26/12/2010

Entrevista - Jon Sobrino

''A Igreja costuma se distanciar de Jesus para que ele não incomode''.   

Santo e senha da Teologia da Libertação, o jesuíta salvadorenho Jon Sobrino (foto), de origem basca, continua sendo uma referência mundial aos que, na Igreja, buscam um Deus encarnado que opta pelos seus preferidos, os pobres. De passagem por Bilbao, ele diz que, "em conjunto, a Igreja costuma se distanciar de Jesus para não incomodar". E também assegura que o "enoja e envergonha" a situação do mundo atual, porque "o primeiro mundo continua colocando o sentido da história na acumulação e no desfrute que a acumulação permite". A reportagem é de Asteko Elkarrizketa, publicada no jornal Gara, 19-12-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS

Contam-me – de brincadeira – que o senhor está cansado do mundo e também lhe ouvi dizer mais de uma vez que o senhor quer poder viver sem sentir vergonha do ser humano. Qual é a razão?

Às vezes, eu sinto vergonha. Por exemplo, interessamo-nos de verdade pelo Haiti? Obviamente, ele levantou interesse no começo e teve algumas respostas sérias. Mas passa um tempo e já não importa... Outro exemplo que contei outras vezes: em um jogo de futebol de equipes de elite jogando a Champions [League], calculei que, no campo, entre 22 jogadores, havia duas vezes o orçamento do Chade... Isso me enoja e me envergonha. Algo muito profundo tem que mudar neste mundo...

Para onde o neoliberalismo e a globalização nos levam?

É tal o desastre que, em boa parte, provocou que alguns respondam humanamente: voluntários, ONGs, muitas Igrejas – católicas ou protestantes –, outras religiões. Mas acredito que o chamado Primeiro Mundo – uma quarta parte da humanidade – continua pondo o sentido da história na acumulação e no desfrute que a acumulação permite. A diversão, por exemplo, é uma megaindústria multinacional: o esporte de elite, o turismo...

Ignacio Ellacuría chamou isso de "civilização do capital", que produz uma sociedade gravemente enferma, em transe fatídico e fatal. E costumava dizer que a solução é inverter a situação. Por isso, forjou a expressão de que precisamos de uma "civilização da pobreza". Ellacuría era cabeça-dura nisto: é preciso inverter a situação: o motor da história não pode ser acumular, mas sim solucionar as necessidades básicas de 6,5 bilhões de seres humanos, e o sentido da história é a solidariedade com espírito.

Em nossa sociedade, é comum que grandes companhias realizem "campanhas de solidariedade" muito midiáticas, com jantares beneficentes, apadrinhamentos, envio de ajudas etc. O conceito de solidariedade está sendo desvirtuado?

Entendo a pergunta, mas acredito que ocorrem as duas coisas. Por um lado, certo bem-estar e certa afluência de recursos fazem com que dar ajuda seja mais fácil e que, se não tivermos o coração de pedra – como dizia o profeta Ezequiel –, que ele se converta um pouco em coração de carne e ajude. Acredito que parte dessas solidariedades são autênticas.

Pois bem, essas solidariedades também costumam ser usadas para ocultar a ignominia da falta de uma solidariedade maior e mais fundamental, e não só isso, mas também a opressão das grandes potências aos países pequenos.

Talvez sirvam para mascarar as raízes dos problemas?

Podem ser usadas assim, embora, ironicamente, boa parte das ONGs existem precisamente para dizer a verdade – embora não façam muito caso disso –, não só para ajudar economicamente, mas também para defender os direitos humanos. Acho isso complexo, e é preciso analisar cada situação. É claro que o poder submete todo mundo, mas cada um deve empurrar o carro da história como puder. Certamente, o que nos oferecem como soluções me causa indignação e me dá tristeza.

Ao cidadão médio do mundo desenvolvido corresponde alguma responsabilidade da pobreza, da opressão ou das guerras que assolam o planeta?

Objetivamente, sim. Quem declara as grandes guerras? Os governos, movidos por oligarquias, mas eleitos pelos cidadãos. Quando os governos oferecem guerra diretamente, alguns os elegem e outros não. Mas eu não ouço que um governante ofereça que se viva pior, que se desça para que outros muitos possam subir um pouco. Nesse sentido, objetivamente somos corresponsáveis. O mundo se divide entre oprimidos e opressores. Não é preciso enrolar muito...

A Congregação para a Doutrina da Fé emitiu em 2006 uma "Notificatio" na qual afirma que o senhor falsifica a figura do Jesus histórico ao destacar muito a sua humanidade em detrimento da sua divindade. É o argumento da velha heresia...

O que eu digo é que, na realidade humana de Jesus de Nazaré, Deus se fez presente. Mas me dizem que não chego a dizer de verdade quem é Deus e que eu falo de Jesus de Nazaré muito concretamente e até que o converto em político, e isso, em geral, não costuma agradar às autoridades das cúrias romanas e também diocesanas. Ocorreu com vários teólogos. No meu caso, começou em 1976.

Na "Notificatio", disseram que dois livros meus continham afirmações errôneas e perigosas. Antes, eu os havia dado para que sete teólogos sérios os lessem, e nenhum me disse que havia algum problema de possibilidade de heresia... Penso que Jesus de Nazaré sempre incomoda. Deus incomoda menos, porque é tão intocável, tão impalpável... Penso que, na Igreja, temos uma tendência a nos distanciarmos de Jesus de Nazaré. Não quer dizer que não falemos de Cristo, mas Cristo é "o ungido", um adjetivo.

Creio que o mais perigoso é ignorar que Jesus não simplesmente morreu, mas que o executaram. E o mataram porque enfrentou o poder dos sumos sacerdotes e, indiretamente, o poder romano. Evidentemente, Jesus não fez só isso. Pregou coisas belíssimas e dificilíssimas: as bem-aventuranças, a misericórdia com as pessoas, a oração ao Pai. Dá gosto de ver Jesus, mas também é coisa séria, e, se alguém quer seguir o caminho de Jesus, vai lhe custar. Por isso, penso que, em conjunto, a Igreja também costuma se distanciar dele para que não incomode. Mas, graças a Deus, há pessoas e grupos aos quais Jesus lhes atrai. Vi isso no El Salvador, principalmente entre os pobres e aqueles que os defendem.

Depois da "Notificatio", o senhor enviou uma carta ao superior-geral jesuíta, Peter Hans Kolvenbach, na qual indicava que diversos teólogos não encontravam incompatibilidade com a doutrina da Igreja, que a campanha contra o senhor e a Teologia da Libertação vinha há 30 anos e que Ratzinger, em sua época de cardeal, já havia tirado de contexto reflexões e expressões suas. Deduzo que há um ataque premeditado contra o senhor...

Não chamaria de ataque, mas sim de predisposição contra mim e vários outros. O então cardeal Ratzinger [hoje Papa Bento XVI], em um artigo no ano 1984-85, me criticava em cinco pontos, mas também criticava Gustavo Gutiérrez, Ignacio Ellacuría e Hugo Assmann. Nós quatro estávamos nessa corrente que se chamava Teologia da Libertação. Ratzinger já era contra essa corrente. Se algum dia me encontrar com ele, espero que falemos como amigos...

Certamente, já não se ouve falar tanto da Teologia da Libertação. Mudou alguma coisa, por acaso?

A Teologia da Libertação nasceu há cerca de 50 anos, na América Latina, um continente de grande pobreza e de fé cristã. Algo irrompeu aí. Algo explodiu. O que irrompeu? A verdade dos pobres, que era realidade durante séculos. A Igreja os havia visto e lhes havia ajudado de várias formas, mas, quando algo é tão real e explode, isso lhe afeta, lhe sacode e lhe anima a fazer alguma coisa.

Assim começou a chamada Teologia da Libertação, que pretendia que os pobres tivessem vida, justiça e dignidade. Para as Igrejas cristãs, essa era a vontade central de Deus. E, nesse sentido, Deus também "explodiu". E, em seguida, houve duas reações. Uma, fora das Igrejas. O vice-presidente dos EUA, [Nelson] Rockefeller, estava viajando pela América Latina nos anos 1970 e disse, entre outras coisas: "Se aquilo que os bispos estão dizendo em Medellín [na Conferência Episcopal de 1968, onde a Teologia da Libertação ganhou corpo eclesial] se tornar realidade, nossos interesses correm perigo". Dentro da Igreja institucional também houve uma reação contrária por parte de alguns bispos e cardeais. Ou seja, a Teologia da Libertação nasceu, e, em seguida, chegaram os enfrentamentos. Tudo isso levou a algo único na história da América Latina. Quiseram freá-la de diversas formas. Uma foi matar. Assassinaram dezenas de sacerdotes, religiosos e religiosas, e quatro bispos. Outros dois se salvaram por erro. E o que é menos conhecido: milhares de leigos, a maioria pobres.

