21/07/2009

Dom Pedro Casaldáliga e José María Vigil

A noite dos pobres está em vigília


Artigo de Dom Pedro Casaldáliga e do teólogo José María Vigil, publicado no sítio Religión Digital, 19-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



Já sabemos que a Solidariedade está em crise. Falar de crise de solidariedade poderá parecer um lugar comum, mas se trata de uma forte verdade que, de um lado ou de outro, afeta a todos nós: aos que deveriam dar solidariedade e aos que precisam recebê-la. Ou, melhor dito, a todos os que precisam recebê-la e dá-la, porque a solidariedade é um mistério de reciprocidade fraterna inevitável.

Dados dessa crise não faltam. Referimo-nos principalmente à solidariedade com a América Latina. Dos milhares de comitês de solidariedade que chegou a haver, em todo o mundo, com a Nicarágua, por exemplo, a maior parte deles desapareceu. E é curioso observar que, na Espanha, concretamente, desapareceram os chamados comitês "políticos" e permanecem os "cristãos". Pelo bem da verdade, é justo reconhecer que alguns dos primeiros se fundiram com outros organismos mais universais de solidariedade.

No entanto, permanece de pé a observação de Enrique Dussel: talvez, em certas horas de decepção histórica, quando a esperança "científica" foi derrotada pelos fatos, permanece, na noite da fé, além das certezas científicas, a esperança contra toda esperança dos cristãos. O que não significa que essa crise não afeta profundamente também os cristãos e cristãs, sobretudo quando eles também dão o seu devido valor à história e à ciência.

Começar por essa constatação da crise da solidariedade não é negativismo. Trata-se de uma crise de crescimento em última instância. Sempre que se lembre e se assuma responsavelmente o que, de fato, é a solidariedade à luz da fé.

A solidariedade é uma forma plena da caridade de sempre, mas com vivência crítica, histórica, política, geopolítica, de espiritualidade integrada. A solidariedade é a caridade potencializada pela opção pelos pobres. A solidariedade passa, logicamente, pela mesma crise que a opção pelos pobres está passando no coração de muitos e em muitos setores da Igreja.

A opção para os pobres entrou em sua noite escura

Muitos estão se perguntando "o que fica da opção pelos pobres". Entendida como a opção pelas Causas dos pobres, e não somente pelos seus sofrimentos ou sua marginalização.

Os motivos dessa crise maior da opção pelos pobres e, consequentemente, da solidariedade para com eles, são muitos, estrondosos, totais.

- O colapso do Leste Europeu e a queda do socialismo real. O fracasso de algumas revoluções populares. O suposto triunfo do novo império do liberalismo e da hegemonia absoluta do mercado.

- Porque não se "vê" um projeto histórico dos pobres, alternativo, que seja viável neste momento globalizado da política e da economia. Hoje, a opção pelos pobres deve ser feita mais à contramão, sem o respaldo sensível de um organograma que o respalde, sem a força manejável de uma esperança mecanicista que lhe dê credibilidade de faticidade histórica próxima. A opção pelos pobres e por suas Causas, nesta hora noturna, deve ser feita como no ar de fé, como no vento da utopia.

Falando na linguagem cristã, isso não é novidade, mas sim a verdade de sempre. Nossa "esperança contra toda esperança" é uma esperança contra toda aparência, a fé contra toda evidência, o amor contra toda impossibilidade. Ou seja: a opção pelos pobres e a solidariedade com eles deve ser hoje mais teologal do que nunca.

- A pós-modernidade, que, em certa medida, é o cansaço da modernidade ou sua autodecepção, proclama a renúncia aos "grandes relatos" e ao sonambulismo das "Grandes Causas", porque acredita que são inviáveis ou inúteis, e porque opta sistematicamente pelo pragmatismo palpável e pelo consumismo diário.

- A hora psicológica – convergência de todos esses fatores – é de um certo esgotamento ou depressão, de um cansaço de fim de dia, de alergia àquilo que tanto nos fez sofrer e pelo fato de que tantos e tantas, companheiros de caminho, deram tudo, até a vida. De decepção também, porque muitos, companheiros igualmente, falharam conosco. Passado o sopro forte das bandeiras no alto, são muitos e muitas aqueles que se acomodaram ao ritmo do oportunismo ou da segurança.

Hoje, falar de análise social, de conjuntura sócio-política, de crítica racional, de avaliação ética, de juízo teológico, além da prepotência e da evidência do sistema, é uma daquelas "linguagens duras" que aqueles que não estavam muito decididos a seguir Jesus de Nazaré atribuíam a ele (cf. Jo 6, 60).

Não é preciso comungar com rodas de moinho

Com frequência, deixamo-nos abater porque engrandecemos o negativo e comungamos gregariamente com as rodas de moinho que todo o mundo engole nesta hora de queda do "socialismo" e da euforia neoliberal. Também nós podemos acabar reconhecendo, mais ou menos irrefletidamente, que "a história já não vai além".

