20/12/2009

Entrevista - José Maria Castillo

O poder da Igreja de hoje me dá pena e coragem, diz teólogo espanhol

José María Castillo é um dos grandes da Teologia na Espanha e no mundo. É um teólogo de fibra, que sabe combinar perfeitamente o ensaio profundo, o livro sério, com a divulgação. Por isso, se converteu em um teólogo de referência, tanto a nível clerical como a nível das bases. Há alguns anos deixou a Companhia de Jesus. Dizia, naquela época, que para se sentir mais livre. É um teólogo, como todos os que estão em campos de fronteira, perseguidos pela Congregação para a Doutrina da Fé (com vários monitums [advertências] contra ele), mas que segue na luta. Não se queimou. É daqueles que seguem dando o pão de seus livros às pessoas. Por exemplo, seu novo ensaio editado pela Trota: La humanización de Dios. A entrevista é de José Manuel Vidal e está publicada no sítio espanhol Religión Digital, 09-12-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS


José María, bom-dia. É um prazer que estejas conosco.

Muito prazer, obrigado.

É um duplo prazer, porque contamos também com teu blog, que dignifica ainda mais a nossa página.

Isso para mim também é um presente. Me sinto bem à vontade, e o considero uma generosidade da parte de vocês.

Qual é a tese fundamental do teu novo livro?

Creio que a tese está suficientemente indicada no título. Deus, na história das religiões, é considerado como um ser transcendente e, portanto, distante e inalcançável. Em uma ordem completamente diferente e inacessível ao ser humano. Portanto, as religiões ao máximo que chegam é falar da relação do homem com Deus. A originalidade do cristianismo está em que fala da união do homem com Deus. E a partir desse momento é preciso se perguntar se é o homem que deve ser elevado à condição divina, ou se Deus desce e se identifica com a condição humana.

Como o texto dos Filipenses?

Claro, porque não há um termo médio. É preciso optar por um ou outro. É verdade que a definição dogmática do Concílio de Calcedônia, no século V, optou por uma solução que parecia intermediária: dizer que Deus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, mas que Nele há uma única pessoa que é divina. Dessa maneira, sem dizê-lo, está dizendo que é mais Deus que homem.

E pretendes dar a volta?

Pretendo simplesmente tomar como ponto de partida um mistério central do cristianismo: a Encarnação. Que Deus se faz carne, como diz o Novo Testamento. E fazer-se carne é descer e identificar-se com o mais profundamente humano. Deste ponto de vista, temos todo o direito do mundo para dizer que Deus, em Jesus, se humanizou. E, portanto, se identifica com tudo o que é humano. Ao extremo de poder dizer, no famoso texto do Juízo Final: “O que fizestes a um destes pequeninos foi a mim que fizestes”.

Mas isso também é doutrina da Igreja?

Isso está no Evangelho, e por isso a Igreja tem o dever sagrado de ensiná-lo, defendê-lo e explicá-lo.

E no Credo.

Sim, mas acontece que o Credo, tanto em sua fórmula curta (do Concílio de Nicéia) como na mais longa (do I Concílio de Constantinopla) foi redigido em condições marcadas por uma forte influência política. Dos imperadores. Não esqueçamos que os quatro primeiros Concílios da Igreja não foram convocados pelos Papas, mas pelos imperadores. Foram pagos, aprovados e promulgados por eles. E que até Teodósio I (final do século IV) utilizavam o título de Sumo Pontífice.

Ou seja, que a nossa fé descansa sobre os imperadores romanos?

Não diria tanto, mas que os imperadores tiveram uma influência determinante na formulação daqueles Concílios. A ponto de que um dos grandes temas que se estuda sobre aqueles tempos é o cesaropapismo, que foi o fato da intervenção dos imperadores na teologia, impondo seus critérios e seus pontos de vista. Eu, no livro, dou o exemplo muito eloquente e atual: imaginemos que Obama convoque um concílio ecumênico na Casa Branca. Que reúna ali todos os bispos do mundo, custeie sua estadia, aprove os documentos e os promulgue. Muita gente ficaria com reservas.

Evidentemente.

É verdade que não se pode transpor o século IV ou V para o século XXI, porque seria uma injustiça histórica e uma ingenuidade pedagógica. Mas não esqueçamos que há grandes paralelismos entre uma coisa e outra.

Então, esse cesaropapismo arrastou a definição de Cristo mais para o divino, em detrimento da parte humana.

