O olhar crítico e necessário de Hans Küng
Artigo de Manuel Fraijó, professor de Filosofia da Religião e decano da Faculdade de Filosofia da UNED, publicado no jornal espanhol El País, 25-01-1011. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS
Passaram-se 15 anos desde que 1.300 pessoas, emocionadas e em pé, aplaudiam a última aula magistral de Hans Küng (foto). Não menos emocionado que seu auditório, o grande teólogo percorria a saída do abarrotado salão de atos cochichava um apenas perceptível “gostaria de continuar contando com seu afeto”. Era o dia de sua aposentadoria.
A Espanha, país que tantas vezes visitou e onde seus livros alcançam uma extraordinária difusão, sempre o honrou com seu afeto; mas estava pendente a tarefa de plasmá-lo em imagens, de lhe outorgar importância e solenidade. É o que se propõe fazer a UNED no próximo dia 27 de janeiro, por proposição de sua Faculdade de Filosofia. Fizeram-no, antes que ela, outras 14 universidades de diferentes países. Hans Küng, além de ser um dos mais destacados teólogos atuais, apresentou notáveis serviços à filosofia, especialmente à Filosofia da Religião. Mais: pertence a uma tradição, a alemã, que não separa a teologia da filosofia.
Quase todos os grandes teólogos alemães criaram apaixonantes teologias filosóficas. É possível inclusive que a passagem do tempo, tão impiedosa com as criações humanas, só respeite aqueles projetos teológicos profundamente enraizados em uma rigorosa e exigente reflexão filosófica. É, sem dúvida, o caso de Hans Küng (Sursee, Lucerna, 1928).
Tudo começou em 1957 com uma fascinante tese de doutoramento. Tinha o título A justificação. A doutrina de Karl Barth e uma interpretação católica. Küng se atreveu com um tema que, desde os inícios da Reforma, havia dividido católicos e protestantes. Com coragem e juventude, estendeu pontes de diálogo e compreensão. Barth deu um simpático visto bom à obra, qualificando o seu autor de “israelita sem dolo” e desejando-lhe que viesse sobre ele o Espírito.
Na década de 1960 suscitaram grande entusiasmo e esperança obras como Estruturas da Igreja (1962) e A Igreja (1967). Küng desenhava o perfil de uma Igreja humilde, fiel à mensagem de Jesus, atenta às necessidades do mundo e sempre disposta a se reformar. Nem nos momentos mais conflitivos de sua relação com a Igreja pensou Küng em abandoná-la. O seu serviço é crítico, vigilante, incômodo e arriscado, mas necessário. Em 1965, no transcurso de uma conversa privada, Paulo VI lhe fez uma “oferta de trabalho” que poderia ter mudado sua biografia: conta-o, com invejável maestria literária, no primeiro volume de suas memórias, Liberdade Conquistada (p. 553ss.). “Quanto bem você poderia fazer (...) se pusesse seus grandes dotes a serviço da Igreja”, lhe disse o Papa. Küng lhe responde: “Ao serviço da Igreja? Santidade, eu já estou a serviço da Igreja”. Mas o papa se referia à Igreja especificamente romana e acrescentou: “deve confiar em mim”. De novo Küng: “Eu tenho confiança em Sua Santidade, mas não em quantos estão ao seu redor”. A oferta não foi aceita e Küng continuou o seu caminho de professor universitário.
Um caminho que o levou, se seguimos a sequência cronológica, a um estudo intenso, guiado pelo método histórico crítico, da figura de Jesus. Em 1974 apareceu um dos seus livros mais geniais, Ser Cristão. Era, e continua sendo, uma obra repleta de informação histórica e paixão crente. Afirmava-se a fé cristã de sempre, mas era expressa de forma diferente. Küng não partia de fórmulas abstratas. Seu ponto de partido era o grande protagonista da aventura cristã: Jesus de Nazaré.
