24/05/2010

Milhões de fiéis oram pelo fim do tráfico de pessoas no mundo

Fonte: ADITAL



Em todo o mundo, pelo menos 50 milhões de fiéis estão rezando pelo fim do tráfico de seres humanos, crime que faz milhares de vítimas ao redor do mundo. A oração atende a um apelo do Papa Bento XVI, nas intenções do mês maio, para o Apostolado da Oração: "Para que se coloque fim ao triste e iníquo tráfico de seres humanos que infelizmente envolve milhões de mulheres e crianças".

O tráfico de pessoas é combatido em todos os continentes, por governos, entidades da sociedade civil e instituições religiosas, pela amplitude e complexidade do problema. Há uma grave violação dos direitos fundamentais da pessoa e de seu direito à segurança e à proteção

A situação de vulnerabilidade socioeconômica e o sonho de uma vida melhor é o que tem feito tantas vítimas caírem na armadilha deste delito. As mulheres e as crianças são os grandes alvos de traficantes e aliciadores. Geralmente, essas vítimas servem ao comércio de exploração sexual e à prostituição em diversos países. A rede organizada desse crime obtém lucros exorbitantes através da exploração de pessoas, que são tratadas como objetos negociáveis.

Para enfrentar e combater o tráfico de pessoas, muitas entidades investem na prevenção, alertando as vítimas em potencial, sobre os perigos e as constantes ameaças de quem cai nas mãos de aliciadores. Mas não é apenas a pobreza, a falta de estrutura e a migração ilegal que devem ser combatidas. A demanda pela exploração de mulheres, de crianças e da mão-de-obra barata, no caso do trabalho escravo, também deve ser fortemente combatida e punida.

Já que a rede criminosa do tráfico de pessoas age em âmbito global, de maneira silenciosa, enganando as vítimas com falsas promessas de trabalho, é necessário que também se tenha uma rede de governos e entidades que atuem conjuntamente para acabar com este crime, que é considerado a escravidão dos tempos modernos.

23/05/2010

Luiz Paulo Horta

Tempestade sobre Roma

Artigo de Luiz Paulo Horta, jornalista, membro da Academia Brasileira de Letras, publicado no jornal O Globo, 23-05-2010.
Fonte: UNISINOS


A mística continua. Se você for a uma cerimônia na Basílica de São Pedro, dificilmente deixará de se impressionar com a majestade do lugar. E a eleição de um novo Papa sempre será capaz de desencadear maratonas jornalísticas.

Mas o clima em Roma, e em outras cidadelas do catolicismo, é de inquietação.

Há uma crise do catolicismo, e a tendência é que, antes de melhorar, ela piore.

A questão da pedofilia é só uma mancha num cenário bem mais vasto.

Representantes da Igreja de Roma podem até dizer que houve excessos nos ataques à Igreja; que em outros estratos da sociedade o índice de pedófilos é maior; que a maioria dos casos registrados é antiga, quando o Vaticano prestava atenção relativa ao assunto. Mas as feridas no vasto corpo da Igreja estão à mostra; e doem.

Por toda parte, caem os índices de adesão a Roma. Na Europa, isso é tão sério que já estão vendendo igrejas, por falta de uso.

No Brasil, dados sociológicos poderiam ser citados como atenuantes.

A “esmagadora maioria de católicos” de décadas passadas era uma ficção estatística. Cem anos atrás, o Brasil era maciçamente positivista, e só as mulheres iam à igreja. Mas rapazes de origem humilde ainda buscavam o sacerdócio como forma de afirmação social e tranquilidade econômica.

Hoje, o que vale mais a pena: enfrentar cinco, seis anos de seminário e a obrigação do celibato, ou entrar num curso rápido de formação de pastores, sem nenhuma obrigação maior e com retorno financeiro quase certo? No Brasil de hoje, em plena transformação, as comunidades evangélicas dão às pessoas deslocadas da cidade grande um ambiente afetivo, uma sensação de belonging. E você sai das reuniões com a Bíblia na mão, e amplas sugestões de abordagem para o Livro dos Livros.

