20/02/2011

Entrevista - João Batista Libânio

Igreja Católica mergulha em longo processo neoconservador
Recentemente, teólogos e teólogas alemâes, suíços e austríacos lançaram um manifesto propondo reformas para a Igreja em 2011. A convite da IHU On-Line, o teólogo João Batista Libânio  leu o documento e analisou as propostas, concedendo por e-mail a entrevista a seguir. Libânio é padre jesuíta, escritor e teólogo. É doutor em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma. Atualmente, leciona na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e é Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. É autor de inúmeros livros, dentre os quais Teologia da revelação a partir da Modernidade (5. ed. Rio de Janeiro: Loyola, 2005), Qual o caminho entre o crer e o amar? (2. ed. São Paulo: Paulus, 2005) e Qual o futuro do Cristianismo? (2. ed. São Paulo: Paulus, 2008).
Fonte: CEBI


IHU On-Line - Qual sua reação ao manifesto que propõe reformas para a Igreja em 2011, elaborado por teólogos alemães, suíços e austríacos?

João Batista Libânio - Impressiona, logo à primeira vista, o conjunto de assinaturas de teólogos da mais alta competência e responsabilidade. Portanto, não subscreveriam nenhum manifesto superficial, imprudente. Concordemos ou não com as proposições, ele merece séria consideração e detida atenção.

Parte do inegável mal-estar que afetou não só a Igreja Católica alemã e de alguns países por causa do escândalo da pedofilia, mas de toda a Igreja por ver-se nele a ponta de um iceberg de maior amplitude: a falta de liberdade e de transparência no interior da Igreja devido ao cerceamento das instâncias de poder eclesiástico. Por isso, o manifesto bate forte na tecla das estruturas de governo da Igreja Católica.

IHU On-Line - A partir da sua trajetória sacerdotal, o senhor também concorda que a Igreja precisa ser reformada? Quais seriam as reformas urgentes?

João Batista Libânio - Os anos me permitem perceber três nítidos momentos no processo eclesiástico das últimas décadas. Ainda conheci estruturas hieráticas no pontificado de Pio XII, que lançava a imagem do poder eclesiástico onisciente e onipotente. Roma pronunciava-se sobre os mais diversos assuntos e com a consciência de dizer verdades inquestionáveis. Não se percebia sinal de dúvida ou perplexidade. Isso acontecia com duplo efeito. Positivamente, oferecia aos católicos fieis enorme segurança sobre temas desde a astronomia até a intimidade da vida conjugal. Para aqueles que já tinham recebido o impacto da modernidade liberal, democrática, marcada pela subjetividade, autonomia das pessoas, consciência história, práxis transformadora, tais declarações romanas produziam enormes dificuldades e mal-estar.

Veio então João XXIII. Convoca o Concílio Vaticano II que inicia, com certa coragem, o diálogo da Igreja com a modernidade. Usando a imagem da música "andante ma non troppo", a Igreja caminha em direção ao repensamento doutrinal e pastoral, provocado pelos questionamentos teóricos e práticos levantados nos últimos séculos. No entanto, o tempo de aggiornamento não durou muito. Já no próprio Pontificado de Paulo VI, a partir de 1968, despontam sinais de contenção e retrocesso. E depois a Igreja Católica mergulha em longo processo neoconservador que dura até hoje. As inovações iniciadas no Vaticano II se interromperam e outras não surgiram, exceto em um ou outro gesto ousado de João Paulo II, como a Oração pela Paz em Assis com os líderes das diferentes religiões do mundo. Ainda que o clima geral não fala de abertura, entretanto percebe-se-lhe a necessidade.

IHU On-Line - O manifesto também propõe uma reconversão da Igreja. O que o senhor entende por esta proposta?

João Batista Libânio - A Igreja tem a enorme graça de pôr como referência última, principal, insuperável a pessoa de Jesus Cristo. E quanto mais se conhece o Jesus histórico, mais se percebe a força revolucionária de sua pessoa. Ele não deixa nenhuma estrutura esclerosar-se, sem que lhe seja acicate de mudança. Menciono de passagem o maravilhoso livro de J. Pagola, Jesus: aproximação histórica(Petrópolis: Vozes, 2010), que nos descreve e narra um Jesus colado à realidade no projeto maior de devolver às pessoas a dignidade.

