Os italianos têm uma expressão maravilhosa, "chiave di lettura", que literalmente significa "chave de leitura". Ela se refere a alguma ideia ou perspectiva central, que pode ajudar a se entender o sentido de um montante complexo de material. Como a tão esperada encíclica sobre a economia está marcada para aparecer na próxima terça-feira, 07, parece ser um bom momento para sugerir uma possível "chiave di lettura" para o documento, que eu posso expressar em uma palavra: síntese. A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 02-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS
Intitulada "Caritas in Veritate" (em inglês o título é "Love in Truth", amor na verdade), a encíclica será apresentada na próxima terça-feira em uma coletiva de imprensa no Vaticano. Eu vou estar de olho nela, assim como ao encontro do Papa Bento com o presidente Barack Obama, na próxima quinta-feira, 09.
Mesmo que o Papa possa não dizer isto dessa forma, grande parte da "Caritas in Veritate" bem poderia assumir a forma de uma tentativa de sintetizar três das mais persistentes – e Bento XVI diria, sem dúvida, artificiais – dicotomias da experiência católica recente:
* Conversão pessoal versus reforma social;
* Compromisso pró-vida versus compromisso com a justiça;
* Espiritualidade horizontal versus vertical.
Todos os três pontos podem ser entendidos como versões parciais de uma "grande dicotomia", a dicotomia entre verdade e amor.
Na verdade, essa ideia provavelmente não irá aparecer em muitas manchetes na terça-feira, que provavelmente estarão focadas nas recomendações políticas do papa, e/ou na sua condenação à cobiça. Nos blogs, enquanto isso, uma troca de acusações certamente irá surgir sobre o fato de a encíclica se inclinar mais à direita ou à esquerda política. (A nota que irá sair sobre ela três dias antes de o presidente Barack Obama se encontrar com Bento, provavelmente irá alimentar esse círculo de efeitos).
Porém, para aqueles interessados em ir mais fundo, suspeito que a "síntese" irá provar ser uma forma de ajudar a desatar os nós do documento.
A inspiração para essa "chiave di lettura" vem do próprio Bento, em uma sessão de perguntas e respostas há dois anos com padres da diocese de Belluno-Feltre e Treviso, na Itália. Naquela ocasião, Bento disse: "O catolicismo, um pouco simplistamente, foi sempre considerado a religião do grande 'et et': não de grandes exclusivismos, mas da síntese".
Inspecionando o que já foi dito sobre "Caritas in Veritate", parece que esse espírito "e/e" provavelmente irá pulsar no documento.
Conversão pessoal e mudança social
Talvez, nenhuma ideia singular irá parecer maior do que a insistência de que uma real solução para a crise econômica global – que deve envolver, claro, a análise de questões estruturais, como as relações de mercado, as políticas de impostos, as práticas de empréstimo e assim por diante – deve estar, em primeiro lugar, enraizada na conversão pessoal. A menos que, individualmente, os seres humanos ajam eticamente e se vejam como responsáveis pelo bem comum, qualquer sistema pode ser seqüestrado, subvertido e corrompido, independentemente de quão nobre é o seu formato.
Há poucos dias, trechos não oficiais da "Caritas in Veritate" foram publicados na imprensa italiana, e essa ideia figurou em peso naquelas passagens.
"O desenvolvimento é impossível sem homens retos, sem operadores econômicos e homens políticos que vivam fortemente, nas suas consciências, o apelo ao bem comum", foi o que se publicou como aquilo que o Papa teria escrito.
No entanto, não precisamos de brechas para captar um sentido do que está a caminho, porque muitas das declarações públicas de Bento durante a semana passada pareceram ser uma prévia da encíclica.
Em uma homilia na segunda-feira, Bento refletiu sobre a ligação entre o pessoal e o social: "O desinteresse pela alma, o empobrecimento do homem interior, não só destrói a própria pessoa, mas também ameaça o destino da humanidade em seu conjunto. Sem curar a alma, sem curar o homem a partir de dentro, não pode haver salvação para a humanidade".
No dia anterior, durante as vésperas na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, para marcar o encerramento do "Ano Paulino", Bento ofereceu outra versão da mesma questão: "São Paulo nos diz: o mundo não pode se renovar sem homens novos", disse. "Só haverá homens novos se também houver um mundo novo, um mundo renovado e melhor".
