12/02/2010

Combater a fome, uma questão de fé

As principais religiões do mundo podem discordar sobre teologia e assuntos como os alimentos que devemos comer ou os dias que devemos descansar. Mas, quando se trata de lutar contra a fome, o consenso chega rápido. Os livros sagrados dizem que se deve ajudar quem não tem o suficiente para comer. Para os crentes, isto transforma a insegurança alimentar em um assunto espiritual, e não apenas político ou econômico.A reportagem é de Paul Virgo, da IPS e publicada pela Agência Envolverde, 12-02-2010.
Fonte: UNISINOS


Em todas as religiões que conheço, o primeiro ou segundo tema do qual mais se fala é a quantidade de versículos que tratam dos pobres, dos doentes e dos famintos”, disse à IPS Tony P. Hall, diretor da Aliança para Pôr Fim à Fome e ex-embaixador dos Estados Unidos junto à Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), com sede em Roma. “Cerca de 2.500 versículos cristãos abordam este assunto. A fome é um tema que diz respeito às pessoas de fé. Deus é muito claro nisto: precisamos agir”, acrescentou.

Os muçulmanos concordam: “Como pode alguém se sentir espiritualmente reconfortado quando os que o cercam passam por necessidades? Ser um bom muçulmano não é simplesmente fechar-se em uma mesquita e rezar”, disse à IPS Mostafa Mahboob, do capitulo norte-americano do Islamic Relief. “Como membro de uma comunidade, também se tem responsabilidade com os demais. Definitivamente há uma ligação entre espiritualidade e fome. Ao trabalhar no combate à fome, coloca-se em prática os ensinamentos religiosos e espirituais”, afirmou. Atualmente, há 1,02 bilhão de pessoas desnutridas no mundo, segundo a FAO.

As organizações religiosas estão na primeira linha da luta contra a fome. A católica Caritas Internationalis é uma das maiores agências de ajuda do planeta. Protestantes, judeus, budistas, hindus e siks têm organizações tão importantes com Caritas e Islamic Relief. Porém, alguns analistas concluíram que, se o flagelo da fome agora afeta quase um entre seis habitantes de um mundo com adequado fornecimento de comida, deve haver milhões de pessoas de fé descumprindo os princípios religiosos dos quais dizem ser adeptos.

O que fará o povo de Deus despertar de seu estado de coma?”, pergunta Craig L. Nessan em seu livro “Give us This Day, a Lutheran Proposal for Ending World Hunger” (Dê-nos esse Dia: uma Proposta Luterana para Acabar com a Fome no Mundo). O professor Shannon Jung, da Escola de Teologia de Saint Paul, na cidade norte-americana de Kansas, concorda que, com frequência, muitos crentes ignoram o assunto, que deveriam ter como prioritário.

As pessoas de fé estão particularmente dispostas a responder à crise, como a que sofre o Haiti, mas tendemos a perder a grande oportunidade de abordar questões sistêmicas” da cadeia alimentar, disse Jung à IPS. “Compartilhar é algo que podemos fazer para outra pessoa, mas que também recebemos. Deus criou os seres humanos para compartilhar, e temos uma real necessidade de fazer isso, do contrário nos atrofiamos espiritualmente”, acrescentou. Jung acredita que alguns líderes religiosos têm parte da culpa, porque dão menos atenção à fome do que a outros temas, como aborto e homossexualidade.

A fome é um assunto mais imediato, óbvio e premente do que o aborto ou a homossexualidade. A fome penetra em cada um dos outros temas e causa impacto na família humana muito mais” do que os outros dois, disse. “Às vezes, penso que as igrejas das nações ricas se ocupam do aborto e da homossexualidade como uma maneira de evitar o tema mais sério e desafiante de sua conivência na fome e na pobreza, uma cumplicidade da qual participam todos os ricos”, disse.

De modo semelhante, Richard H. Schwartz, professor emérito de matemática no College of Staten Island (NY) e analista em temas de judaísmo e questões sociais, acredita que muitos de seus correligionários ignoram a vontade de Deus ao não fazerem mais para combater a fome. “Os judeus condenam com razão o silêncio do mundo diante do assassinato pelos nazistas de seis milhões de judeus e milhões de outras pessoas. Podemos permanecer em silêncio quando milhões agonizam por falta de alimentos? Podemos consentir na apatia do mundo quanto ao destino das pessoas que morrem de fome?”, afirma em um ensaio sobre judaísmo e fome.

Os diferentes atores religiosos também concordam quanto à maneira como os fiéis deveriam lutar contra a fome, e defendem três modalidades principais de resposta. Primeiro, apoio financeiro e envolvimento pessoal em agências e campanhas que buscam aliviar a fome. “Penso que os judeus deveriam apoiar uma espécie de Plano Marshall (usado para reconstruir a Europa após a Segunda Guerra Mundial) global para aliviar a fome, a pobreza, o analfabetismo, as doenças, a poluição e outros males sociais, usando para isto parte do dinheiro que agora destina a finalidades militares”, disse Schwartz à IPS.

Em seu livro “Ending Hunger Now” (Pôr Fim à Fome Agora), George McGovern propõe que “cada membro de uma igreja ou sinagoga, cada muçulmano, cada budista, assegure-se de que sua igreja tenha uma ramificação interna e uma externa que chegue aos famintos” estejam onde estiverem. McGovern escreveu esse livro junto com o teólogo metodista Donald Messer e com o ex-senador norte-americano Bob Dole. A segunda maneira sugerida para responder à fome é um ativismo que tente pressionar os políticos para que façam mais em favor da segurança alimentar.

A fome é um assunto de direitos humanos e qualquer meio pacífico para promover a luta contra ela é bom, por isso deveríamos aproveitar os canais políticos ou do ativismo”, disse Mahboob. “É razoável dizer que uma pressão maior do eleitorado poderia ajudar a remediar a falta de vontade política para abordar este tema”, acrescentou. Por fim, a terceira forma de resposta no combate à fome é que os crentes optem por estilos de vida mais simples, com menos consumismo e desperdício. “Uma das coisas que o Islã ensina é colocar no prato apenas o que podemos comer. Não é bom desperdiçar comida. É uma falta de respeito a Deus”, disse Mahboob.

Deveríamos respeitar o que temos e agradecer. Sempre tentamos ter o que nosso vizinho tem. Mas o Islã diz que não devemos ser desmesurados em nossas vidas cotidianas e que devemos compartilhar com nossos vizinhos, com os demais seres humanos. Se reduzirmos o desperdício, gastaremos menos e teremos mais para dedicar a quem precisa”, acrescentou.

Schwartz, por sua vez, incentiva os fiéis a se tornarem vegetarianos, argumentando que isso liberará recursos agrícolas para alimentar os famintos, pois considera que criar animais é uma maneira ineficiente de produzir alimentos. “Deus nos chama a responder ao clamor pelos alimentos. E o ouvimos não apenas como um pedido de assistência, mas também de justiça”, disse.