Efetivamente. O empenho de Nicéia contra o imperador Constantino foi afirmar como dogma a identidade de substância, de ser, de Jesus Cristo com Deus, com o Pai. Nesse sentido, se salvou a divindade de Cristo, ao afirmar que a sua natureza era a mesma que a do Pai. Mas se carregou tanto a mão nos séculos seguintes no aspecto da divindade (e aqui aparecem os Padres da Igreja), que aquilo terminou em que no Concílio de Calcedônia o que se teve que defender foi a humanidade. Porque o que o monofisismo do monge Êutiques defendia era que Jesus não era um ser humano como os outros. Divino, mas não humano. E isso a Igreja também condenou.

Acontece que a Igreja segue tendo um monofisismo eterno oculto, dissimulado. Há muitas pessoas que estão convencidas de que Jesus Cristo é Deus. Santo Tomás, na Suma Teológica, se pergunta se Jesus fazia as necessidades humanas.

Se ia ao banheiro como qualquer ser humano.

Claro. Um velho professor meu dizia que isso que Santo Tomás disse é uma estupidez, porque Jesus era um ser humano, e tudo o que é humano é próprio de Jesus.

Dá a sensação de que a Igreja tem certa vergonha dessa realidade. Não só esse tema, mas o do desejo sexual de Cristo. Teve ou não desejos sexuais?

Se isso é humano, teve que tê-los.

E por que esse medo de reconhecê-lo?

Porque há certas constantes na experiência humana. Nos séculos I, II e III era o agnosticismo, que antepunha o divino ao humano. Espírito-matéria, sobrenatural-natural. Depois, essa tendência foi reaparecendo de diferentes formas. No fundamentalismo e nas tendências mais liberais.

A Igreja continua tendo medo da humanização de Cristo?

E não apenas de Cristo, que era plenamente humano, mas de Deus. A chave está na pergunta de Felipe na Última Ceia, quando disse a Jesus: “Senhor, mostra-nos o Pai”. Jesus lhe responde: “Felipe, ainda não me conheces?”. Se eu fosse Felipe lhe teria dito: “Sim, eu te conheço. O que quero é conhecer Deus”. Mas é que Jesus acrescentou, sem que esta intervenção fizesse falta: “Aquele que me vê, vê o Pai”.

Ver Jesus era ver Deus. Ouvi-lo era ouvir Deus. Tocar Jesus era tocar Deus. Portanto, desde o momento em que Deus se humaniza, se funde com a carne. Com o mais frágil da condição humana.

Assumindo todas as consequências.

Toda a fraqueza, menos o pecado. Menos a maldade, que é desumana, desumanização. Assume tudo o que é plenamente humano.

Mas também teve que se zangar.

Claro que sim. Na sinagoga, no episódio do coxo, perguntou se a religião permitia salvar ou condenar uma vida. Aqueles que queriam colocá-lo à prova se calaram, e o Evangelho de Marcos diz que Jesus lhes dirigiu um olhar de ira. Ira, não indignação!

Na famosa cena do Templo, que se coloca às vezes como exemplo disso, quando pega o chicote, sentiu indignação ou também ira?

Provavelmente as duas coisas, porque haviam convertido o Templo em uma cova de ladrões.

A humanização segue trazendo problemas? José Antonio Pagola é um exemplo atual claro disso.

Evidentemente. Há uma resistência não confessada, mas muito forte. Porque o humano é a coisa mais básica da nossa condição, anterior ao cultural, ao religioso, etc. E Deus se identifica com isso. Deus se encontra sobretudo no laico, no comum a todos os seres humanos. Estas foram as grandes preocupações de Jesus. E para isso apelava a Deus. Porque Jesus sabia muito bem que sem fé, sem profundas convicções, a condição humana não é capaz de nada. Porque o desumano predomina em nós. O Pecado Original. Então, me parece que a originalidade do meu livro está em dizer que devemos buscar a Deus, sobretudo, no humano. E que o cristianismo existe para nos humanizarmos.

Isso não quer dizer que negues que Deus era também perfeito?

Não, de jeito nenhum. Estou afirmando: o perfeito Deus se expressa, se revela, na perfeita humanidade. Este é o grande mistério de Jesus.

E uma das questões pendentes da teologia é a perfeita humanidade. Por que se pesquisou pouco nessa área?

