneira absurda que está agindo.

Absurda?

Sim. Em maio passado, a OMS mudou a definição oficial de pandemia: passou de uma definição lógica (uma pandemia é uma infecção de alcance global e de grande mortalidade) para uma definição ilógica (uma pandemia é uma infecção de alcance global).

Que consequências tem essa mudança?

Segundo a nova definição de pandemia, a gripe de cada ano cumpre com acréscimo os requisitos para ser pandemia. Vamos declarar o mundo em alerta sanitário a cada outono? Além de absurdo do ponto de vista científico, isso tem graves consequências financeiras e políticas.

A senhora não confia na vacina. Por quê?

Diferentemente da vacina da gripe de cada ano, a vacina da gripe A contém substâncias coadjuvantes tão potentes que podem chegar a multiplicar por dez a resposta imunitária normal. Além disso, ela é recomendada em duas doses, que devem ser recebidas após a injeção da gripe estacional, que também contém coadjuvantes, mesmo que de menor potência. Nunca antes se injetaram essas substâncias três vezes seguidas na população geral, começando por crianças, doentes crônicos e grávidas.

Que efeitos pode provocar?

A estimulação artificial do sistema imunitário pode provocar doenças autoimunitárias. O mesmo prospecto de duas das vacinas da gripe A que foram aprovadas na Europa (Pandemrix e Focetra) indica que se espera que, de cada milhão de pessoas vacinadas, 99 podem experimentar uma doença autoimunitária conhecida como paralisia ascendente de Guillain-Barré.

Se isso acontecer, as indústrias farmacêuticas irão receber denúncias...

Mas nos Estados Unidos já foi aprovado um decreto que exime os políticos e as indústrias farmacêuticas de toda responsabilidade.

A senhora sugere que as indústrias farmacêuticas trabalharam irresponsavelmente?

O que fizeram foi trabalhar a favor de seus interesses.

Pode-se obrigar alguém a se vacinar?

No ano 2007, a OMS aprovou uma normativa que estabelece uma exceção. Em todos os casos, exceto um, a OMS emite recomendações e só em um caso ela pode dar ordens que invalidem a soberania dos países membros.

Esse caso é o da pandemia.

Exato. Em caso de pandemia, a OMS pode obrigar por lei que os países membros vacinem uma parte de sua população ou toda ela. Os governos desses países estariam obrigados, então, a impôr multas ou outras sanções aos cidadãos que se neguem a se vacinar.

A senhora acredita em conspirações mundiais?

Acredito que há interesses em jogo que não são o bem da população. Como justificar o dinheiro investido na aquisição de vacinas, se a gripe A é mais benigna do que a gripe de cada ano? Gastar tanto dinheiro em vacinas e em medidas profiláticas sem a base científica suficiente é um escândalo, e devem ser pedidas responsabilidades.

O que as suas coirmãs dizem sobre o vídeo e suas afirmações?

Uma irmã de quase 90 anos me objetou que o tema da gripe A era muito sério e que eu não podia falar contra a vacina sem ter argumentos muito bem fundamentados.

E?

Após ler meu informe, ela se aproximou de mim na saída da oração de Vésperas e simplesmente me disse: "Compreendido".

A senhora não tem medo?

Às vezes.

Reza muito?

Tanto quanto posso.

03/12/2009

Antonio Cechin e Jacques Távora Alfonsin


Entre o Menino Jesus e o Papai Noel

"Em que lugar, hoje, Maria e José obteriam acolhida para o parto iminente do filho esperado? Se estivesse nascendo agora, com qual criança mais se assemelharia o Menino Jesus? Às vésperas do seu aniversário, parece de todo oportuno procurar-se responder tais perguntas, já que o natal é a celebração de um nascimento que mudou a história da humanidade toda", escrevem Antônio Cechin e Jacques Távora Alfonsin, lembrando o Natal que se aproxima. Cechin é irmão marista, miltante dos movimentos sociais. Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.
Fonte: UNISINOS


Em que lugar, hoje, Maria e José obteriam acolhida para o parto iminente do filho esperado? Se estivesse nascendo agora, com qual criança mais se assemelharia o Menino Jesus? Às vésperas do seu aniversário, parece de todo oportuno procurar-se responder tais perguntas, já que o natal é a celebração de um nascimento que mudou a história da humanidade toda.

Pela sua conhecida pobreza, a mãe o pai procurariam, quem sabe, a emergência de algum hospital que atenda pelo SUS. Ansiosos, são recebidos no balcão de informações, em meio a um grupo grande de gente doente e triste, cabeça baixa, esperando chamada, com uma senha na mão.

Começa, mais de dois mil anos depois, a histórica desculpa: “Não. Lamentamos. Vocês terão de procurar outro hospital. Vejam que até os nossos corredores estão lotados. Não temos um leito sequer, disponível, nem médicos e enfermeiras suficientes para tanta gente.”

Sem o dinheiro que, como se sabe, dificilmente deixa de abrir qualquer porta, batem na sacristia de uma Igreja. “Não. Aqui não se pode hospedar ninguém. A gente batiza, reza missa todos os domingos, faz a catequese da primeira eucaristia, celebra casamentos, exéquias de pessoas falecidas. Uma vez por mês reunimos a comunidade num almoço. É verdade que temos hospitais, também, mas eles são obrigados a cobrar internações porque os subsídios públicos nunca chegam em dia e os atrasos estão levando todos eles à falência.”

