24/01/2011

Entrevista - Pe. José Comblin

''A Igreja Católica suspeita da democracia''

 
Pode parecer curioso que um sacerdote indique que Marx "foi o primeiro filósofo cristão". Essa é a posição que José Comblin (foto) tem a respeito da sustentação do cristianismo, religião que, com a influência de filósofos como Aristóteles, naturalizou a ordem do mundo, até se convencer de que não é possível mudá-lo, já que foi dado por Deus.  A reportagem é de Cristóbal Cornejo, publicada no sítio El Ciudadano, 20-01-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Nascido na Bélgica (1950), Comblin se doutorou em teologia na Universidade de Louvain (capital do país). Viveu no Brasil e, em 1972, expulso pela ditadura, foi ao Chile para ensinar na Universidade Católica. No entanto, em 1981, Pinochet lhe impediu de reingressar depois de uma viagem, por isso voltou para o Brasil, onde trabalhou nessa década com comunidades de base.

Como o senhor caracteriza Jesus Cristo?

Ele vem mostrar em sua vida o que é a nova humanidade e anunciar a transformação. Busca os que sofrem, os doentes, os que não tiveram sorte. Depois, anuncia aos pobres que a situação mudará, que tenham confiança e força, porque eles têm a sabedoria de Deus e a entendem. Por outro lado, os ricos e poderosos nunca entendem e não querem entender. Eles defendem seus privilégios e nada mais. Depois, ele reuniu uma comunidade e lhes deu uma recomendação básica fundamental: que ninguém queira ser mais do que os outros. Isso basta, é a única instrução. Se respeitarem isso, todo o resto funciona. Depois, denunciou a todos os que mantêm o sistema de dominação, e que o defendem, porque lhes beneficia. Por fidelidade a essa mensagem, todas as autoridades de Israel querem matá-lo e vão pôr-se de acordo com o governador romano que, de fato, sente que ele é um revolucionário que ameaça seu sistema e ao qual é melhor suprimir. Jesus mostrou o caminho para construir um mundo novo, não só para salvar a alma, que é mais fácil.

Como se projeta a imagem desse Jesus na Igreja Católica que se institui?

Em um momento crítico, os imperadores romanos adotaram o cristianismo como religião do Estado. E isso está muito longe do evangelho de Jesus! Começam a representar Jesus em mosaicos vestido como Imperador, com as insígnias do poder, com o manto imperial, o que, por sua vez, confirma o poder do Imperador. Aí, aparece todo um sistema de culto que não existia, porque as religiões anteriores ofereciam sacrifícios, tinham templos, mas os cristãos não. Com esse sistema, todo o mundo é obrigado a ser cristão, as pessoas se batizam porque a polícia os está vigiando, e assim aparece um monte de discípulos de Jesus que, na realidade, não o entendem.

E qual é o papel dos sacerdotes?

A tarefa da organização eclesiástica é de cuidar da transmissão da fé, mas, na prática, fazem isso à medida que não seja um perigo para a sua carreira. No momento em que é um perigo, há coisas que é melhor não dizer nem explicar. Não dizem que Jesus morreu porque lutou contra todos os dominadores e denunciou o sistema. Dizem que sacrificou sua vida para que Deus perdoe os pecados das pessoas, e ninguém se sente ameaçado.

Como o senhor vê o momento atual da Igreja Católica?

Neste momento, sua preocupação principal é se manter, continuar, já que há muitos que foram embora. Estão buscando manter sua posição de poder, embora, na prática, isso não tenha muita influência. Estão preocupados em reconquistar a influência que tinham antes, embora não saibam como fazer isso. Quanto ao mundo exterior, não há muita preocupação. Entrar em conflito com os poderes dominantes? Isso não, nada disso.

A Igreja teve alguma vez a possibilidade de impulsionar a mudança social?

Como instituição não, só mudança social até o ponto em que as classes dirigentes aceitam. Daí a confrontar... isso é feito por algumas pessoas, alguns padres, alguns bispos, mas não a instituição. Toda instituição tende a permanecer, essa é a sua natureza, não ter conflitos com outros poderes. Por isso, o melhor seria a instituição mais frágil possível, ter o necessário para manter a unidade e a organização, sem concentração de poder, com dispersão, que cada lugar possa se organizar e definir.

O que lhe parece a figura e a liderança do Papa Bento XVI?

Ele é mais discreto do que o anterior, não tem o mesmo carisma, nem o desejo de se mostrar tanto. É um intelectual, dedica o tempo para estudar. Não conhece muito sobre as realidades dos povos. É muito amável, muito acolhedor, mas nas ideias é muito tradicional, conservador.

E sobre suas relações com o nazismo?

É que todo sistema é autoritário. Na democracia, critica-se discute-se, vota-se e decidem-se coisas, mas a Igreja não gosta disso, tem medo. A Igreja suspeita da democracia, por isso um sistema autoritário coincide melhor com seus interesses, porque aí tudo se decide conversando com o ditador.

Em que difere a concepção da Igreja sobre o pecado da que Jesus teve?

Quando judeus se tornaram discípulos de Jesus, eles traziam toda a sua herança, muito concentrada no Antigo Testamento: a insistência de fazer com que as pessoas aplicassem toda a moral e todas as normas e as regras. Jesus não se preocupou muito com o pecado, porque Deus perdoa. Ele teve simpatia pelos pecadores, porque eram menosprezados, mal considerados. Deu-lhes mais ânimo, valor e força. O pecado é o sistema de dominação que reaparece sempre em toda a história, o contrário da fraternidade e do amor. Toda forma de dominação que diminui a vida é matar o outro, isso é dominação, opressão, pecado.

Se Jesus estivesse vivo, onde estariam postas as suas energias?

Jesus queria mudar este mundo. Iria buscar as pessoas simples e pobres, porque com os ricos é inútil. Eles não vão querer mudar, estão aproveitando bem. Iria buscar os pobres, criaria comunidades, lhes daria o sentido de sua dignidade, de seus direitos, de lutar por uma vida melhor.

Quando o senhor fala de mudar o mundo, fala de revolução social?

Não, de mudar a humanidade, a forma de se relacionar entre as pessoas, isso é o que é preciso mudar. Como fizeram as comunas medievais, as comunidades de base, as empresas cooperativas, em que todos participam. No final, o império cairá como todos os anteriores, e os oprimidos se libertarão graças à sua luta.