A Igreja e o Vaticano II. 'Um retrocesso'
Kevin Dowling, bispo de Rustenburg, África do Sul, proferiu, recentemente um discurso que repercutiu intensamente em países de língua inglesa. Dowling disse ao National Catholic Reporter, em uma entrevista por telefone, que proferiu a fala no dia 1º de junho a um grupo de “católicos leigos influentes” que se encontram periodicamente na Cidade do Cabo para almoçar. O grupo, disse Dowling, pediu a ele que proferisse algo sobre como via a situação atual da igreja. “Em conversas subseqüentes, ficou claro para mim que o grupo de líderes católicos leigos bem informados, queria uma análise que fosse aberta e honesta”, disse Dowling no dia 8 de Julho. “Dado o fato de que seria um grupo seleto sem a presença da mídia, decidi ser aberto e franco em relação aos meus pontos de vista para iniciar um debate e discussão.” No entanto, um repórter estava presente, e o que Dowling pretendia com uma conversa confidencial com líderes leigos tornou notícia local. Dowling logo enviou cópias de sua fala aos seus companheiros bispos sul africanos. O NCR recebeu uma cópia do documento e contatou Dowling para verificar sua autenticidade. Dowling enviou ao NCR uma cópia original da palestra e autorizou-nos a publicar online. Segue o texto da fala de Dowling em 1º de junho na África do Sul aos líderes católicos leigos. Dowling iniciou a palestra lendo uma nota do correspondente do NCR em Washington, Jerry Filteau, sobre uma Missa Latina celebrada em abril na Basílica do Santuário Nacional da Imaculada Conceição, em Washington. Edward Slattery, bispo de Tulsa, celebrou a missa, que apresentou, nas palavras de Filteau, “a cappa magna [veste litúrgica], um séquito vermelho brilhante de quase 20 metros, por trás de um bispo ou cardeal, que veio a ser um dos símbolos do renascimento da missa tridentina.” O discurso de Dom Kevin Dowling foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 08-07-2010 . A tradução é de Lucas Schlupp.
Fonte: UNISINOS
The Southern Cross (jornal católico semanal da Africa do Sul), por volta de três ou quatro semanas atrás, publicou uma foto do bispo Slattery com sua “cappa magna”. Para mim, tal demonstração que representa o triunfalismo, em uma igreja despedaçada por escândalos de abusos sexuais, é muito infeliz. O que aconteceu lá reproduziu as marcas de uma corte real medieval, não a liderança humilde e servidora demonstrada por Jesus. Mas parece-me que isso é, também, um símbolo do que tem ocorrido na igreja, especialmente desde que o papa João Paulo II se tornou o Bispo de Roma, e até então – e isso é “restauracionismo”, o desmantelamento cuidadosamente planejado da teologia, eclesiologia, visão pastoral; realmente “a abertura das janelas” do Concílio Vaticano II – para “restaurar” um modelo de igreja anterior, ou mais controlável através de uma estrutura de poder cada vez mais centralizada; uma estrutura que agora controla tudo na vida da igreja através de uma rede de congregações do Vaticano, lideradas por cardeais que asseguram a estrita observância do que é considerado por eles como “ortodoxo”. Aqueles que não obedecem arcam com censura e punição. Por exemplo, os teólogos que são proibidos de lecionar em faculdades católicas.
Assim, que não deixemos de destacar suficientemente este fato importante. O Vaticano II foi um concilio ecumênico, ou seja, um exercício solene do magistério da igreja, ou ainda, o colégio de bispos reunidos com o bispo de Roma e exercitando uma função de ensino para toda a igreja. Em outras palavras, sua visão, seus princípios e direcionamentos, devem ser seguidos e implementados por todos, do papa ao camponês lavrador em Honduras.
Desde o Concílio Vaticano II, não houve tal exercício de autoridade de ensino do magistério. Em vez disso, uma série de decretos, pronunciamentos e decisões que ganharam vários “rótulos”, indicando, por exemplo, que devem ser mantidos com “consentimento interno” pelos fiéis católicos, mas na realidade são simplesmente as interpretações ou opiniões teológicas ou pastorais dos que tem poder no centro da igreja. Eles não foram definidos solenemente como pertencentes ao “depósito da fé” para serem cridos e seguidos por todos os católicos, assim como outros dogmas solenemente proclamados. Por exemplo, as questões de celibato para o sacerdócio e a ordenação de mulheres, até mesmo retiradas da esfera de discussões. Por isso, tais pronunciamentos estão suscetíveis a exames minuciosos – para discernir se estão de acordo, por exemplo, com a visão teológica fundamental do Concílio Vaticano II, ou se há, na verdade, um caso a ser submetido à diferente interpretação ou opinião.
