17/01/2012

Considerações sobre o impasse do Garantia-Safra, em São Franciso de Assis do Piauí-PI

Autor: Pe. Henrique Geraldo Martinho Gereon (foto)
Data: 14 – 01 – 2012

1.A missão do presbítero católico tem sua origem na missão de Jesus de quem ele é discípulo. Jesus define a sua missão em Luc 4,18: “anunciar a boa nova aos pobres”. Qual é a “boa nova” que eu devo anunciar aos pobres da minha paróquia de São Francisco de Assis do Piauí? Que pobres são esses? São os pequenos agricultores, cadastrados para o “Garantia-Safra” do período 2010/2011. Pela irregularidade das chuvas eles tiveram perdas avaliadas em 50 e mais por centos, o que constitui a condição para acionar o Garantia-Safra. Porém, passados já três meses da data-limite para a comunicação da ocorrência, descobriu-se, de repente, que não havia mais condições para obter o benefício do Garantia-Safra, alegando-se como  principal  causa  a não-observância  dos prazos estabelecidos. “Descobriu-se de repente” – como se entende este termo?

2.A execução do Programa Garantia-Safra estabelece o prazo-limite para enviar a “Comunicação de Ocorrência de Perdas” – COP: 27 de maio, calculado pelo período de plantio do município. A constatação da ocorrência de perdas é elaborada pelo agente regional do IBGE e uma comissão municipal, composta de representantes da prefeitura, da EMATER, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável... O IBGE oficializa o resultado num formulário próprio chamado LSPA (Levantamento sistemático da produção agrícola). Foram marcadas duas reuniões do citado grêmio para avaliar a perspectiva de safra: a primeira no dia 06 de abril, quando não se podia afirmar nada ainda: as plantações ainda estavam na fase inicial, por causa do início das chuvas suficientes só em meados de fevereiro. Outra reunião avaliativa teria que ser marcada cerca de 40 dias depois da primeira, ou seja, em meados de maio. Esta teria revelado claramente o índice alto das perdas.

3.No entanto, apenas em 29 de agosto aconteceu esta segunda reunião. O prazo-limite para a remessa da COP já tinha passado fazia 94 dias. Dois dias depois, no dia 31 de agosto, a prefeitura recebeu da Coordenação Estadual do Garantia-Safra uma “Mensagem às prefeituras, STR, Emater e CMDRS” alertando para observar o prazo-limite (27 de maio) para o envio das COP, alerta essa que deveria ter acontecido, no mínimo, 115 mais cedo.

4.Desde aquele dia afirma-se categoricamente pelas autoridades estaduais e federais: “Os produtores aderidos ao programa não podem receber o pagamento do Benefício Garantia-Safra”. Ninguém pergunta como poderia acontecer este fato e quem seriam os responsáveis por tão grave situação. E ninguém questiona se o fato não seria um acidente que não poderia penalizar tantos pequenos agricultores para os quais o programa foi criado e que levaram tanto prejuízo.

5.Fizemos, no dia 25 de outubro, uma grande concentração dos “aderidos ao programa Garantia-Safra”. Não incendiamos nenhum ônibus nem invadimos nenhum prédio público. Mas lançamos um manifesto assinado por mais de 860 pessoas. Nele afirmamos: “É completamente incompreensível que as lideranças locais envolvidas no programa Garantia-Safra não tenham percebido o que aconteceu nas nossas lavouras – não é compreensível, mas explicável.” No nosso manifesto não queríamos apontar para responsáveis. Agora, no entanto, que fracassaram todas as tentativas para reparar o defeito que é nada irreparável, teremos que acrescentar alguma coisa, teremos que ser claros.

6.A impossibilidade de obter um benefício que temos direito de alcançar, não é nenhuma fatalidade, nem algum mistério impossível de descobrir. Os envolvidos para acionar a aplicação do Garantia-Safra moram entre nós, são todas pessoas esclarecidas, de entidades destinadas a assistir aos pequenos agricultores. Eles ganham seus salários para isso. Todos têm experiência na condução do processo Garantia-Safra. O que houve não foi um apagão na cabeça dessa gente. Houve uma omissão consciente, uma conivência com o descaso dos responsáveis pelo bem-estar dos cidadãos deste município. O único que podia alegar falta de conhecimento, seria o prefeito que tomou posse, fazia cinco meses, depois duma eleição suplementar, e nunca tinha sido envolvido nos mecanismo deste programa.

7.Desde a data daquela concentração popular não paramos de tentar sensibilizar as autoridades estaduais e federais. Apenas um deputado federal da nossa região assumiu a nossa causa e fez dois pronunciamentos na Câmara dos Deputados. Muito lhe agradecemos esse engajamento. Todos os outros aos quais dirigimos os nossos apelos e que teriam poder para reverter a decisão insistem nas determinações da Portaria SAF/MDA 15/09. É como uma blindagem que impede o raciocínio entrar na mente e o sentimento humano entrar no coração.

