Inez Lemos é psicanalista e consultora em educação; autora de Pedagogia do Consumo.
Fonte: Revista Vida Pastoral
Desconfio da modernidade. Desconfio da animação entediada dos jovens. Desconfio do progresso e do sexo cibernético. Desse amor sem dor. O poema de Drummond “O amor bate na aorta” me faz sentir saudade da loucuras do amor, quando por ele pulávamos o muro, subíamos nas árvores e nos “estrepávamos”. Amar é quase sempre nos “estrepar”, abrir feridas que às vezes não saram nunca, às vezes saram amanhã. Por que escrever sobre o amor na atualidade? O que ele tem de errado? A pretensão não é julgar se o amor hoje é melhor que o de outrora, mas refletir sobre os dados do Núcleo de Sexualidade da Universidade de São Paulo, quando aponta que 58,6% dos rapazes se queixam de ejaculação precoce e problemas de ereção e 58,7% das garotas reclamam da falta de orgasmo.
O que esses números revelam é a existência de um ruído nas relações afetivas contemporâneas, que merece ser mais bem investigado. Ao indagar sobre a qualidade das relações, parto do pressuposto de que a questão é política. Qual a conexão entre afeto e mercado? Como os jovens estão vivenciando a sexualidade? Os encontros e os amores ainda possibilitam a realização pessoal? Num encontro, não estaríamos em busca de ilusões e sonhos? Quais significantes fazem parte dos encontros hoje? A questão é fazer sexo ou ser feliz no exercício da sexualidade? Sexo, apenas, não precisa de reflexão, e talvez isso seja a fonte dos ruídos apontados acima. Se, em tempos pós-modernos, seria demais exigir sexo com amor, transcendência e poesia, então vamos falar de sexo com gosto de felicidade, aquele que nos faz sentir melhor do que somos.
A insatisfação sexual dos jovens não estaria relacionada à pressão pelo prazer imediato sem intimidades? Sexo fast-food? O mundo taylorista, ao otimizar o tempo e racionalizar o trabalho, acabou estendendo a lógica industrial às relações. O pecado não foi ter levado a sério o discurso capitalista, esquecendo que o amor é custoso, moroso? Quando duas pessoas partem para um encontro, elas vão com tudo, com seus atavismos e insígnias fundadoras. Até para o amor o sujeito tem de estar inscrito numa ordem fálica. O que significa que ele, embora sendo sujeito do seu desejo, circula também no desejo do outro.
Alteridade e narcisismo, assim oscila a lei do amor, que é diferente da lei do mercado. O amor do poeta, “sem eira nem beira”, é o que “vira o mundo de cabeça para baixo”, “suspende as saias das mulheres” e as “deixa constipadas”. Constipar hoje é participar da banalização do sexo. “Como eu posso ficar tranquilo se as garotas topam a parada? Eu tenho que aproveitar, ou melhor, eu tenho que transar com todas que topam.” A fala de S. revela a ansiedade do jovem diante da nova ordem sexual. Não seria a ânsia responsável pela ejaculação precoce? As relações sexuais em série tiram o encantamento dos encontros e nos deixam sem entusiasmo para enfrentar suas imperfeições.
O mercado proíbe as relações profundas, e não o sexo. Viver em sociedade pressupõe pactos sociais. Significa que, para funcionar, para que os interesses da minoria que detém o poder prevaleçam, os da maioria têm de ser sacrificados. Para tanto, desenvolvem-se mecanismos de controle sobre o outro, para que ele não faça o que muitos gostariam de fazer. Junto à repressão, vem o mal-estar, a insatisfação, pois é algo do sujeito que foi apagado e desconsiderado. Assim começam as histórias de insatisfações. Quanto menos existe de nós em nossas escolhas, mais frustração há em nossos atos. O ato sexual deve dizer do sujeito.
O mercado não deve fazer parte dessa parceria. Deixemos as exigências capitalistas de fora. Para o exercício da sexualidade, devem ser levados o ser integral e os sonhos de felicidade, mesmo que esses nunca se cumpram. Sexualidade é antiperformance. Ser menos neurótico é saber lidar com a incompletude da vida. E saber amar é aceitar o outro como faltoso, imperfeito. Nas relações do amor possível e incompleto, a perfeição não entra. Para facilitar a relação, o melhor é quando os dois se despem sabendo de suas faltas. Deixem as máscaras cair e assumam as falhas da sexualidade humana.
Amor, paixão ou atração? Não existe significante que dê conta de nomear esses sentimentos. Eles são inomináveis. E, sendo o desejo amoral e sem ideologias, acredito que o desencontro amoroso que marca nossa era passa mais por questões que tentam operar os sentimentos, coisificando-os. Qual a nova ordem amorosa? O constrangedor não é falar de sexo, mas de desejo, pois desejar o outro pode representar uma contravenção em sociedade, cuja ordem sexual é regulamentada por um discurso que dessexualiza o desejo e o transforma em demanda.
