23/01/2012

Por que devemos voltar para Jesus


Artigo do teólogo suíço-alemão Hans Küng (foto), em artigo para o jornal Corriere della Sera, 20-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



Mediante o livro Ser cristão (Ed. Imago, 1976), inúmeras pessoas encontraram a coragem para serem cristãs. O autor sabe isso por causa das inúmeras resenhas, cartas e colóquios. Muitas pessoas, de fato, afastadas da prática e da pregação de alguma grande Igreja cristã, buscam caminhos para continuarem sendo cristãos confiáveis, buscam uma teologia que não seja abstrata para eles e alheia ao mundo, mas explique de modo concreto e próximo da vida em que consiste ser cristão.

Ser cristão não pretendia "seduzir" as pessoas com a retórica ou agredi-las com um tom de pregação. Nem queria simplesmente fazer proclamações, declamações ou declarações em sentido teológico. Pretendia motivar, explicando que, por que e como uma pessoa crítica também pode ser responsavelmente cristã perante a sua razão e o seu ambiente social.

Não se tratava de uma simples adaptação ao espírito do tempo. Certamente, sobre questão discutíveis como os milagres, o nascimento virginal e o túmulo vazio, a ascensão ao céu e a descida aos infernos, sobre a práxis eclesial e o papado também era preciso assumir posições críticas. Isso, porém, não para seguir uma fácil tendência inclinada à hostilidade contra a Igreja ou ao pancriticismo, mas sim para purificar, a partir do próprio Novo Testamento como critério, a causa do ser cristão de todas as ideologias religiosas e para apresentá-la de maneira credível.

A originalidade do livro não está, portanto, nas passagens críticas; está em outro lugar, no fato de ter fixado critérios que, para muitos, representam desafios em teologia. Em Ser cristão, de fato, eu tentei: apresentar toda a mensagem cristã no horizonte das ideologias e religiões contemporâneas; dizer a verdade sem resguardos de natureza político-eclesiástica e sem me preocupar com inclinações teológicas e tendências da moda; não partir, por isso, de problemáticas teológicas do passado, mas sim das questões do ser humano de hoje e, a partir daí, apontar para o centro da fé cristã; falar na língua do ser humano de hoje, sem arcaísmos bíblicos, mas também sem recorrer ao jargão teológico da moda; destacar o que é comum às confissões cristãs, como o renovado apelo ao entendimento no plano prático-organizativo; dar expressão à unidade da teologia de modo que não possa mais ser negligenciado o nexo inabalável entre teoria confiável e práxis vivível, entre religiosidade pessoal e reforma das instituições.

A esse livro não faltaram reconhecimentos públicos. Além disso, também foi uma oportunidade para as Igrejas e, nesse nível, ele encontrou um amplo consenso igualmente. No entanto, não pode ser silenciado o fato de que os membros da hierarquia alemã e romana fizeram de tudo para esvaziar essa oportunidade. Não se envergonharam – diante do sucesso do livro até mesmo entre o clero – de pôr publicamente em dúvida ou, melhor, de difamar a ortodoxia do autor. De nada serviu ao autor o fato de ter declarado amplamente, mais uma vez, a sua fé em Cristo no livro Deus existe? (1978), que apareceu quatro anos depois de Ser cristão. A hierarquia romana e alemã tomaram a cristologia aqui exposta como pretexto para retirar do autor a “missio canonica” para o ensino da teologia, pouco antes do Natal de 1979, embora jamais tenha sido realizado um processo magisterial contra Ser cristão e Deus existe?. Dessa forma, buscou-se desviar a discussão da embaraçosa questão da infalibilidade à questão cristológica, não por último para envolver os cristãos evangélicos. Além disso, para os expoentes da hierarquia contrários às reformas eram indigestas as exigências de reforma na Igreja que eram propostas nesse livro.

Assim, a hierarquia alemã apoiou o percurso de restauração do papa polonês que estava então se impondo e teve que pagar um alto preço por isso: a perda de credibilidade e uma difundida hostilidade contra a Igreja na opinião pública.

Com toda a modéstia: algumas coisas na pregação e na pastoral cristã seguramente teriam sido diferentes e não tivesse sido recusada a oferta de Ser cristão. Mas, como sempre acontece: para mim, Ser cristão tornou-se ponto de partida para um novo desenvolvimento teológico e para uma espiritualidade à qual, apesar de todas as dificuldades do presente, o futuro devia pertencer.

Como inúmeros outros católicos antes do Concílio Vaticano II, eu também cresci com a imagem tradicional de Cristo da profissão da fé, dos concílios helênicos e dos mosaicos bizantinos: Jesus Cristo, "Filho de Deus", sentado em um trono, um "Salvador" amigo dos seres humanos e, ainda antes, para a juventude, o "Cristo Rei". Sobre isso, eu depois acompanhei, em Roma, um curso de um semestre inteiro sobre "cristologia". Certamente, eu passei sem problemas por todos os exames em latim, não exatamente simples – mas a minha espiritualidade? Isso era outra coisa totalmente diferente, permanecia insatisfeita. A figura de Cristo só se tornou decisivamente interessante para mim quando eu pude conhecê-la, com base na moderna ciência bíblica, como real figura da história.

A essência do cristianismo, de fato, não é nada de abstratamente dogmático, não é uma doutrina geral, mas sim, desde sempre, é uma figura histórica viva: Jesus de Nazaré. Ao longo dos anos, elaborei o perfil singular do Nazareno com base na riquíssima pesquisa bíblica dos últimos dois séculos, refleti sobre tudo com apaixonada participação.

De Ser cristão em diante, sei do que estou falando quando, de modo totalmente elementar, eu digo: o “modelo de vida cristã” é simplesmente esse Jesus de Nazaré enquanto messias, christós, ungido e enviado. Jesus Cristo é o fundamento da autêntica espiritualidade cristã. Um exigente modelo de vida para a nossa relação com o próximo, assim como com o próprio Deus, que, para milhões de seres humanos em todo o mundo, tornou-se critério de orientação e de vida.

Quem é, portanto, um cristão? Não é aquele que diz apenas "Senhor, Senhor" e apoia um "fundamentalismo" – seja ele de tipo bíblico-protestante, ou autoritário-romano-católico ou tradicionalistaoriental-ortodoxo. Ao contrário, cristão é aquele que, em todo o caminho pessoal de vida, se esforça para se orientar praticamente para esse Cristo Jesus. Não se exige nada mais.

A minha vida pessoal e, assim, qualquer outra vida, com seus altos e baixos, e também a minha lealdade à Igreja e a minha crítica à Igreja só podem ser compreendidas a partir dessa referência. A minha crítica à Igreja, assim como a de muitos cristãos, brota justamente do sofrimento pela discrepância entre o que esse Jesus histórico foi, pregou, viveu, lutou, sofreu, e o que hoje a Igreja institucional, com a sua hierarquia, representa. Essa discrepância tornou-se muitas vezes insuportavelmente grande. Jesus, nas cerimônias pontifícias da basílica papal de São Pedro? Ou na oração com o presidente George W. Bush e o papa na Casa Branca? Inconcebível!

O mais urgente e mais libertador para a nossa espiritualidade cristã, consequentemente, é nos orientar pelo nosso ser cristão, tanto em nível teológico quanto prático, não tanto segundo as formulações dogmáticas tradicionais e os regulamentos eclesiásticos, mas sim de novo e cada vez mais segundo a singular figura que deu nome ao cristianismo.

21/01/2012

Joseph Moingt: um ensaio sobre a Igreja

Mesmo tendo 95 anos, o padre Joseph Moingt não para de pensar na sua Igreja, a Igreja Católica Romana. Descubra as belas páginas do seu último livro Croire quand même, libre entretien sur le présent et le futur du catoìholicisme (Crer apesar de tudo, conversa livre sobre o presente e o futuro do catolicismo). A reportagem é de Philippe Clanché, publicada na revista francesa Témoignage Chrétien, 02-12-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS







L`homme qui venait de Dieu (O homem que vinha de Deus) e Dieu qui vient à l`homme (Deus que vem ao homem), publicados na prestigiada coleção "Cogitatio fidei" das Éditions du Cerf, fizeram de Joseph Moingt um dos grandes teólogos católicos do século XX e uma referência para os católicos abertos.

