A bondade a partir das vítimas: o ''caso'' François Houtart
Érico Hammes, padre, é doutor em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Leciona, atualmente, na PUCRS. Desenvolve, principalmente, os seguintes temas: Cristologia, América Latina e Religião. É autor de, entre outros, Filii in Filio. A divindade de Jesus como evangelho da filiação no seguimento. Um estudo em Jon Sobrino (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995).
Érico Hammes, padre, é doutor em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Leciona, atualmente, na PUCRS. Desenvolve, principalmente, os seguintes temas: Cristologia, América Latina e Religião. É autor de, entre outros, Filii in Filio. A divindade de Jesus como evangelho da filiação no seguimento. Um estudo em Jon Sobrino (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995).
Fonte: UNISINOS
O site informativo Le Soir, da Bélgica, do dia 29 de dezembro, publicou várias matérias sobre uma revelação escandalosa do que se poderia chamar de atentado violento ao pudor, cometido por François Houtart, no contexto de uma candidatura a prêmio Nobel da Paz.
A imprensa brasileira repercutiu as notícias no mesmo dia e as principais informações e reações estão disponíveis no sítio do IHU. Além da carta-denúncia do crime, o informativo belga publica também a manifestação do próprio Houtart, respondendo à acusação e reconhecendo, ao menos parcialmente os atos cometidos contra um primo de oito anos, há quarenta anos. Os comentários do próprio site e de outros meios lembram o papel desse clérigo católico nos debates e críticas aos modelos reinantes de relações econômicas e sociais mundiais.
O escândalo poderia ser facilmente assimilado e enquadrado se se tratasse de um “inimigo da humanidade”. Ou se fosse um grande banqueiro americano, envolvido em escândalos financeiros; ou, quem sabe, um empresário do setor de informática, ou um jornalista de um grande veículo de comunicação; um chefe de Estado, conhecido por suas aventuras machistas; ou ainda um general da guerra do Iraque, um instrutor de torturadores das ditaduras latino-americanas; por que não, até mesmo um fundador de um movimento eclesiástico reacionário; ou algum dos bispos alemães, americanos, austríacos e belgas, de todos os modos mal vistos por acobertarem ou estarem envolvidos em crimes semelhantes. Fosse assim, e já não haveria surpresa, porque seria parte da lógica maniqueísta segundo a qual as pessoas se dividem entre cidadãs e cidadãos de bem e bandidos.
No entanto, era um candidato a prêmio Nobel, e Nobel da Paz, com enorme apoio de organizações e instituições transformadoras do mundo inteiro. Eu mesmo poderia ter assinado em seu favor, com outras organizações às quais me identifico, sua indicação. Desde os tempos de estudante de Teologia sempre de novo seu nome figurava entre os grandes conhecedores da Sociologia da Religião e mais recentemente se tornou uma das figuras-chave na organização do Fórum Social Mundial. É conhecido por sua atenção aos países do Hemisfério Sul, dentre os quais o próprio Brasil. Se o mundo estivesse dividido entre bons e maus, com os critérios sociológicos habituais, Houtart provavelmente não seria procurado daquele lado, do lado do mal.
Uma primeira reação ao que apareceu no dia 29 de dezembro, foi negar, atenuar, minimizar, universalizar, neutralizar, esvaziar as denúncias. Não pode ser verdade, mas se foi, foi há muito tempo, e não foi algo tão sério assim. Foi um ato fortuito. Enfim de contas, “quem estiver sem pecados, atire a primeira pedra”.
Num segundo momento veio a indignação. A imprensa quer desfazer todos os grandes ideais em nome de um crime que já prescreveu. E o próprio Houtart já reconheceu e já havia reconhecido no passado. Aliás, queria até mesmo ter deixado o exercício do seu ministério na época. Portanto, atacar seu passado, não faz sentido: é preciso reconhecer seus méritos, mesmo que não se possam aprovar ou negligenciar sua conduta passada e se deva buscar a reparação do erro cometido. A suspeita dolorosa que se levanta em meio a esses mecanismos é de que não é nem a pessoa de François que interessa e sim o que representa e representa para quem o defende.
A pergunta pela vítima
Sei que é muito difícil ver com clareza quando se está muito envolvido com eventos que nos dizem respeito. No caso, estamos diante de alguém de quem aprendemos muito e que fez um grande bem à humanidade; de um amigo nosso e grande colaborador. No fundo nos identificamos como ele, e é a nós que defendemos ao tentar protegê-lo. Qual mãe cujo filho é acusado, tendemos a negar e não aceitar o que está sendo dito. Reagimos com indignação ante a voracidade antropofágica dirigida contra alguém conhecido por sua crítica ao sistema econômico e hegemônico do mundo atual. E a vítima? Quem se importa, quem lembra?
Jon Sobrino traz à consideração, em artigo num dos últimos números de Concilium (fasc. 4/2010), que um dos grandes erros da Igreja (de todos nós), foi o de proteger os culpados e não considerar as vítimas.