A fé é essa luz que brilha em um local tenebroso, como dizia o apóstolo Pedro (cf. 2Pe 1, 19). E é preciso usá-la para iluminar criticamente as trevas da história, a mentira do poder e o fascínio dos ídolos.

- Impõe-se uma melhor análise "do que aconteceu", seja no socialismo real (ou "nominal") do Leste, seja em nossas revoluções latino-americanas, seja no "triunfo" do neoliberalismo. Muitas pessoas, mesmo as que há pouco tempo eram críticas do projeto capitalista e da dominação imperialista, agora – introjetando a visão do opressor – aceita as versões que o capital e o Império dão "daquilo que aconteceu": o que aconteceu – pensam – é que o projeto dos pobres – seja qual for o seu nome ou a sua modalidade – entrou em colapso por si mesmo, internamente, porque era e é e será sempre um projeto inviável; na história só está a salvo o projeto dos ricos .

A Guerra Fria e, no nosso caso, a guerra de baixa (alta) intensidade, realizada pela potência mais agressiva da terra; as condenações internacionais, inclusive pelo Corte de Haia; a violação dos direitos dos Povos que as invasões da República Dominicana, Granada, Panamá supõem; a crescente dívida externa que nos impossibilita toda saída ao sol da normalidade, tudo isso ou não existiu, pelo que parece, ou já não existe. Tudo foi simplesmente o autocolapso interno do projeto "impossível" dos pobres.

- Impõe-se também uma rejeição crítica do suposto "triunfo" do capitalismo neoliberal. Porque nós, pelo menos, não vemos em nenhum lugar esse triunfo, se nos referimos à imensa maioria da humanidade. Com o acréscimo de que o próprio capitalismo neoliberal triunfante não se sente tão seguro de si mesmo diante de suas contradições internas. Mas é que, mesmo que tivesse ocorrido esse triunfo do egoísmo estrutural, seria um fracasso ético da família humana, pois estaria se evidenciando, mais uma vez, a impossibilidade de uma política e de uma economia honestamente fraternas; ter-se-ia imposto, outra vez, como única possibilidade, a "ética dos lobos".

- É preciso saber rejeitar as falsas certezas que estão sendo introjetadas quase inconscientemente em nós pela hegemonia do poder em alta. Nossa "década perdida", por exemplo, de fato tem sido para eles a década mais bem ganha. Wall Street tem os dados convincentes: essa foi a década de maiores receitas sustentadas no banco mundial.

- Não podemos acreditar no deus da guerra, aquele Deus que sempre vence, aquele que esmaga o outro, que está sempre do lado dos vencedores. Na própria Bíblia, Deus foi "corrigindo Deus". O Senhor dos exércitos, o abençoador dos grandes rebanhos e das colheitas plenas, foi se tornando cada vez mais o "go'el" dos injustiçados e a mãe das entranhas de misericórdia, até se fazer o Deus pobre, menino, marginalizado e perseguido, crucificado e derrotado em Jesus de Nazaré.

- Também não podemos perder nunca a memória histórica, fundamento da identidade de um povo e autoconsciência de sua viabilidade futura. Os triunfos e as queda dos sucessivos impérios fazem parte da roda da história da humanidade. Hoje, estamos vivendo simplesmente uma nova hora de um nobo império, uma a mais apenas. Aqui, em casa, a história dos 500 anos, sobre os povos indígenas e sobre o povo negro em particular pode nos iluminar oportunamente. Hoje, esses povos estão começando a forjar uns "outros" 500 anos, muito diferentes, do seu lado.

- Não é verdade que "qualquer tempo passado foi melhor". Nem o passado remoto nem o passado imediato. Em primeiro lugar, porque o melhor tempo para cada um de nós é o tempo que Deus nos concede para forjar a nossa vida. Os cristãos e cristãs, principalmente, devem viver sempre para o hoje de Deus em nosso hoje humano. Alguém inclusive classificou toda a Bíblia como "um tempo chamado hoje".

- A prepotência do mal aparece mais facilmente do que a força oculta das sementes do bem. Há muito mais vitalidade alternativa do que parece, na Sociedade e na Igreja, no nosso Terceiro Mundo e no Primeiro Mundo também. São muitas as vozes e as forças que estão se conjugando, em contestação, em profecia, em solidariedade. O fato de que nos sintamos sob a noite não significa que não haja muitas estrelas e que um novo sol está às portas do amanhecer. Hoje, certamente, a consciência, a autocrítica, a vontade de mudança são mais generalizados no mundo porque são mais realistas e estão mais interconectados. Além da CNN, ou da Televisa ou da Globo, há muitos outros canais, graças a Deus.

Nosso Deus é solidariedade

Sempre, mas hoje mais do que nunca, devemos fundamentar teológica e teologalmente a nossa solidariedade. Só com esta fundamentação ela poderá ser plenamente solidariedade cristã e vencer serenamente as vicissitudes da história ou do próprio coração.

Deus em si mesmo, no seu mistério original, é a plena solidariedade de três pessoas em uma mesma vida total. Como as comunidades eclesiais de base no Brasil dizem que "a Santíssima Trindade é a melhor comunidade", nós podemos dizer que "a Santíssima Trindade é a maior solidariedade".