Encontrar algo parecido, nos meios católicos, exige um certo esforço. A paróquia tradicional, muitas vezes, não é acolhedora, e o padre tem de dividir-se entre um excesso de tarefas. Há hoje, no Brasil, cerca de 15 mil padres para 180 milhões de habitantes, enquanto os pastores, segundo se diz, já passam de 50 mil. Quem vai ganhar essa corrida? A Igreja Católica já foi a alma da civilização ocidental. Depois, muita coisa aconteceu — começando com o próprio “racha” do cristianismo.

A reforma luterana bateu tão forte, que instalou-se um clima geral de desconfiança (regado a cachoeiras de sangue). A Igreja de Roma, que já mantinha a Bíblia a uma certa distância (por ser um livro difícil), passou a ser a Igreja do catecismo — a fé trocada em miúdos, para que todo mundo soubesse em que acreditar. A intenção era boa. Mas o legalismo e o juridicismo tomaram o lugar da experiência da fé. E esse é um caminho que terá de ser refeito. Ninguém adere a um determinado credo porque ele oferece um livro de normas bem explicadinhas.

O que provoca a fé é o encontro com uma realidade que extrapola os limites da razão; que se apresenta como uma experiência transformadora Esse encontro nunca foi exclusividade do cristianismo; mas, dentro da Igreja de Roma, o que se pode chamar de misticismo já teve momentos gloriosos, na vida de um São Francisco, de uma Teresa d’Ávila. É essa “novidade” da fé que contagia, que comove, que liberta da mediocridade.

A Igreja de Roma continua a ter trunfos poderosos. Por exemplo, a missa católica, que não encontra paralelo nos cultos evangélicos. Não apenas ela é uma obra-prima em termos de arquitetura, de organização, como ela se propõe a reencenar o sacrifício do Calvário. Nas mãos de um padre Pio, ou de outros santos, era isso mesmo o que ela significava, e o impacto era esmagador.

Esse sentido do mistério é que teria de ser recuperado nos cultos católicos de hoje, que às vezes parecem tão displicentes, e sem maior significação — um simples encontro de pessoas que concordam em pertencer à mesma denominação.

Uma outra riqueza da Igreja é a tradição, palavra que se tornou malvista, mas que significa, basicamente, transmissão - transmissão de uma mensagem que vem do fundo dos séculos.

Esse conhecimento comum, partilhado, está presente na vida dos santos, que nunca pensaram em reinventar a teologia: eles se limitavam a reativar, em suas vidas, os tesouros de uma experiência milenar. Mesmo quando erravam, ou perdiam o caminho — no Antigo Testamento, a história do rei Davi —, eles sabiam por onde regular as suas bússolas.

Há uma história moderna que ilustra essa aventura: a do cardeal Newman, que lá por 1830, ainda jovem, era a luz mais brilhante da Igreja Anglicana. Aos seus sermões em Oxford acorria a elite da Inglaterra, que estava conquistando o mundo mas não queria perder a pista das velhas crenças. Até que,um dia , Newman se põe a refletir sobre as bases da sua fé; entra numa grande crise pessoal, estuda a tradição cristã, e chega à conclusão de que o fio de ouro dos tempos apostólicos passava por Roma. Em nome desse reencontro com o catolicismo, ele abre mão de todos os títulos, de todas as honras; torna-se quase soldado raso num ambiente que custou a aceitá-lo definitivamente.

É o fascínio de Roma, que não morreu.

Mas, para torná-lo efetivo num mundo como o de hoje, muito exame de consciência vai ser necessário, muita mudança de atitude. E a disposição de, como Newman, começar lá de baixo.

D. Dimas Lara Barbosa

Pedofilia, uma chaga social


Artigo de D. Dimas Lara Barbosa, secretário-geral da CNBB, publicado no jornal Folha de S. Paulo, 23-05-2010.
Fonte: UNISINOS



Nada atenua esses crimes; um só caso de pedofilia, praticado por um padre, um religioso ou uma religiosa é sempre demais, é abominável.

A Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República coordena, desde 2003, o Disque 100, serviço nacional de denúncia de violências contra crianças e adolescentes. Três anos antes, fora promulgada a lei nº 9.970/00, que instituiu o dia 18 de maio como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

A data foi escolhida porque, em 18 de maio de 1973, em Vitória, um crime bárbaro chocou o país, quando a pequena Araceli, de apenas oito anos, foi sequestrada, espancada, estuprada e assassinada.