Em parte, essa ênfase em manter o pessoal e o social juntos retoma uma ideia chave da primeira encíclica de Bento, "Deus Caritas Est", em que ele argumenta que os programas de justiça social nunca podem eliminar a necessidade de atos individuais de caridade. Nesse sentido, "Caritas in Veritate" provavelmente deve aplicar a mesma intuição à economia: não há justiça econômica sem moralidade individual – enraizada, enfim, na verdade.
Compromissos pró-vida e de paz-e-justiça
Assim como fez em outros lugares, Bento provavelmente irá rejeitar qualquer tentativa de escolha dentre os ensinamentos sociais da Igreja, particularmente no que se refere à tendência cansativamente familiar dentre os católicos de se dividir entre campos pró-vida e de paz-e-justiça.
Durante as vésperas na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, Bento fez uma homilia que lembrou o seu famoso discurso sobre a "ditadura do relativismo" no auge do conclave que o elegeu ao papado. Assim como há quatro anos, Bento, na segunda-feira, estava refletindo sobre a carta de São Paulo aos efésios, convidando os cristãos a não serem como crianças "ao sabor das ondas, agitados por qualquer sopro de doutrina, ao capricho da malignidade dos homens" [Efésios 4, 14].
Nesse espírito, Bento disse que a renovação espiritual requer "não conformismo", uma disposição a "não se submeter ao esquema da época atual". Bento retomou a insistência de Paulo em uma "fé adulta", zombando do uso dessa frase para justificar o dissenso da doutrina católica oficial.
"A frase 'fé adulta', nas últimas décadas, se tornou um slogan difuso", disse o Papa. "Muitas vezes, ela é entendida no sentido da atitude de quem não dá mais ouvidos à Igreja e aos seus Pastores, mas que escolhe autonomamente em que quer crer e não crer – uma fé 'faça-você-mesmo', portanto. E ela se apresenta como 'coragem' de se expressar contra o Magistério da Igreja".
"Na realidade, porém, não se precisa de coragem para isso, porque sempre se pode estar certo do aplauso público", disse o Papa. "O que exige coragem é aderir à fé da Igreja, mesmo que ela contradiga o 'esquema' do mundo contemporâneo".
Bento destacou especificamente a oposição entre o aborto e o casamento gay.
"Faz parte dessa fé adulta, por exemplo, o compromisso com a inviolabilidade da vida humana desde o primeiro momento, opondo-se radicalmente com isso ao princípio da violência, justamente na defesa das criaturas humanas mais indefesas", disse o Papa. "Faz parte da fé adulta reconhecer o casamento entre um homem e uma mulher por toda a vida, como ordem do Criador, restabelecida novamente por Cristo".
As pequenas porções da "Caritas in Veritate" que apareceram sugerem que Bento irá voltar a esse ponto na encíclica.
"A abertura à vida está no coração do verdadeiro desenvolvimento", escreveu o Papa, de acordo com as notícias. "Se perdermos a sensibilidade pessoal e social para acolher a nova vida, então outras formas de acolhida que também são úteis para a vida social irão murchar".
Espiritualidade horizontal e vertical
Uma terceira tensão recorrente na vida católica ocorre entre uma espiritualidade primariamente "vertical", focada na vida de fé pessoal do fiel e na relação com Deus, e uma que é mais "horizontal", enfatizando-se a comunhão do fiel e um maior engajamento com o mundo. Essa tensão às vezes acaba por colocar os esforços missionários e o ativismo pela justiça social em conflito, como se pregar o evangelho fosse uma distração para se construir um mundo melhor.
Em outras ocasiões, quando Bento XVI tocou em temas sociais, ele defendeu que não apenas as espiritualidades vertical e horizontal podem se reconciliar, como também a primeira é uma condição "sine qua non" para a segunda. Não pode haver um mundo justo, insistiu o Pontífice, sem Cristo, que é a fonte da justiça.
Esse tema surgiu mais claramente durante a viagem de Bento ao Brasil, em 2007, quando ele refletiu em profundidade sobre a ideia da América Latina como um "continente de esperança".
"Não é uma ideologia política, nem um movimento social, nem mesmo um sistema econômico", disse o Papa, "mas é a fé em Deus Amor, encarnado, morto e ressuscitado em Jesus Cristo, o autêntico fundamento dessa esperança".
Bento assumiu que uma espiritualidade vertical "não deve ser motivo de evasão da realidade história em que a Igreja vive compartilhando as alegrias e as esperanças, as dores e as angústias da humanidade contemporânea, especialmente dos mais pobres e daqueles que sofrem". Porém, Bento insistiu que a solidariedade social também não deve excluir a proclamação de Cristo, a participação nos sacramentos e a promoção da santidade.