Diante dessa figura de Jesus, muitas estruturas eclesiásticas sofrem terrível crítica. A partir dele, cabe falar de contínua reconversão da Igreja. Basta comparar a figura de Jesus andarilho, de Pedro pescador e crucificado em Roma com certas aparências poderosas clericais para ver a gigantesca distância e a força crítica de Jesus. Santo Inácio de Loyola apostava na força de conversão da contemplação dos mistérios de Jesus. Isso vale em nível pessoal, comunitário e eclesiástico. Em confronto com a pessoa de Jesus, a Igreja se vê questionada continuamente a assumir formas de humildade, simplicidade, pobreza, abandonando o luxo, o esplendor, a arrogância triunfante.

IHU On-Line - O manifesto diz ainda que somente através de uma comunicação aberta a Igreja pode reconquistar confiança. Em que consistiria uma comunicação aberta com a sociedade?

João Batista Libânio - Só existe comunicação aberta se se abrem canais de entrada e saída. De entrada nos recônditos dos segredos, nas manipulações e jogadas maquiavélicas, nas tramas urdidas na noite do anonimato. Existe limite difícil de ser traçado do direito ao sigilo de consciência, de reputação das pessoas e comunicação transparente. Portanto, não se trata de questão fácil. Entre os extremos da cultura Big Brother - da total e perversa transparência - e dos sigilos cabalísticos de verdades a que os fiéis têm direito de conhecer, existe um meio termo de clareza e de possibilidade de acesso. O canal de saída refere-se à liberdade de expressão das pessoas no interior da Igreja a respeito da vida da Igreja. No embate da discussão encontram-se melhores caminhos que na proibição da mesma.

IHU On-Line - É possível a Igreja romper com tradições, se renovar sem perder seus princípios básicos?

João Batista Libânio - Não se trata nem de romper nem de engessar a Tradição, ou mais corretamente as tradições. Na polêmica com  Mqr. Lefevre, que defendia a literalidade da Tradição e das tradições, Paulo VI insistia na necessidade de interpretá-la (s). Eis a questão! Os princípios permanecem no nível universal, abstrato. Importa ver como eles são entendidos nas situações concretas. E aí está o problema. O trabalho interpretativo tem exigências. Implica esforço da inteligência de captar três coisas. O significado da questão no contexto primeiro em que ela foi formulada e respondida. Esta mesma questão como se entende hoje. E, então, como o significado de ontem se reinterpreta para hoje. Por exemplo, a usura, cobrar mais do que se emprestava, até o nascimento do capitalismo se considerava roubo, portanto eticamente condenável. Hoje, ela se chama juros e ninguém os considera imorais. Então, como se fez a transposição de um princípio ético no pré-capitalismo para o capitalismo?

Numa economia estável sem circulação monetária parecia injusto receber mais do que se emprestava. Nisso consistia a injustiça. Numa sociedade em que o dinheiro se tornou fonte de renda, se considera injustiça só quando as taxas de juros superam de muito a força de rentabilidade. Recebe o nome de agiotagem. Mas cobrar taxas razoáveis não contradiz o princípio ético pré-capitalista no significado, embora materialmente pareça opor-se a ele (usura). Problemas semelhantes se levantam em muitos campos.

IHU On-Line - O documento também chama a atenção para a necessidade de reconhecer a liberdade de consciência individual, referindo-se também a opção sexual dos indivíduos. Entretanto, observa que "a alta consideração da Igreja pelo matrimônio e pela força de vida sem matrimônio está fora de discussão". Parece algo contraditório?

João Batista Libânio - A consideração anterior que fiz no campo das finanças vale no campo da sexualidade. Os ensinamentos morais da Igreja sobre o matrimônio permanecem válidos na linha dos princípios. E cabe perguntar-nos pelo seu significado profundo que diz respeito à dignidade humana, ao respeito das relações afetivas. Que significam o respeito e a dignidade nas relações humanas na união homoafetiva ? Não se responde em abstrato, mas a partir das experiências que se fazem no concreto da vida. Tanto nas relações matrimoniais como nas homoafetivas existem tanto dignidade, respeito como o oposto. E as considerações éticas descem ao concreto de tais relações para aí interpretar o princípio fundamental da dignidade humana, do respeito entre as pessoas, o projeto de amor de Deus.

IHU On-Line - O que significam os casos de pedofilia na Igreja?