É que os teólogos muitas vezes dão a impressão de que conhecem mais a Deus do que o homem. Prova disso é que se perguntam: “Jesus é Deus?”. Se analisam essa pergunta, te dás conta de que no fundo estão dizendo que sabem o que é Deus. E perguntam se isso se pode aplicar a Jesus. Eu perguntaria a quem faz essa pergunta: “Você sabem quem é Deus? O viu, o conhece?”.

Conhecemos Jesus pela história evangélica. Pode-se discutir sobre o valor histórico, mas aí há a realidade de um galileu, trabalhador do século I, que viveu de determinada forma, teve tais convicções, fez tais coisas e morreu de tal maneira; sabemos disso com muita segurança. A partir daí temos que conhecer a Deus.

Seria mais fácil conhecer o Jesus homem do que o Jesus deus?

Claro. A partir do Jesus homem podemos começar a conhecer o Jesus deus. Porque se eu vou diretamente ao deus em si, o que posso saber? Disse-o Aristóteles, é a metafísica dos gregos. A especulação dos intelectuais merece respeito, mas o Evangelho tem mais credibilidade.

Ou seja, o que sabemos de Deus sabemo-lo porque Jesus o disse?

Evidentemente. Por isso, ele é revelador e revelação de Deus. É a imagem de Deus invisível. Ou, como diz a Carta aos Hebreus, “Deus finalmente nos falou em seu Filho”. Por meio de seu filho, que é Jesus.

Uma lacuna que assinalas na cristologia é a cristologia política da Igreja antiga. O que queres dizer com isso?

Me refiro ao cesaropapismo, à influência dos interesses políticos na teologia. Compreende-se que isto tenha acontecido, porque era o tempo da decadência do Império. Aquilo estava naufragando e se agarraram ao que era possível. Como viram que o cristianismo estava crescendo, se agarraram a ele. Mas, claro, não lhes interessava um Deus crucificado. E o problema com o qual se defrontaram foi que o cristianismo pregava que o deus no qual acreditavam era um crucificado. E isso significava um escravo, ou um estrangeiro, ou um subversivo. Como resolveram isso? Criando um deus Todo Poderoso. Um pantocrator, que era um título imperial, que colocaram em Jesus Cristo. Mas o Deus que emerge dos Evangelhos é um Deus misericordioso.

“Todo Poderoso”.

É isso. As pessoas não necessitam de poderes que as dominem, mas compreensão, misericórdia, respeito, tolerância, ajuda para a nossa debilidade. Este seria o melhor serviço que a Igreja poderia prestar.

E isso a igreja do poder, identificada com o Vaticano, pode cumprir? Olhando para o Vaticano dá a sensação de que estamos diante de um grande poder.

Não é apenas uma sensação, é uma realidade. A cúpula da Praça de São Pedro, a imponência de um cardeal revestido com todos os seus ornamentos, são uma expressão simbólica de uma realidade. A Igreja prega constantemente o Evangelho. Há muitas pessoas na Igreja que pregam e vivem e sofrem por causa do Evangelho. Há bispos e sacerdotes e religiosos e religiosas em lugares onde não vai ninguém. Por exemplo, na América Latina. Padres que estão nos piores lugares. Mas isso não é notícia em nenhuma parte. O que é notícia são as grandes reuniões na Praça de São Pedro ou em qualquer lugar para onde o Papa vai para ser recebido como um grande deste mundo, como um chefe de estado.

E as pessoas não são esclarecidas. Porque, como juntar essas imagens com o que se lê no Evangelho? Jesus também deu muita importância a isto. E quando mandou os apóstolos a evangelizar, lhes disse: “Não levem dinheiro, nem bastão, nem sandálias; não levem duas túnicas”. Porque assim se evangeliza. Eu creio que São Francisco de Assis evangelizou mais na sua humildade e na sua simplicidade – ou a boa gente por aí perdida, padres, freiras, leigos... – que estes personagens que aparecem com essa pompa. Muitos ficam desconcertados e a outros causa mal-estar. Mesmo que haja grupos que sentem necessidade disso.

E o pior, do meu ponto de vista, é que essa tendência está crescendo ultimamente. Vamos rumo a uma Igreja da pompa e da liturgia e nos afastamos dos pobres.

Claro, porque a Igreja, à medida que vai perdendo poder no tecido social, se aferra a essas coisas.

Pela perda de influência?