Devemos consumir uns aos outros num moto-contínuo? O sexo/objeto está disponível em qualquer esquina. No “cabaré” da sexualidade de hoje, já não existe a esquina do pecado. O pecado é não querer fazer parte do cabaré. Se o amor romântico era incentivado, hoje é a banalidade dos corpos. O binômio matrimônio/patrimônio foi substituído por corpo/mercadoria. A tradição que se originou na família, no Estado e na propriedade privada se desloca e reifica os sentimentos.
Ao tratar o desejo como coisa, sufocamos qualquer produção afetiva que esteja fora da determinação do mercado. Como reinventar uma nova relação que fuja dos padrões impostos pela sociedade de consumo? Será que o outro é visto como um sujeito de desejo e de escolhas, com sentimentos e fantasias, ou o seu corpo entra numa relação apenas para operar uma função?
Ao operarmos uma fratura no desejo e na significação das relações, criamos outra forma de prazer para o sujeito e nova relação com o outro. Nesse novo encontro amoroso, o sujeito é envolvido por uma mística que se materializa nos objetos, e não mais na substância e na interioridade do parceiro. O sujeito-escravo do mundo atual é executor do desejo de outro senhor, o capital. Isso envolve mudanças no sentido e na organização das escolhas. Como posso desejar uma mulher que não se pareça com Deborah Secco?
A recusa da subjetividade, a recusa do sujeito em operar ele mesmo suas escolhas, produz a tirania. Ele passa a querer destruir no outro o que não pode admitir nele. Essa recusa torna o sujeito disponível para a infelicidade, para a doença, para a droga ou para atos perversos. Nossa sociedade vende um ideal de liberdade falso, irresponsável. Liberdade é um dos ideais mais difíceis da modernidade, pois exige autonomia e responsabilidade diante do desejo. Liberdade é algo construído internamente, num processo lento, que exige coragem moral. Não é sair por aí se dispondo a tudo o que aparece pela frente. Isso é amoral. Sexo feliz exige saber dizer sim ou não para um encontro. Exige responsabilidade diante do destino que damos às nossas pulsões.
O neurótico moderno não quer se haver com o seu desejo. Ele prefere adotar o desejo instituído pela civilização. Em vez de assumir sua singularidade, ele se situa como mais um do sistema. Ficar fora da massa, do mercado, sentindo-se o outro, o diferente, é da ordem do insuportável. Ao circular fora de seu desejo, o sujeito abre espaço para uma trajetória de buscas intermináveis, de desencontros e desamores. Sexo programado é sem graça e sem caldo. Seco e desidratado. O que hidrata a alma é a capacidade de reinventar a si e aos encontros. No banquete do amor socrático, para ser bom, o amor tem de ser belo. E a sabedoria é uma das coisas mais belas. Pessoas vazias, sexo vazio.
Um encontro ensolarado: que desafio ao tédio das metrópoles! Uma parceria exige mais que shopping centers. Ao desnudar os encontros de seus potenciais oníricos, ficamos apenas com o duro real do sexo. Se o sexo é da ordem do real, ele escapa à captura dos sentidos, das palavras. Devemos respeitar a dimensão mítica dos corpos que se atraem. A sedução está na busca incessante de si. Do eu no outro. Don Juan não tem memória. A memória passa pela alteridade, pelo outro. Busca-se, no encontro amoroso, a possibilidade de apaziguamento, de fugir do incêndio interno. O vínculo se faz na alegria e na dor dos encontros, e com eles tecemos histórias. O “donjuanismo”, ao tentar atender ao desejo das mulheres e realizar-se nesse desejo, apenas cumpre seus fins inconscientes para manter seu equilíbrio narcísico. A ideia é disseminar entre os indivíduos uma descrença no encontro prazeroso.
A mídia institui o sujeito submisso, apagado e entediado. O “assujeitado” é também o sujeito do excesso. Aquele que se deprime na ausência de falta. O que tem tudo, faltando-lhe apenas desejo para desfrutar do tudo que o cerca. A crença no amor perfeito, no prazer absoluto, é fraude. Mas desacreditar ser possível construir relações sexuais e afetivas duradouras é perigoso. “Amar é dar o que não se tem”, assim Lacan testemunha a irresponsabilidade dos amantes, ao prometerem aquilo que nenhum de nós pode dar, quando está amando.
No amor, ninguém pode garantir nada, somos apenas uma possibilidade. O medo do fracasso é o grande responsável pela insatisfação humana. A concha da intimidade, quando duas pessoas se dispõem a se abrirem uma para a outra, é um bom lugar para explorar os caminhos que podem levar ao sexo e à felicidade. Senão, são apenas dois corpos em exercícios eróticos. Talvez a vida esteja chata porque não estamos sabendo ser felizes na vivência da sexualidade.
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