O mistério da Encarnação é a expressão máxima, histórica, submetida a nossas vicissitudes, da solidariedade de Deus com a humanidade. Jesus é a solidariedade de Deus feita carne e sangue, vida e morte, paixão e ressurreição. Nele e por Ele, sabemos como Deus é amor solidário.

Nós não temos muitos mandamentos. Temos apenas um: "Amem-se uns aos outros como eu os amei". O mandamento novo do amor novo se traduz na prática diária e na vivência social e na organização política e econômica da sociedade, por meio da solidariedade efetiva: desinteressada e eficaz. Com todos, mas mais especificamente e acima de tudo e sempre, com esses irmãos e irmãs "menores", como o próprio Jesus nos pediu. No Antigo Testamento, Deus perguntava: onde está o teu irmão? No Novo Testamento, Deus pergunta, mais incisivo: onde está o teu irmão pequeno? Ainda mais, Deus se faz irmão dos irmãos menores.

Nossa fé passa sempre, necessariamente, pela cruz. Nossa solidariedade, também. Diante dessas decepções a que fizemos alusão antes, diante de qualquer gênero de fracasso, a solidariedade cristã apela confiadamente à esperança da ressurreição. Nenhuma vida morre para sempre. A solidariedade que se dá totalmente sempre é um gesto, uma celebração, um "sacramento pascal".

O Reino é a sociedade da solidariedade. Semente escondida, rede de arrasto, tesouro desconhecido para muitos, mas projeto de Deus: sua Causa. A Causa da Solidariedade total. No tempo e para além dele. A solidariedade já vai sendo, na esperança escatológica e na caridade política, o "para além da história".

Caminhante, sim, há caminho

Devemos ser realistas. Conhecer a realidade, responsabilizar-se dela, carregá-la. Isso é o que nos pede o teólogo mártir Ellacuría. Chamar sempre para a realidade mutante pelo seu próprio nome. Abandonar a nostalgia do passado que não vai voltar. Nós não vamos "em busca do tempo perdido." Outra é a nossa memória e a consciência responsável da luta ou do sangue que herdamos.

Pisemos o solo real do neoliberalismo, busquemos suas brechas. Temos que encontrar criativamente os estímulos de luta que pode haver, que há, na nova realidade neoliberal (com certas áreas de liberdade); só formalmente democrática (mas com alguma democracia, no final); supostamente de mercado livre (onde, de fato, como transitam as mercadorias, se transmitem também as ideias e as causas); de mundialização niveladora (mas também a mundialização de intercâmbios fraternos e de comunhão humana).

Sem ter nojo de assuntos que, há alguns anos poderiam nos parecer pequeno-burgueses, devemos entrar nesse combate. Um modo também eficaz de combater o neoliberalismo é combatê-lo – sem se contaminar – e seu próprio campo.

Esse realismo nos exige uma nova fidelidade à solidariedade, que poderia se caracterizar como a prática da solidariedade:

- de noite escura, aparentemente sem saída, no exercício tenso da fé;

- gratuita, sem "eficacionismos", sem compensações; a fidelidade dos que apontam para a marcha dos vencidos e não para o carro dos vencedores;

- sempre profética, porque continua acreditando no Deus que ouve o clamor do seu Povo e desce para libertá-lo, e consola os seus pobres e proclama como vitória a bem-aventurança dos marginalizados;

- que faz da opção pelos pobres "a" opção evangélica, "firme e irrevogável", segundo as palavras de João Paulo II em Santo Domingo;

- que não perde de vista a possibilidade das surpresas, o inesperado das conjunturas;

- que responde como um eco à fidelidade extrema dos nossos muitos mártires, eles e elas. A Igreja só é fiel quando acompanha radicalmente a Testemunha Fiel, Jesus, e suas outras muitas testemunhas fiéis testemunhas que o seguiram;

- que sabe aprender com o afinco daqueles e daquelas que mantiveram sua fidelidade ao longo dos séculos a causas derrotadas historicamente: a Causa indígena, a Causa Negra, a Causa da Mulher, a Causa Operária, a Causa dos Povos menores...

Esse realismo exige também que busquemos e encontremos novas formas de solidariedade, mais atuais e eficazes hoje, germinadoras de futuro:

- mundializemo-nos; pela comunhão universal sempre, em primeiro lugar, e pela comunicação, cada vez mais universal e mais rápida. Como existe uma guerra de morte do Norte contra o Sul, deve haver uma aliança de vida entre o Sul e o Norte. Além de que nem tudo o que existe no Norte é esse Norte de Morte.

- façamos da sociedade civil e de suas várias estruturas e mobilizações o grande espaço de solidariedade. A sociedade é hoje uma reivindicação universal. A maioria dos nossos respectivos concidadãos quer, à sua maneira, participar. Facilitemos sua participação solidária.