A Teologia da Libertação desencadeou um modo de viver baseado na compaixão, concretizado depois em formas de justiça, baseada no amor aos mais pobres. Isso hoje desceu ao nível eclesial e de bispos que defendem essa linha.

Dom Romero [arcebispo de San Salvador], semanas antes de ser morto em 1980, dizia que "um cristão que se solidariza com a parte opressora não é um verdadeiro cristão".

Evidentemente. Identificar-se con a parte opressora quer dizer fazer parte desse grupo de seres humanos que está oprimindo e tirando a vida de outros, lentamente, por meio da pobreza ou da repressão. Essa pessoa não é cristã. Em que ela se parece a Jesus se é todo o contrário? E além disso não é humana. Dom Romero tinha razão.

Recentemente, em um congresso de pensadores cristãos, o senhor disse – parafraseando o teólogo José María Díez Alegría – que "a Igreja traiu Jesus; essa Igreja não é a que Jesus quis". Para onde a hierarquia está levando a Igreja Católica?

Não parafraseei, mas citei Díez Alegría literalmente. Ele disse que, "em conjunto, a Igreja Católica traiu Jesus", e me parece uma reflexão importante. Obviamente, nem toda a Igreja. Eu acredito que ele está dizendo que Jesus de Nazaré incomoda, e por isso a Igreja o trai. José Antonio Pagola diz: o mais necessário hoje é "mobilizar-nos e somar forças urgentemente para centrar a Igreja com mais verdade e celeridade na pessoa de Jesus e em seu projeto do reino de Deus". Segundo a fé cristã, o reino de Deus é a vontade de Deus sobre este mundo, para que haja vida para todos, começando pelos pobres. E Pagola termina com estas palavras: "A Igreja Católica terá que fazer muitas coisas, mas nenhuma é mais decisiva do que essa conversão".

Eu gosto que se use a palavra conversão: é uma mudança radical. Não vejo nada mais importante do que voltar para esse Jesus, porque tendemos a nos separar dele. Nem sempre, nem todos, nem de todas as maneiras, mas...

Dito com toda simplicidade: quando alguém ouve cristãos, cristãs, sacerdotes, bispos e não bispos falando, como é raro quando se escuta que falem de Jesus de Nazaré, que contem o que ele disse e o que fez... Está se perdendo o que é de Jesus. Foi isso que eu quis dizer no congresso. Na América Latina, ele se fez muito presente em Dom Hélder Câmara, em Dom Pédro Casaldáliga, em muitos outros... Mas também existe a tentação de dizer-lhe, como o grande inquisidor do romance "Os Irmãos Karamazov": "Vá e não volte".

Inclusive de forma drástica... Lembro o slogan da extrema direita e do Exército na época da repressão e da guerra no El Salvador: "Seja patriota, mate um padre". Por que lhes perseguiam de forma tão cruel?

Não perseguiam só nós, sacerdotes ou grupos cristãos, mas principalmente todos os agricultores. Com a Conferência dos Bispos de Medellín de 1968 houve uma grande mudança, uma irrupção, e Jesus de Nazaré se fez presente. Ser cristão era seguir a vida desse Jesus, estar com as vítimas, com os pobres. E, para defendê-los, enfrentar os poderosos. A oligarquia não tolerava isso, e muito menos que viesse de pessoas reconhecidas da Igreja.

Os sacerdotes eram melhores ou piores, mas éramos um símbolo importante no país. Essa Igreja que queriam ter do seu lado foi embora. Então, assassinaram o primeiro sacerdote, Rutilio Grande, jesuíta, grande amigo, no dia 12 de março de 1977. Armou-se uma grande confusão, e Dom Romero tomou uma decisão muito importante: denunciou o fato, disse que não voltaria a estar presente em atos civis públicos até que o crime não fosse esclarecido. E no domingo do enterro ordenou que só houvesse uma missa única.
As pessoas de dinheiro, a oligarquia, foi se encorajando: "Matamos um padre e eles continuam...".

Continuaram matando sacerdotes e distribuíam panfletos com aquela frase: "Seja patriota, mate um padre". Em junho, deram aos jesuítas um mês para sair do país ou matariam todos. Não fomos embora. Continuaram matando sacerdotes e freiras e principalmente agricultores.

Nesse contexto, chegou o massacre dos seis sacerdotes jesuítas e das duas mulheres, no dia 16 de novembro de 1989, na Universidade Centro-Americana - UCA. O senhor também era um dos objetivos dos militares, mas se salvou por encontrar-se na Tailândia participando de um congresso. Como o senhor recorda esses fatos?

Um amigo me telefonou de Londres, me perguntou se eu estava sentado e se eu tinha um lápis para escrever. E começou: "Mataram Ellacuría e...". Eu sentia como se arrancassem a pele aos pedaços, mas quando eu mais fiquei com raiva foi quando me disse que haviam matado a cozinheira e sua filha. Que matem Ellacuría, "merecido" – como Jesus de Nazaré. Mas matar uma cozinheira e sua filha de 15 anos...!
Lembro também que um tailandês convertido à religião católica me perguntou se no El Salvador havia católicos que matavam sacerdotes. Ele entendeu bem o horror que entranhava aquilo. No El Salvador, matar sacerdotes significava romper não apenas as regras do bem, mas sim as do mal. Tudo podia acontecer. E aconteceu...

O senhor temeu muitas vezes pela sua vida?

Sim e não. Várias vezes explodiram bombas na UCA e em nossa casa. Estávamos nas litas. Ellacuría em primeiro lugar e os demais também. Às vezes, nos jornais, também me destacavam. Mas pensar que podia acontecer o que aconteceu com Rutilio Grande, com o padre Alfonso Navarro, com Dom Romero não nos provocava temor. Costumavam nos perguntar por que não íamos embora do país, e respondíamos que nos daria vergonha ir embora, nos daria vergonha dizer que é preciso estar com as pessoas e depois ir embora. Eu, além disso, dava aula de cristologia e tinha que contar a vida de Jesus. Com que cara eu ia falar de Jesus se fosse embora? E não fomos, principalmente porque nos sentíamos parte de algo maior, todo um povo ao qual queríamos e que nos queria... Para mim, foi um dom ter ido ao El Salvador. Sou agradecido por toda a vida.

O senhor vive lá há mais de meio século. Mudaram muitas coisas no El Salvador, mas a pobreza continua. A situação até se agravou com a delinquência e a violência das gangues juvenis.

O El Salvador, assim como está acontecendo com o Haiti, desapareceu das notícias. Firmaram-se os tratados de paz, e algo importante aconteceu: dois exércitos concordaram em não continua lutando militarmente. E isso é muito bom. Além disso, nos acordos de paz, decidiu-se investigar as violações dos direitos humanos graves de ambas as partes. As Nações Unidas fizeram um estudo bastante sério sobre isso. Mas o que aconteceu? Antes de que saísse o relatório das Nações Unidas, o presidente Cristiani concedeu anistia aos que apareciam nele. Uma anistia assim não é um ato de reconciliação, de humanização. Serviu principalmente para que não tocasse na parte governamental. Ninguém foi ainda julgado pelo assassinato de Dom Romero – e o Vaticano também não o canonizou...

Pela pressão do tempo, os acordos também não trataram suficientemente da economia, e isso continua sendo notado. Não digo que com bons acordos sobre os modos de produção, a legislação trabalhista etc. se mudaria muita coisa. Não sou muito otimista, mas, ao não fazer nada, a injusta situação econômica continua sem aspectos de solução.

E ocorreram outras duas coisas negativas importantes: muitos salvadorenhos – de dois a três milhões – vão aos Estados Unidos para buscar trabalho, o que traz uma infinidade de problemas humanos, divisões de famílias etc. O outro problema é a violência das gangues, que geraram um tipo de vida em que os jovens encontram um sentido de identidade, estando dispostos a matar e a serem mortos. E é preciso incluir as máfias, o narcotráfico, os sequestros...