Em um livro-entrevista de Karim Mahmoud-Vintam, Croire quand même (Ed. Temps Présent), o pensador jesuíta, hoje com 95 anos, desenvolve com calma a sua visão reconfortante de um catolicismo atual. Especialista em cristologia, tendo lecionado por muito tempo nas faculdades jesuítas, ele adquiriu a convicção de que se não voltarmos o olhar ao homem, toda relação com Cristo é vã.

"O cristão deve conservar a sua fé, não para salvar a religião ou a instituição que lhe é relacionada, mas para salvar uma certa ideia do homem da qual a ideia de Deus é garantia". Em um texto muito acessível, Joseph Moingt busca desdramatizar aquilo que atormenta hoje muitos fiéis: divisões internas, equívocos da instituição. Ele convida a dissociar a fé dos conceitos de crença e de religião.

Àqueles que consideram "as tradições dogmáticas da Igreja incompreensíveis", esse incansável pesquisador aconselha a "não carregar esse peso e a se contentar em ler e em estudar os Evangelhos, que também apresentam dificuldades, mas de outra natureza". Ao entardecer de uma vida plena, esse ensaio nos oferece a possibilidade de descobrir um catolicismo sereno e desculpabilizante.

Eis alguns trechos do livro:

Fé, crença e religião

É uma distinção que me é pessoal, que não coloca uma verdadeira oposição entre esses três termos, mas que permite que se evitem muitas confusões.

A fé é o assentimento dado aos pontos fundamentais da revelação cristã, aqueles que se enunciam no Símbolo dos Apóstolos, e o engajamento a viver segundo o espírito do Evangelho. Certamente, ela se expressa em dogmas, em crenças doutrinas e em práticas religiosas, mas ela é essencialmente una, unificada e estruturada: é o ato de se confiar a Cristo e de seguir a via da salvação por ele traçada.

A crença é feita, ao contrário, de múltiplos dogmas e doutrinas – de autoridade e de importância muito variáveis – e de tudo o que é ensinado pelo Catecismo. Ela compromete menos diretamente a vida de cada dia, é muitas vezes transmitida pela família ou pelo ambiente, sem ser objeto de uma convicção firme e refletida, ou ela se deixa conduzir por escolhas subjetivas, irracionais e contraditórias, assim como mostraram as recentes pesquisas de opinião: uns consideram a crença no diabo um critério de fé, outros declaram crer em Cristo, mas não na ressurreição dos mortos, ou vice-versa.

No que se refere à religião, que em princípio é a via da fé em uma comunidade de crentes, ela impõe, sobretudo, leis, regras de moral, práticas cultuais, alimentares, penitenciais, devoções, e corre o risco, para muitos, de se reduzir a tais práticas às quais estão ligados por hábito, senão por superstição, enquanto não sabem mais muito bem se ainda são crentes: assim, veem-se católicos que colocam a devoção à Virgem no mesmo plano da Eucaristia, enquanto outros põem os pés em uma igreja só para acender uma vela diante de uma estátua ou depositar uma esmola em uma caixa para as ofertas.

[...] Os "conservadores", sensíveis ao princípio de autoridade, colocam em primeiro plano a obediência a Roma; os "tradicionalistas", a fidelidade às antigas práticas litúrgicas; certos cristãos "críticos", marcados por uma corrente de filosofia liberal, tendem relativizar certos dogmas recentes em favor de uma maior fidelidade à escritura; certos espíritos "progressistas", a reconduzir o essencial do Evangelho à justiça social; enquanto que os "carismáticos" serão mais atentos ao fervor da piedade comunitária do que à regulamentação rigorosa das liturgias; e os cristãos mais bem formados segundo as orientações do Vaticano II serão mais inclinados a renovar o estilo de vida na Igreja e a se pôr ao serviço evangélico do mundo.

Em tudo isso, não são questões de fé que opõem os cristãos, mas sim modos diferentes de regular a crença ou a prática. Os "fundamentais" da fé, tal qual como se enunciam no Símbolo da Fé, não estão em discussão. No entanto, essas diferenças de atitude religiosa, que muitas vezes têm o seu estímulo determinante sobre a cultura, o meio social, a educação recebida, as escolhas políticas, podem dissimular profundas divergências na maneira de compreender e de viver a fé (p. 34-36).

Futuro da Igreja Católica

Eu me guardarei de fazer prognósticos. Retração não significa desaparecimento, assim como a religião não se identifica com a fé. Ele é a sua encarnação em uma sociedade, da qual sofre as influências, assim como os aspectos negativos. É principalmente por meio do seu clero e das suas ordens religiosas que a Igreja exerce a sua autoridade sobre a sociedade, por intermédio de organizações e de movimentos de piedade, de apostolado, de caridade, de ensino, de serviços sociais e outros.

A queda das vocações sacerdotais (alguns preferem dizer "presbiterais", mas o termo é menos usado) e religiosas diminui consideravelmente o poder da Igreja de agir sobre a sociedade. Ela é, reciprocamente, um sinal de que a sociedade não experimenta mais a necessidade de perpetuar o modelo religioso segundo o qual ela funcionava no passado.

Porque seria ingênuo pensar que as "vocações" viessem unicamente de uma atração interior da graça: ela também provinha de pressões recebidas da família e dos educadores, das ajudas e dos encorajamentos provenientes do ambiente social, da consideração da qual as "pessoas consagradas" eram objeto e, não nos esqueçamos, das vantagens econômicas, da "posição" que os filhos de famílias numerosas e pobres encontrariam entrando "para as ordens". Assim, hoje, vemos bispos que vão procurar padres ou religiosos nos países pobres, lá onde os empregadores recrutavam mão de obra em certas épocas.

A rarefação de padres, religiosos e religiosas, incontestavelmente, desorganizará a Igreja, mudará a sua figura, a obrigará a se refundar em sua base leiga, a partir das pequenas comunidades que já vemos se formar, na ordem ou na desordem, assíduas no estudo do Evangelho, aplicadas a viver fraternalmente, a colocá-lo em prática na sociedade, para manter a tradição da fé cristã da qual ela há muito tempo se alimenta. Eis em que sentido eu imagino ou espero que evolua o futuro da Igreja, que ela encontrará uma renovação de vitalidade e que continuará contribuindo na busca de sentido dos nossos contemporâneos (p. 51).

Mudanças possíveis

As coisas podem evoluir fazendo com que as comunidades não sejam de simples adesão, mas também de contestação, lembrando que, linguisticamente, "contestação" está ligado a "atestação". Contesta-se a autoridade para atestar o Evangelho. O fato de os cristãos não poderem mais viver na instituição eu entendo, mas, se estiverem sozinhos, não podem fazer grandes coisas.

Eu sonho com comunidades cristãs em que outros crentes poderiam vir, mas também pessoas que não têm fé, e que se diriam: "O que podemos fazer juntos? Há coisas que gostaríamos de suprimir ou de corrigir, ou outras que teríamos vontade de inventar?"; pessoas que refletiriam sobre tudo isso e que decidiriam o que fazer. É assim que se poderá espalhar o espírito do Evangelho. [...]

É em grupo que se podem fazer coisas importantes, e é difícil para um cristão viver isolado, sobretudo quando se pensa que o cristianismo é uma religião encarnada e comunitária, não uma pura filosofia. Vocês não mudariam o mundo permanecendo sozinhos, cada um no seu canto. E, como vocês querem viver como cristãos, pensem também em mudar a Igreja, portanto, em permanecer vinculados (p. 82).

Passagem

A Igreja Católica se encontra em um momento de passagem. Vai rumo a uma outra coisa, rumo a uma outra maneira de fazer Igreja, o que por si só não é trágico. Toda mudança, é verdade, tem um aspecto inquietante, porque produz rupturas, aflições, fraturas. E essas palavras, que são tomadas do vocabulário corporal, por si só evocam sofrimentos e perigos. Mas essa evolução será o advento de uma era nova, que eu ainda não posso imaginar para a Igreja nem para a fé cristã, mas que não será necessariamente catastrófica.