Mas o teólogo sabe que tem sempre um encontro com o último do último. São Paulo diz que Cristo é Deus. Deus é, com efeito, o assunto final da teologia, sua noite e seu dia, sua prova máxima.
Küng enfrentou este desafio em sua monumental obra Existe Deus? Resposta ao problema de Deus em nosso tempo (1978). A suas páginas se assomam todas as sacudidas experimentadas pelo tema “Deus” desde que Descartes deu carta de cidadania à dúvida. Küng responde afirmativamente à pergunta pela existência de Deus. Sem Deus, afirma, o ser humano ficará sem chão firme debaixo dos pés. No horizonte apareceria o sem sentido. Sem sentido ao qual fazem frente algumas religiões com a promessa da ressurreição. Küng se atreveu também com este tema em seu livro Vida eterna? (1982).
Mas o final, a ressurreição, leva à origem, à criação, ao começo de tudo. É o tema que aborda em O princípio de todas as coisas. Ciência e religião (2007). As últimas páginas constituem um rotundo “não” ao “nada”, uma aposta na “outra vida” que, inclusive se ao final se perde, terá ajudado a viver esta com mais ilusão e esperança. Sobre suas ilusões e esperanças volta, em tom pessoal, quase confidencial, no livro Em que eu creio (2011).
Desde que, incompreensivelmente, um 15 de dezembro de 1979, o papa João Paulo II “premiou” esta folha de serviços à Igreja afastando este brilhante defensor da fé cristã a venia docendi e declarando-o “teólogo não católico”, Küng se adentrou em terrenos pelos quais não costuma transitar o teólogo.
Nasceram assim seus volumosos estudos sobre as religiões: O judaísmo (1991), O cristianismo (1994), e O islamismo (2004). Previamente, em 1984, havia publicado o volume O cristianismo e as grandes religiões, em que se senta o cristianismo a dialogar com o islamismo, o hinduísmo e o budismo. Küng não esquece que a secularização é um fenômeno quase exclusivamente ocidental; no resto do mundo, as religiões seguem configurando a realidade. É, pois, necessário contar com seu impulso.
Desembocamos, por último, em sua contribuição mais recente, aquela dedicada à ética. Hans Küng é fundador e presidente da Fundação Ética Mundial, com sede em Tubingen e Zurique, mas com representação em numerosos países. Representantes da educação, da cultura, da religião e da política acodem a esta fundação em busca de orientação em valores e compromisso educativo. O substrato desta fundação se encontra no seu livro Projeto de ética mundial (1990). Seu autor está convencido de que, sem um consenso ético básico sobre determinados valores, normas e atitudes, é impossível uma convivência humana digna, tanto em pequenas como em grandes sociedades. Um consenso que só é alcançável mediante o diálogo e o mútuo reconhecimento e apreço. A ética mundial deve partir de um princípio tão básico quanto antigo: “todo ser humano deve receber um trato humano”.
Finalmente: Hegel deixou escrito que os grandes homens não são apenas os grandes inventores, “mas aqueles que cobraram consciência do que era necessário”. A tais homens pertence, creio, o pensador que por estes dias a UNED se propõe a honrar. Acabamos de enumerar alguns de seus méritos.
Desde já, Küng nunca poderia ser o destinatário da grosseria que seu grande amigo, o ex-chanceler social-democrata Helmut Schmidt, cometeu contra um grupo de jornalistas. Cansado de que reprovassem sua realpolitik e sua falta de espírito utópico (governou a Alemanha depois do carismático Willy Brandt), lhes obsequiou, meio em tom de brincadeira, meio a sério, com um “quem tiver visões que vá ao médico”.
Evidentemente, a UNED não convidou o professor Küng para “enviá-lo ao médico”, mas para acrescentá-lo ao nosso claustro de professores e agradecer-lhe seu espírito visionário, suas utopias e suas esperanças de dias bons, melhores que os atuais, para o futuro de todos os seres humanos.