Às vezes me pergunto, tragicamente, por que, no El Salvador e em países semelhantes, não se decidiram por um suicídio coletivo. Para muitíssimas pessoas, isso não é viver. Mas, no povo, existe uma força maior para seguir em frente e enfrentar os problemas mais difíceis. Essa força se expressa no empenho para sobreviver, nas tentativas de organização. E é alimentava por muita gente boa, os mártires, com Dom Romero à frente. Aqui, acredito que isso é difícil de compreender.

Surpreende-me o pouco sotaque salvadorenho que o senhor tem. No El Salvador, continuam lhe conhecendo como basco?

É verdade, não mudei o sotaque. Enquanto a ser basco, acho que não perdi minhas origens. Mas também não é um absoluto. Também não é que eu me sinta salvadorenho, embora é o que eu mais me sinto. Acredito que o que me ocorreu no El Salvador é uma maior abertura a tudo o que é humano, para além dos lugares.

O senhor pensa em voltar para Euskal Herria para ficar?

O normal é que eu não volte para ficar. Se eu voltar, terei que pensar o que fazer para poder ajudar aqui [na Europa]. Eu gostaria muito de cooperar, fazer o bem, mas não tenho nenhuma receita. A mudança seria muito grande. No El Salvador, estão os pobres que não dão a vida por óbvia e têm quase todos os poderes do mundo jogando contra. Aqui, na Europa, a vida se dá por óbvia e com muito poder a seu favor. Se me permite dizer isso metafisicamente: os pobres são "os que não são reais". Aqui pensamos que o real somos nós. Estar no El Salvador significa cooperar para que todos vivamos e a utopia de fazer isso como irmãos e irmãs. Aqui, eu teria que repensar, embora veja pessoas e coisas boas às quais poderia me dedicar.

 

Dom Pedro Casaldáliga

Natal 2010

É difícil detectar O Anúncio
em meio a tantos anúncios que nos invadem.
Ainda existe Natal?
Natal é a Boa Nova?
Natal é também Páscoa?
Sabemos que «não há lugar para eles».
Sabemos que há lugar para todos,
até para Deus...
O boi e a mula,
fugindo do latifúndio,
se refugiaram nos olhos desta Criança.
A fome não é só um problema social,
é um crime mundial.
Contra o Agro-Negócio capitalista,
a Agro-Vida, o Bem Viver.
Tudo pode ser mentira,
menos a verdade de que Deus é Amor
e de que toda a Humanidade
é uma só família.
Deus continua entrando por debaixo,
pequeno, pobre, impotente,
mas trazendo-nos a sua Paz.
A dona Maria e o seu José
continuam na comunidade.
A Veva continua sendo tapirapé.
O sangue dos mártires
continua fecundando a primavera alternativa.
Os cajados dos pastores
(e do Parkinson também),
as bandeiras militantes,
as mãos solidárias
e os cantos da juventude
continuam alentando a Caminhada.
As estrelas só se enxergam de noite.
E de noite surge o Ressuscitado.
«Não tenhais medo».
Em coerência, com teimosia e na Esperança,
sejamos cada dia Natal,
cada dia sejamos Páscoa.
Amém, Axé, Awire, Aleluia.

Pedro Casaldáliga,
Natal 2010, ano novo 2011


20/12/2010

Dom Demétrio Valentini

O governo da transição

Dom Demétrio Valentini é Bispo de Jales (SP) e Presidente da Cáritas Brasileira
Fonte: CEBI


Como estamos em fim de mandato, e na expectativa da posse dos eleitos, daria para dizer que estamos em tempos de transição. Isto pode ser verdade. Mas dependendo do caso, existe uma diferença muito grande, que se expressa por uma simples preposição. Um governo pode ser de transição. Como pode igualmente ser da transição.

O governo Lula, que está se concluindo agora, não foi um governo de transição. Mas foi o governo da transição.

Uma pequena história ajuda a perceber a diferença. Quando em 1958 foi eleito Papa o Cardeal Ângelo Roncalli, de 77 anos de idade, para substituir o grande Pio XII, surpresos com a eleição daquele velhinho desconhecido, todos pensavam que se tratava de um "papa de transição". Seu pontificado duraria poucos anos, enquanto iria aparecer alguém à altura, para levar adiante o grande pontificado de Pio XII. Mas o velhinho simpático, que tinha assumido o nome de João 23, não demorou em mostrar a que tinha vindo. Granjeou rapidamente a simpatia do povo, e foi logo dizendo que propunha um concílio ecumênico para promover uma grande "atualização" da Igreja, para reconciliá-la com os novos tempos que o mundo estava vivendo.

O entusiasmo foi tanto, que ninguém mais pode deter o processo que levaria ao Concílio Vaticano II, com suas generosas propostas de renovação eclesial.

Foi então que a eleição do velho cardeal revelou o seu significado verdadeiro. O seu não seria um pontificado "de transição", mas "da transição".

Agora estamos diante de um fato semelhante. Quando Lula foi eleito presidente em 2002, alguns achavam que, quando muito, seu governo seria "de transição". Um operário na presidência seria um acidente de percurso. Em breve a trajetória política do Brasil iria retomar seu rumo, e as elites teriam de volta o comando das ações.

Mas, aconteceu o inesperado. O que se supunha ser um governo de transição, passou a ser o governo da transição.

O presidente operário foi mostrando como é possível governar para todos, e não só para uma minoria de privilegiados.

Os dois mandatos do Presidente Lula armaram no Brasil o grande cenário de uma verdadeira transição, que agora precisa ser consolidada pelo governo da Presidente Dilma.

A transição das vantagens das elites para o interesse das maiorias. Do privilégio de poucos, para o benefício de todos. Do processo de exclusão, para a dinâmica social e econômica da inclusão dos mais injustiçados e oprimidos. Do preconceito racial e cultural que divide, para o respeito mútuo que enobrece. Das marcas deixadas pelos tempos da escravidão, para a libertação do trabalho escravo e de todas as discriminações. Da pretensão de poucos, para a plena dignidade de todos os cidadãos.

O grande mérito do governo Lula foi ter rompido as barreiras da resistência ao um novo projeto de país, que tenha como postura básica a convicção da igualdade de direitos e a universalidade da cidadania.

Esta grande e decisiva "transição", realizada pelo presidente Lula, precisa agora ser confirmada pelo governo da Presidente Dilma. Pois as conquistas ainda não estão consolidadas. É preciso, agora, passar para a normalidade democrática as grandes intuições de um governo que permanecerá como referência inspiradora para levar à prática suas generosas utopias de um país para todos.

O legado de Lula foi desencadear a grande transição. O compromisso da Dilma é garantir sua consolidação.

Maria Inês de Castro Millen

Valores fundamentais da sexualidade humana
 Fonte: Revista Vida Pastoral

Maria Inês de Castro Millen é graduada em Medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora, onde também fez mestrado em Ciências da Religião; graduada em Teologia pelo Instituto Teológico Arquidiocesano Santo Antônio; e doutora em Teologia pela PUC-RJ. Autora de Os acordes de uma sinfonia – A moral do diálogo na teologia de Bernhard Häring.