Não prevejo, de modo algum, uma retomada do poder, do poder perdido pela Igreja sobre a sociedade, mas sim uma outra maneira de se situar no mundo e de guardar a sua unidade. Talvez, ela terá menos visibilidade, no sentido de que a sua visibilidade atual está amplamente ligada à sua estrutura hierárquica e clerical. Mas a sua hierarquia perdeu muito da sua credibilidade interna e externa por causa dos seus excessos de poder sobre os seus fiéis e com relação à sociedade. E o clero, dada a perda de recrutamento, logo não poderá mais ocupar sozinho todos os postos de autoridade e de responsabilidade que lhe eram devidos.

A maior visibilidade da Igreja passará, assim, para o campo dos leigos e leigas, porque haverá cada vez menos clérigos e, portanto, será preciso confiar aos leigos e leigas um número cada vez maior de postos de responsabilidade. A Igreja terá menos visibilidade por causa da forte diminuição do número dos seus fiéis, e uma visibilidade diferente, menos "vistosa", se assim posso dizer, pelo fato de que a sua dominante leiga não a diferenciará mais tão fortemente do resto da sociedade; lhe dará um rosto menos especificamente religioso, menos cultual e ritual. [...]

Imaginar uma tal evolução me enche de esperança, eu confesso, embora certamente haverá menos pessoas que se dirão católicas. Mas o pensamento de muitas pessoas que estão deixando a Igreja continua a me perturbar. Não que eu tema que o seu abandono da Igreja os condene ao inferno – porque eu não acredito que Deus persiga com a sua cólera aqueles que dEle se esqueceram –, mas porque a perda de toda vida espiritual os colocaria em perigo de afundar para sempre na morte, se é verdade, para os crentes, que não existe vida eterna a não ser na união com Deus (p. 147-149).

Cristinaismo vive "a mais grave crise" em 2 mil anos. O apelo urgente de um teólogo jesuíta


Com as devidas proporções, o sucesso do último livro de Joseph Moingt  (foto) se assemelha ao do famoso Indignai-vos!, de Stéphane Hessel. Em ambos os casos, trata-se de um velho senhor que não tem mais nada a temer nem a demonstrar e que pode se permitir, com a legitimidade que lhe conferem as décadas de trabalho e de compromisso corajoso, dizer em voz alta o que muitos apenas pensam ou dizem em voz baixa. A reportagem é de Claire Lesegretain, publicada no jornal La Croix, 14-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


No entanto, esse jesuíta de 96 anos deseja dizer aos seus leitores, às vezes tentados a deixar a Igreja, não tanto Indignai-vos! mas sim Ficai!.

Croire quand même, publicado no fim de 2010 [1], vendeu mais de 8.000 cópias e está em curso a segunda edição. "Recebi muitas cartas de agradecimento de leigos e de padres, mas curiosamente nenhum eco do episcopado", diz, divertido, o padre Moingt, estreitando os travessos olhos azuis. Os leitores "sentem confusamente que a opção escolhida por Roma de um retorno ao passado não é a melhor forma de preparar o futuro do cristianismo. Depois de me terem lido, dizem-se fortalecidos na sua fé e encorajados a permanecer na Igreja". Há um ano, Croire quand même também suscita muitos grupos de leitura em toda a França e é motivo de muitos convites para conferências.

Um sábado, lá está ele com a sua figura miúda na abadia de Saint-Jacut-de-la-Mer (Côtes-d'Armor) para uma jornada aberta ao grande público. Diante de 150 pessoas, a maior parte de cabelos grisalhos, ele começa a percorrer a sua obra de teólogo, marcada pelos "dois grandes choques", o do Vaticano II e o de Maio de 68. "Desde então, os teólogos não se dirigem mais apenas a futuros padres, mas são convocados no meio dos fiéis para esclarecer seus problemas", aponta, antes de expor a sua análise da crise na Igreja.

Uma crise que, segundo ele, é "a mais grave" que o cristianismo já conheceu há dois milênios, porque trata-se de uma crise civilizacional. "O nosso mundo está prestes a rejeitar Deus", resume, citando Dietrich Bonhoeffer, que, antes de morrer na prisão nazista, percebia que o mundo "estava se libertando da ideia de Deus". É através dessa chave de leitura que Moingt fala da "primavera árabe", sinal não da "destruição do Islã, mas sim da desagregação de um espaço social que havia sido cimentado pela lei religiosa". Porque, lembra, "a vontade de Deus é que o homem se liberta de seus entraves, incluindo aqueles postos em nome de Deus".

Pedagogia

O Pe. Moingt não foge das perguntas que lhe são feitas, porque também são as suas perguntas. Com pedagogia, permite que seus interlocutores se beneficiem com a sua visão histórica sobre o longo prazo, para relativizar as atuais tensões dentro da Igreja. Algumas semanas depois, em seu quarto-escritório da Rue Monsieur, no 7º arrondissement de Paris, ele continua as suas reflexões sobre o futuro da Igreja.  "Tenho um grande temor de que um número crescente de fiéis só queira respostas com um 'sim' ou com um 'não', e não consigam entrar nas sutilezas teológicas", resume.

Como dizer a humanidade de Cristo se ele nasceu de uma mulher virgem? Como explicar a Trindade? Como falar da Revelação, da Encarnação, da Redenção, se considerarmos que os textos do Antigo Testamento são apenas relatos inventados? Como pronunciar em cada Eucaristia: "Isto é meu corpo", se se trata de uma metáfora? Em que basear o sacerdócio, já que nenhum dos Apóstolos foi feito padre ou bispo por Jesus?... São todas perguntas complexas que efetivamente requerem respostas aprofundadas e que ocupam a mente do teólogo há mais de 60 anos.

Ela tinha 23 anos, no fim de 1938, quando entrou na Companhia de Jesus. Não tendo tempo, antes da mobilização, de terminar os 12 meses do noviciado, teve que refazer um ano inteiro em Laval (Mayenne) no grande noviciado da época.

Durante a guerra, o aprendiz de jesuíta ficou prisioneiro em vários stalags para suboficiais que se recusavam a trabalhar para o Terceiro Reich. Ele conseguiu escapar de um campo na Suábia, foi depois enviado para Kobierczyn, perto de Cracóvia, depois para um outro campo do qual foi libertado em 1945 pelo exército do general Patton... Mas, de repente, o Pe. Moingt interrompe o relatos das suas memórias: "Não tenho o hábito de me delongar sobre a minha biografia, não interessa a ninguém", sorri ele, com aquela gentileza divertida que o caracteriza. Antes de acrescentar que, "desde o retorno do cativeiro, por princípio, não retorno ao passado".

Marcado por Henri de Lubac

Conseguimos saber apenas que, depois de dois anos de filosofia em Villefranche-sur-Saône e depois de quatro anos de teologia em Fourvière, na colina de Lyon onde a Companhia de Jesus tinha uma faculdade até 1974, ele foi nomeado professor de teologia. Foi então enviado para a Universidade Católica de Paris para preparar uma tese sobre A teologia trinitária em Tertuliano, que defendeu, três anos depois, sob a orientação do jesuíta e futuro cardeal Jean Daniélou.

"Entre os jesuítas daquela época, fui marcado sobretudo por Henri de Lubac, que lecionava na Universidade Católica de Lyon e com quem eu trabalhei sobre Clemente de Alexandria", diz, antes de acrescentar a essa lista de grandes figuras os nomes de Gaston Fessard, Henri Bouillard, Xavier Léon-Dufour e Donatien Mollat...

Depois de doze anos de ensino em Fourvière, o Pe. Moingt pediu um ano sabático na Paris de 1968, para "por-se a par das novidades em teologia, filosofia e ciências humanas". Mas a Universidade Católica de Paris, que começou em 1969 o seu Ciclo C, um curso noturno de formação para leigos, deu-lhe o cargo de professor de cristologia.

Ele também lecionou na Centro Sèvres a partir de 1974, e em Chantilly (Oise), tradicional lugar de formação da Companhia de Jesus. Isso lhe permitiu afirmar que "todos os jesuítas que entraram na Companhia depois de 1960 e até muitos bispos atuais" passaram por ele. Nesses mesmos anos, Pe. Moingt assumiu a direção da prestigiosa revista Recherches de Science Religieuse, que comemorou os seus 100 anos em 2010. A partir de 1980, tendo deixado a Católica para se aposentar aos 65 anos, o jesuíta continua lecionando no Centro Sèvres, fazendo suas pesquisas teológicas e a publicando importantes obras.