João Batista Libânio - Revelam a face pecadora dos homens e mulheres de Igreja em todos os níveis: do simples fiel até pessoas da alta hierarquia. Em face do pecado, cabem, em primeiro lugar, a conversão e o perdão de Deus. Quando o direito de outras pessoas é lesado, como no caso da pedofilia que fere gravemente a criança envolvida, entram fatores de reparação desde a econômica até a judicial. Nada justifica o ocultamento, mas importa tomar as medidas concretas para evitar outros casos, sanear o acontecido, reparar o estrago feito.

Evidentemente, não tem sentido entrar no sensacionalismo da mídia. Está em jogo algo sério demais para ser simplesmente assunto de folha policial em ocasião para jogar pedras na Igreja. Não se pensa em acabar com a família, embora nela aconteça a imensa maioria dos casos de pedofilia. A mesma mídia que divulga, "escandalizada" casos de pedofilia, termina sendo uma das causas importantes da decadência moral da sociedade com a enxurrada de programas de banalização do amor, de sexualização das crianças, de exibicionismo e voyeurismo sexual, da perda de senso de responsabilidade social. A luta contra a pedofilia exige programa complexo de purificação das fantasias, de presença maior de educação sadia, de melhoria de cultura veiculada pela mídia.

IHU On-Line - Quais são as perspectivas e os desafios da Igreja para esta segunda década do século XXI?

João Batista Libânio - Distingamos os níveis. No momento, em nível das estruturas internas da Igreja não se veem perspectivas animadoras. Durante o longo pontificado de João Paulo II, a Igreja Católica viveu o paradoxo, de um lado, de rasgos de abertura na prática do diálogo inter-religioso, na defesa dos direitos humanos, na oposição a toda guerra enfrentando, inclusive, as pretensões americanas, na proximidade com o mundo dos pobres e, de outro, de enrijecimento doutrinal e disciplinar interno. No horizonte, não se percebe que a Igreja enfrentará os novos desafios da cultura contemporânea por meio de mudanças internas, como fez, em parte, logo depois do Concílio Vaticano II. Falta o clima de abertura, de otimismo e de profetismo para lançar-se em transformações profundas. Em termo de hierarquia, reina antes momento de silêncio, de prudência sem muita inspiração e lanço de coragem inovadora. A geração profética do porte de Dom Helder deixou-nos ou já está envelhecida. E a nova safra eclesiástica revela outro corte.

No universo dos leigos há sinais de esperança nas comunidades de base, na crescente participação consciente e ativa das mulheres, no maior desejo de espiritualidade e teologia, na vitalidade de novos ministérios, na criatividade litúrgica, no acesso amplo às Escrituras pela via da leitura orante. Em algumas igrejas particulares a Assembleia do povo de Deus anuncia algo de novo, desde que a clericalização não a prejudique.

IHU On-Line - O senhor concorda com a tese de que o Vaticano está enquadrando a Igreja no Brasil?

João Batista Libânio - Cícero chamou a história "mestra da vida". Lancemos um olhar para os últimos séculos a fim de entender a relação entre o Vaticano e as igrejas locais. Gregório VII, no século XI, deu a decisiva guinada da autonomia das igrejas locais para crescente poder de Roma. Ele pautou o governo pontifício pelo dictatus papae, que ressuda centralismo, autoritarismo desmedido. Esse longo processo de quase mil anos marcou uma linha de comportamento em que Roma exerce imensa influência sobre as Igrejas particulares ou regionais. O Concílio Vaticano II, com a colegialidade, tentou diminuir tal tendência, mas com pouco resultado. Faz parte, portanto, da consciência comum eclesiástica a dependência em relação a Roma. E a dialética de dependência de uma parte pede o exercício de domínio da outra.

A criança que pergunta a mãe que meia vai usar pede uma mãe cada vez mais absorvente que termina ditando-lhe tudo. Assim na Igreja. Roma responde com autoridade e a reforça porque as próprias igrejas locais a solicitam e ficam à espera. A liberdade se entende como relação entre duas liberdades. Não há liberdade de um lado só. Que o diga Erich Fromm no magistral livro Medo da liberdade. As análises que lá faz, baseadas em sua experiência do nazismo, valem para toda relação de submissão e de autoritarismo, onde ela se dê. No dia, porém, em que as igrejas locais tomarem maior consciência de outra eclesiologia, então a Igreja de Roma também lentamente afinar-se-á com ela. O processo se institui de ambas as partes simultaneamente em mútua relação e influência.