Ela deve continuar sendo uma "quinta coluna" dentro do âmbito capitalismo neoliberal e forçar a partir de dentro a evidência de sua perversidade, de suas contradições, de seu não-futuro para a humanidade.

No entanto, hoje e sempre, devemos cultivar a forma de solidariedade permanente, necessária, do pequeno, que se reproduz, que pode acabar fazendo com que o grande germine. Com muitas pequenas "ondas comuns" pode-se chegar a fazer uma grande mesa socializada.

Preparemos o futuro, o substituto que irá pegar a tocha. A rebeldia insatisfeita e a inesgotável generosidade da juventude nos esperam. Hoje, o mundo é mais solidário do que ontem. Amanhã vai ser mais do que hoje. O amanhã se chama solidariedade.

Às vezes teremos que saber enriquecer a nossa linguagem, para falar sem maniqueísmos de opressão-libertação; ou o tom, quando a análise pode parecer excessivamente racional ou pessimista; ou a disposição, cultivando a confiança em nós mesmos e nos demais e jogando a pimenta do bom humor sobre o mau humor da morte imposta; ou a perspectiva, sempre, porque a Humanidade não é suicida, e o Reino é maior do que a Igreja, e nosso Deus é o Deus da vida, e o nosso – como o Seu – é, decididamente, o Reino.

Vamos aprendendo. A tomada do poder será, cada vez mais, pelas armas da consciência comunitária, participante, alternativa. E, do mesmo modo, as maiores derrotas serão as derrotas éticas, da consciência, da solidariedade, do amor. A rebelião mais recentes do Continente, a dos zapatistas de Chiapas, ainda balbuciante como um grito, já está nos ensinando outro modo de se rebelar, com perspectivas maiores e penetrando nos diferentes setores da sociedade; sem canonizar as armas; canonizando só as Causas.

Detalhe: aí estão as jornadas de solidariedade; as datas memoráveis; as publicações; as visitas que vem e que vão; as outras entidades – cristãs ou não, mas comprometidas com alguma das grandes Causas –; as ajudas concretas também – campanhas, autoimposto, remessas de medicamentos ou de alimentos ou de roupa –; as vigílias; as ações artísticas; a militância diária pessoal, que conscientiza na família, no trabalho, na comunidade.

Terminamos, para não terminar e continuar caminhando juntos, com um soneto neobíblico que, no meio da noite dos pobres, pode nos ajudar a lembrar por onde o dia vem e Quem tem a última palavra. Um dos versos deste soneto diz que "a noite dos pobres está em vigília". Todos os pobres "com espírito" e todos os que querem ser solidários com os pobres, devem entrar plenamente nessa ardente vigília pascal.

Só uma flor guarda o entorno
da guarita, livres os terrenos baldios.
Tarda a chuva, mas no calor
já estala a nossa sede de redimidos.

Para que Deus se veja Deus agora,

é preciso ir fazendo o Reino, a contramão

de qualquer outro reino;
e é a hora
de que este mundo lobo seja humano.

Que aconteceu com o latifúndio, sentinela?

O que há de esperança, companheiros?

A noite dos pobres está em vigília,

e o Dono da terra decretou
que se abram os sulcos e silos
porque o eón do lucro já passou.

18/07/2009

Dom Giovanni Franzoni

Encíclica do papa: 'Aquele bem comum é muito genérico', afirma teólogo italiano


“Será que [as vítimas das guerras e dos conflitos étnico-religiosos] podem esperar alguma coisa, no momento em que o papa pega na mão a caneta para escrever uma carta ao mundo sobre a justiça e a caridade?” Essa é a pergunta de Giovanni Franzoni, teólogo e escritor italiano, ex-abade da abadia de São Paulo Fora dos Muros, na Itália, em artigo para o jornal Liberazione, 12-07-2009. A tradução é de Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS



Quando os poderosos da Terra se reúnem para se porem de acordo sobre como produzir riqueza e como distribuí-la igualitariamente sobre o planeta, os “condenados da terra”, os espoliados, os marginalizados, os prisioneiros, os repelidos para as plagas da miséria e da violência, para dar segurança à vida boa ao bem-estar do ocidente desenvolvido, deveriam aguçar os seus sentidos e aguardar algum vestígio de esperança de libertação. Temo precisamente que nos campos de prófugos do Darfur, na prisão a céu aberto de Gaza ou entre os iraquenses acampados nos confins da Síria, ou em qualquer outro campo de concentração no qual estão refugiadas as vítimas das guerras e dos conflitos étnico-religiosos não esperem que algo misterioso de qualquer G se reúna.

Será que podem esperar alguma coisa, no momento em que o papa pega na mão a caneta para escrever uma carta ao mundo sobre a justiça e a caridade?

A interrogação é premente no momento em que sai a encíclica do papa Bento "Caritas in veritate" (A caridade na verdade). Provavelmente a carta não chegará diretamente aos “pobres da terra” que dificilmente a lerão, mas certamente chega a todos aqueles que por fé religiosa ou por consciência humanitária estão envolvidos no problema da pobreza no mundo e esperam palavras novas daqueles que são devedores de uma esperança fundada sobre as promessas bíblicas e sobre o anúncio evangélico.