"Eu tenho outra obra em construção, mas não será um livro para o grande público", especifica, sabendo que não terá o tempo para popularizar o seu trabalho: "Outros se encarregarão disso depois da minha morte".

Ser cristão

Hoje, ele continua se relacionando com as comunidades de base das quais participou, seja no âmbito do catecumenato, seja durante as suas experiências paroquiais em Châtenay-Malabry (Hauts-de-Seine) por 12 anos, depois em Poissy (Yvelines) e em Sarcelles (Val-d'Oise), respectivamente por três anos.

Trata-se de "leigos que frequentam a Eucaristia, mas que precisam se encontrar fora da sua paróquia para partilhar o Evangelho ou releituras de vida"; leigos cada vez mais preparados que "sentem que ser cristão nada mais é do que ser homem, e que assumem a responsabilidade do seu ser-cristão assumindo a responsabilidade do destino da humanidade".

Porque, para Joseph Moingt, não é se concentrando na instituição eclesial que se poderá realizar uma reforma radical do catolicismo, mas sim voltando ao Evangelho. "Há a urgência de repensar toda a fé cristã para dizer 'Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem' na linguagem de hoje e em continuidade com a Tradição", repete, baseando-se na sua imensa cultura teológica e bíblica para confirmar que a Igreja não poderá mais seguir em frente com respostas dogmáticas e que é preciso que, dentro dela, os teólogos "façam coisas novas sem ser serem ameaçados de excomunhão". Quanto a ele, a sua prudência nunca foi motivada pelo medo de uma sanção eclesial, mas sim pelo desejo de escrever de acordo com a sua fé. E, depois, "na minha idade, já não se corre muito risco".

Nota:
1 - Croire quand même,  Libres entretiens sur le présent et le futur du catholicisme,  com Karim Mahmoud-Vintam e Lucienne Gouguenheim. Ed. Temps Présent, Coleção "Semeurs d’avenir", 245 páginas.

17/01/2012

Considerações sobre o impasse do Garantia-Safra, em São Franciso de Assis do Piauí-PI

Autor: Pe. Henrique Geraldo Martinho Gereon (foto)
Data: 14 – 01 – 2012

1.A missão do presbítero católico tem sua origem na missão de Jesus de quem ele é discípulo. Jesus define a sua missão em Luc 4,18: “anunciar a boa nova aos pobres”. Qual é a “boa nova” que eu devo anunciar aos pobres da minha paróquia de São Francisco de Assis do Piauí? Que pobres são esses? São os pequenos agricultores, cadastrados para o “Garantia-Safra” do período 2010/2011. Pela irregularidade das chuvas eles tiveram perdas avaliadas em 50 e mais por centos, o que constitui a condição para acionar o Garantia-Safra. Porém, passados já três meses da data-limite para a comunicação da ocorrência, descobriu-se, de repente, que não havia mais condições para obter o benefício do Garantia-Safra, alegando-se como  principal  causa  a não-observância  dos prazos estabelecidos. “Descobriu-se de repente” – como se entende este termo?

2.A execução do Programa Garantia-Safra estabelece o prazo-limite para enviar a “Comunicação de Ocorrência de Perdas” – COP: 27 de maio, calculado pelo período de plantio do município. A constatação da ocorrência de perdas é elaborada pelo agente regional do IBGE e uma comissão municipal, composta de representantes da prefeitura, da EMATER, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável... O IBGE oficializa o resultado num formulário próprio chamado LSPA (Levantamento sistemático da produção agrícola). Foram marcadas duas reuniões do citado grêmio para avaliar a perspectiva de safra: a primeira no dia 06 de abril, quando não se podia afirmar nada ainda: as plantações ainda estavam na fase inicial, por causa do início das chuvas suficientes só em meados de fevereiro. Outra reunião avaliativa teria que ser marcada cerca de 40 dias depois da primeira, ou seja, em meados de maio. Esta teria revelado claramente o índice alto das perdas.

3.No entanto, apenas em 29 de agosto aconteceu esta segunda reunião. O prazo-limite para a remessa da COP já tinha passado fazia 94 dias. Dois dias depois, no dia 31 de agosto, a prefeitura recebeu da Coordenação Estadual do Garantia-Safra uma “Mensagem às prefeituras, STR, Emater e CMDRS” alertando para observar o prazo-limite (27 de maio) para o envio das COP, alerta essa que deveria ter acontecido, no mínimo, 115 mais cedo.

4.Desde aquele dia afirma-se categoricamente pelas autoridades estaduais e federais: “Os produtores aderidos ao programa não podem receber o pagamento do Benefício Garantia-Safra”. Ninguém pergunta como poderia acontecer este fato e quem seriam os responsáveis por tão grave situação. E ninguém questiona se o fato não seria um acidente que não poderia penalizar tantos pequenos agricultores para os quais o programa foi criado e que levaram tanto prejuízo.

5.Fizemos, no dia 25 de outubro, uma grande concentração dos “aderidos ao programa Garantia-Safra”. Não incendiamos nenhum ônibus nem invadimos nenhum prédio público. Mas lançamos um manifesto assinado por mais de 860 pessoas. Nele afirmamos: “É completamente incompreensível que as lideranças locais envolvidas no programa Garantia-Safra não tenham percebido o que aconteceu nas nossas lavouras – não é compreensível, mas explicável.” No nosso manifesto não queríamos apontar para responsáveis. Agora, no entanto, que fracassaram todas as tentativas para reparar o defeito que é nada irreparável, teremos que acrescentar alguma coisa, teremos que ser claros.

6.A impossibilidade de obter um benefício que temos direito de alcançar, não é nenhuma fatalidade, nem algum mistério impossível de descobrir. Os envolvidos para acionar a aplicação do Garantia-Safra moram entre nós, são todas pessoas esclarecidas, de entidades destinadas a assistir aos pequenos agricultores. Eles ganham seus salários para isso. Todos têm experiência na condução do processo Garantia-Safra. O que houve não foi um apagão na cabeça dessa gente. Houve uma omissão consciente, uma conivência com o descaso dos responsáveis pelo bem-estar dos cidadãos deste município. O único que podia alegar falta de conhecimento, seria o prefeito que tomou posse, fazia cinco meses, depois duma eleição suplementar, e nunca tinha sido envolvido nos mecanismo deste programa.

7.Desde a data daquela concentração popular não paramos de tentar sensibilizar as autoridades estaduais e federais. Apenas um deputado federal da nossa região assumiu a nossa causa e fez dois pronunciamentos na Câmara dos Deputados. Muito lhe agradecemos esse engajamento. Todos os outros aos quais dirigimos os nossos apelos e que teriam poder para reverter a decisão insistem nas determinações da Portaria SAF/MDA 15/09. É como uma blindagem que impede o raciocínio entrar na mente e o sentimento humano entrar no coração.

8.Não usamos meios violentos para romper a blindagem. Queremos, mais uma vez, apresentar argumentos. O Programa Garantia-Safra segue o seguinte roteiro: Depois de cadastrar os que pretendem aderir o programa, os governos municipal e estadual pagam as suas respectivas cotas de contrapartida. O período do plantio é monitorado sobre a incidência das chuvas, a extensão da área plantada e a safra segura ou perdida. Perdas constatadas são comunicadas ao SAF/MDA, dentro de prazos estabelecidos. No nosso caso não foi cumprido este último item, ou seja, a comunicação das perdas dentro do prazo-limite. Esse item é que mais poderia permitir alguma flexibilidade, o que não seria possível na medição das chuvas e a constatação das perdas da safra que são fatos que só uma fraude poderia alterar. Para os beneficiários, um atraso de data não é culpa, é como um prego de pneu na viagem de carro ou mau tempo no aeroporto que atrasa chegadas e partidas dos aviões. Onde está a culpa desses agricultores, que estão amargando a perda da safra e a decepção de uma esperança traída?