Sim. Já está perdendo influência por toda a Europa; em todas as partes do mundo, à medida que a cultura vai avançando. Por isso, a Igreja se agarra ao integrismo dogmático, à política, etc., pensando que com isso vai compensar as carências em outros âmbitos. Que são os decisivos. Decisivo é o Sermão da Montanha, que determina a convivência entre as pessoas. Por isso, não se transmite, não se contagia a opinião pública, o povo.

Vês alguma saída? Há alguma possibilidade de que esta crescente involução seja reversível? É a Igreja uma instituição sábia? Se soubesse equilibrar, ao passar para um lado, o movimento pendular teria que ir para o centro, para admitir a todos.

Bom, a esperança que temos é que vão esbarrar neste limite, que vão se dar conta de que por aí já não se avança mais. Há muita gente convencida disso, não apenas entre leigos e seculares, mas também entre os bispos. Acontece que nos ambientes clericais há muito medo. E, portanto, falta de liberdade.

Medo da perda do poder?

Sim. E das reprimendas que vêm de Roma. Quando era jesuíta, um bispo me falou com toda a confiança. Estava em uma diocese da Espanha e me contou como são controlados por Roma, mediante um monitum, uma advertência. E me contou o exemplo do cardeal de Barcelona, que morreu há alguns anos, a quem mandavam monitum após monitum por coisas muito estranhas. Até que um dia se cansou, tomou um avião, foi a Roma e perguntou: “O que está acontecendo aqui?”.

Na época de Paulo VI ou de João Paulo II?

Creio que de Paulo VI.

A coisa já começou aí?

A coisa vem de muito tempo atrás, de muito longe. O mundo interno na Cúria romana é um mistério, inclusive para os que estão dentro dela. O caso é que procuraram, e descobriram que aqueles monitums vinham de Roma para o cardeal de Barcelona nada menos que por denúncias de um sacerdote que estava em um hospital psiquiátrico.

Que barbaridade.

Claro. E se em Roma dão atenção a um anônimo ou a uma denúncia de um demente para intimidar um cardeal, há algo que não funciona bem.

Há medo entre os teólogos que estão na fronteira?

Sim.

E autocensura, portanto?

Acontece que muitos de nós estamos conscientes do medo. Há uma afirmação de um psicanalista francês que diz: “A obra-prima do poder consiste em fazer-se amar”. E se o poder é religioso, se faz amar muito mais. Amamos a quem nos controla, a quem nos proíbe, nos ameaça e não nos deixa pensar com liberdade.

E isso impede a rebelião.

Claro. Eu penso, por exemplo, em Santo Antonio de Pádua. Eu recomendaria a muitos bispos e sacerdotes ler seus sermões. Ou o Tratado de Consideratione de São Bernardo. Ou Santa Catarina de Sena. E não estou citando teólogos da Libertação, mas santos dos séculos XII e XIII, místicos da Idade Média.

É esse círculo que rompes quando decides que não há espaço suficiente para respirar (dentro da Companhia de Jesus)?

Sim, isso me influenciou notavelmente para tomar a decisão que tomei e que, aos 78 anos, não é fácil tomar. Tive dificuldades para pensar com liberdade e dizer livremente o que pensava. E falei para mim mesmo: “O pouco tempo de vida que me resta, que não será muito, quero poder pensar e falar com liberdade, até onde me seja possível”.

E isso é algo que se agradece, porque há poucas vozes absolutamente livres, que possam expressar o que sentem. Porque na Igreja se murmura muito, se critica por baixo, mas há poucas pessoas que se atrevem a dizer publicamente, por exemplo, o que tu estás dizendo.

O que eu sinto é que há pessoas que podem se escandalizar. Que vão se irritar ou sentir mal lendo meus livros ou esta entrevista. Mas também penso que nos Evangelhos (Deus me livre de nem sequer querer assemelhar-me ao Senhor) Jesus escandalizou muita gente. E Monsenhor Romero, ou Dom Hélder Câmara, também escandalizaram muita gente. Lembro dessa frase tão conhecida: “Quando eu dou de comer aos pobres, me chamam de santo. Quando eu pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista!” Quer dizer, se escandalizam. Mas eu creio que isto é inevitável.

Mas os simples não se escandalizam. Quem se escandaliza, ou diz que se escandalizar, são os talibans que defendem a Igreja esclerosada.

É verdade. Eu sempre digo uma coisa: Jesus foi extremamente tolerante. Mas foi intolerante com os intolerantes. Essa é a razão da dureza e da firmeza com que trata a escribas e fariseus, segundo os relatos evangélicos.