Esse crime, apesar de sua gravidade, permanece impune. Segundo a referida secretaria, o Disque 100 já registrou 8.799 denúncias nos quatro primeiros meses deste ano, atingindo uma média de 73 denúncias por dia.

Os registros de violência sexual contra meninos e meninas representam 32% do total das 123.322 denúncias recebidas desde 2003. Das denúncias de violência sexual registradas no Disque 100 em 2010, 66% são de abuso sexual, e 33%, de exploração sexual. Em 2009, o abuso sexual representou 64% dos registros.

Pesquisas sérias têm registrado que a grande maioria dos agressores sexuais de crianças e adolescentes são adultos casados, aí incluídos os próprios pais, padrastos, tios, vizinhos e até os avós.

Ou seja, esse tipo de comportamento criminoso não está relacionado com o celibato. Trata-se de realidade preocupante, presente em vários segmentos de nossa sociedade, e que merece a atenção de todos para que possa ser revertida. Faz parte da caminhada da Igreja no Brasil o engajamento corajoso e sistemático na defesa dos direitos da criança e do adolescente.

A Pastoral do Menor foi protagonista importante na elaboração do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Além de ir ao encontro desses pequeninos que perambulam ou vivem pelas ruas e praças das grandes cidades, atua em abrigos, acolhendo adolescentes vítimas de abandono e violência e usuários de drogas.

Atua também na promoção e no controle de políticas públicas, marcando presença em nove conselhos estaduais e em mais de cem conselhos municipais. O número de crianças e adolescentes atendidos chega a 100 mil em todo o país.

A Pastoral da Criança, presente em 4.027 municípios, conta com mais de 230 mil voluntários e atendeu, em 2009, mais de 1,6 milhão de crianças e mais de 1,4 milhão de famílias em todo o Brasil.

O Regional Norte 2 da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que inclui os Estados do Pará e do Amapá, apoiado pela presidência da conferência, empenhou-se decididamente pelo sucesso da CPI da pedofilia realizada na Assembleia Legislativa do Pará.

Paradoxalmente, a própria igreja vem sofrendo profundamente, nos últimos tempos, por causa de alguns de seus sacerdotes e religiosos, envolvidos em casos de abusos sexuais. Nada pode justificar nem atenuar esses crimes.

Um só caso de pedofilia, praticado por um padre, um religioso ou uma religiosa é sempre demais, é abominável. O papa Bento XVI tem manifestado publicamente sua dor, que é a de todos os católicos, pedindo perdão às vítimas e seus familiares, em nome da igreja, e estabelecendo normas precisas para a investigação e punição dos culpados.

A CNBB, em sua assembleia geral, realizada de 4 a 13 de maio deste ano, em Brasília, também refletiu amplamente sobre essa questão tão grave, estabelecendo metas concretas de ação. Que a Virgem Mãe Aparecida nos assista nesses momentos graves de nossa história.

20/05/2010

Nota da Comissão Pastoral da Terra


Judiciário: mais uma vergonha!


A Comissão Pastoral da Terra (CPT), reunida em seu III Congresso Nacional, em Montes Claros, Minas Gerais, com a participação de mais de 800 congressistas, no dia em que está celebrando os mártires da terra com uma grande caminhada pelas ruas desta acolhedora cidade mineira, recebe perplexa a notícia de que o senhor Regivaldo Pereira Galvão, foi colocado em liberdade. Diante disto manifesta sua mais profunda indignação por este ato da “justiça” paraense.

Regivaldo foi condenado no dia 1 de maio de 2010, a 30 anos de prisão, por ter sido um dos mandantes do assassinato de Irmã Dorothy Stang, ocorrido no dia 12 de agosto de 2005. Na ocasião de sua condenação lhe foi negado o direito de apelar em liberdade. Por incrível que pareça, 18 dias depois de sua condenação, uma liminar da desembargadora Maria de Nazaré Silva Gouveia dos Santos, do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, lhe concede habeas corpus pondo-o em liberdade.