9.Nesse contexto, a “boa nova a ser anunciada aos pobres”, em nome de Jesus, seria o que? Jesus explica, no mesmo texto de Lucas: libertar os presos, recuperar a vista aos cegos, libertar os oprimidos. Presos, cegos, oprimidos são todos esses pequenos e pobres, mantidos em dependência e submissão, pedindo favores aos poderosos, sem acreditar que possa mudar alguma coisa, como que Deus tivesse criado tudo isso que já vem do tempo dos coronéis deste sertão perdido, afirmando na sua prepotência que Deus é inoperante, incompetente e cruel. Jesus veio justamente para nos anunciar um Deus-Pai que quer seus filhos livres para viver numa comunidade fraterna Para os que anunciam, como Jesus, essa libertação, existe o mesmo obstáculo como na sinagoga de Nazaré: a cegueira dos que não querem ver. É a cegueira dos que exigem rigor ritualista e moralista, mas abafam a sensibilidade pelo contexto humano, comunitário e social. Não querem um padre envolvido no Garantia-Safra porque não enxergam Jesus como o deus que se fez pobre para assumir a causa dos pobres. Mesmo que a palavra final não respondeu ao grito dos pobres, a última palavra fica mesmo com esses pobres: Ganhamos uma visão mais clara sobre o sistema que nos faz vítimas de um jogo de dependência e poder. Cada vez mais vamos rejeitar essa submissão e caminhar rumo à libertação oferecida por Jesus.

10.Ao escrever estas linhas fui procurado por uma Senhora que vive na localidade “Trás da Serra”, neste município. Ela perguntou sobre o andamento do Garantia-Safra. Eu respondi que só um milagre ainda pode reverter a negação do benefício. A mulher contou a situação de fome na sua casa: No dia de Natal ela só tinha um resto de macarrão, cozinhou-o com um pouco de sal e distribuiu um pouco no prato de cada um da sua família. Acrescentou ainda: a sua cisterna sempre tinha um resto de água antes do novo inverno, que ela dividia com os vizinhos. Neste ano passado a água foi tão pouca que ela agora está pedindo, com a demora do novo inverno, um pouco do resto de água dos seus vizinhos. Preocupada com a falta de chuva que não quer começar ela demonstrou tanto desânimo que foi difícil encontrar palavras que não fossem um consolo barato. Ao se despedir, a mulher ainda me agradeceu por tê-la ouvido, parece que ficou um pouco aliviada.

11.Ainda tive oura visita: um pai de família com 12 bocas na casa dele. Ele, querendo saber também o resultado do Garantia-Safra, contou a sua versão da fome. Um dia desses saiu para a cidade para ver se achava alguma comida para trazer. Dizia para os que ficaram que deixassem o fogo aceso. A fumaça vista de fora poderia sugerir a impressão que nessa casa tivesse uma panela no fogo cozinhando o almoço. O pobre tem até vergonha de falar da sua fome. A sua ida para a cidade tinha o objetivo de receber o valor da venda de um porco que nunca foi pago, e o valor de R$ 74,00 da prefeitura pelo serviço do roço de 4 km de estrada, valor este que espera há três meses. Como pode uma panela com comida chegar neste forno onde queima apenas um fogo simbólico? Eu estava vendo o verdadeiro rosto daqueles que a burocracia chama de “aderidos ao programa”.

12.De repente tive uma certeza: Chega de conversa fiada de Garantia-Safra, Portaria SAF/MDA 15/09, EMATER, IBGE, CMDRS, LSPA, COP etc. etc. ...eu tenho que sair para a estrada atrás de comida para irmãos e irmãs famintos que perderam a sua safra e ainda não plantaram nada. Se não eu perco Jesus de vista que me manda “anunciar aos pobres a boa nova”. O anúncio dessa boa nova não pode ser mais nenhum discurso – só pode ser uma mão de comida na panela. A fumaça do fogo debaixo desta panela cheia vai ser talvez o incenso mais agradável que já chegou ao trono de Deus.

Pe. Geraldo Gereon, pároco de São Francisco de Assis do Piauí – PI.
Pça. da Matriz, 166 – São Francisco de Assis do Piauí-PI.  
franciscodeassisffa@gmail.com

08/01/2012

Entrevista - Lúcia Pedrosa-Pádua

''Mãe da psicologia''? Subjetividade, liberdade e autonomia em Teresa de Jesus.

Lúcia Pedrosa-Pádua (foto) é professora de Teologia/PUC-Rio. Graduou-se em Teologia pela FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, e doutorou-se pela PUC-Rio. É bacharel em Ciências Econômicas/UFMG. Estudou no Centro Internacional de Estudos Teresianos e São Joanistas de Ávila (Espanha) e fez estudos de pós-doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, Itália. É organizadora, com Mônica Baptista Campos, do livro Santa Teresa: mística para o nosso tempo (PUC-Rio/Reflexão, 2011). Dentre suas outras obras, destacamos: O humano e o fenômeno religioso (Ed. PUC-Rio, 2010), Juventude, Religião e Ética: reflexões teológico-práticas sobre a pesquisa “Perfil da Juventude na PUC-Rio” – org. (Ed. PUC-Rio, 2010). É professora responsável pelo Grupo Moradas de Estudos Místicos (PUC-Rio) e membro do Círculo do Rio e da Comissão Assessora Permanente do Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB. Dedica-se também ao trabalho pastoral e à formação teológica de leigos e leigas através do Centro de Espiritualidade Teresiana Ataendi, da Instituição Teresiana (http://www.ataendi.com.br/).
Fonte: UNISINOS



IHU On-Line – Que fatos pessoais ou sociais fizeram aflorar ou despertar a experiência mística de Teresa de Ávila?

Lúcia Pedrosa-Pádua – Teresa de Ávila é, sem dúvida, uma mulher questionada e estimulada por seu tempo. Viveu no “século de ouro” espanhol, um período de florescimento econômico, político, literário, filosófico e também espiritual. Um tempo complexo, marcado pela conquista das “Índias” e toda a sua ambiguidade. Para Teresa, como mulher, mística e escritora, é também um tempo "recio", duro – guerras, perseguições e ações inquisitoriais marcam especialmente a segunda metade do século.

De maneira especial, eu destacaria as influências do contexto espiritual do século XVI no caminho místico teresiano. Uma particular efervescência religiosa acontece naquele momento, envolvendo ordens religiosas, mas não apenas elas. Atinge também a nova geração de “cristãos novos”, o povo simples, os leigos e, de forma especial, as mulheres. Há uma busca de Deus, um cansaço com relação às formas exteriores da religião, uma valorização da interioridade e da oração pessoal, e um forte impulso às altas esferas da vida mística. Lembremos que é o século de movimentos como o de Santo Inácio de Loyola; fora da Espanha, lembremos igualmente a Lutero e Erasmo de Roterdã. No ambiente espanhol, representantes de ordens religiosas e também padres seculares apresentam caminhos concretos de oração e de autenticidade de vida cristã, recolhendo criativamente a tradição bíblica, patrística e medieval. Motivam à experiência espiritual como um chamado universal, não de poucos privilegiados. A incidência de seus testemunhos e pensamento é ampliada através do trabalho das gráficas. Para termos uma ideia, só na região de Castela (a de Santa Teresa), em 30 anos são editados mais de 198 títulos de livros de espiritualidade. Autores como Francisco de Osuna, Bernabé de Palma, São João de Ávila e Luiz de Granada atingem alta popularidade. Todos eles estão interessados em chegar a Deus por experiência. Na segunda metade do século, o Index (índice dos livros proibidos) de Valdés (1559), e o fortalecimento da ação da Inquisição puseram um freio às publicações e encheram de suspeita as buscas espirituais, mas, ainda assim, a mística seguiu o seu curso.

Teresa bebeu com sofreguidão das leituras sobre oração. Com alguns expoentes da espiritualidade ainda entrou em contato pessoalmente (São Pedro de Alcântara, São Francisco de Borja) ou através de cartas (Luiz de Granada, São João de Ávila). É impossível desvincular a mística de Teresa desta corrente de reformadores, escritores, buscadores de Deus e santos. Ela, junto com São João da Cruz, culminam este movimento, dando uma contribuição pessoal. Tudo isso mostra como a mística não deve ser separada de seu húmus histórico, cultural e socioeclesial, nem sempre valorizado.

Fatores de ordem pessoal também influirão na mística teresiana. Destaco o seu contexto familiar, suas vorazes leituras, seu segredo da descendência de judeu-conversos (por parte do avô paterno), sua formação na adolescência. Tudo isso se aliará a seu particular desejo de se relacionar e comunicar com os demais, inclusive com Deus, sua fina observação da vida, sua indignação contra situações de injustiça, sua habilidade como escritora. Buscas e crises pessoais aumentarão o seu desejo de Deus.