8.Não usamos meios violentos para romper a blindagem. Queremos, mais uma vez, apresentar argumentos. O Programa Garantia-Safra segue o seguinte roteiro: Depois de cadastrar os que pretendem aderir o programa, os governos municipal e estadual pagam as suas respectivas cotas de contrapartida. O período do plantio é monitorado sobre a incidência das chuvas, a extensão da área plantada e a safra segura ou perdida. Perdas constatadas são comunicadas ao SAF/MDA, dentro de prazos estabelecidos. No nosso caso não foi cumprido este último item, ou seja, a comunicação das perdas dentro do prazo-limite. Esse item é que mais poderia permitir alguma flexibilidade, o que não seria possível na medição das chuvas e a constatação das perdas da safra que são fatos que só uma fraude poderia alterar. Para os beneficiários, um atraso de data não é culpa, é como um prego de pneu na viagem de carro ou mau tempo no aeroporto que atrasa chegadas e partidas dos aviões. Onde está a culpa desses agricultores, que estão amargando a perda da safra e a decepção de uma esperança traída?

9.Nesse contexto, a “boa nova a ser anunciada aos pobres”, em nome de Jesus, seria o que? Jesus explica, no mesmo texto de Lucas: libertar os presos, recuperar a vista aos cegos, libertar os oprimidos. Presos, cegos, oprimidos são todos esses pequenos e pobres, mantidos em dependência e submissão, pedindo favores aos poderosos, sem acreditar que possa mudar alguma coisa, como que Deus tivesse criado tudo isso que já vem do tempo dos coronéis deste sertão perdido, afirmando na sua prepotência que Deus é inoperante, incompetente e cruel. Jesus veio justamente para nos anunciar um Deus-Pai que quer seus filhos livres para viver numa comunidade fraterna Para os que anunciam, como Jesus, essa libertação, existe o mesmo obstáculo como na sinagoga de Nazaré: a cegueira dos que não querem ver. É a cegueira dos que exigem rigor ritualista e moralista, mas abafam a sensibilidade pelo contexto humano, comunitário e social. Não querem um padre envolvido no Garantia-Safra porque não enxergam Jesus como o deus que se fez pobre para assumir a causa dos pobres. Mesmo que a palavra final não respondeu ao grito dos pobres, a última palavra fica mesmo com esses pobres: Ganhamos uma visão mais clara sobre o sistema que nos faz vítimas de um jogo de dependência e poder. Cada vez mais vamos rejeitar essa submissão e caminhar rumo à libertação oferecida por Jesus.

10.Ao escrever estas linhas fui procurado por uma Senhora que vive na localidade “Trás da Serra”, neste município. Ela perguntou sobre o andamento do Garantia-Safra. Eu respondi que só um milagre ainda pode reverter a negação do benefício. A mulher contou a situação de fome na sua casa: No dia de Natal ela só tinha um resto de macarrão, cozinhou-o com um pouco de sal e distribuiu um pouco no prato de cada um da sua família. Acrescentou ainda: a sua cisterna sempre tinha um resto de água antes do novo inverno, que ela dividia com os vizinhos. Neste ano passado a água foi tão pouca que ela agora está pedindo, com a demora do novo inverno, um pouco do resto de água dos seus vizinhos. Preocupada com a falta de chuva que não quer começar ela demonstrou tanto desânimo que foi difícil encontrar palavras que não fossem um consolo barato. Ao se despedir, a mulher ainda me agradeceu por tê-la ouvido, parece que ficou um pouco aliviada.

11.Ainda tive oura visita: um pai de família com 12 bocas na casa dele. Ele, querendo saber também o resultado do Garantia-Safra, contou a sua versão da fome. Um dia desses saiu para a cidade para ver se achava alguma comida para trazer. Dizia para os que ficaram que deixassem o fogo aceso. A fumaça vista de fora poderia sugerir a impressão que nessa casa tivesse uma panela no fogo cozinhando o almoço. O pobre tem até vergonha de falar da sua fome. A sua ida para a cidade tinha o objetivo de receber o valor da venda de um porco que nunca foi pago, e o valor de R$ 74,00 da prefeitura pelo serviço do roço de 4 km de estrada, valor este que espera há três meses. Como pode uma panela com comida chegar neste forno onde queima apenas um fogo simbólico? Eu estava vendo o verdadeiro rosto daqueles que a burocracia chama de “aderidos ao programa”.

12.De repente tive uma certeza: Chega de conversa fiada de Garantia-Safra, Portaria SAF/MDA 15/09, EMATER, IBGE, CMDRS, LSPA, COP etc. etc. ...eu tenho que sair para a estrada atrás de comida para irmãos e irmãs famintos que perderam a sua safra e ainda não plantaram nada. Se não eu perco Jesus de vista que me manda “anunciar aos pobres a boa nova”. O anúncio dessa boa nova não pode ser mais nenhum discurso – só pode ser uma mão de comida na panela. A fumaça do fogo debaixo desta panela cheia vai ser talvez o incenso mais agradável que já chegou ao trono de Deus.

Pe. Geraldo Gereon, pároco de São Francisco de Assis do Piauí – PI.
Pça. da Matriz, 166 – São Francisco de Assis do Piauí-PI.  
franciscodeassisffa@gmail.com