A tragédia do Haiti suscita diversas perguntas religiosas. A ciência dá respostas sobre por que e como sucedem os fenômenos, mas, como dizia Wittgenstein, uma vez alcançadas as soluções científicas, permanecem as perguntas de sentido e significado, que fogem do âmbito científico. A nota é da Associação de Teólogos João XXIII, com sede em Madrid, Espanha e publicada pelo sítio Religión Digital, 28-01-2010. A tradução é de Vanessa Alves.
Fonte: UNISINOS
Na tragédia do Haiti concorrem dois fenômenos convergentes e diferentes. Por uma parte, a situação da ilha caribenha em uma zona sísmica, com frequentes terremotos e maremotos, exposta também a furacões e ciclones, em uma das partes mais vulneráveis do planeta. Por outra, a agressiva mão do ser humano, que tem desflorestado o Haiti, superexplorado suas reservas naturais e construído povoados e cidades carentes do mínimo de segurança.
As condições extremamente precárias em que os colonizadores deixaram o país, a tradição racista e escravista, a corrupção generalizada, a ditadura de governos exploradores, como os Duvalier, e a injusta distribuição dos recursos aumentaram as doenças da ilha. Arruinaram tudo, incluindo a zona histórica e os órgãos estatais, mas se preservou o moderno bairro rico de "Pétion Ville", em Porto Príncipe, como também a vizinha e menos desafortunada República Dominicana.
A partir destes dados, a pergunta religiosa "onde está Deus" não é nem pode ser a primeira. O Haiti exemplifica o que já ocorreu com o tsunami da Indonésia e as fomes subsaarianas.
Há povos, nações e Estados que vivem na miséria, sem capacidade para defender-se das catástrofes naturais. A ordem internacional está montada sobre a concentração de riqueza em 20% da humanidade e o desamparo de boa parte desta.
Por si sós não podem sair de sua miséria, agravada por multinacionais que exaurem os recursos para obter grandes benefícios em pouco tempo, governos próprios corruptos e vendidos, e países ricos que protegem seus interesses e os de suas companhias no terceiro Mundo.
Sem esta ordem de coisas, poderia ter sido evitada a repercussão da catástrofe ou teria sido muito menor. Mas os habitantes do Haiti são tão pobres que nem sequer têm capacidade para receber e repartir a ajuda que lhes chega. Quem tem a culpa? A atual ordem internacional que só pode apoiar-se com base no poder econômico, político e militar dos países ricos, e a persistente corrupção das elites dirigentes do país.
E Deus? Seguimos buscando o Deus relojoeiro de Newton, que ajusta a maquinaria do universo para regular suas disfuncionalidades. Pedimos milagres naturais, que Deus envie as chuvas ou as pare, detenha os tufões, faça prodígios. Isso era também o que pedia o povo a Jesus, o desejo com o qual o espírito do mal lhe tentava (poder, prestígio e dinheiro), e o sonho dos discípulos (um messias milagreiro).
Dois mil anos depois, seguimos buscando um Deus-providência ao nosso serviço, um superpai protetor e um ser onipotente que nos proteja da natureza. Mas Deus não interveio para evitar o Gólgota, nem em Auschwitz, nem evitou pestes, fomes e outros desastres.
Achamos, com tudo, que o mal é também um mistério que encaixa dificilmente com a imagem de um Deus onipotente e misericordioso, sobretudo, quando se traduz em sofrimento dos pobres e dos inocentes.
A ciência formula as leis da natureza e explica as causas dos desastres, facilitando o progresso e o avanço no controle dela. Deus não tem ciúmes do ser humano, imagem sua, mas capacita a pessoa para ser criadora e gerar vida. Deu à humanidade uma responsabilidade no mundo com a condição de que todos os seres humanos e a própria natureza participassem equitativamente das riquezas do universo. Defende o pobre e o oprimido, e abençoa os que trabalham pela paz e justiça, valores do Reino de Deus.
Deus não é neutro, está no Haiti nas vítimas e nas pessoas que trabalham ali solidariamente, identifica-se com as vítimas e faz delas o critério do julgamento divino (Mt 25,31-46). Ninguém tem o direito de falar em seu nome, só elas e quem compartilha seus sofrimentos. Mas todos nós podemos e devemos fazer-nos presentes no Haiti, atender às necessidades urgentes dos haitianos e colaborar na sua reconstrução. Mas isso não basta. Dentro de poucos meses, Haiti será uma mera lembrança, exceto para os que continuam ali.
A grande tragédia do século XXI é a de uma humanidade que tem recursos suficientes para acabar com a fome e mitigar as catástrofes naturais, mas prefere empregá-los em armamento, para defender-se dos pobres; em policiais, para evitar que os imigrantes cheguem a nossas ilhas de riqueza; e nos esbanjamentos consumistas de uma minoria de países. Do mal do Haiti, somos todos responsáveis, especialmente os países mais ricos, e a solidariedade não pode ficar em um momento pontual, mesmo que seja necessária, ainda que exija outra forma de vida.
O Haiti personifica hoje os povos crucificados, e a única resposta válida é comprometer-nos para que não haja mais Haitis assolados, nem Palestinas massacradas, como também nenhum Auschwitz nem Hiroshima. Todos nós temos que mudar, e a referência ao Deus de Jesus há de ser o grande incentivo de justiça e solidariedade para os que nós chamamos cristãos.
Este documento é assinado pelos seguintes membros da Associação João XXIII:
José Luis Andavert, Xavier Alegre, Juan Barreto, Fernando Bermúdez, José Manuel Bernal, Rafael Calonge, José María Castillo (vogal), José Centeno, Juan Antonio Estrada, Benjamín Forcano, Máximo García Ruiz (vogal), José Ignacio González Faus, Julio Lois, Francisco Margallo, Eduardo Malvado, Albert Moliner, Federico Pastor (presidente), Jesús Peláez, Victorino Pérez Prieto, Margarita Pintos, José Luis Quirós, Alfredo Tamayo Ayestarán (vice-presidente), Juan José Tamayo-Acosta (secretário-geral), Rufino Velasco, José Vico, Evaristo Villar, Juan Yzuel.
Uma criança cobre a cabeça com uma pele de animal para se proteger do frio, na província afegã de Helmand, no dia 28 de janeiro. Mais da metade da população afegã vive ainda abaixo do nível de pobreza e a maior parte das atividades econômicas se concentram na capital, Kabul. Fonte: Shah Marai/AFP
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