Além desses, podemos incluir outro fator transcendente: Deus mesmo age. O Concílio Vaticano II, especialmente na Constituição Dogmática Dei Verbum (n. 8), reconheceu o valor do testemunho místico no aprofundamento da compreensão da fé. Trata-se de um carisma. Devemos afirmar o núcleo teologal da experiência mística em geral, e da teresiana em particular. Teresa testemunha que o próprio Deus, transcendente, a convoca a partir de dentro dela e esta misteriosa presença será expressa em seus escritos. Portanto, através dos condicionamentos e anseios históricos, psíquicos e culturais de Teresa, é possível chegar ao núcleo de uma experiência teologal. Por esse motivo, nossa personagem sempre interpretou sua existência como uma história viva de amor e de salvação em que Deus mesmo é o protagonista. Podemos dizer que é uma história pessoal de salvação. Ser testemunha do mistério de Deus (nas palavras de Teresa no início do livro Moradas, “o que Deus faz a uma alma”) é uma das maiores contribuições de Teresa para os tempos de hoje. A teologia e a espiritualidade não devem a-historizar nem imanentizar a experiência mística.

IHU On-Line – Que novidades a mulher Teresa traz para a interface mística/feminino? Como se expressa a sua feminilidade em suas obras?

Lúcia Pedrosa-Pádua – O vocábulo “mística” implica três âmbitos: o sujeito da experiência (o místico), a experiência mesma (experiência mística) e os escritos místicos (a mística). Ao meu ver, a feminilidade de Teresa se expressa em todos esses aspectos.

Com relação ao primeiro aspecto, a experiência mística, penso que a feminilidade de Teresa se expressa no caráter fortemente relacional dessa experiência. Teresa percebe-se como aquela que é e está em relação. Quanto mais perto de Deus, mais ela se descobre perto da verdade de si mesma. Quanto mais em comunhão com os mistérios da natureza (“mesmo que seja uma formiguinha”), mais perto de Deus. E quanto mais perto de si e de Deus, mais perto dos demais. As relações tornam-se cada vez mais fortes em amor e desejo, ao mesmo tempo, mais livres e gratuitas, mais críticas e discernidas. Penso que esse é um traço marcante da experiência mística de Teresa como mulher.

Como sujeito da experiência, o segundo aspecto da mística, podemos dizer que Teresa foi refeita como mulher. Adquiriu apuradíssima autoconsciência de seu ser mulher. Rejeitou os estreitos papéis pré-estabelecidos e ultrapassou vários limites impostos culturalmente às mulheres. O fato de ser fundadora de uma ordem religiosa feminina e masculina bem o demonstra. Foi até chamada de “homem, e dos muito barbados”, por um catedrático de Salamanca, que observou sua capacidade de gestão. Foi escritora e exerceu conscientemente um papel magisterial através de seus livros. Seus escritos são críticos ao sofrimento das mulheres nos casamentos, na Igreja e na sociedade em geral.

Com relação a esse aspecto, lembro sua famosa oração, verdadeiramente feminista, encontrada na primeira redação do Caminho de Perfeição (cap. 4,1). Nela, denuncia um “encurralamento” das mulheres na Igreja: os varões são juízes de mulheres e suspeitam de toda “virtude de mulher”; estas, por sua vez, não podem “falar algumas verdades” que “choram em segredo”, são desprezadas e desqualificadas. Evidentemente, esta página foi censurada e não passou à segunda redação do mesmo livro. Sim, Teresa foi muito além do que se esperava de uma mulher do seu tempo. Ao mesmo tempo, suas histórias de amizade com alguns varões de seu tempo são bem conhecidas através de seu grandioso epistolário.

Finalmente, no terceiro aspecto, a linguagem, lemos com prazer suas obras cheias de sinceridade e verdade, beleza e concretude cotidiana, humor e criatividade. Como mulher, sua linguagem é pluridimensional. Isenta da impessoalidade e rigores escolásticos, a cujos conteúdos e métodos Teresa teve pouco acesso. Segundo o objetivo de cada obra, vemos como ela se adapta e se esforça por dar-se a entender, com habilidade e inteligência. Ora direta e grave; ora narrativa e simbólica, cheia de emoção e de assombro. Sua linguagem é plástica e adaptada a melhor expressar-se, assim como o são seu corpo e sua disponibilidade interior. Os símbolos teresianos sofrem metamorfoses em suas obras. Adelia Prado, a poeta mineira contemporânea, escreveu em uma poesia que a mulher é “desdobrável”. Talvez Teresa compartilhe dessa experiência de sua companheira, embora tão longe no tempo.

IHU On-Line – Que linguagem ou simbologia se destacam nas principais obras deixadas por Teresa de Ávila? Como ela “narra” o Mistério?

Lúcia Pedrosa-Pádua – A linguagem teresiana é repleta de símbolos e comparações. Isso a faz particularmente expressiva, saborosa e dotada de soluções inesperadas. Teresa é muito livre em suas comparações e os símbolos são metamorfoseados segundo o objetivo pedagógico ou o sentir da autora.

O símbolo maior é certamente o do “castelo interior”, presente de forma especial na sua obra de maturidade, o Castelo Interior ou Moradas. O símbolo é explorado de forma a servir os propósitos de expressão da autora: explicar quem é a pessoa diante de Deus, narrar a aventura da busca/encontro com Deus e, neste encontro, renovação da relação com tudo e com todos. A beleza do símbolo já demonstra o aspecto positivo e luminoso da pessoa diante de Deus: o castelo é de diamante ou de um cristal muito transparente, habitado em seu centro mais profundo pelo sol, Deus, que tudo ilumina e atrai, a partir de dentro de castelo. A aventura é chegar ao centro, a sétima morada. Ela adquire contornos dramáticos à medida que surgem os demais habitantes do castelo (as realidades da pessoa, em seus sentidos, afetos, sentimentos, inteligência...) ou do seu entorno (os animais que “rondam” o castelo), todos com suas forças de atração. É efetivamente um símbolo capaz de articular magistralmente uma teologia e uma espiritualidade. O caráter trinitário e cristológico da aventura do castelo é surpreendente.

Destaco mais dois símbolos que articulam partes menores (mas não menos importantes) da narrativa teresiana.

O primeiro, as quatro formas de regar o jardim, através das quais Teresa narra os quatro graus de oração, no Livro da Vida (cap. 11 a 22), seguindo sua própria experiência. A primeira forma de regar o jardim é buscando água no poço – trata-se de iniciar a oração de recolhimento, mesmo com as dificuldades e poucos resultados alcançados. A segunda forma é utilizando nora e alcatruzes movidos por um torno – aqui não é necessário tanto esforço na oração e há mais prazer na quietude. Entrando nas formas de oração mais misteriosas – místicas –, vem a terceira forma de regar o jardim, trazendo a água de algum rio ou arroio – aqui há maior união com Deus, alegria interna e experimenta-se um maior descentramento dos próprios egoísmos. Finalmente, a chuva, quarta forma de regar o jardim, união com Deus com todos os seus efeitos éticos e também psicossomáticos.

Por fim, destaco a parábola do bicho-da-seda, no Castelo Interior (Quinta Morada, cap. 2,2ss), utilizada pela explicar a transformação operada pela oração. Sugiro que o próprio leitor a leia e interprete. Verá a delicadeza da linguagem, a profundidade da doutrina e a surpreendente experiência.

IHU On-Line – Michel de Certeau aborda o traço novidadeiro da mística teresiana no campo da afirmação da subjetividade, um pioneirismo que, afirma o autor, antecipa Descartes. Como a senhora analisa a inovação da mística teresiana no campo da subjetividade e da consciência?

Lúcia Pedrosa-Pádua – Teresa é, de fato, uma escritora moderna e humanista. A começar pelo Livro da Vida, escrito em primeira pessoa e quase cem anos antes do Discurso do Método, de Descartes. Na conclusão do Castelo Interior aconselhará suas irmãs, nem mais nem menos, a entrar e passear em seus castelos interiores em qualquer hora, pois para isso não é necessária a licença das superioras! Teresa não teme a liberdade e a autonomia; pelo contrário, estão intrinsecamente relacionadas ao amor.