Este artigo pretende abordar a sexualidade humana e seus valores fundamentais a partir do olhar da Teologia cristã. Isso não quer dizer que seja possível desconectar a temática de outros eixos compreensivos, que são essenciais para o entendimento da rica experiência de ser e de se saber pessoa humana, na plenitude e na beleza de suas possibilidades existenciais. O que se quer dizer é que a Teologia será o fio que perpassará um tecido rico de cores, de reentrâncias, de relevos e de outras costuras.
É possível constatar que, na base do cristianismo e, portanto, da Teologia Moral Cristã, está presente, de modo inequívoco, a experiência do diálogo. O Deus cristão é o Deus da Palavra; é, portanto, Aquele que fala. Mas é também o Deus que escuta o clamor do seu povo e que se compromete fielmente com ele. Ao mesmo tempo, pede que o povo o escute, que responda ao seu apelo e que sele com Ele uma Aliança, comprometendo-se com seu projeto. Os acontecimentos bíblicos que revelam o modo como Deus e o ser humano se relacionam mostram o diálogo, na sua verdadeira estruturação, como um percurso ético que se
faz urgente e necessário.
É por isso que não é possível pensar a sexualidade, no horizonte da Teologia cristã, sem estabelecer reais frentes de diálogo com diferentes realidades:
Diálogo com a realidade enquanto tradição, enquanto história dos povos, contada através dos mitos, das lendas, dos ritos e das diversas expressões das culturas. O que se sabe é que privar o ser humano dos seus arquétipos é condená-lo à crônica enfermidade física e metafísica.
Diálogo com a realidade enquanto Tradição, enquanto Palavra de Deus, revelada nas Escrituras. Tradição não como conservação ou preservação de algo imutável do passado, mas como encontro afetivo e efetivo com Alguém, que se faz presente entre nós, como Jesus de Nazaré, o Cristo, o Filho de Deus. Tradição que sinaliza para a realização da Boa Notícia do Reino, a perene atualização no presente do que recebemos no passado e do que esperamos para o futuro.
Diálogo com a realidade enquanto Tradição pós-bíblica, sobretudo no Ocidente, onde as categorias do pensamento filosófico mediaram a compreensão racional do evangelho.
Diálogo com a realidade a partir da categoria “sinais dos tempos". O hoje da história exige da Teologia um diálogo sincero com as ciências, com as novas tecnologias, com os responsáveis por uma sociedade plural, policromática, e com todas as pessoas que estão sob a influência de uma nova compreensão e visão de mundo. Assim sendo, a Teologia que reflete sobre a ética cristã da sexualidade só terá plausibilidade se experimentar a abertura a um amplo e respeitoso diálogo transdisciplinar, que leve em conta as diferentes experiências do passado e as realidades da vida presente.
Algumas afirmativas teológicas se fazem necessárias, inicialmente, para traçar o caminho da costura que se pretende, na reflexão aqui assumida: Uma primeira e fundamental afirmação: “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher ele os criou” (Gn 1,27). Essa revelação nos diz que a sexualidade é uma das dimensões essenciais do ser humano. O ser humano, criado como ser sexuado, enquanto homem ou mulher, é imagem de Deus, é semelhante a Deus. “E Deus os abençoou e lhes disse: sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a!” (Gn 1,28). Esse texto sinaliza para Deus que confere à sexualidade uma dimensão criativa. O encontro relacional sexuado que o ser humano estabelece aponta para a fecundidade, para uma participação real no projeto criacional. E tudo isso faz parte não de um imperativo, mas de uma bênção, de um dom.
Uma segunda e não menos fundamental afirmação é a de que a Palavra, que já era no início e da qual somos imagem e semelhança, se fez carne e veio habitar entre nós (Jo 1,1.14). Deus se faz homem, se faz de carne, se faz humano, sexuado.
Esse fato possibilita a confirmação de que a sexualidade é um componente fundamental da personalidade, um modo de ser pessoa, um modo de se manifestar, de sentir, de expressar, de viver e de se relacionar, na comunicação concreta do amor.
Por essa razão é que a sexualidade precisa ser compreendida a partir de uma sadia antropologia que considere as ricas e complexas dimensões do ser humano na perspectiva da unidade básica que o integra e o configura. Fragmentar o humano ou reduzi-lo a uma de suas dimensões produziu e ainda produz muitas teorias e práticas equivocadas que comprometem a essencialidade e a dignidade próprias desse ser criado à imagem de Deus (Bento XVI, 2006 p. 5).
Nesse horizonte, apontamos algumas dimensões que não podem ser desconsideradas quando se quer pensar a sexualidade humana com seriedade: a dimensão biológica, que trabalha a sexualidade como impulso; a dimensão psicológica, que aponta a sexualidade como a força integradora e como chave hermenêutica do “eu”; a dimensão dialógica, que pensa a sexualidade como linguagem de pessoas; a dimensão sociocultural, que compreende a sexualidade na perspectiva da hermenêutica e da configuração da realidade social; a dimensão existencial, na qual a sexualidade aparece como forma de existência pessoal; e a dimensão mistérica, que a percebe como abertura para o mistério da pessoa e das relações que ela estabelece consigo mesma, com os outros, com o mundo e com Deus (Vidal, 2002).
A sexualidade, então, está referida ao mistério da pessoa, ao seu núcleo mais íntimo, à sua configuração mais originária. Ela abrange o ser humano todo, durante toda a sua vida. Há, portanto, também, uma perspectiva equivocada, quando se compreende a sexualidade ligada somente à vida adulta e à procriação. O que existe é uma sexualidade difusa, que impregna todo o ser, em todo o tempo de sua vida, e que não está ordenada somente ao relacionamento sexual genital. Outra consideração que ainda precisa ser feita, desde já, é que a sexualidade não é má em si. No horizonte das afirmações teológicas, feitas anteriormente, não é possível esquecer a revelação de que é Deus quem cria o mundo na sua materialidade e temporalidade e nele se encarna. Portanto, a sexualidade é, no máximo, ambivalente. Ao longo da história, ela se apresenta num clima de enigma e mistério, como realidade ao mesmo tempo assombrosa e fascinante. Acarreta, pois, instintivamente, num primeiro momento, uma dose de assombro, receio e suspeita, pois supera o que alguém pode conhecer de si mesmo e dos outros, e o desconhecido é amedrontador. Ao mesmo tempo, desperta a curiosidade, o desejo e a esperança de aproximação entre as pessoas, e esse é o seu lado fascinante.Por causa do medo, surge a tentativa de negar a sexualidade, de escondermo-nos dela, de eliminá-la da vida, como se dela fosse possível prescindir. Ledo engano, que já produziu e ainda produz consequências danosas.
Por causa do desejo, surge a tentativa de fazer dela o eixo enucleador da vida ou de banalizá-la, atitudes que refletem a pretensão de despi-la do seu caráter misterioso. Esses equívocos também não trouxeram e não trazem bons frutos.
Nessa perspectiva, busca-se e deseja-se, ao mesmo tempo em que teme-se e rejeita-se. Temor e fascínio são faces de uma mesma realidade. O que não se pode esquecer é que a sexualidade está imbricada no mistério da pessoa, carregada de uma riqueza simbólica e emotiva, que precisa ser considerada e experienciada respeitosamente.A redução da sexualidade, do mistério da pessoa, ao medo ou ao desejo, aponta para alguns riscos. O primeiro risco é o de um falso espiritualismo, que prioriza o pretender viver como anjo quando se tem um corpo. Outro risco é o de um materialismo desconfigurado, um hedonismo que leva ao prazer pelo prazer, ao corpo pelo corpo, à objetivação do outro. Em ambos os casos, há a negação da subjetividade relacional e a não integração das diferentes dimensões que compõem a pessoa, e duas vertentes da Teologia Moral, não muito felizes, tendem a se fortalecer: o rigorismo ou o laxismo.
Na busca do indispensável equilíbrio, uma compreensão positiva da sexualidade se faz necessária. Não é demais repetir que a sexualidade integrada é força positiva, geradora de energia e de bem-estar e que perpassa todo o ser humano. É força que chama à vida, que cria e recria pessoas e realidades. A sexualidade é a identidade: “Eu sou”, “eu sinto que sou”, na relação com outras identidades constituídas. É essa mesma força que é capaz de despertar nas pessoas o amor, o cuidado pelo outro, pela natureza, por si mesmas.Falar de sexualidade no horizonte da Teologia traz, portanto, o desafio de pensar de novo coisas velhas e coisas novas sobre a existência humana. E isso faz com que a tarefa da Teologia Moral, que é a de ter uma palavra verdadeira e significativa sobre a sexualidade humana para este tempo, seja enorme. As razões já são conhecidas, mas não é demais enumerá-las novamente.