Quando trabalhei internacionalmente a partir da minha base congregacional religiosa em Roma, de 1985 a 1990 (Dowling é um redentorista [pertencente à Congregação do Santíssimo Redentor]), antes de voltar para cá como bispo de Rustenburg, uma das minhas responsabilidades era a construção do ministério de jovens adultos juntamente com as nossas comunidades em países da Europa, onde tantos jovens estavam alienados da igreja. Desenvolvi relações com muitas centenas de jovens adultos católicos que buscavam de forma sincera, bem abertos a questões de injustiça, pobreza e miséria no mundo, conscientes da injustiça estrutural nos sistemas políticos e econômicos que dominam o mundo, e sentiam cada vez mais que a igreja “oficial” não estava somente perdendo a noção da realidade, mas dando mal testemunho às aspirações de católicos pensantes e conscientes que buscam uma experiência diferente de igreja. Em outras palavras, buscam uma experiência que os possibilita a acreditar que a igreja à qual pertencem possua algo relevante a dizer e testemunhar para este mundo desafiador ao qual vivem. Muitos, mas muitos destes jovens adultos, desde então, deixaram a igreja definitivamente.
Por outro lado, há de ser reconhecido que para um significante numero de jovens católicos, católicos adultos, padres e religiosos ao redor do mundo, o modelo “restauracionista” de igreja que tem sido implementado nos últimos 30 a 40 anos é procurado e valorizado; encontra uma necessidade neles; dá-lhes um sentimento de estarem pertencendo a algo com claros parâmetros e diretrizes para a vida. Desta forma trazendo um senso de segurança e clareza sobre o que é verdade e o que moralmente é certo ou errado, pois há uma estrutura de autoridade clara e forte que decide de forma definitiva por todas estas questões, e à qual eles confiam absolutamente como sendo de origem divina.
O crescimento de grupos e organizações conservadores na igreja nos últimos 40 anos ou mais, que atraem significativo número de adeptos, levou a um fenômeno que eu acho difícil de lidar. Uma igreja com um olhar “para dentro”, atemorizante, quando não antagônica, em relação a um mundo secular com seu perigo concomitante de relativismo, especialmente em termos de verdade e moralidade – frequentemente referido pelo papa Bento XVI; uma igreja que dá uma impressão de “sair pela retaguarda”, e confiando em uma autoridade forte centralizada para garantir unidade através da uniformidade no credo e na prática diante de tais perigos. O medo que há, é de que, sem tal supervisão e controle, e se for autorizada qualquer liberdade de tomadas de decisões, mesmo em questões menos importantes, iria abrir a porta para a divisão e o colapso na unidade da igreja.
Isso se dá por causa de uma “visão” fundamentalmente diferente na igreja e da igreja. Onde é que hoje podemos encontrar os grandes líderes teológicos e pensadores do passado, como o Cardeal (Joseph) Frings de Colônia (Alemanha) e (Bernard Jan) Alfrink (Utrecht, Holanda) na Europa, e os grandes bispos profetas dos quais as vozes e testemunhos foram um chamado de trombeta pela justiça, direitos humanos e uma comunidade global de distribuição justa – o testemunho do Arcebispo (Oscar) Romero de El Salvador, as vozes dos cardeais (Paulo Evaristo) Arns e (Aloísio) Lorscheider, e os Bispos (Dom) Helder Câmara e (Pedro) Casadaliga do Brasil? Novamente, quem no mundo de hoje, “por ai”, ainda dá ouvidos, ou pelo menos aprecia ou permite ser desafiado pela liderança da igreja na atualidade? Acho que a autoridade moral da liderança da Igreja nunca esteve tão fraca. É, portanto, importante, no meu ponto de vista, que a liderança da Igreja, ao invés de dar uma impressão do seu poder, privilégio e prestígio, deveria ser experimentada como ministério humilde, em busca juntamente com as pessoas, para discernir a resposta mais apropriada ou viável que pode servir para complexificar as questões éticas e morais – uma liderança, portnato, que não presume ter todas as respostas o tempo inteiro.
Mas, para mudar um pouco de assunto, uma das contribuições realmente significantes da igreja para a construção de um mundo em que as pessoas e comunidades possam viver em paz e dignidade, com uma qualidade de vida que beneficia aos criados à imagem de Deus, é o corpo do que se tem chamado de “Doutrina Social da Igreja”, um compêndio publicado nos últimos anos. Estes princípios da doutrina social são: Princípio do Bem Comum, Solidariedade, a Opção pelos Pobres, Subsidiariedade, Destinação Universal dos Bens, a Integridade da Criação e a Centralidade da Pessoa – todos baseados e seguindo os valores do Evangelho. Aqui temos princípios e diretrizes muito relevantes para empregar em realidades sociais, econômicas, culturais e políticas complexas, especialmente em como elas afetam os membros mais pobres e vulneráveis da sociedade em todo lugar.