Infelizmente a encíclica papal se alonga e se repete, intercalando os conceitos de justiça, caridade e verdade, sem dar perspectivas concretas e inovadoras. O que se pretende na encíclica na verdade aparece com bastante evidência no contínuo referir-se à autoridade do romano pontífice e na total ausência de uma harmonização das intervenções no âmbito ecumênico e inter-religioso. Parece realmente que a verdade da qual se fala seja a doutrina católica, rigorosamente controlada pela Congregação para a Doutrina da Fé. De colaboração no plano ecumênico realmente não se fala. Certamente o papa se dirige ao mundo e por isso pode ignorar que na Itália haja, com prazo restrito, a declaração dos rendimentos incluindo a destinação dos oito por mil.

Mas, quem assegura que algum pregador, desconsiderado no plano teológico e espertinho no pragmático, não aproveite a ocasião para usar a encíclica como instrumento de apoio à publicidade da igreja católica na TV? As estatísticas nos informam que as igrejas evangélicas tem uma base para conferir os oito por mil muito mais ampla do que tudo o que se poderia esperar dos seus membros de igreja; isto poderia derivar do fato de que as igrejas protestantes publicam os seus balanços sobre oito por mil e só usam os proventos para intervenções sociais, estruturais e assistenciais, excluindo o seu uso para a manutenção do culto e dos pastores. O fato de que a igreja católica use estes fundos também para a manutenção do clero, pode ter convencido muitos católicos a dar sua contribuição aos protestantes. E eis a iluminação que poderia descer de qualquer púlpito: mas a caridade dos protestantes não acontece “na verdade” – é o papa que o diz! – e portanto, não é verdadeira caridade.

Grande alegria espiritual e generoso passo em frente se verificaria no ecumenismo no dia em que as igrejas de qualquer denominação e as religiões de todo o planeta convergissem com os “homens” (... e as mulheres) de “boa vontade” no enfrentamento do problema da pobreza no mundo. Então se poderia exclamar com as palavras das Bíblia: “E a luz se fez”. Um aspecto positivo da encíclica do papa Bento está no espaço dado ao Concílio e aos documentos sociais de Paulo VI. Entre as muitas afirmações dos documentos conciliares sobre os valores da pobreza e sobre a dignidade e as esperanças dos pobres deve-se recordar quanto é afirmado na Apostolicam actuositatem (A atividade apostólica) a propósito da relação entre justiça e caridade.

No parágrafo 8 deste documento, referente ao papel dos leigos na igreja, se lê: “... a pureza de intenção não seja manchada por nenhuma investigação da própria utilidade ou do desejo de domínio; sejam acima de tudo cumpridas as obrigações de justiça, para que não os ofereça como dom de caridade aquilo que já é devido a título de justiça; sejam eliminados não só os efeitos, mas também as causas dos males...” e a ação seja ordenada a libertar da dependência e criar auto-suficiência. Este pensamento foi retomado pelo papa João Paulo II na Mensagem pela Paz de 2000, em vista do Jubileu, mas depois foi esquecido e submerso pela prática das indulgências e das peregrinações. Seria o tempo de retomá-lo e enfrentar agora o tema dos “bens comuns”, ao invés de continuar sempre a falar de convergência para o “bem comum”, que depois cada um interpreta como quer, talvez considerando as recusas dos que requerem asilo como ações voltadas ao bem comum e as ceias de beneficência como a alternativa à solidariedade vivida.

A práxis da solidariedade é bem conhecida entre aqueles que se empenham nas faixas sociais débeis e une crentes e não crentes em projetos concretos e libertadores. Há aqui uma verdade e uma honestidade de ação que poderia ser mais conhecida e apreciada.

[grifos do blog]

Para ler mais:


Monge Enzo Bianchi

'Caritas in veritate': além da lógica da troca

Artigo de Enzo Bianchi, teólogo italiano e prior do Mosteiro de Bose, publicado no jornal La Stampa, 12-07-2009. A tradução é e Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS



A nova encíclica de Bento XVI "Caritas in veritate" – a terceira do seu pontificado – é um apelo dirigido não só à Igreja em sua catolicidade, mas também “a todos os homens de boa vontade”, segundo a expressão inaugurada pelo papa João XXIII com a "Pacem in terris". Um apelo a redescobrir a face autêntica da caridade, sua articulação com a razão, o seu existir inseparável da justiça, sua capacidade de plasmar o bem comum. Não uma espécie de suplemento de alma para uma sociedade em busca de valores perdidos – “um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente trocado por uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social, mas marginais” – porém antes o testemunho de tudo o que pertence à profundidade do coração humano e, ao mesmo tempo, excede a própria justiça.

“A caridade na verdade, da qual Jesus Cristo se fez testemunho”, se lança, como nos atestam os evangelhos, até o extremo do amor pelo inimigo, é vivida na gratuidade que não procura nem espera a reciprocidade, se manifesta no perdão unilateral, no saber responder ao mal com o bem. Como esquecer a audácia com que João Paulo II sublinhava esta excelência da caridade com respeito à justiça em sua mensagem para a Jornada mundial da Paz em 2002, quando se animou a afirmar que “não há justiça sem perdão”?