De acordo com os trechos que circulam, Bento também irá abordar esse ponto na "Caritas in Veritate".
A verdade e o amor de Cristo, segundo aquilo que o Papa teria escrito, são "as principais fontes para o serviço do verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa humana e de toda a humanidade".
Intitulada "Caritas in Veritate" (em inglês o título é "Love in Truth", amor na verdade), a encíclica será apresentada na próxima terça-feira em uma coletiva de imprensa no Vaticano. Eu vou estar de olho nela, assim como ao encontro do Papa Bento com o presidente Barack Obama, na próxima quinta-feira, 09.
Mesmo que o Papa possa não dizer isto dessa forma, grande parte da "Caritas in Veritate" bem poderia assumir a forma de uma tentativa de sintetizar três das mais persistentes – e Bento XVI diria, sem dúvida, artificiais – dicotomias da experiência católica recente:
* Conversão pessoal versus reforma social;
* Compromisso pró-vida versus compromisso com a justiça;
* Espiritualidade horizontal versus vertical.
Todos os três pontos podem ser entendidos como versões parciais de uma "grande dicotomia", a dicotomia entre verdade e amor.
Na verdade, essa ideia provavelmente não irá aparecer em muitas manchetes na terça-feira, que provavelmente estarão focadas nas recomendações políticas do papa, e/ou na sua condenação à cobiça. Nos blogs, enquanto isso, uma troca de acusações certamente irá surgir sobre o fato de a encíclica se inclinar mais à direita ou à esquerda política. (A nota que irá sair sobre ela três dias antes de o presidente Barack Obama se encontrar com Bento, provavelmente irá alimentar esse círculo de efeitos).
Porém, para aqueles interessados em ir mais fundo, suspeito que a "síntese" irá provar ser uma forma de ajudar a desatar os nós do documento.
A inspiração para essa "chiave di lettura" vem do próprio Bento, em uma sessão de perguntas e respostas há dois anos com padres da diocese de Belluno-Feltre e Treviso, na Itália. Naquela ocasião, Bento disse: "O catolicismo, um pouco simplistamente, foi sempre considerado a religião do grande 'et et': não de grandes exclusivismos, mas da síntese".
Inspecionando o que já foi dito sobre "Caritas in Veritate", parece que esse espírito "e/e" provavelmente irá pulsar no documento.
Conversão pessoal e mudança social
Talvez, nenhuma ideia singular irá parecer maior do que a insistência de que uma real solução para a crise econômica global – que deve envolver, claro, a análise de questões estruturais, como as relações de mercado, as políticas de impostos, as práticas de empréstimo e assim por diante – deve estar, em primeiro lugar, enraizada na conversão pessoal. A menos que, individualmente, os seres humanos ajam eticamente e se vejam como responsáveis pelo bem comum, qualquer sistema pode ser seqüestrado, subvertido e corrompido, independentemente de quão nobre é o seu formato.
Há poucos dias, trechos não oficiais da "Caritas in Veritate" foram publicados na imprensa italiana, e essa ideia figurou em peso naquelas passagens.
"O desenvolvimento é impossível sem homens retos, sem operadores econômicos e homens políticos que vivam fortemente, nas suas consciências, o apelo ao bem comum", foi o que se publicou como aquilo que o Papa teria escrito.
No entanto, não precisamos de brechas para captar um sentido do que está a caminho, porque muitas das declarações públicas de Bento durante a semana passada pareceram ser uma prévia da encíclica.
Em uma homilia na segunda-feira, Bento refletiu sobre a ligação entre o pessoal e o social: "O desinteresse pela alma, o empobrecimento do homem interior, não só destrói a própria pessoa, mas também ameaça o destino da humanidade em seu conjunto. Sem curar a alma, sem curar o homem a partir de dentro, não pode haver salvação para a humanidade".
No dia anterior, durante as vésperas na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, para marcar o encerramento do "Ano Paulino", Bento ofereceu outra versão da mesma questão: "São Paulo nos diz: o mundo não pode se renovar sem homens novos", disse. "Só haverá homens novos se também houver um mundo novo, um mundo renovado e melhor".
Em parte, essa ênfase em manter o pessoal e o social juntos retoma uma ideia chave da primeira encíclica de Bento, "Deus Caritas Est", em que ele argumenta que os programas de justiça social nunca podem eliminar a necessidade de atos individuais de caridade. Nesse sentido, "Caritas in Veritate" provavelmente deve aplicar a mesma intuição à economia: não há justiça econômica sem moralidade individual – enraizada, enfim, na verdade.