Primeiro, o cristianismo do passado trabalhou com pressupostos antropológicos hoje superados e que precisam realmente ser revistos e não mais aplicados. O conhecimento atual sobre o ser humano, em função de uma nova sabedoria conquistada pela humanidade, nos coloca diante de paradigmas compreensivos que não podem nem devem ser desmerecidos. A necessidade real de diálogo com outros saberes se faz premente. Hoje, não se concebe mais que aqueles que são chamados a dizer uma palavra significativa, a orientar o comportamento e a vida das pessoas não se esforcem por conhecer e compreender todas as dimensões da realidade humana, levando em conta que a sexualidade, enquanto força integradora do eu pessoal, é um fato vivo, dinâmico, historicamente condicionado, com influências tanto positivas quanto negativas sobre a vida, refletindo possibilidades evolutivas, mas também involutivas.
Segundo, o ser humano atual, apesar de todos os progressos científicos e tecnológicos, de todas as conquistas do conhecimento e da comunicação, vive uma fragilidade, uma fragmentação, um desconforto consigo mesmo e com a sua força sexual criativa. Heidegger referiu-se assim a esse fenômeno:
Nenhuma época teve noções tão variadas e numerosas sobre o homem como a atual. Nenhuma época conseguiu, como a nossa, apresentar o seu conhecimento acerca do homem de um modo tão eficaz e fascinante, nem comunicá-lo de um modo tão fácil e rápido. Mas também é verdade que nenhuma época soube menos que a nossa o que é o homem. Nunca o homem assumiu um aspecto tão problemático como atualmente.
Sendo assim, o ser humano de hoje, como o de ontem, precisa ser compreendido nas suas dores e angústias, nas suas esperanças e sonhos. Desconsiderar a realidade atual, nos seus compassos e descompassos, é ficar respondendo a por caminhar na busca de respostas mais plausíveis para as grandes questões que estão postas.
A Teologia Moral traz, portanto, algumas propostas para a reflexão atual sobre a sexualidade humana. A primeira é a de um retorno às fontes bíblicas. A referência moral dos cristãos é Jesus Cristo. Nesse horizonte, é bom recordar o que disse o Papa Bento XVI, na introdução à encíclica “Deus é Amor”: “No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, assim, o rumo decisivo”. A verdade é esta:
No cerne, no coração, nas entranhas do Novo Testamento está Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem. E a grande novidade da ética cristã está aí revelada. O Pai oferece, agora, tudo. [...] Jesus Cristo é a Nova Aliança, aquele que, na unidade com o Pai e na solidariedade com toda a humanidade, declara a verdadeira lei da Aliança: a Lei do Amor. Não um amor qualquer, mas aquele já demonstra do aos seus discípulos, que são convocados a vivê-lo na solidariedade, na oferta e no serviço (Jo 15,12-17) (Millen, 2005).
A Lei do Amor convida a cada um, na liberdade, a “ser para o outro”, a “carregar os fardos uns dos outros” (Gl 5,13b; 6,2). Assim, as perspectivas bíblicas da Teologia Moral, longe de tentar extrair das Escrituras um catálogo de normas para crer e viver, buscam, em sintonia com as propostas do Vaticano II, apreender os temas de destaque da revelação divina para que eles possam nutrir a vida espiritual das pessoas concretas, inseridas na história de seu tempo.
A segunda proposta pretende clarear alguns conceitos, como, por exemplo, o de corpo/ corporeidade, o de sexo/sexualidade e o de castidade.
A palavra “corpo” aponta para a realidade objetiva da nossa condição corpórea; realidade visível, tocável, mutável e, talvez por isso, vítima de muitos equívocos e de muitas distorções por parte das culturas, das sociedades e das religiões. Realidade dimensional que não pode ser negada nem tampouco superestimada, pelo simples fato de ser uma dimensão real e indispensável para a vida, na sua perspectiva ontológica e também no horizonte de sua construção histórico-relacional. Não se pode deixar de afirmar que todas as experiências pessoais se realizam e se explicitam no corpo. Por isso, o modo como o percebemos ou como o tratamos se torna fundamental para a compreensão e nomeação do ser.
A palavra “corporeidade” é mais abrangente, se refere ao “eu espiritual-corpóreo” que vive uma experiência única e irrepetível e indica a inteira subjetividade humana, sob o aspecto de sua condição existencial corporal, na configuração constitutiva de sua identidade pessoal. Corporeidade é, portanto, a expressão, o reflexo visível e a realização do ser humano uno e indiviso. É uma noção mais ampla de corpo e, na verdade, se refere à totalidade da pessoa. Assim, é em função de sua condição corpórea que o ser humano assume sua vida segundo as peculiaridades que lhe são próprias: a historicidade, a individualidade e a pertença a uma comunidade humana, sua imanência no mundo e sua vocação à autotranscendência, sua capacidade de revelar-se e de ocultar-se, sua propensão à relacionalidade e ao encontro (Millen; Bingemer, 2005, p. 180).
Quanto às palavras “sexo” e “sexualidade”, é preciso, do mesmo modo, que se faça uma distinção. Sexo também se refere a uma realidade objetiva, ao sexo de cada um na sua dimensão biológica/genital e ao ato sexual em si.
Sexualidade também é conceito abrangente. A palavra surge no século XIX e quer dizer, como já indicado anteriormente, uma energia que abrange a totalidade da vida da pessoa, revelando sua condição de ser sexuado em todas as relações que estabelece com qualquer outro, em todos os tempos de sua vida.
Alguns autores hoje afirmam que a moral que estuda a sexualidade não pode ser concebida a não ser no horizonte de uma ética da relacionalidade. Isso porque, durante muito tempo, a sexualidade esteve ligada à vida individual, às questões referentes à pessoa e aos seus desejos e impulsos. Hoje não se pode mais negar a importância da “alteridade” na construção da identidade pessoal. O “rosto” do outro é sempre definidor da identidade e das atitudes daquele que é interpelado por ele.
Outra palavra importante é “castidade”, que, num determinado contexto, chegou a ser considerada a “rainha das virtudes”. Castidade não pode mais ser reduzida à continência sexual, mas mantida em toda a sua pluralidade de significados. A melhor tradução dessa palavra é “nitidez”. Muito provavelmente, nossa castidade vem do latim candeo, que significa embranquecer, com o matiz de uma brancura brilhante, ou melhor, transparente. Dessa palavra, surgem termos como “candor”, “candura”. Viver a castidade significa, pois, viver na transparência, no respeito, na nitidez. É preciso compreender que a palavra castidade não tem sentido apenas sexual: a nitidez, o respeito e a transparência invadem todos os campos da relação humana, até mesmo o do dinheiro e o do poder. Dessa forma, podem existir encontros sexuais, genitais ou não, ou pessoas que vivem “celibatos sexuais” de maneira que não servem para quase nada, por não serem castos (Faus, 1999 p. 65-66).
A terceira quer trazer algumas ideias-chave, revisitadas pela Teologia que se renova com o Concílio Vaticano II. São elas: liberdade, fidelidade, criatividade e responsabilidade. À luz do seguimento de Jesus, todas as pessoas são chamadas à liberdade – “é para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1) –, mas só existe verdadeira liberdade na fidelidade, pois toda liberdade está referenciada a algo. Para os que creem, a fidelidade sinaliza para a lei inscrita nos corações, que faz com que as pessoas redescubram o projeto que Deus tem para a humanidade. Essa liberdade fiel torna o ser humano responsável e criativo. A responsabilidade, considerada a ideia-mãe da moral cristã, é a capacidade de dar respostas consequentes, que possibilitam o surgimento do “inédito viável”, da novidade criativa, que harmoniza e restaura a vida em todos os sentidos possíveis. Por essa razão, a Teologia Moral hoje está empenhada em formar pessoas adultas, maduras, discernentes e responsáveis, capazes de, na liberdade fiel e amorosa, serem portadoras da novidade que traz a Verdade que liberta e pacifica o ser humano e suas relações.
A quarta proposta é a tentativa de propor uma Teologia Moral Cristã da sexualidade para hoje. A ética cristã da sexualidade, para ter plausibilidade hoje, precisa estar atenta a duas dimensões: à dimensão dos valores fundamentais que se quer garantir e à dimensão do modo como esses valores devem ser transmitidos. Aqui valem as palavras do Papa João XXIII, na abertura do Concílio Vaticano II:
Uma é a substância da antiga doutrina do depositum fidei, e outra, a formulação que a reveste: e é disso que se deve – com paciência, se necessário – ter grande conta, medindo tudo nas formas e proporções do magistério prevalentemente pastoral [...] Sempre a Igreja se opôs aos erros, muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Nos nossos dias, porém, a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade: julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina que condenando erros (João XXIII, 1969).
Para garantir essas duas dimensões, pode-se dizer que a ética atual da sexualidade aposta numa moral personalista relacional, não mais de atos, mas de atitudes. Nessa perspectiva, a sexualidade é redescoberta como um valor da vida humana e é concebida como a pessoa, masculina ou feminina, em relação com todos os outros, crescendo em direção ao amor. A sexualidade é vista, então, como uma forma de comunhão íntima, que se volta para a relação/comunhão, a partir da inspiração do amor oblativo. É importante relembrar que uma verdadeira relação interpessoal, impulsionada pelo amor, não pode ser anônima, apenas biológica, tampouco só espiritualizada. O amor que é ofertado ao outro e que depende da dádiva que cada um faz de si, enquanto pessoa sexuada, tem uma concretude indispensável. Cada ser humano se relaciona com os outros enquanto ser corpóreo, que tem uma história, que vive num tempo determinado e num lugar identificável. Portanto, atos isolados têm a sua objetividade e podem ser medidos, na sua bondade ou maldade, mas as pessoas só podem ser compreendidas e ajudadas, misericordiosamente, a partir de suas atitudes, que estão conectadas a um contexto específico que deve sempre ser considerado.
A ética cristã aposta, também, em uma moral que seja paraclética e terapêutica. Uma moral fundada na Sagrada Escritura e apoiada nas palavras do Papa João XXIII deve pretender sempre cuidar, aliviar e, se possível, curar as pessoas de seus pecados, seus problemas, suas aflições, suas culpas e suas dores. Por isso, é necessário apontar para a plausibilidade de uma moral paraclética e terapêutica, que leve em conta a vida concreta das pessoas para, a partir desta, fazer o anúncio da boa notícia que consola e encoraja, que é convite sedutor para uma vida em Cristo e no Espírito. Essa moral dinamiza e indica caminhos possíveis de salvação e de libertação para todos e, de modo especial, para os doentes, os abatidos, os cansados e feridos, sem cair no moralismo legalista, que muitas vezes somente pune, castiga e leva as pessoas ao desânimo improdutivo. Ela prefere uma linguagem indicativa e propositiva àquela imperativa e impositiva; ela quer cuidar e curar as pessoas pelo amor e não pela proibição e pelo medo. Essa moral está a favor das expressões que possam indicar o caráter libertador e responsável da lei do Espírito, de modo que a mensagem moral seja compreendida por todos não como algo imposto de fora ao ser humano, mas como um dom que já está presente no interior de cada pessoa e que precisa apenas ser despertado e acolhido.
Uma moral paraclética é aquela que usa a linguagem da paraclese, que é a linguagem própria do Espírito Paráclito, por isso é consoladora, encorajadora, e vincula o coração, a memória e a consciência das pessoas às obras prometidas e realizadas por Deus em favor de suas criaturas, proporcionando-lhes a força necessária para o combate ao egoísmo pessoal e coletivo, ao desprezo para com a vida, à busca desenfreada do prazer e do sexo sem amor e sem referência à dignidade própria de cada um e de todos os humanos, criados à imagem e semelhança de Deus.
Um grande passo na direção da consolidação de uma moral paraclética e terapêutica é a capacidade de assumir o “cuidado” como vocação, como linguagem e como um modo próprio de “ser-no-mundo” (Boff, 1999, p. 99). Cuidado que supõe gratuidade, oferta de si, pelo simples reconhecimento da carência, do vazio e da incompletude presentes em cada criatura. Resgatar essa vocação do ser humano para o cuidado significa rever o modo como facilitamos às pessoas, individualmente, em conjunto e entre si, o acesso ao necessário para uma vida digna, e também o modo como as capacitamos para a organização de si mesmas no encontro com o sentido essencial que as humaniza e que as encaminha para um relacionamento significativo com os outros e com o Totalmente Outro. No entanto, escolher o caminho do cuidado, quando se quer pensar uma nova ética da sexualidade, é propor algo que ainda precisa ser aprendido, talvez reinventado, num mundo que privilegia a competição e o sucesso individual, num mundo onde funciona a lógica da guerra. Aqui se tem uma tarefa para toda a vida: sustentar o empenho no aprendizado do amor e da ternura e o reconhecimento da dimensão fundante do afetivo, do poder da bondade e da afabilidade, contra toda violência e dureza.
Na visão de alguns, sexo e ternura não combinam, pois a sexualidade, ao invés de ser considerada como um ato de ternura, é concebida por muitos como um ato de conquista. A ternura só pode enunciar-se a partir da fratura, e para que ela se faça presente é necessário que se inverta a ideologia do conquistador, e isso significa assumir a consciência da própria fragilidade e agir a partir desta. O amor não é um ato de soberania, mas, antes, uma constatação da fraqueza compartilhada. Somente a lógica evangélica do  “Curador ferido”, do “Servo de Yahweh”, aquele que venceu sem fazer vencidos, pode assegurar a plausibilidade desse caminho na contemporaneidade conturbada pela busca descontrolada das vantagens individuais e do prazer desmedido.
Jesus, o Curador Ferido, ao morrer como cordeiro não violento, conduz a todos, pela força do testemunho, à experiência do amor não violento e curativo. Ele oferece esse amor gratuitamente a cada pessoa como um dom que, no entanto, está ligado a uma tarefa. A tarefa consiste na conversão a um modo novo de pensar, de desejar e de agir. A moral que se faz paraclética e terapêutica quer ajudar a Igreja de Cristo e todas as pessoas a assumirem essa conversão, para que se compreendam também como curadores feridos. Quem acha que nunca pecou não pode ajudar na salvação dos outros. Jesus, que não tinha pecado, “fez-se pecado” para salvar a todos. A Igreja de Jesus Cristo, ferida pelos próprios pecados e pela solidariedade com o pecado do mundo, ao fazer uma opção real pelo Servo sofredor, luta radicalmente a favor da mensagem libertadora e salvífica do Evangelho, compreendendo que, na melhor das hipóteses, ela é, como todos, curadora ferida diante do médico divino, necessitada de cura e de libertação. Desse modo, ela nunca pode ser violenta, nunca aceitará a violência e, diante da tentação de buscar saídas violentas, se recordará de que o mal e a morte só serão vencidos pelo amor e pelo perdão.
Investir, pois, no cuidado, na ternura, no amor, no encorajamento e na consideração à dignidade de todas as pessoas é apostar em um novo paradigma de convivência para uma outra sociedade possível.
A Moral paraclética e terapêutica quer, pois, contribuir para isso, ao apostar na força de conversão e cura de uma autonomia responsável e intersubjetiva, aquela que possibilita que as pessoas saiam do infantilismo moral, do horizonte da obediência cega e irresponsável, na valorização da consciência como lugar do encontro com a Verdade. Desse modo, a moral será verdadeiramente cristã, a serviço do amor, da comunhão e da humanização das pessoas.
Nessa perspectiva, a sexualidade será sempre percebida e experienciada na sua ambivalência, como motor da vida ou como causa da morte, pelo fato de estar inserida no mistério mesmo da pessoa, frágil e impotente na sua humanidade, embora vocacionada a ser como Deus é. Assim compreendida, possibilitará a cada um viver humildemente sua situação de criatura referenciada a um Deus Bom, que cria, cuida, defende e salva, para que todos possam partilhar amorosamente a vida com dignidade, alegria e prazer, sabendo que tudo que há em cada um e no mundo é dom para ser usufruído e cultivado. O amor e a comunhão, a busca conjunta da verdade, potencializam o ser humano ao caminho da autorrealização, da libertação e da salvação.
A moral paraclética e terapêutica quer, finalmente, assumir, no horizonte da evangelização, ao apresentar os valores fundamentais da sexualidade, a missão de matriciar o Reino de Deus. Somente quando engravidadas pelo Espírito, as pessoas se tornam oferentes e podem fazer nascer no coração e na vida de tantos outros a disposição para o bem e para a verdade, experimentando a comunhão alegre, na busca de sinceros encontros afetivos e ternos que possam ser fecundos e vinculantes. Homens e mulheres paracléticos são chamados a espalhar sementes generosas, a nutrir a vida dos outros e a proclamar a boa notícia do amor que sustenta, anima e entusiasma o caminho de quantos queiram experimentar na liberdade responsável, fiel e criativa a grande aventura de viver.