É este o amplo sopro que atravessa as páginas da nova encíclica. Não é por acaso que Bento XVI quis conectá-la, com força e convicção, ao magistério social da Igreja que veio se desenvolvendo no último século, propondo em particular uma sábia e aprofundada leitura da "Populorum progressio" de Paulo VI, publicada “numa fecunda relação com o concílio e em particular a Constituição pastoral 'Gaudium et spes'”. A “mensagem da "Populorum progressio" não é somente o objeto, e o título, do primeiro capítulo da nova encíclica, mas atravessa toda a "Caritas in veritate", servindo de fio condutor das reflexões de Bento XVI.

De resto, é um texto que, relido na distância de mais de 40 anos, em nada aparece ultrapassado, porém mostra uma vez mais todo o seu alcance profético: nestas décadas assistimos ao fim do eurocentrismo, ao desaparecimento do colonialismo, ao desmoronamento das ideologias dominantes – da implosão do socialismo real à crise do neoliberalismo – mas a voz autorizada da Igreja no campo social conservou uma profunda continuidade, mostrando-se “um único ensinamento, coerente e ao mesmo tempo sempre novo”.

Sem dúvida os eventos mais ou menos recentes que abalaram convicções radicadas na abordagem das realidades sociais e econômicas – da globalização à crise que estamos atravessando – são atentamente tomados em consideração e fornecem o estímulo para uma leitura não desencarnada do mundo e de suas ocorrências, mas o olhar sabe voltar-se às experiências do passado, sabe lançar-se a perscrutar o horizonte futuro, sabe descer mais em profundidade precisamente graças àquele “pensar grande” que é próprio da Igreja como comunidade viva e não só como instituição histórica. Toda vez que a Igreja relê o próprio passado é chamada, de fato, à luz da palavra de Deus e, a perceber-se a si mesma como uma única realidade viva, habitada por uma comunhão que vai além da pertença a um determinado período histórico ou a uma realidade geopolítica específica.

A análise do papa procede, assim, sem deixar-se condicionar por estéreis contraposições, porém antes convidando a um sábio discernimento em vista da assunção de responsabilidades precisas, tanto da parte de cada pessoa como de quem reveste uma função de governo institucional. Neste sentido, há alguns elementos da encíclica que vale a pena sublinhar, precisamente enquanto capazes de conduzir o leitor pelos aspectos mais amplamente implicados no complexo sócio-econômico com instâncias mais universais, com princípios que, profundamente atinentes à fé cristã, contêm uma “boa nova” também para quem não é cristão.

Penso em particular na “economia da gratuidade e da fraternidade” – expressão já utilizada por João Paulo II na "Centesimus annus" – tão necessária num mundo sempre mais voltado à eficiência, mas que na realidade esquece o dom, mortifica a solidariedade, dissolve a responsabilidade. A gratuidade, declinação da “caridade na verdade” é capaz de se endereçar “além da lógica da troca dos equivalentes e do lucro como fim em si mesmo”, e de inserir nas existências dos indivíduos e nas relações sociais dinâmicas autenticamente libertadoras.

Um segundo aspecto evidenciado por Bento XVI é a “responsabilidade pelo desenvolvimento integral próprio e do próximo”, hoje ameaçada pela progressiva perda de consciência de que “os direitos pressupõem deveres sem os quais se transformam em arbítrio”. Responsabilidade, portanto, como assunção do nosso dever de prestar contas, “re-sponder” a quem condivide o nosso espaço vital, mas também a quem de longe sofre hoje as conseqüências do nosso agir ou às gerações futuras que receberão em herança um mundo marcado, no bem e no mal, pelas nossas condutas cotidianas. De resto, esta capacidade de “prestar contas da esperança” a quem aqui habita é uma das qualidades que a Igreja desde seu nascimento requer dos cristãos, como já testemunhava o apóstolo Pedro nos albores do cristianismo: a quem lhe pede satisfação das motivações de seu agir, o cristão deve saber responder “com doçura e respeito” (Pedro 3,15), não só e não tanto em palavras, mas com a eloqüência do próprio estilo de vida.

E enfim, não seja silenciada a renovada insistência com que Bento XVI convida ao “diálogo fecundo entre fé e razão”, que não só “torna mais eficaz a obra da caridade no social”, mas que “constitui a moldura mais apropriada para incentivar a colaboração fraterna entre crentes e não crentes, na compartilhada perspectiva de trabalhar pela justiça e pela paz da humanidade”. Sim, juntos podemos buscar e perseguir perspectivas compartilhadas, juntos podemos edificar, dia após dia, uma humanidade digna de tal nome, capaz de viver num mundo no qual, segundo a profecia do salmo, “misericórdia e verdade se encontrarão, paz e justiça se beijarão”.