A preocupação e a angústia crescendo, José meio desesperado, Maria sentindo as primeiras contrações, resolvem tomar o rumo da periferia urbana para, quem sabe, em algum galpão abandonado, a mulher consiga parir, quando menos, abrigada.

Lua que se acende e apaga no andar das nuvens, por ela conseguem entrever algumas luzes, ouvir algumas vozes numa corrente de barracas de lona preta estendida na beira da estrada. Denunciados pelo latido dos cachorros, chegam muito envergonhados numa delas. Um casal tão pobre como os recém chegados, levanta o candeeiro para identificá-los e pede para eles entrarem imediatamente, pois já adivinhou que a urgência não admite outro gesto.

Maria, já sem tempo, consegue se deitar num acolchoado velho que, no chão da barraca, serve de cama para o casal. Três crianças, duas meninas e um menino, dormem profundamente, recolhidas num canto mais abrigado. Os visitantes mal conseguem se apresentar. “Eu sou Laurindo. Prazer.” “Eu sou Joana, prazer”. Juntamente com José, passam a se movimentar ligeiro, como se tivessem ensaiado, pois a coisa toda não pode acabar mal. Os homens reavivam brasas que já estavam agonizando num fogo de chão, achegam gravetos que sobraram do uso anterior que cozinhou só feijão, por sinal queimado, pelo cheiro que ainda se sente. A fumaça toma conta do ambiente e faz arder os olhos de quem espera, agora, numa ansiedade do tipo que afoga. A mulher conseguiu ferver água e escaldar uma faca de cozinha, à vista de Maria, mal coberta por um lençol surpreendentemente limpo que uma vizinha, avisada do caso, lhe alcançou.

O homenzinho se livrou do ventre materno, separado pela faca de Dona Joana, a um choro alto e forte, de quem sorve o primeiro ar e reclama a primeira mamada.

Uma alegria aliviada se desata. Serena, se apossa de todos. Os ocupantes das outras barracas, tudo gente sem-terra e sem-teto, que também ainda não encontrou lugar para ficar, como o pai e a mãe do recém nascido, acorrem pressurosos em ajudar. Laurindo e Joana honrados, Maria e José confortados, há um que de solidariedade amorosa, feita de palavras e gestos, todo o mundo querendo repartir o pouco que tem com o casal de viajantes que festeja a chegada do primeiro filho.

No outro lado da cidade, muito longe dali, um foguetório faz-se ouvir, a noite se enche de sons, risos, as ruas, as árvores e os edifícios cobertos por milhares de pequenas lâmpadas coloridas, piscando, são cercados por gente que troca presentes, se abraça, anda atrás de um papai noel arquejante, vermelho na roupa e no rosto, o cabelo e a barba branca artificiais mal dependurados num gorro já meio caído, pelo peso de um saco que ele balança nas costas, cansado de representar, apenas, um papel.

Comparadas essas pessoas, comparados esses lugares, será aqui, ou lá, que o Menino Jesus nasceria hoje? Entre a pobreza e a escassez de lá, ou a fartura e até o desperdício daqui? Por tudo o que a criança viveu e ensinou depois, soube-se que ela acabou sendo perseguida, tanto pelo poder político, como pelo econômico e, até, o religioso. Acabou morrendo numa cruz, resultado de um julgamento no qual nem o direito de defesa lhe foi garantido.

A semelhança do seu nascimento e da sua vida com o nascimento numa barraca e a luta que empreendeu depois em favor das/os pobres, não nos deixa duvidar de que, hoje como ontem, são milhares as crianças que nascem nas condições miseráveis nas quais nasceu o Menino Jesus, e são muitas/os as/os adultas/os sem-terra e sem-teto que morrem por defender a mesma Justiça que Ele defendeu.

Entre a devoção que se presta ao Papai Noel e ao Menino Jesus, então, há uma distância que beira ao escárnio. Substituir esse por aquele, no natal, é como dar-se preferência às coisas, às mercadorias, aos símbolos do consumo, do que às pessoas, aquelas que conosco vivem, especialmente as que, como a Tal Criança, é necessitada e pobre.

Há um tal poder de repressão a esse povo pobre, do qual Ela fazia parte, que até as farmácias caseiras e as escolas itinerantes que, por força de sua própria condição humana, ele é forçado a criar, em defesa de sua dignidade, são destruídas pela perseguição que contra ele movem forças públicas e privadas. Não raro, como aconteceu recentemente aqui no Rio Grande do Sul, algum/a dos/das seus/suas integrantes derrama o seu sangue sobre a terra que lhe é negada, como negada foi a hospedagem “normal” para José e Maria.

Como Jesus Cristo, esse também é um povo crucificado. Em vez de andar atrás de um velho ridículo, então, o natal nos convida mesmo é a descer esse povo da cruz, incorporar o seu sofrimento, servindo-o ao ponto de enxugar-lhe os pés, assim seguindo o exemplo de Quem nasceu, viveu, amou e morreu por ele.