Diria que a subjetividade construída por Teresa é integral e relacional.

É uma subjetividade integral por integrar corpo, mente e espírito. Aparentemente, sua linguagem traz o dualismo entre corpo e alma, devedor da doutrina comum de seu tempo, neoplatônica, que considera o corpo como “cárcere da alma”. Esta imagem é reforçada pelas recorrentes experiências de amor e desejo de morte para estar com Deus, para além do corpo e da história. Ímpeto tão bem retratado na poesia cujo refrão diz: “morro porque não morro”. Porém, uma leitura mais aprofundada de sua experiência mística, com suas consequências pessoais e éticas, revela uma valorização progressiva do corpo e, com ele, da história e da criação. Em sua última etapa mística, o chamado “matrimônio espiritual”, ou união com Cristo, é superado o ímpeto de morrer e o “querer viver” é revalorizado. O cuidado de Teresa para com a saúde, tanto física como psíquica, revelado nas cartas, bem mostra a busca da harmonia integral.

Junto ao respeito ao corpo e seus ritmos, impressiona como Teresa adquire a consciência dos próprios sentimentos, intuições, percepções, movimentos da vontade e desejos. Distingue e valoriza a vontade, a memória, o entendimento, a fantasia, a imaginação, os sentimentos. Alguns a colocam como mãe da psicologia, tal a filigrana de suas narrativas interiores.

Ao mesmo tempo, esta humanidade é cheia de sentido, porque a dimensão espiritual, experienciada por Teresa como “centro” ou “abismo da alma”, é habitada, não é “oca”. Teresa, em sua simbologia geográfica, muito inspirada na tradição agostiniana, pretende esvaziar o castelo para que Deus possa reinar. Porém, esse esvaziamento é cheio de sentido e transformações interiores. Ele não é fruto de ser “oco”. O ser humano é saboroso e recheado, como o palmito, outro símbolo teresiano. E o sabor máximo é dado pelo próprio Deus, que busca o espírito humano, comunicando-se e se fazendo sentir.

Além de integral, essa subjetividade é relacional, aberta. Teresa não se compreende sozinha, mas em relação. A aventura do castelo interior é, ao mesmo tempo, um caminho de autoconhecimento e de conhecimento de Deus, que vai se fazendo concreto no Cristo. A pessoa se conhece na relação, que é amor e amizade. Nesse caminhar vão acontecendo os processos de purificação e crescimento na liberdade para conviver, arriscar-se nos trabalhos, superar apegos, sentimentos negativos e medos. Por isso a mística é um acontecimento tão radical e transformador.

A subjetividade foi, na modernidade, muito reduzida à dimensão racional. Depois, à dimensão afetiva. Hoje, tendendo quase a definir a subjetividade em termos neurológicos e biológicos, nos vemos em termos da ação da serotonina, dopamina, adrenalina etc. em nossos cérebros. Teresa nos lembra como é importante manter a integralidade e a relacionalidade da subjetividade. Trata-se de uma subjetividade amorosa, audaz e livre.

IHU On-Line – Qual a sua opinião sobre a relação entre mística e erotismo em Teresa, especialmente a partir de seus “êxtases”, famosamente retratados na Transverberação de Santa Teresa, de Gian Lorenzo Bernini?

Lúcia Pedrosa-Pádua – Considero a escultura de Bernini maravilhosa. Tive a oportunidade de visitar a Igreja de Santa Maria da Vitória, em Roma, onde ela está situada, e fiquei impressionada observando os seus detalhes, com o anjo, o dardo e Teresa “tombada de amor ferida” (nos dizeres dos versos litúrgicos que certamente influenciaram Bernini).

A mística teresiana, e não apenas ela, está estreitamente vinculada à paixão e ao desejo de Deus, e nesse sentido há uma estreita relação entre a mística e a erótica. O ser humano pode ser visto como ser desejante, em tensão constante em direção a Deus. Há envolvimento e sentimento que atinge todo o ser, corpo e alma. E isso porque Deus mesmo é também um Deus “desejoso” – Teresa utiliza o vocábulo "ganoso" (de "ganas") – em relação à pessoa humana, embora misteriosamente respeitoso da resposta humana. Deus espera o ser humano, mas em tensão, desejo de uma resposta positiva; ele se envolve com o ser humano, é o Deus Trindade. Na expressão de São João da Cruz, ele é o “cervo vulnerado”. Portanto, não se trata do Deus sem paixão da teologia abstrata. Neste sentido, o amor de Deus é também eros.

A imagem de Bernini retrata este envolvimento de amor na experiência da transverberação do coração, narrada no capítulo 29 do Livro da Vida. Ressalto que Teresa não utiliza o termo transverberação, que é de origem litúrgica. Ao narrar esta experiência, situa-a dentro das graças místicas extáticas, arrebatadoras, especificamente no contexto das “feridas” místicas, que acontecem à medida que cresce o sentimento de amor. O grande teresianista Tomás Alvarez estudou com detalhes o fenômeno nos relatos teresianos. Não é um fato isolado na vida de Teresa, mas uma experiência repetida várias vezes, em graus distintos, embora a presença do anjo esteja presente apenas nessa página teresiana. Trata-se de um acontecimento de amor. Teresa falará deste amor forte que “fere” e é, ao mesmo tempo, saboroso, em outros escritos. Em uma bela poesia/oração, dirige-se a Deus de maneira paradoxal, como beleza que “sem ferir, dor fazeis” e também “sem dor, desfazeis”. As sextas moradas, particularmente através do símbolo do fogo, também narram, de forma magnífica, as modalidades das feridas místicas, comparadas a joias presenteadas à noiva, que preparam as sétimas moradas. São estas, as sétimas moradas, o cume da mística teresiana, comparada ao matrimônio místico.

Sim, Teresa vive uma longa etapa em sua vida mística, narrada nas sextas moradas, em que é vulnerada pelo sentimento fortíssimo de amor, que atinge seu espírito e também, de forma misteriosa, o corpo, e que, como ferida prazerosa, não é saciado. A ferida só faz aumentar o desejo de amor; há alternância entre o sentimento da presença de Deus e a dor da ausência. A ação divina só faz aumentar o desejo até o limite do desejo de morte para estar com o amado. É a seguinte morada, sétima, que traz o dom da paz, o sentimento da presença de Deus-Trindade, o matrimônio espiritual e a reconciliação com a vida e com a humanidade. Assim sendo, os dons do grau místico mais elevado da experiência teresiana não são os sentimentos arrebatadores de presença e a dor pungente da ausência de Deus, mas sim a paz e as “obras” (nos dizeres de Teresa, aqui a esposa recebe o beijo desejado e a corça é saciada pela água). Isso Bernini não retratou.

O que deve ser evitado, diante das evidências e abundância dos testemunhos teresianos, são interpretações grosseiras que esfumaçam a misteriosidade e a inefabilidade da graça mística teresiana, reduzindo-a a experiências sensuais cotidianas. Como ela mesma escreve: “suplico à sua Bondade o dê a provar a quem pensar que eu minto”.

IHU On-Line – Teresa foi declarada Doutora da Igreja por Paulo VI, em 1970. Quais foram as principais contribuições de Teresa ao magistério da Igreja?

Lúcia Pedrosa-Pádua – Quando Teresa foi declarada Doutora de Igreja, Paulo VI, em sua homilia, destacou três razões fundamentais deste doutorado. A primeira, a atualidade da mensagem teresiana sobre a oração, realizada a partir de seu testemunho místico e de seus ensinamentos sobre a oração. A segunda razão foi o desejo de destacar a dignidade da mulher e seu lugar na Igreja, especialmente sua participação na transmissão e aprofundamento da mensagem do Evangelho e da doutrina teológica e espiritual da Igreja. A terceira razão foi o sentido de Igreja, a eclesialidade de Santa Teresa.

Hoje, passados mais de 40 anos dessa declaração, e tendo-se desenvolvido o estudo da vida e das obras de Santa Teresa, vemos que o alcance deste doutorado é bem maior e com projeção de futuro.