[grifos do blog]

Para ler mais:



07/07/2009

A primeira encíclica social de Bento XVI foi publicada

Hoje, de manhã, foi publicada a primeira encíclica social de Bento XVI, Caritas in Veritate.

A notícia é do portal do jornal La Repubblica, 07-07-2009.

Bento XVI aborda, na encíclica, de 137 páginas e seis capítulos, a ética na economia.

Ela é publicada precisamente quando se abre a reunião do G-8, em L'Aquila, na Itália.

Segundo o portal do jornal espanhol El País, 07-07-2009, a encíclica manifesta "Um Ratzinger globalizado e de esquerda".

A versão portuguesa pode ser lida na íntegra aqui.
Fonte: UNISINOS

04/07/2009

Chaves de leitura da encíclica social de Bento XVI

Os italianos têm uma expressão maravilhosa, "chiave di lettura", que literalmente significa "chave de leitura". Ela se refere a alguma ideia ou perspectiva central, que pode ajudar a se entender o sentido de um montante complexo de material. Como a tão esperada encíclica sobre a economia está marcada para aparecer na próxima terça-feira, 07, parece ser um bom momento para sugerir uma possível "chiave di lettura" para o documento, que eu posso expressar em uma palavra: síntese. A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 02-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Intitulada "Caritas in Veritate" (em inglês o título é "Love in Truth", amor na verdade), a encíclica será apresentada na próxima terça-feira em uma coletiva de imprensa no Vaticano. Eu vou estar de olho nela, assim como ao encontro do Papa Bento com o presidente Barack Obama, na próxima quinta-feira, 09.

Mesmo que o Papa possa não dizer isto dessa forma, grande parte da "Caritas in Veritate" bem poderia assumir a forma de uma tentativa de sintetizar três das mais persistentes – e Bento XVI diria, sem dúvida, artificiais – dicotomias da experiência católica recente:

* Conversão pessoal versus reforma social;
* Compromisso pró-vida versus compromisso com a justiça;
* Espiritualidade horizontal versus vertical.

Todos os três pontos podem ser entendidos como versões parciais de uma "grande dicotomia", a dicotomia entre verdade e amor.

Na verdade, essa ideia provavelmente não irá aparecer em muitas manchetes na terça-feira, que provavelmente estarão focadas nas recomendações políticas do papa, e/ou na sua condenação à cobiça. Nos blogs, enquanto isso, uma troca de acusações certamente irá surgir sobre o fato de a encíclica se inclinar mais à direita ou à esquerda política. (A nota que irá sair sobre ela três dias antes de o presidente Barack Obama se encontrar com Bento, provavelmente irá alimentar esse círculo de efeitos).

Porém, para aqueles interessados em ir mais fundo, suspeito que a "síntese" irá provar ser uma forma de ajudar a desatar os nós do documento.

A inspiração para essa "chiave di lettura" vem do próprio Bento, em uma sessão de perguntas e respostas há dois anos com padres da diocese de Belluno-Feltre e Treviso, na Itália. Naquela ocasião, Bento disse: "O catolicismo, um pouco simplistamente, foi sempre considerado a religião do grande 'et et': não de grandes exclusivismos, mas da síntese".

Inspecionando o que já foi dito sobre "Caritas in Veritate", parece que esse espírito "e/e" provavelmente irá pulsar no documento.

Conversão pessoal e mudança social

Talvez, nenhuma ideia singular irá parecer maior do que a insistência de que uma real solução para a crise econômica global – que deve envolver, claro, a análise de questões estruturais, como as relações de mercado, as políticas de impostos, as práticas de empréstimo e assim por diante – deve estar, em primeiro lugar, enraizada na conversão pessoal. A menos que, individualmente, os seres humanos ajam eticamente e se vejam como responsáveis pelo bem comum, qualquer sistema pode ser seqüestrado, subvertido e corrompido, independentemente de quão nobre é o seu formato.

Há poucos dias, trechos não oficiais da "Caritas in Veritate" foram publicados na imprensa italiana, e essa ideia figurou em peso naquelas passagens.

"O desenvolvimento é impossível sem homens retos, sem operadores econômicos e homens políticos que vivam fortemente, nas suas consciências, o apelo ao bem comum", foi o que se publicou como aquilo que o Papa teria escrito.

No entanto, não precisamos de brechas para captar um sentido do que está a caminho, porque muitas das declarações públicas de Bento durante a semana passada pareceram ser uma prévia da encíclica.

Em uma homilia na segunda-feira, Bento refletiu sobre a ligação entre o pessoal e o social: "O desinteresse pela alma, o empobrecimento do homem interior, não só destrói a própria pessoa, mas também ameaça o destino da humanidade em seu conjunto. Sem curar a alma, sem curar o homem a partir de dentro, não pode haver salvação para a humanidade".

No dia anterior, durante as vésperas na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, para marcar o encerramento do "Ano Paulino", Bento ofereceu outra versão da mesma questão: "São Paulo nos diz: o mundo não pode se renovar sem homens novos", disse. "Só haverá homens novos se também houver um mundo novo, um mundo renovado e melhor".