14/12/2010

Inez Lemos

Alteridade e narcisismo: incapacidade para o amor e o sexo objeto

Inez Lemos é psicanalista e consultora em educação; autora de Pedagogia do Consumo.
Fonte: Revista Vida Pastoral



Desconfio da modernidade. Desconfio da animação entediada dos jovens. Desconfio do progresso e do sexo cibernético. Desse amor sem dor. O poema de Drummond “O amor bate na aorta” me faz sentir saudade da loucuras do amor, quando por ele pulávamos o muro, subíamos nas árvores e nos “estrepávamos”. Amar é quase sempre nos “estrepar”, abrir feridas que às vezes não saram nunca, às vezes saram amanhã. Por que escrever sobre o amor na atualidade? O que ele tem de errado? A pretensão não é julgar se o amor hoje é melhor que o de outrora, mas refletir sobre os dados do Núcleo de Sexualidade da Universidade de São Paulo, quando aponta que 58,6% dos rapazes se queixam de ejaculação precoce e problemas de ereção e 58,7% das garotas reclamam da falta de orgasmo.

O que esses números revelam é a existência de um ruído nas relações afetivas contemporâneas, que merece ser mais bem investigado. Ao indagar sobre a qualidade das relações, parto do pressuposto de que a questão é política. Qual a conexão entre afeto e mercado? Como os jovens estão vivenciando a sexualidade? Os encontros e os amores ainda possibilitam a realização pessoal? Num encontro, não estaríamos em busca de ilusões e sonhos? Quais significantes fazem parte dos encontros hoje? A questão é fazer sexo ou ser feliz no exercício da sexualidade? Sexo, apenas, não precisa de reflexão, e talvez isso seja a fonte dos ruídos apontados acima. Se, em tempos pós-modernos, seria demais exigir sexo com amor, transcendência e poesia, então vamos falar de sexo com gosto de felicidade, aquele que nos faz sentir melhor do que somos.

A insatisfação sexual dos jovens não estaria relacionada à pressão pelo prazer imediato sem intimidades? Sexo fast-food? O mundo taylorista, ao otimizar o tempo e racionalizar o trabalho, acabou estendendo a lógica industrial às relações. O pecado não foi ter levado a sério o discurso capitalista, esquecendo que o amor é custoso, moroso? Quando duas pessoas partem para um encontro, elas vão com tudo, com seus atavismos e insígnias fundadoras. Até para o amor o sujeito tem de estar inscrito numa ordem fálica. O que significa que ele, embora sendo sujeito do seu desejo, circula também no desejo do outro.

Alteridade e narcisismo, assim oscila a lei do amor, que é diferente da lei do mercado. O amor do poeta, “sem eira nem beira”, é o que “vira o mundo de cabeça para baixo”, “suspende as saias das mulheres” e as “deixa constipadas”. Constipar hoje é participar da banalização do sexo. “Como eu posso ficar tranquilo se as garotas topam a parada? Eu tenho que aproveitar, ou melhor, eu tenho que transar com todas que topam.” A fala de S. revela a ansiedade do jovem diante da nova ordem sexual. Não seria a ânsia responsável pela ejaculação precoce? As relações sexuais em série tiram o encantamento dos encontros e nos deixam sem entusiasmo para enfrentar suas imperfeições.

O mercado proíbe as relações profundas, e não o sexo. Viver em sociedade pressupõe pactos sociais. Significa que, para funcionar, para que os interesses da minoria que detém o poder prevaleçam, os da maioria têm de ser sacrificados. Para tanto, desenvolvem-se mecanismos de controle sobre o outro, para que ele não faça o que muitos gostariam de fazer. Junto à repressão, vem o mal-estar, a insatisfação, pois é algo do sujeito que foi apagado e desconsiderado. Assim começam as histórias de insatisfações. Quanto menos existe de nós em nossas escolhas, mais frustração há em nossos atos. O ato sexual deve dizer do sujeito.

O mercado não deve fazer parte dessa parceria. Deixemos as exigências capitalistas de fora. Para o exercício da sexualidade, devem ser levados o ser integral e os sonhos de felicidade, mesmo que esses nunca se cumpram. Sexualidade é antiperformance. Ser menos neurótico é saber lidar com a incompletude da vida. E saber amar é aceitar o outro como faltoso, imperfeito. Nas relações do amor possível e incompleto, a perfeição não entra. Para facilitar a relação, o melhor é quando os dois se despem sabendo de suas faltas. Deixem as máscaras cair e assumam as falhas da sexualidade humana.

Amor, paixão ou atração? Não existe significante que dê conta de nomear esses sentimentos. Eles são inomináveis. E, sendo o desejo amoral e sem ideologias, acredito que o desencontro amoroso que marca nossa era passa mais por questões que tentam operar os sentimentos, coisificando-os. Qual a nova ordem amorosa? O constrangedor não é falar de sexo, mas de desejo, pois desejar o outro pode representar uma contravenção em sociedade, cuja ordem sexual é regulamentada por um discurso que dessexualiza o desejo e o transforma em demanda.

Devemos consumir uns aos outros num moto-contínuo? O sexo/objeto está disponível em qualquer esquina. No “cabaré” da sexualidade de hoje, já não existe a esquina do pecado. O pecado é não querer fazer parte do cabaré. Se o amor romântico era incentivado, hoje é a banalidade dos corpos. O binômio matrimônio/patrimônio foi substituído por corpo/mercadoria. A tradição que se originou na família, no Estado e na propriedade privada se desloca e reifica os sentimentos.

Ao tratar o desejo como coisa, sufocamos qualquer produção afetiva que esteja fora da determinação do mercado. Como reinventar uma nova relação que fuja dos padrões impostos pela sociedade de consumo? Será que o outro é visto como um sujeito de desejo e de escolhas, com sentimentos e fantasias, ou o seu corpo entra numa relação apenas para operar uma função?

Ao operarmos uma fratura no desejo e na significação das relações, criamos outra forma de prazer para o sujeito e nova relação com o outro. Nesse novo encontro amoroso, o sujeito é envolvido por uma mística que se materializa nos objetos, e não mais na substância e na interioridade do parceiro. O sujeito-escravo do mundo atual é executor do desejo de outro senhor, o capital. Isso envolve mudanças no sentido e na organização das escolhas. Como posso desejar uma mulher que não se pareça com Deborah Secco?

A recusa da subjetividade, a recusa do sujeito em operar ele mesmo suas escolhas, produz a tirania. Ele passa a querer destruir no outro o que não pode admitir nele. Essa recusa torna o sujeito disponível para a infelicidade, para a doença, para a droga ou para atos perversos. Nossa sociedade vende um ideal de liberdade falso, irresponsável. Liberdade é um dos ideais mais difíceis da modernidade, pois exige autonomia e responsabilidade diante do desejo. Liberdade é algo construído internamente, num processo lento, que exige coragem moral. Não é sair por aí se dispondo a tudo o que aparece pela frente. Isso é amoral. Sexo feliz exige saber dizer sim ou não para um encontro. Exige responsabilidade diante do destino que damos às nossas pulsões.

O neurótico moderno não quer se haver com o seu desejo. Ele prefere adotar o desejo instituído pela civilização. Em vez de assumir sua singularidade, ele se situa como mais um do sistema. Ficar fora da massa, do mercado, sentindo-se o outro, o diferente, é da ordem do insuportável. Ao circular fora de seu desejo, o sujeito abre espaço para uma trajetória de buscas intermináveis, de desencontros e desamores. Sexo programado é sem graça e sem caldo. Seco e desidratado. O que hidrata a alma é a capacidade de reinventar a si e aos encontros. No banquete do amor socrático, para ser bom, o amor tem de ser belo. E a sabedoria é uma das coisas mais belas. Pessoas vazias, sexo vazio.

Um encontro ensolarado: que desafio ao tédio das metrópoles! Uma parceria exige mais que shopping centers. Ao desnudar os encontros de seus potenciais oníricos, ficamos apenas com o duro real do sexo. Se o sexo é da ordem do real, ele escapa à captura dos sentidos, das palavras. Devemos respeitar a dimensão mítica dos corpos que se atraem. A sedução está na busca incessante de si. Do eu no outro. Don Juan não tem memória. A memória passa pela alteridade, pelo outro. Busca-se, no encontro amoroso, a possibilidade de apaziguamento, de fugir do incêndio interno. O vínculo se faz na alegria e na dor dos encontros, e com eles tecemos histórias. O “donjuanismo”, ao tentar atender ao desejo das mulheres e realizar-se nesse desejo, apenas cumpre seus fins inconscientes para manter seu equilíbrio narcísico. A ideia é disseminar entre os indivíduos uma descrença no encontro prazeroso.

A mídia institui o sujeito submisso, apagado e entediado. O “assujeitado” é também o sujeito do excesso. Aquele que se deprime na ausência de falta. O que tem tudo, faltando-lhe apenas desejo para desfrutar do tudo que o cerca. A crença no amor perfeito, no prazer absoluto, é fraude. Mas desacreditar ser possível construir relações sexuais e afetivas duradouras é perigoso. “Amar é dar o que não se tem”, assim Lacan testemunha a irresponsabilidade dos amantes, ao prometerem aquilo que nenhum de nós pode dar, quando está amando.