Quanto mais a Igreja do Brasil marcar a originalidade, a liberdade, a autonomia, tanto mais Roma a reconhecerá. Se ela, porém, está a esperar para cada palavra que disser um sorriso aprobatório de Roma, a liberdade se encurtará e a autonomia se dissolverá. Quem age sob o olhar de um outro, termina condicionando-se de tal modo que perde a própria identidade.

IHU On-Line - Como avalia a notícia de três nomeações de bispos brasileiros para ocupar cargos importantes na Cúria Romana? O que isto significa? Terá algum impacto na CNBB?

João Batista Libânio - A nomeação dos membros da Cúria Romana obedece ao difícil jogo de interesses e preocupações. Não creio que o caráter nacional, no caso, o fato de ser brasileiro, seja predominante. Entram em questão outros critérios de linha teológica, ideológica, de indicações de pessoas influentes, de vinculação a movimentos de igreja, de serviço prestado. Em termos modernos, falamos de "perfil". As firmas, as instituições contratam ou dispensam funcionários dando como razão o fato de corresponderem ou não ao seu perfil. Analogamemte vale no caso da Igreja. Julgo que os bispos brasileiros escolhidos para cargos romanos respondem ao atual perfil de Roma. Coincide que vários brasileiros corresponderam a tal retrato e então foram escolhidos. Isso não vem de nenhum prestígio especial do episcopado brasileiro, como tal, além do peso estatístico.

IHU On-Line - Como vê a atual internacionalização da Cúria Romana? Como propõe o manifesto, a sociedade deveria ajudar a escolher os representantes?

João Batista Libânio - A internacionalização traz vantagens. Mas não decide por si mesma. Acontece que a cor internacional desaparece facilmente por homogeneização ideológica por força da instituição. Se cada nação levasse para dentro da Cúria Romana a própria originalidade e a conservasse em contínuo diálogo com a predominante cultura europeia e romana, então a internacionalização causaria outro efeito.

Bispos latino-americanos, africanos ou asiáticos que arribam a Roma se romanizam a ponto de não se distinguir muito dos outros. Outra coisa significaria se as igrejas locais se fizessem presentes em Roma por meio de seus representantes, escolhendo-os e eles fazendo-se porta-voz delas. Mais: se elas mesmas decidissem na escolha dos ministros que as servem ou vetassem aqueles que não as satisfizessem. Assim evitaríamos casos desastrosos que tivemos de bispos, párocos ou pessoas em outras funções que durante décadas exerceram funções com detrimento da vida eclesial em vez de construí-la e os fieis tiveram de suportá-los calados e sem poder de mudança. Certos aspectos da sociedade democrática não contradizem, teologalmente falando, a maneira de designar membros da hierarquia. A escolha pode ser democrática, embora a conferição se faça pela graça do sacramento.

IHU On-Line - O que significa, para a Igreja brasileira, a nomeação de Dom Odilo Scherer no Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização?

João Batista Libânio - Como disse acima, os critérios de escolha das pessoas respondem antes ao perfil buscado pelo Vaticano para determinada função e ao peso de influências indicativas que à origem nacional. E o perfil se define pela combinação do histórico do bispo em questão e as conveniências da Instituição. Para alguém que está fora desse jogo fica muito difícil fazer juízo objetivo sobre as indicações. No início de cada governo no mundo da política, assistimos ao delicado jogo da escolha das pessoas para os cargos. Nem todos os indicados e escolhidos respondem ao desejo do presidente ou do papa, no caso da Igreja, mas entram na lista para cumprir uma série de acordos necessários para o governo. A política eclesiástica não escapa totalmente dessa regra.

IHU On-Line - Está em curso a consolidação do programa ratzingeriano para a Igreja do Brasil?

João Batista Libânio - Teríamos que conhecer de antemão o programa do Papa. Os papas, em geral, não fazem discursos programáticos, mas dogmáticos. E supõe-se arguta análise para perceber sob as afirmações doutrinais que tipo de prática de governo subjaz. Aventuraria dizer que Bento XVI atribui relevância especial à qualidade da pertença à Igreja e não se impressiona tanto com a diminuição estatística. O manifesto dos teólogos alude ao fato de que em 2010 "tantos cristãos, o que jamais ocorrera antes, deixaram a Igreja e apresentaram à autoridade da Igreja a desistência de sua pertença ou privatizaram sua vida de fé para defendê-la da instituição". Enquanto percebo, tal constatação não abala a convicção do projeto de manter uma Igreja, embora minoritária, mas fiel aos ensinamentos dogmáticos, morais e à prática disciplinar eclesiástica.