Uma questão de atualidade. Houve nomeações, uma muito polêmica: a do Monsenhor Munilla para San Sebastián, sem consultar a diocese, etc. Quem manda na Igreja espanhola neste momento?

O cardeal Antonio María Rouco [presidente da Conferência Episcopal Espanhola] tem um poder muito grande.

Sem contrapesos?

Ele os tem, mas estão ocultos, segundo dizem aqueles que conhecem o mundo interno da Conferência Episcopal. Rouco se deu conta de que a linha que ele tomou é bastante similar àquela que domina atualmente no Vaticano. Alguém dirá: “Mas é isso que tem que ser feito”. Mas eu diria: “Cuidado”. Porque essa linha é coincidente com o fundamentalismo religioso mais taxativo, e com a direita política.

Eu respeito o fato de que querem seguir essa linha, são livres para fazê-lo. Mas que não queiram impô-la a todos. Porque há muitas pessoas de uma esquerda saudável, de uma postura mais respeitosa, liberal e tolerante do ponto de vista religioso, que são bons cristãos. Mas na Espanha se tem a impressão de que, como não te identificas com a direita para além da qual já está a parede, como dizia alguém outro dia, não podes identificar-te com Roma.

E isso inclusive fecha o “mercado religioso”, o potencial. Se a Igreja somos todos, sejamos todos, não?

Uma das esperanças que tenho é que se vejam cada dia mais angustiados economicamente. Porque a cruz vai colocar cada vez menos gente na casinha da declaração de renda, porque cada vez menos gente vai à Igreja e, portanto, as doações diminuem vertiginosamente. E se verão numa situação em que não lhes resta outro remédio – e é duro e desagradável dizê-lo – que rever muitas coisas.

Deveriam rever muitas coisas por esgotamento? O celibato dos padres, a ordenação de mulheres, que me parece...

...vidente. Começando porque Cristo não ordenou mulheres, mas tampouco homens. Cristo não ordenou ninguém. Outro dia, no blog de Rebelión Digital, coloquei uma entrada sobre isso: a ordem não é bíblica nem evangélica, é uma instituição política do Império. Havia três ordens: a dos cavaleiros, dos senadores e da plebe. E isso foi tomado pelo clero no século III. Dizer que Jesus ordenou os apóstolos sacerdotes é um despropósito teológico e histórico. Portanto, por que não vão poder ordenar mulheres para sacerdotes? O Concílio diz que o povo cristão tem direito a que seja atendido com a pregação da Palavra e a administração dos sacramentos pela Hierarquia. Hoje, mais da metade das paróquias do mundo não tem pároco, porque não há sacerdotes suficientes. Acima do direito da Igreja de impor sacerdotes célibes ou só homens, está o direito dos fiéis de serem atendidos. Porque a Comunidade está em primeiro lugar.

Outro assunto que o cardeal Rouco trouxe novamente à pauta são as aulas de religião. Diz que estão marginalizadas, que os acordos Igreja-Estado não estão sendo cumpridos, que não há alternativa... As aulas de religião nas escolas públicas devem continuar?

Do jeito que a questão está colocada, as aulas de religião (para isso é preciso ver os livros e manuais usados pelos colégios, censurados pela Conferência Episcopal), creio que também teria que haver aulas de religião para os muçulmanos, para os budistas, etc. Ou seja, se a Constituição diz que as crenças religiosas são livres e que o Estado não é confessional, não pode converter-se em um assunto tão importante como é o ensino. A Igreja quer obrigar o Estado a ensinar religião porque ela se sente incapaz de transmiti-la aos jovens. Então, são adoutrinados no colégio.

Que opinião tem sobre o Papa Ratzinger?

E primeiro lugar, não deveríamos nunca esquecer que a Igreja é uma instituição de mais de um bilhão de crentes. E, para governá-los todos, colocar um homem com essa idade, com um cargo vitalício que pode prolongar-se como nos últimos papados, como João Paulo II, que, devido à idade e à saúde, não podia mais governar, em uma instituição de poder centralizado, nenhuma outra instituição no mundo o faria. Nem o faz.

A igreja lança mão do Espírito Santo quando lhe convém. Caso contrário, oculta padres pederastas. O Espírito Santo também inspira isso? Vamos ser coerentes. Eu creio que o Papa Ratzinger foi um grande teólogo, mas que já não está, devido à idade e à saúde, em condições de ocupar o cargo que ocupa, dado o sistema organizativo que a Igreja tem, de um poder concentrado todo em um só homem.