Porém, se a liderança da igreja, em qualquer lugar, ousa desaprovar ou criticar políticas econômicas e sociopolíticas, e os que planejam tais políticas ou governos, deve também deixar ser criticada da mesma forma, em relação a suas políticas, sua vida interna, e especialmente seu modus operandi [modo de operação]. Uma cultura e prática democrática, com foco na participação dos cidadãos e mantendo o dever de prestar contas pelos que são eleitos para governar, é cada vez mais desejado, apesar da inevitável deficiência humana. Quando pessoas pensantes de todo tipo de convencimento olham para a liderança da Igreja, a questionam sobre, por exemplo, a verdadeira participação dos seus membros no governo e, de que forma, na verdade, a liderança da Igreja deve ser responsabilizada. Se a Igreja e sua liderança declaram seguir os valores do Evangelho e os princípios da Doutrina Social da Igreja, aí sua vida interna, seus métodos de governo e seu uso da autoridade serão analisados com base no que nós cremos. Deixe-nos tomar um princípio da doutrina social, com importância vital para garantia da democracia participativa no domínio sócio político, a saber, subsidiariedade.
Eu trabalhei com a conferência episcopal (da África do Sul), Departamento de Justiça e Paz, por 17 anos. Após a nossa liberação política em 1994, discernimos que ela própria teria pouca relevância para a realidade dos pobres e marginalizados, a não ser que resultasse em sua emancipação econômica. Nós, portanto, decidimos que uma questão fundamental para a África do Sul pós 1994 era a justiça econômica. Após muita discussão em todos os níveis, emitimos uma Nota Pastoral em 1999, a qual intitulamos “Justiça Econômica na África do Sul”. Seu foco principal foi necessariamente na economia. Dentre outras coisas, tratou de cada um dos princípios da Doutrina Social da Igreja, e eu apresento agora uma citação de parte do tratamento de subsidiariedade:
“O princípio da subsidiariedade protege os direitos dos indivíduos e grupos diante dos poderosos, especialmente do estado. Faz com que aquelas coisas que podem ser feitas ou decididas num nível mais baixo da sociedade não seja substituído pelo que é de um nível mais alto. Assim, reafirma nosso direito e nossa capacidade de decidir por nós mesmos, como organizar nossos relacionamentos e como entrar em acordo com os outros. [...] Nós podemos e deveríamos dar passos para encorajar tomadas de decisões em níveis econômicos mais baixos, e capacitar o maior número de pessoas para participar o máximo possível da vida econômica.” (Justiça Econômica na África do Sul, pg. 14)
Aplicado à igreja, o princípio de subsidiariedade requer de sua liderança que promova e encoraje ativamente a participação, responsabilidade pessoal e empenho efetivo de todos em termos de chamado e ministério particular na igreja e no mundo, de acordo com suas oportunidades e dons.
Entretanto, penso que hoje temos uma liderança, que na verdade questiona exatamente a noção de subsidiariedade; onde os mínimos detalhes da vida e prática da igreja “no nível mais baixo” estão sujeitos à análise e autenticidade dadas por um “nível mais alto”, na verdade o nível mais alto, por exemplo, a autorização de linguagem e textos litúrgicos; onde um dos princípios chave do Concílio Vaticano II, o coleguismo nas tomadas de decisões, é virtualmente inexistente. O eminente emérito Arcebispo de Viena, Cardeal Franz König, em 1999 – quase 35 anos depois do Concílio Vaticano II – escreveu o seguinte: “Na verdade, porém, de facto e não de jure, intencionalmente ou não intencionalmente, as autoridades curiais trabalhando em conjunto com o papa se apropriaram da tarefa do colégio episcopal. São eles que realizam quase todas” (Minha Visão da Igreja do Futuro, The Tablet, 27 de Março, 1999, p. 434).
O que compõe isso, para mim, é a mística que tem envolvido crescentemente a pessoa do papa nos últimos 30 anos, de forma que qualquer crítica ou questionamento de suas políticas, sua forma de pensar, seu exercício de autoridade, etc. são considerados como traição. Há mais do que um sentimento, por causa desta mística, de que a obediência inquestionável dos fiéis ao papa é necessária e é um sinal do costume e fidelidade de um verdadeiro católico. Quando a autoridade do papa é estendida intencionalmente à cúria do vaticano, existe a real possibilidade de que a inquestionável obediência às decisões humanas tomadas pelos departamentos curiais e cardeais sobre uma gama de questões, tornam-se a marca da fidelidade como católico, e tudo fora disso é interpretado como sendo desleal ao papa, que é acusado de dirigir a barca de Pedro.