Regivaldo foi o último dos envolvidos condenado no caso do assassinato de Irmã Dorothy, cinco anos depois de sua morte. Usou de todos os instrumentos legais que foram protelando indefinidamente seu julgamento. Com sua condenação, pensávamos que a justiça tinha sido realizada, mas agora o criminoso volta à liberdade.

Mais uma vez se configura o que muitas vezes tem sido repetido pela CPT e por praticamente todas as instituições de Direitos Humanos: a cadeia foi feita exclusivamente para os pobres. Os que têm recursos financeiros sempre conseguem os “benefícios da lei” enquanto os pobres, presos sem terem qualquer acusação formal, permanecem anos e anos encarcerados sem terem acesso a qualquer julgamento! A impunidade continua alimentando a violência.

No dia 29 de abril passado, a CPT entregou ao Ministro da Justiça a relação de 1.546 trabalhadores e seus aliados assassinados em 1.162 ocorrências de conflitos no campo nos últimos 25 anos, de 1985 a 2009. Destas ocorrências, apenas 88 foram a julgamento, tendo sido condenados somente 69 executores e 20 mandantes. Dos mandantes condenados somente um encontrava-se preso, Vitlamiro Bastos de Moura, um dos responsáveis pelo assassinato de Irmã Dorothy. Regivaldo era o segundo que se encontrava preso até o dia de ontem.

Esta é a justiça que comanda este país! Se um caso que teve tamanha repercussão nacional e internacional é tratado desta forma, não é de espantar que a maior parte dos casos não mereça qualquer atenção.

Já dizia o profeta Isaias: “o juízo está longe de nós, e a justiça não nos alcança; esperamos pela luz, e eis que só há trevas; pelo resplendor, mas andamos em escuridão” (Isaias 59,9).

Os participantes do III Congresso do Nacional da CPT




13/05/2010

Pe. Alfredo J. Gonçalves

Mudanças e modismos
Fonte: ADITAL




A sociedade moderna impôs a mudança como valor primordial. No universo medieval, cultuavam-se as tradições, os valores estáticos, a ordem estabelecida, os antepassados. As inovações eram vistas com desconfiança, um risco freqüente à estabilidade. O olhar permanecia voltado para o alto e para o passado. Para o alto, porque a última referência vinha de Deus, do céu, do sagrado. Para o passado, porque o certo era seguir a sabedoria acumulada pela experiência.

No mundo moderno, cujo início remonta aos séculos XIII e XIV, com o incremento do comércio e a epopeia dos descobrimentos, cultua-se a novidade. A cada ano, a cada mês ou semana e até mesmo a cada dia, emerge algo novo e fascinante. Instala-se o dinamismo frenético da mudança, acompanhado pelos inventos tecnológicos e pela emergência da individualidade e da subjetividade. O olhar volta-se para o futuro e para o interior dos indivíduos e da sociedade. Os conceitos de razão, ciência, tecnologia, progresso e democracia formam o verdadeiro credo do pensamento moderno. Desvendam-se os mistérios, o antropocentrismo do ser humano emancipado e secularizado substitui a teocentrismo da Idade Média. O renascimento e o iluminismo culminam esse processo de amadurecimento da modernidade.

Com a consolidação da Revolução Industrial, a velocidade da produção e da produtividade sofre um salto gigantesco. As máquinas imprimem um ritmo sem precedentes na história da humanidade. Na abertura da encíclica Rerum Novarum, publicada no final do século XIX, o Papa Leão XIII se refere à "sede de inovações" e à "agitação febril" como marcas de sua época. O adjetivo febril pode ser interpretado de duas formas: em relação ao movimento alucinado das fábricas incipientes, simbolizado pela fumaça de suas chaminés; e em relação à febre progressiva por mudanças e novidades.

Para usar os termos de Hegel, estamos diante dos "tempos modernos". O filósofo identifica os "sinais precursores de que algo diferente se prepara". E diz que a aurora ilumina como um raio " a imagem de um mundo novo". Ainda segundo ele, "o espírito rompeu com o mundo anterior (...); o espírito certamente nunca permanece quieto, mas se acha sempre em movimento incessantemente progressivo" (Cfr. HEGEL, G. W. F. Fenomenologia del Espiritú, Fondo de Cultura Económica, México-Madrid-Buenos Aires, 1996, Intruducción).