Num balanço do doutorado teresiano, em 1996, o saudoso teresianista Jesús Castellano Cervera elencou mais de uma dezena de temas contidos nas obras teresianas, que significam ricas contribuições teológicas que vem sendo estudadas. Não há tratado teológico ao qual Santa Teresa não possa dar uma contribuição. Seu magistério não se resume à oração, embora nesse aspecto Santa Teresa apresente uma contribuição insubstituível. Suas obras são verdadeiros tratados teológicos indutivos: antropologia, Trindade, pneumatologia, cristologia, escatologia, eclesiologia, sacramentos... A vida e doutrina de Santa Teresa podem trazer contribuições também para a pedagogia da fé e para a pastoral. A mística vem sendo timidamente incorporada aos estudos teológicos universitários, mas o caminho vai sendo aberto porque a realidade mística hoje vai se impondo. É um sinal dos tempos. Na espiritualidade, o doutorado impulsionou as edições e a leitura das obras teresianas.

Na atualidade, vejo que não é apenas o doutorado teresiano, mas o próprio contexto espiritual da pós-modernidade, de busca do sagrado e ao mesmo tempo crescimento do ateísmo, que vem estimulando a leitura de Santa Teresa como companheira e mestre de nosso próprio caminho espiritual. Como teresianista, vejo um interesse crescente pela vida e pelas obras dessa grande mulher.

IHU On-Line – Teresa é reconhecida por seu papel como reformadora e fundadora de conventos. Como esse “novo estilo de vida” dos mosteiros se relaciona com a mística e a espiritualidade de Teresa?

Lúcia Pedrosa-Pádua – A reforma da ordem carmelitana e fundação do ramo do Carmelo Descalço são uma consequência da vida mística teresiana, ao mesmo tempo em que conformam muitos dos conteúdos de suas experiências. Ou seja, mística e obra fundadora não se separam, ao contrário, se influenciam mutuamente. Ela mesma reconhece que é impossível realizar grandes coisas àquele que não se sabe favorecido por Deus. Na espiritualidade teresiana, mística e profecia não se separam. Oração e ação andam juntas. “Marta e Maria devem andar juntas”, afirma Teresa, da atalaia das Sétimas Moradas.

A mística leva, em seu interior, uma dimensão ética e comunitária. Essas dimensões fazem parte da formação de uma subjetividade integrada e relacional, que já mencionei em pergunta anterior. Muitos pensam que a mística teresiana se resume à grande ferida de amor, ao êxtase imortalizado por Bernini, mas tal é um grande engano, porque ignora a dimensão cotidiana, concreta e ativa da mesma experiência. O místico é sempre um profeta porque adquire uma sabedoria especial para viver o tempo que lhes compete viver. Mística não combina com alienação ou com introspecção fechada. Mística combina com lucidez, audácia, amor e liberdade.

Teresa soube abrir um caminho novo numa Igreja em crise. Instaurou comunidades de mulheres pobres, orantes e iguais, numa sociedade hierarquizada e preconceituosa. Deu voz criativa àquelas que foram encurraladas e desqualificadas. Construiu redes de amizade e colaboração. Era alegre e bem humorada. Com tudo isso testemunhou o mistério do Deus que experienciou ao longo de toda a sua vida. Um Deus amigo e solidário, que se abaixa para se comunicar a quem se entrega.

IHU On-Line – Olhando para a situação da sociedade contemporânea, qual é o papel da mística e da espiritualidade? O que é necessário para que as pessoas do nosso tempo deem atenção ao lado místico da existência?

Lúcia Pedrosa-Pádua – A crise das grandes narrativas faz calar para ouvir os anseios mais sutis, como o amor, a liberdade, a autenticidade, a justiça, a amizade, a natureza, a transcendência que dá sentido real a tudo, Deus. Como no século XVI, penso que o cansaço com relação às instituições provoca uma busca de interioridade, de oração e de experiências verdadeiras compartilhadas.

A atual oferta quase ilimitada de entretenimento e de tecnologia dá uma resposta excessivamente exteriorizante aos nossos reais anseios. O excesso de informação pode nos anestesiar diante dos problemas reais, da injustiça real, da pobreza real. Da mesma forma, são superficiais as soluções farmacológicas às nossas depressões, falta de energia e alegria, ou excesso de tensão e agressividade. A mística convida a mais, convida a entrar no “castelo interior”, convida a dar atenção à “terra” da nossa interioridade, que deve ser molhada para florescer. Isso exige disposição, abertura, atenção, tempo, conversão, nova forma de estar no mundo. Esse convite é feito pelo próprio Deus, “ganoso” de que o conheçamos como Deus, envolvido em nossos destinos a partir do tecido de nossas existências, de nossa história e do nosso maravilhoso universo.

A mística exige ao menos a intuição de que “algo não vai bem”, nas palavras de Santa Teresa, para iniciar uma entrada no castelo interior. Exige coragem e humildade para dispor-se a um autoconhecimento diante de Deus, do Cristo que os Evangelhos nos narram. Teresa mostra a necessidade de nos colocarmos em movimento para dar espaço à aventura do encontro transformante com Deus e com tudo o mais, sobre bases mais humildes e mais harmônicas. Bases mais integradas e mais relacionais.

Nesse sentido, a mística, como experiência do mistério de Deus, não é apenas um anseio atual, é uma necessidade que brota do coração de nossa cultura e nossas igrejas. E mais, uma necessidade que brota do coração de Deus. Ela deve estar na estrutura dos projetos de renovação das comunidades, pois dela brotará a verdadeira profecia e a verdadeira espiritualidade cristã, que é místico-profética. E atenção: todos são chamados a ser místicos, afinal, já lembrou o teólogo Schillebeeckx que a fé só se realiza como fé na experiência.

IHU On-Line – Às vésperas de se comemorar 500 anos do nascimento de Santa Teresa de Ávila (1515-2015), a senhora organizou, juntamente com Mônica Baptista Campos, o livro Santa Teresa: mística para o nosso tempo. A partir da proposta do título, qual a atualidade de Teresa hoje?

Lúcia Pedrosa-Pádua – O livro Santa Teresa: mística para o nosso tempo traz estudos do Grupo Moradas de Estudos Místicos, grupo ecumênico da PUC-Rio. Atualiza aspectos da mística teresiana para o homem e a mulher de hoje. O interesse pela mística e por Santa Teresa na academia, por um grupo ecumênico, já é um sinal eloquente da atualidade de Teresa.

Vejo o interesse por Santa Teresa em muitos aspectos, mas destacaria três.

O primeiro, humano-espiritual. A espiritualidade se nutre do contato com uma mulher forte e corajosa, amiga do amor e da amizade, da liberdade e da pobreza, da humildade e da verdade, da beleza e da poesia. Uma mulher que testemunhou que adentrar o mistério humano é vislumbrar algo do transcender que o habita, que a oração é a porta deste dinamismo tão fundamental e que a vida é transformada por essa misteriosa experiência.

A segunda atualidade é teológico-pastoral. Também a teologia é fortalecida na integração com a mística e a espiritualidade. A teologia sem a mística torna-se abstrata; a mística sem a teologia pode seguir o caminho de experiências ocultistas e desencarnadas.

A terceira atualidade é o interesse interdisciplinar e inter-religioso que a mística oferece. Esse talvez seja um dos grandes caminhos abertos pela mística teresiana atualmente.

Enfim, espero que o livro Santa Teresa: mística para o nosso tempo seja bem recebido como uma contribuição à teologia e à espiritualidade.

IHU On-Line – Em sua opinião, quais as características mais marcantes da experiência mística feminina? Além de Teresa de Ávila, que outras mulheres foram mestras na arte de “narrar o Mistério”?

Lúcia Pedrosa-Pádua – A relacionalidade que não teme o amor, a verdade existencial que não teme se expor, a linguagem que se faz compreender, a profundidade que sabe quando calar, a beleza que escorre por caminhos multidimensionais e multissensoriais, a profecia que confunde os poderosos.

São muitas. Foram mestras místicas medievais como Hadewijch de Antuérpia, Hildegard de Bingen, Marguerite Porete e Angela de Foligno. A elas acrescentaria Santa Clara de Assis e a Doutora da Igreja Santa Catarina de Sena. Já no tempo moderno, além de Santa Teresa, as carmelitas Santa Teresinha do Menino Jesus, Isabel da Trindade e Edith Stein. Considero a poesia da mineira contemporânea Adélia Prado um exemplo de poesia mística.