Por isso, tornou-se cada vez mais difícil ao longo dos anos, para todo o colégio de bispos, ou particularmente em um território, de exercitar sua liderança teologicamente embasada no serviço, a discernir respostas apropriadas em relação a sua realidade e necessidades socioeconômicas, culturais, litúrgicas, espirituais e pastorais; muito menos para discordar com ou buscar alternativas a políticas e decisões tomadas em Roma. E o que parece cada vez mais a política de designar bispos “seguros”, inquestionáveis ortodoxos, e até, muito conservadores para preencher dioceses vagas nos últimos 30 anos, apenas faz com que cada vez menos o colégio de bispos – mesmo em conferências poderosas como nos Estados Unidos – questionarão o que sair de Roma, e certamente não publicamente. Ao invés disso, haverá todo esforço para tentar encontrar uma adaptação com os que estão no poder, o que significa que a posição romana ao final prevalecerá. E, levando isso adiante, quando um único bispo fizer caso de algo, especialmente em público, a impressão ou julgamento será de que ele está “desrespeitando a hierarquia” em relação aos outros bispos e causaria apenas confusão aos fiéis leigos – assim dizem – pois parecerá que os bispos não possuem unidade em relação aos ensinamentos e papel como líderes. A pressão, portanto, é para fazer adequação.
O que deveríamos ter, a meu ver, é uma igreja onde a liderança reconhece e incentiva o ato de tomar decisões nos níveis apropriados de igrejas locais; onde a liderança local escuta e discerne juntamente com o povo de Deus daquela área o que “o Espírito diz à igreja”, e então articula o resultado como um consenso da comunidade de fé, oração e que serve. Precisamos de fé em Deus e confiança no povo de Deus para fazer o que possa parecer a alguns, ou muitos, um risco. A igreja poderia enriquecer com o resultado de uma diversidade que verdadeiramente integra os valores socioculturais, e a percepção de uma fé viva e em desenvolvimento, juntamente com um discernimento de como tal diversidade pode promover unidade dentro da igreja – e não requerendo, portanto, uniformidade para ser verdadeiramente autêntica.
Diversidade na vida e na prática, como uma expressão do princípio de subsidiariedade, tem sido tirada das igrejas locais em todo lugar pela centralização da tomada de decisões ao nível do Vaticano. Além disso, ortodoxia está mais e mais identificada com as opiniões e visões de mundo conservadoras, com o devido julgamento de que tudo visto como “liberal” é tanto suspeito como não ortodoxo, e por isso, a ser rejeitado como um perigo à fé do povo.
Há algum caminho que nos leva adiante? Eu luto com esta questão, especialmente em vista da divisão aparente do propósito e da visão na igreja. Como reconciliar tais visões ou modelos de igreja tão diferentes? Eu não tenho a resposta, a não ser que em algum lugar tenhamos que encontrar uma atitude de respeito e reverência à diferença e diversidade enquanto buscamos por uma unidade viva na igreja; que pessoas sejam autorizadas, e realmente capacitadas, a encontrar ou criar o tipo de comunidade que é expressiva em sua fé e aspirações com relação a suas vidas cristãs e católicas e com o compromisso com a igreja e o mundo, e que se esforça para manter a tensão legítima e construtiva nas incertezas e ambigüidades que tudo isso vai trazer, confiando na presença do Espírito Santo.
No cerne disto está a questão da consciência. Como católicos, temos que ser confiáveis o suficiente para tomar decisões conscientes da nossa vida, nosso testemunho, nossas expressões de fé, espiritualidade, oração, e envolvimento com o mundo – sobre o fundamento de uma consciência amadurecida. E, como convite para uma apreciação de consciência e decisões conscientes sobre nossas vidas e participação no que é uma igreja muito humana, encerro com a formulação ou entendimento dado de ninguém mais que o teólogo Pe. Josef Ratzinger, agora papa, quando era perito, ou expert, no Concílio Vaticano II:
“Sobre o papa, como expressão da reivindicação vinculativa da autoridade eclesiástica, encontra-se a própria consciência, que deve ser obedecida até mesmo, se necessário, contra a exigência da autoridade eclesiástica. Esta ênfase sobre o indivíduo, cuja consciência confronta com um tribunal supremo e final, e aquele que em última instância, está além da reivindicação de grupos sociais externos, mesmo a igreja oficial, também estabelece um princípio em oposição ao crescente totalitarismo.” (Joseph Ratzinger em: Comentário sobre o Documento do Vaticano II, Vol. V., pg. 134 (Ed) H. Vorgrimler, Nova Iorque, Herder and Herder, 1967).
Bispo Kevin Dowling C.Ss.R.
Cidade do Cabo, 1 de Junho, 2010