Tempestade sobre Roma
Artigo de Luiz Paulo Horta, jornalista, membro da Academia Brasileira de Letras, publicado no jornal O Globo, 23-05-2010.
Fonte: UNISINOS
A mística continua. Se você for a uma cerimônia na Basílica de São Pedro, dificilmente deixará de se impressionar com a majestade do lugar. E a eleição de um novo Papa sempre será capaz de desencadear maratonas jornalísticas.
Mas o clima em Roma, e em outras cidadelas do catolicismo, é de inquietação.
Há uma crise do catolicismo, e a tendência é que, antes de melhorar, ela piore.
A questão da pedofilia é só uma mancha num cenário bem mais vasto.
Representantes da Igreja de Roma podem até dizer que houve excessos nos ataques à Igreja; que em outros estratos da sociedade o índice de pedófilos é maior; que a maioria dos casos registrados é antiga, quando o Vaticano prestava atenção relativa ao assunto. Mas as feridas no vasto corpo da Igreja estão à mostra; e doem.
Por toda parte, caem os índices de adesão a Roma. Na Europa, isso é tão sério que já estão vendendo igrejas, por falta de uso.
No Brasil, dados sociológicos poderiam ser citados como atenuantes.
A “esmagadora maioria de católicos” de décadas passadas era uma ficção estatística. Cem anos atrás, o Brasil era maciçamente positivista, e só as mulheres iam à igreja. Mas rapazes de origem humilde ainda buscavam o sacerdócio como forma de afirmação social e tranquilidade econômica.
Hoje, o que vale mais a pena: enfrentar cinco, seis anos de seminário e a obrigação do celibato, ou entrar num curso rápido de formação de pastores, sem nenhuma obrigação maior e com retorno financeiro quase certo? No Brasil de hoje, em plena transformação, as comunidades evangélicas dão às pessoas deslocadas da cidade grande um ambiente afetivo, uma sensação de belonging. E você sai das reuniões com a Bíblia na mão, e amplas sugestões de abordagem para o Livro dos Livros.
Encontrar algo parecido, nos meios católicos, exige um certo esforço. A paróquia tradicional, muitas vezes, não é acolhedora, e o padre tem de dividir-se entre um excesso de tarefas. Há hoje, no Brasil, cerca de 15 mil padres para 180 milhões de habitantes, enquanto os pastores, segundo se diz, já passam de 50 mil. Quem vai ganhar essa corrida? A Igreja Católica já foi a alma da civilização ocidental. Depois, muita coisa aconteceu — começando com o próprio “racha” do cristianismo.
A reforma luterana bateu tão forte, que instalou-se um clima geral de desconfiança (regado a cachoeiras de sangue). A Igreja de Roma, que já mantinha a Bíblia a uma certa distância (por ser um livro difícil), passou a ser a Igreja do catecismo — a fé trocada em miúdos, para que todo mundo soubesse em que acreditar. A intenção era boa. Mas o legalismo e o juridicismo tomaram o lugar da experiência da fé. E esse é um caminho que terá de ser refeito. Ninguém adere a um determinado credo porque ele oferece um livro de normas bem explicadinhas.
O que provoca a fé é o encontro com uma realidade que extrapola os limites da razão; que se apresenta como uma experiência transformadora Esse encontro nunca foi exclusividade do cristianismo; mas, dentro da Igreja de Roma, o que se pode chamar de misticismo já teve momentos gloriosos, na vida de um São Francisco, de uma Teresa d’Ávila. É essa “novidade” da fé que contagia, que comove, que liberta da mediocridade.
A Igreja de Roma continua a ter trunfos poderosos. Por exemplo, a missa católica, que não encontra paralelo nos cultos evangélicos. Não apenas ela é uma obra-prima em termos de arquitetura, de organização, como ela se propõe a reencenar o sacrifício do Calvário. Nas mãos de um padre Pio, ou de outros santos, era isso mesmo o que ela significava, e o impacto era esmagador.
Esse sentido do mistério é que teria de ser recuperado nos cultos católicos de hoje, que às vezes parecem tão displicentes, e sem maior significação — um simples encontro de pessoas que concordam em pertencer à mesma denominação.
Uma outra riqueza da Igreja é a tradição, palavra que se tornou malvista, mas que significa, basicamente, transmissão - transmissão de uma mensagem que vem do fundo dos séculos.
Esse conhecimento comum, partilhado, está presente na vida dos santos, que nunca pensaram em reinventar a teologia: eles se limitavam a reativar, em suas vidas, os tesouros de uma experiência milenar. Mesmo quando erravam, ou perdiam o caminho — no Antigo Testamento, a história do rei Davi —, eles sabiam por onde regular as suas bússolas.
Há uma história moderna que ilustra essa aventura: a do cardeal Newman, que lá por 1830, ainda jovem, era a luz mais brilhante da Igreja Anglicana. Aos seus sermões em Oxford acorria a elite da Inglaterra, que estava conquistando o mundo mas não queria perder a pista das velhas crenças. Até que,um dia , Newman se põe a refletir sobre as bases da sua fé; entra numa grande crise pessoal, estuda a tradição cristã, e chega à conclusão de que o fio de ouro dos tempos apostólicos passava por Roma. Em nome desse reencontro com o catolicismo, ele abre mão de todos os títulos, de todas as honras; torna-se quase soldado raso num ambiente que custou a aceitá-lo definitivamente.
É o fascínio de Roma, que não morreu.
Mas, para torná-lo efetivo num mundo como o de hoje, muito exame de consciência vai ser necessário, muita mudança de atitude. E a disposição de, como Newman, começar lá de baixo.