Compromissos pró-vida e de paz-e-justiça
Assim como fez em outros lugares, Bento provavelmente irá rejeitar qualquer tentativa de escolha dentre os ensinamentos sociais da Igreja, particularmente no que se refere à tendência cansativamente familiar dentre os católicos de se dividir entre campos pró-vida e de paz-e-justiça.
Durante as vésperas na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, Bento fez uma homilia que lembrou o seu famoso discurso sobre a "ditadura do relativismo" no auge do conclave que o elegeu ao papado. Assim como há quatro anos, Bento, na segunda-feira, estava refletindo sobre a carta de São Paulo aos efésios, convidando os cristãos a não serem como crianças "ao sabor das ondas, agitados por qualquer sopro de doutrina, ao capricho da malignidade dos homens" [Efésios 4, 14].
Nesse espírito, Bento disse que a renovação espiritual requer "não conformismo", uma disposição a "não se submeter ao esquema da época atual". Bento retomou a insistência de Paulo em uma "fé adulta", zombando do uso dessa frase para justificar o dissenso da doutrina católica oficial.
"A frase 'fé adulta', nas últimas décadas, se tornou um slogan difuso", disse o Papa. "Muitas vezes, ela é entendida no sentido da atitude de quem não dá mais ouvidos à Igreja e aos seus Pastores, mas que escolhe autonomamente em que quer crer e não crer – uma fé 'faça-você-mesmo', portanto. E ela se apresenta como 'coragem' de se expressar contra o Magistério da Igreja".
"Na realidade, porém, não se precisa de coragem para isso, porque sempre se pode estar certo do aplauso público", disse o Papa. "O que exige coragem é aderir à fé da Igreja, mesmo que ela contradiga o 'esquema' do mundo contemporâneo".
Bento destacou especificamente a oposição entre o aborto e o casamento gay.
"Faz parte dessa fé adulta, por exemplo, o compromisso com a inviolabilidade da vida humana desde o primeiro momento, opondo-se radicalmente com isso ao princípio da violência, justamente na defesa das criaturas humanas mais indefesas", disse o Papa. "Faz parte da fé adulta reconhecer o casamento entre um homem e uma mulher por toda a vida, como ordem do Criador, restabelecida novamente por Cristo".
As pequenas porções da "Caritas in Veritate" que apareceram sugerem que Bento irá voltar a esse ponto na encíclica.
"A abertura à vida está no coração do verdadeiro desenvolvimento", escreveu o Papa, de acordo com as notícias. "Se perdermos a sensibilidade pessoal e social para acolher a nova vida, então outras formas de acolhida que também são úteis para a vida social irão murchar".
Espiritualidade horizontal e vertical
Uma terceira tensão recorrente na vida católica ocorre entre uma espiritualidade primariamente "vertical", focada na vida de fé pessoal do fiel e na relação com Deus, e uma que é mais "horizontal", enfatizando-se a comunhão do fiel e um maior engajamento com o mundo. Essa tensão às vezes acaba por colocar os esforços missionários e o ativismo pela justiça social em conflito, como se pregar o evangelho fosse uma distração para se construir um mundo melhor.
Em outras ocasiões, quando Bento XVI tocou em temas sociais, ele defendeu que não apenas as espiritualidades vertical e horizontal podem se reconciliar, como também a primeira é uma condição "sine qua non" para a segunda. Não pode haver um mundo justo, insistiu o Pontífice, sem Cristo, que é a fonte da justiça.
Esse tema surgiu mais claramente durante a viagem de Bento ao Brasil, em 2007, quando ele refletiu em profundidade sobre a ideia da América Latina como um "continente de esperança".
"Não é uma ideologia política, nem um movimento social, nem mesmo um sistema econômico", disse o Papa, "mas é a fé em Deus Amor, encarnado, morto e ressuscitado em Jesus Cristo, o autêntico fundamento dessa esperança".
Bento assumiu que uma espiritualidade vertical "não deve ser motivo de evasão da realidade história em que a Igreja vive compartilhando as alegrias e as esperanças, as dores e as angústias da humanidade contemporânea, especialmente dos mais pobres e daqueles que sofrem". Porém, Bento insistiu que a solidariedade social também não deve excluir a proclamação de Cristo, a participação nos sacramentos e a promoção da santidade.
De acordo com os trechos que circulam, Bento também irá abordar esse ponto na "Caritas in Veritate".
A verdade e o amor de Cristo, segundo aquilo que o Papa teria escrito, são "as principais fontes para o serviço do verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa humana e de toda a humanidade".