Vês que a Igreja é capaz de mudar o sistema? Por exemplo, apresentar a renúncia, dar passagem a outros...

Não creio que o faça.

Não é nem o tempo nem a pessoa?

Não. Pode nos preparar uma bela surpresa no dia em que menos esperamos, mas não creio. A mudança na Igreja não virá de cima. A renovação também não virá pelos movimentos antieclesiásticos (como os Pobres de Lyon e todos aqueles grupos da Idade Média). Por aí, também não. A mudança na Igreja tem que vir em comunhão com a Igreja.

Reivindicando a partir de dentro?

Todos se tornando responsáveis por sua caminhada. Na paróquia e nas dioceses. Acontece que as pessoas foram educadas para ficarem caladas. Para que vão à missa no domingo e digam que o resto é “coisa de padres”.

E os movimentos mais reivindicativos dentro da Igreja são estigmatizados, taxados de “vermelhos”, marginalizados...

Sim, complica-se a vida deles. Não são ouvidos. Eu gostaria que os bispos em cada diocese recebessem cada movimento como recebem os kikos [referência a Kiko Argüello, fundador do Caminho Neocatecumenal]. Me parece bem que sejam recebidos com entusiasmo, porque são pessoas de muita generosidade religiosa e de muita entrega, que merecem todo o respeito. Mas os bispos não deveriam esquecer que também há muitas pessoas que, por motivos que nem eles mesmos se atrevem a confessar, estão aí, marginalizados. Não são nem ouvidos nem recebidos. Tenhamos magnanimidade de coração. Jesus comia com os pecadores, recebia pessoas mais marginalizadas e pior vistas, colocava um samaritano como modelo, acolhia um centurião romano, não fazia diferenças...

E deixava as 99 [ovelhas] para ir atrás da desgarrada.

Claro. Se perdia uma, ia em busca dela. E agora, a impressão que se tem é que quem está perdido é o bispo.

Mas, então, “largo me lo fiáis” [que prazo me dais]. Há esperança de uma mudança real próxima?

A curto prazo, não. Seria preciso convocar um novo Concílio, mas hoje, assim como é a política de nomeações de bispos de Bento XVI, e assim como foi a de João Paulo II, daria na mesma. Porque na maioria das dioceses colocaram homens orientados numa linha que um concílio não poderia mudar. Seria preciso pensá-la.

João XXIII o fez numa época tão difícil ou mais que a nossa.

É verdade, mas há uma diferença. Pio XII foi um Papa de uma mentalidade muito tradicional e conservadora, que tentou degolar os movimentos renovadores, por exemplo, a Nouvelle Teologie, dos anos 1940-50. E aqueles grandes teólogos, como Karl Rahner, foram condenados. Mas Pio XII, sendo tão conservador como era, não teve medo de nomear grandes personalidades como bispos e cardeais. E por isso o Concílio foi possível. Porque não deu tempo para João XXIII renovar o episcopado nem de mudá-lo. O Concílio veio na sequência. Entretanto, os dois últimos papas tiveram esse medo.

Preferem nomear bispos mais facilmente controláveis?

Preferem homens submissos.

E Jesus nunca foi um submisso.

Não! Também não foi um revolucionário alegremente, nem muito menos perigoso. Andava sempre com os últimos. Foi um homem de uma liberdade absoluta e surpreendente.

Eu lembro da passagem do Evangelho de Lucas em que conta que Pilatos havia degolado alguns galileus que estavam oferecendo um sacrifício no templo ou num lugar sagrado. Então, certa ocasião queriam colocar Jesus à prova, e Jesus nada disse. O que disse foi: “Se não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo”.

Jesus interpelava à conversão de cada um. A conversão aos valores do Sermão da Montanha e de suas parábolas. Que os últimos são os primeiros, que os frágeis, as crianças, as mulheres, os pecadores, os excluídos e os indefesos são os que mais necessitam de cuidados.

Uma Igreja assim, teria hoje um poder e uma força incríveis. E o que me dá pena e às vezes coragem é que se agarram a poderes deste mundo.

José María, foi um prazer. Quem quiser aprofundar o seu pensamento teológico, pode comprar o seu ensaio de cristologia. E quem quiser, pode diariamente acessar o seu blog Teología sin censura, no sítio do Religión Digital.