No amor, ninguém pode garantir nada, somos apenas uma possibilidade. O medo do fracasso é o grande responsável pela insatisfação humana. A concha da intimidade, quando duas pessoas se dispõem a se abrirem uma para a outra, é um bom lugar para explorar os caminhos que podem levar ao sexo e à felicidade. Senão, são apenas dois corpos em exercícios eróticos. Talvez a vida esteja chata porque não estamos sabendo ser felizes na vivência da sexualidade.

[grifos do blog]

12/12/2010

Entrevista - Pe. Mark Massa

A ''revolução católica'' dos anos 1960. Por Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS

A década de 1960 marcou a história como um período de grandes mudanças culturais e sociais. No âmbito eclesial, foi marcante toda a preparação, a realização e a aceitação do Concílio Vaticano II. Mas, segundo o jesuíta norte-americano Mark S. Massa, o Vaticano II foi apenas um dos "ingredientes" dessa massa cultural que gerou uma grande mudança, ou, em suas palavras, provocou a erupção de uma "revolução católica". Há poucos meses, Massa publicou o livro The American Catholic Revolution: How the Sixties Changed the Church Forever (Oxford University Press, 2010). Na obra, ele analisa, a partir do viés católico, a história das mudanças culturais ocorridas nos Estados Unidos na década de 1960, além de oferecer uma nova luz sobre grandes personalidades da Igreja Católica desse período.

Mark S. Massa é padre jesuíta, fundador e codiretor do Curran Center for American Catholic Studies, da Fordham University, a universidade jesuíta de Nova York, nos Estados Unidos. Mestre e doutor em história e teologia, é autor, dentre outros, de Anti-Catholicism: The Last Acceptable Prejudice? (Crossroad Press, 2003) e Catholics and American Culture: Fulton Sheen, Dorothy Day, and the Notre Dame Football Team (Crossroad, 1999).


IHU On-Line – Qual o impacto do Concílio Vaticano II na vida da Igreja, a ponto de levar o senhor a falar de uma "revolução católica americana" na década de 1960? Essa revolução também ocorreu em nível global?

Mark Massa – O Vaticano II impactou diferentes culturas católicas de formas diferentes, em parte devido aos vários contextos culturais nos quais a Igreja se encontrava. Assim, o livro trata especificamente dos Estados Unidos, e as minhas conclusões não visam oferecer respostas "universais" a todo o significado do Concílio Vaticano II. Minha sensação é de que cada cultura tem que escrever um livro sobre como a Igreja nessa cultura foi impactada. Meu livro não é sobre o Vaticano II, mas sim sobre os "longos anos 1960": nos EUA, que eu afirmo que começaram em 1964 e continuaram até a década de 1970. O Vaticano II teve, sim, um papel, mas não o único papel durante esse período, nem mesmo o papel predominante. Tão importante quanto o Vaticano II, foi a ascensão do movimento feminista, o movimento anti-Guerra do Vietnã, o movimento de liberdade de expressão etc. Assim, o título – A Revolução Católica Americana – não se refere ao Concílio Vaticano II, mas à ascensão da consciência histórica. Portanto, não estou tomando posição, de forma alguma, sobre a questão de se o Vaticano II foi contínuo ou descontínuo com relação aos concílios anteriores. Na verdade, eu não estou interessado nessa questão. Além disso, como os EUA são essencialmente um país protestante (apenas 27% dos cidadãos norte-americanos são católicos), eu acho que muito tem sido dito sobre o papel do Vaticano II nos EUA. Ele foi apenas um dos muitos fatores nesse fermento, e nem mesmo o mais importante.

  
IHU On-Line – Qual o impacto do Concílio Vaticano II na vida da Igreja, a ponto de levar o senhor a falar de uma "revolução católica americana" na década de 1960? Essa revolução também ocorreu em nível global?
Mark Massa – Nenhuma. Foi o contrário: a reforma da liturgia mandada pelo Vaticano contribuiu para a Revolução Católica, em que muitas outras fontes alimentavam essa mistura.
 
IHU On-Line – Que personagens são centrais nessa “revolução católica”?

Mark Massa – Frederick McManus [1], Charles Curran [2], Avery Dulles [3], as Irmãs Servas do Coração Imaculado de Maria de Los Angeles, Dan Berrigan, SJ [4]. Destes, eu acho que McManus desempenhou o papel mais importante na "mediação" das mudanças litúrgicas, que foram extremamente bem recebidas: McManus foi a figura central para essa recepção positiva.

IHU On-Line – Como as lutas feministas e as lutas pelos direitos civis da década de 1960 marcaram os debates sobre a Igreja, no Concílio e fora dele? Como a Igreja dialogou com o “fermento cultural” dessa época?

Mark Massa – Eu não acho que a Igreja reagiu ao movimento feminista durante todos os anos da década 1960. Eu acho, na verdade, que isso só começou no ano 1980, com a questão da ordenação de mulheres. Eu acho que a questão da ordenação feminina só começou a ser abordada nos EUA no final dos anos 1970 – uma era diferente, que eu pretendo analisar no meu próximo livro. O movimento dos direitos civis foi liderado por figuras negras protestantes, e os católicos chegaram a esse movimento muito mais tarde do que seus colegas protestantes. Eu acho que a Igreja ignorou amplamente o fermento cultural dessa época em termos de protocolos institucionais. Os indivíduos católicos certamente tiveram uma parte ativa nesse fermento (por exemplo, os irmãos Berrigan), mas a Igreja como instituição foi consumida pela implementação do Vaticano II, que desempenhou um papel relativamente pequeno no fermento cultural mais amplo.

IHU On-Line – Referindo-se a alguns dos resultados do Concílio Vaticano II, o senhor se refere a algumas "consequências não planejadas". Quais dessas consequências foram as mais inesperadas por parte dos Padres Conciliares?

Mark Massa – Dentre essas consequências, a principal foi a habilidade das instituições para controlar a velocidade ou a extensão da mudança, uma vez começada. Assim, eu defendo que o retorno às "intenções dos Padres Conciliares" para determinar o "significado do Vaticano II" é uma tarefa interessante, mas infrutífera, já que os eventos (como os conselhos da Igreja) não têm um "significado" em um único sentido: todos os eventos históricos têm muitos "significados", dentre os quais apenas um é a intenção das pessoas envolvidas no evento. Como Virginia Woolf comentou certa vez, "nada é sempre apenas uma coisa". Também dentre essas consequências, estava o chamado aos homens e mulheres religiosos a retornar ad fontes na atualização de seus estilos de vida.

IHU On-Line – Que consequências essa "revolução católica" trouxe para o debate teológico? Que embates surgiram e que novas questões foram postas em discussão?

Mark Massa – Avery Dulles ofereceu o modelo único mais importante das consequências teológicas do Vaticano II: ele mostrou que o pluralismo não era algo norte-americano nem "liberal", mas sim a postura mais católica de todas. Seu livro Models of the Church mostrou que a tradição católica sempre englobou modelos eclesiológicos pluralistas.
Notas:

1. Monsenhor Frederico Richard McManus (1923-2005): figura influente da Igreja norte-americana do século XX. Ele foi um dos peritus em liturgia do Concílio Vaticano II. Ele também presidiu a primeira missa em inglês nos Estados Unidos, em 1964, em St. Louis. (Nota da IHU On-Line)

2. Pe. Charles E. Curran (1934-): teólogo moral norte-americano, atualmente professor da Southern Methodist University, em Dallas, Texas. Em 1968, quando lecionava na Catholic University of America, Curran entrou em desacordo com o Vaticano e o Papa Paulo VI com relação à encíclica Humanae Vitae. Em 1986, após um processo judicial, ele foi expulso da universidade, e o Vaticano o destituiu de suas credenciais como teólogo católico. (Nota da IHU On-Line)

3. Avery Robert Dulles, SJ (1918-2008): cardeal jesuíta, teólogo e professor da cátedra Laurence J. McGinley de Religião e Sociedade da Fordham University, entre 1988 e 2008. Foi presidente da Catholic Theological Society of America e da American Theological Society. Também foi membro da Comissão Teológica Internacional e consultor do Comite de Doutrina da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos. (Nota da IHU On-Line)

4. Daniel Berrigan, SJ (1921-): poeta, ativista e padre católico norte-americano. Daniel e seu irmão Philip realizaram protestos não-violentos e pronunciamentos públicos contra a guerra do Vietnã, junto com o monge trapista Thomas Merton. Os irmãos Berrigan estiveram por algum tempo na lista dos dez fugitivos mais procurados pelo FBI. (Nota da IHU On-Line)