Em parte, essa ênfase em manter o pessoal e o social juntos retoma uma ideia chave da primeira encíclica de Bento, "Deus Caritas Est", em que ele argumenta que os programas de justiça social nunca podem eliminar a necessidade de atos individuais de caridade. Nesse sentido, "Caritas in Veritate" provavelmente deve aplicar a mesma intuição à economia: não há justiça econômica sem moralidade individual – enraizada, enfim, na verdade.

Compromissos pró-vida e de paz-e-justiça

Assim como fez em outros lugares, Bento provavelmente irá rejeitar qualquer tentativa de escolha dentre os ensinamentos sociais da Igreja, particularmente no que se refere à tendência cansativamente familiar dentre os católicos de se dividir entre campos pró-vida e de paz-e-justiça.

Durante as vésperas na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, Bento fez uma homilia que lembrou o seu famoso discurso sobre a "ditadura do relativismo" no auge do conclave que o elegeu ao papado. Assim como há quatro anos, Bento, na segunda-feira, estava refletindo sobre a carta de São Paulo aos efésios, convidando os cristãos a não serem como crianças "ao sabor das ondas, agitados por qualquer sopro de doutrina, ao capricho da malignidade dos homens" [Efésios 4, 14].

Nesse espírito, Bento disse que a renovação espiritual requer "não conformismo", uma disposição a "não se submeter ao esquema da época atual". Bento retomou a insistência de Paulo em uma "fé adulta", zombando do uso dessa frase para justificar o dissenso da doutrina católica oficial.

"A frase 'fé adulta', nas últimas décadas, se tornou um slogan difuso", disse o Papa. "Muitas vezes, ela é entendida no sentido da atitude de quem não dá mais ouvidos à Igreja e aos seus Pastores, mas que escolhe autonomamente em que quer crer e não crer – uma fé 'faça-você-mesmo', portanto. E ela se apresenta como 'coragem' de se expressar contra o Magistério da Igreja".

"Na realidade, porém, não se precisa de coragem para isso, porque sempre se pode estar certo do aplauso público", disse o Papa. "O que exige coragem é aderir à fé da Igreja, mesmo que ela contradiga o 'esquema' do mundo contemporâneo".

Bento destacou especificamente a oposição entre o aborto e o casamento gay.

"Faz parte dessa fé adulta, por exemplo, o compromisso com a inviolabilidade da vida humana desde o primeiro momento, opondo-se radicalmente com isso ao princípio da violência, justamente na defesa das criaturas humanas mais indefesas", disse o Papa. "Faz parte da fé adulta reconhecer o casamento entre um homem e uma mulher por toda a vida, como ordem do Criador, restabelecida novamente por Cristo".

As pequenas porções da "Caritas in Veritate" que apareceram sugerem que Bento irá voltar a esse ponto na encíclica.

"A abertura à vida está no coração do verdadeiro desenvolvimento", escreveu o Papa, de acordo com as notícias. "Se perdermos a sensibilidade pessoal e social para acolher a nova vida, então outras formas de acolhida que também são úteis para a vida social irão murchar".

Espiritualidade horizontal e vertical

Uma terceira tensão recorrente na vida católica ocorre entre uma espiritualidade primariamente "vertical", focada na vida de fé pessoal do fiel e na relação com Deus, e uma que é mais "horizontal", enfatizando-se a comunhão do fiel e um maior engajamento com o mundo. Essa tensão às vezes acaba por colocar os esforços missionários e o ativismo pela justiça social em conflito, como se pregar o evangelho fosse uma distração para se construir um mundo melhor.

Em outras ocasiões, quando Bento XVI tocou em temas sociais, ele defendeu que não apenas as espiritualidades vertical e horizontal podem se reconciliar, como também a primeira é uma condição "sine qua non" para a segunda. Não pode haver um mundo justo, insistiu o Pontífice, sem Cristo, que é a fonte da justiça.

Esse tema surgiu mais claramente durante a viagem de Bento ao Brasil, em 2007, quando ele refletiu em profundidade sobre a ideia da América Latina como um "continente de esperança".

"Não é uma ideologia política, nem um movimento social, nem mesmo um sistema econômico", disse o Papa, "mas é a fé em Deus Amor, encarnado, morto e ressuscitado em Jesus Cristo, o autêntico fundamento dessa esperança".

Bento assumiu que uma espiritualidade vertical "não deve ser motivo de evasão da realidade história em que a Igreja vive compartilhando as alegrias e as esperanças, as dores e as angústias da humanidade contemporânea, especialmente dos mais pobres e daqueles que sofrem". Porém, Bento insistiu que a solidariedade social também não deve excluir a proclamação de Cristo, a participação nos sacramentos e a promoção da santidade.

De acordo com os trechos que circulam, Bento também irá abordar esse ponto na "Caritas in Veritate".

A verdade e o amor de Cristo, segundo aquilo que o Papa teria escrito, são "as principais fontes para o serviço do verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa humana e de toda a humanidade".