Também os conceitos de tempo e espaço sofrem profunda transformação. Os avanços no campo dos transportes, das comunicações e depois na informática reduzem as distâncias, ao mesmo tempo em que aproximam pessoas, povos e culturas. Com a invenção da imprensa, do telégrafo e do telefone (depois o celular), do rádio e da televisão, do computador e da internet, chegamos à era da robótica e da informática. A comunicação via satélite torna-se simultânea aos eventos. Estes substituem a história como processo pelo conceito de história como espetáculo, feita de sensações e emoções. Segundos e centímetros quadrados se convertem em valiosa moeda de troca. Se "tempo é dinheiro", espaço é mercadoria!

Evidente que semelhante mentalidade penetra em todas as camadas sociais, em todas as organizações e entidades, como também nas instâncias do poder e no cotidiano das pessoas. A cultura, a fé e as religiões não são imunes a esse novo modo de pensar e viver. Segundo J. B. Libanio, "a função que os santos cumpriam na Idade Média, e mesmo até há algumas décadas, de serem modelos de vida, força impulsora e motivadora de vocações, hoje é substituída por essas figuras da cultura de massa". O autor põe em contraste duas atitudes básicas: de um lado, figuras centradas em profunda meditação, firmemente enraizadas no terreno da história e no compromisso social. De outro, personalidades midiáticas, de notória superficialidade, voltadas sobre o próprio umbigo. Tão superficiais que, ainda de acordo com Libanio, "devem continuamente ser alternadas", pois "queimam como velas" (Cfr. LIBANIO, J. B. As Lógicas da Cidade, Edições Loyola, São Paulo, 2001, pág. 122).

Semelhantes celebridades constituem, não raro, a prova mais cabal da cultura do consumo e do descartável. Aqui a tecnologia de ponta impõe um círculo vicioso desvairado e devastador: produzir, vender, comprar e descartar. Descartam-se coisas, relações e pessoas com a velocidade de um toque na tecla do computador. O termo deletar transfere-se a outros campos do dia-a-dia: amizades, casamentos, namoros, compromissos, promessas, escritos... Tudo entra no frenesi do consumismo individualista, exacerbado e fortemente hedonista, o qual exige frequente troca de roupa e de moda, de eletrodomésticos, de carro até de comportamento. Ter, prazer e lazer formam uma trilogia de verbos indispensáveis. O culto do "eu" ou da personalidade ergue estátuas com a mesma prontidão com que as reduz a escombros e cinzas. Não é raro a mídia enaltecer para em seguida linchar figuras públicas: artistas, políticos, religiosos, atores, e demais personalidades.

A essa altura, porém, é necessário alertar para uma ambigüidade muito própria dos tempos modernos ou pós-modernos. A cultura ou civilização do consumismo, do hedonismo e do descartável tem seu lado negativo, mas carrega também um potencial positivo. Se, por uma parte, é verdade que essa mentalidade banaliza coisas, pessoas e relações, convivendo com uma superficialidade doentia, por outra parte, de tanto adquirir e descartar, o indivíduo acaba por saturar a própria existência de modismos que se revelam vazios e falsos. Quanto mais se enche de objetos, mais cresce o desejo. Entediado, o mesmo indivíduo pode abrir-se à busca de algo mais profundo e durável, para além das paixões, impulsos e necessidades imediatas. O convívio com o supérfluo pode gerar seu oposto, isto é, um processo laborioso de crítica construtiva e de interioridade reflexiva.

O lixo que o marketing e a publicidade depositam sobre nossas cabeças em avalanches diárias tem a capacidade de fermentar, o que significa destilar energias para a redescoberta de valores esquecidos. Reciclar determinados matérias do lixo é uma forma de questionar um padrão de vida banal e de constante desperdício. A mentalidade dos modismos diários e do desperdício carrega um potencial oculto: pode engendrar a contracultura de uma existência mais sólida e sustentável, mais frugal, sóbria e feliz.

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