Também vários bispos europeus têm se manifestado em direção semelhante. Houve um excesso de preocupação em proteger os agressores, sem cuidar das suas vítimas. Considerando essa perspectiva, a avaliação do que alguém faz ou se torna, depende das vítimas. Olhar a partir das vítimas, rompe a barreira das instituições e das classificações, das visões maniqueístas, paranoicas e esquizofrênicas. São as vítimas as primeiras a nos impor solidariedade, são o critério fundador da justiça, são os verdadeiros juízes que revelam quem somos como pessoas e sociedade. Quase poderíamos dizer, parafraseando o Evangelho, “pelas suas vítimas os conhecereis”!
A pergunta primeira a ser respondida, então, por doloroso que seja, não diz respeito a François Houtart e sim à sua vítima, o seu primo, de quem nem o nome sabemos. O que aconteceu com a vítima nesses quarenta anos? O que a vítima passou? Que lugar e importância lhe foram reservadas nesse mundo onde ela tinha todo o direito de ser uma pessoa acolhida, confiante, bem situada, resolvida e reconhecida? Ao responder essas perguntas, será possível voltar ao que se passa agora com Houtart. Como foi que ele lidou com sua culpa? O que se passou em seu interior nessas quatro décadas? Quantas vezes lhe foi dada oportunidade para se reconciliar ou para reparar o mal que fez? Pode ser julgado pela justiça civil?
Talvez apenas agora, quarenta anos depois, sofra as primeiras consequências mais graves de seu ato (crime). Ter seu nome retirado da lista de candidato a prêmio Nobel, é, quem sabe, a primeira grande chance de prestar contas publicamente de seu “ato inconsiderado e irresponsável”, como ele mesmo o qualifica. A reparação, enquanto relacionada imediatamente ao mal feito, é uma parte da restauração da justiça e que não pode ser compensada com méritos em outras áreas. A saúde das relações interpessoais depende, em grande parte, de instrumentos sociais de proteção à intocabilidade da vida e dignidade dos seres humanos, mas se consolida apenas se ao agressor é garantida a possibilidade reparadora do mal feito a outrem. E isso vale também do ponto de vista do Evangelho: “Se teu irmão tem algo contra ti, vai e reconcilia-te primeiro, e depois vem e apresenta a tua oferta”.
Todo crime e toda violação contra o ser humano, e mais ainda quando se trata de pessoas de confiança contra vidas indefesas, brada à condenação inequívoca e inadiável, sem olhar para todo o mérito anterior ou posterior do agressor. Por isso, não é possível deixar margem a desculpas ou subterfúgios de espécie alguma, pois significaria cair na odiosa cilada dos dois pesos e duas medidas. Qual seria a reação se François fosse a vítima? Ou se fosse uma pessoa não pertencente a nosso modo de pensar?
A resposta passa necessariamente por uma solidariedade com a culpa e o crime. O que François cometeu deve ser condenado inequivocamente, mas nós estamos com ele nesse crime e nessa culpa: somos suas irmãs e seus irmãos e o que ele fez, nós poderíamos ter feito, e de certo modo o fizemos, pois ele é dos nossos. Se somos irmãos verdadeiros e verdadeiras irmãs, somos convocados a reconhecer a culpa, a aceitar a acusação e pedir perdão com ele à sua vítima. Com ele “somos feito pecado” com aquele “que se fez pecado por nós”. Assim como seria equivocado minimizar a gravidade dos seus atos, não podemos deixar a um irmão pecador sozinho com sua culpa e seu crime, mas com ele queremos pedir perdão e colocar-nos em caminho, confiados na graça divina, a fim de nunca mais haver violação da dignidade de nenhum ser humano por parte nossa e de ninguém. Sem esse ato claro de responsabilidade e culpa, não seríamos mais do que hipócritas acusando outros e não assumindo nossa parte.
Portanto, se queremos apoiar ao François, o que é mais do que justo, não esqueçamos a vítima e nem a gravidade da ofensa sofrida, mas estejamos juntos num pedido de perdão e de compromisso absoluto (na medida do humano) de combate e resistência a qualquer violência contra seres humanos, especialmente os mais vulneráveis.
Em toda Europa, mas especialmente na Alemanha – onde me encontro desde setembro –, os Bispos, muitas vezes em públicas e solenes celebrações e declarações, se empenham no reconhecimento dos pecados e crimes que mancham a Igreja. A justiça civil exige medidas reparadoras enquanto a população em massa abandona a Igreja. Infelizmente, no Brasil, há indícios de uma cumplicidade interinstitucional a adiar e agravar a avalanche dos escândalos. Até o momento, quase nada se fez em âmbito eclesiástico e civil para ir ao encontro das vítimas, que se podem supor em número significativo. Por razões dificilmente explicáveis reina um silêncio e, ao que tudo indica, uma ocultação das demandas reparadoras e penais. É certo que a Igreja Católica não é a única instituição em que existem crimes de pedofilia, também no Brasil. Contudo, cabe a nós, pela gravidade do hora que vivemos, assumir a responsabilidade pelos atos de violação contra inocentes e pessoas confiadas a nós. Defender a Instituição ou seus representantes, contra as vítimas, é tornar-se parte da injustiça.