No projeto de Igreja em curso, a fidelidade, a exatidão doutrinal e a coerência prática disciplinar merecem relevo preponderante mesmo que à custa de êxodo de católicos.

O manifesto pondera a questão do isolamento da Igreja em relação à sociedade. Tal fato, porém, não se entende na percepção pontifícia de modo negativo, enquanto fechamento, mas como exigência de coerência com a própria mensagem a despeito da incompreensão por parte da mentalidade moderna.

Outra coisa, como parece supor o manifesto, tal aspecto implicaria incongruência com o projeto salvífico de Jesus. A questão teológica se desloca. Até onde tal programa eclesiástico afasta-se do reino anunciado por Jesus? Acusação grave que precisa ser bem pensada e discutida de ambos os lados. A tônica do projeto do Papa e a do manifesto são divergentes. No primeiro caso, volta-se para a Igreja e quer mantê-la na sua atual estrutura e, a partir daí, cumprir melhor sua função. No outro, propõe-se o projeto de Jesus e se pergunta como adequar as estruturas da Igreja a ele. Pontos divergentes que geram leituras diferenciadas. Só o diálogo mostra o limite e a positividade de cada perspectiva. O manifesto acentua: primeiro a liberdade individual e de consciência e a partir dela a fidelidade. A atual disciplina eclesiástica: primeiro a fidelidade à doutrina e à prática e aí dentro a liberdade.

O mesmo vale de outros pontos acentuados pelo manifesto: participação dos fiéis, comunidade de partilha, reconciliação dos pecadores e celebração ativa, enquanto o projeto eclesiástico em curso entende tais demandas a partir dos quadros jurídicos traçados para a participação, para a vida de comunidade, para a reconciliação e celebração e não à sua revelia ou à exigência da sua mudança. Nessa tensão consiste, segundo minha leitura, a divergência maior entre o manifesto e o que está em curso atualmente no seio da Igreja Católica.

15/02/2011

Um terço dos teólogos de fala alemã exige o fim do celibato e o sacerdócio da mulher

Revolução na pátria de Ratzinger. Um terço dos teólogos católicos de fala alemã residentes na Alemanha, Suíça e Áustria (144 professores de Teologia católica), subscreveu um manifesto em que exigem profundas reformas da Igreja católica, que incluam, entre outras, o fim do celibato, o sacerdócio feminino e a participação popular na escolha de bispos. A reportagem está publicada no sítio espanhol Religión Digital, 04-02-2011. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS


Os assinantes representam mais de um terço dos 400 teólogos da região de fala alemã, segundo revela o jornal Süddeutsche Zeitung, em que se afirma que seu número seria maior se muitos não tivessem negado sua rubrica por medo de represálias.

A iniciativa representa, além disso, o mais importante levantamento contra a cúpula da Igreja católica nos últimos 22 anos, quando 220 teólogos subscreveram, em 1989, a chamada Declaração de Colônia, crítica com o governo da Igreja exercido por João Paulo II.

A professora de Teologia de Münster Judith Könemann, uma das oito pessoas que redigiram o manifesto, reconhece que teriam se contentado com 50 assinaturas, mas destaca que o amplo eco demonstra que “tocaram um nervo”, em declarações ao citado jornal.

Entre os que assinam o documento destacam-se prestigiosos professores eméritos como Peter Hünermann e Dietmar Mieth, velhos lutadores pelas reformas como Heinrich Missalla e Friedhelm Hengsbach, progressistas como Otto Hermann Pesch ou Hille Haker, mas também conservadores como Eberhard Schockenhoff.

Redigido com os escândalos de pederastia no interior da Igreja católica como transfundo, o texto é prudente e louva também o chamamento dos bispos a um diálogo aberto.

Após explicar que se veem “na responsabilidade de dar uma contribuição a um novo começo real”, a tese central do memorando destaca que a Igreja católica só “pode anunciar o libertador e amante Deus Jesus Cristo”, quando ela mesma “for um lugar e um testemunho crível da mensagem de libertação do Evangelho”.

Deve reconhecer e fomentar “a liberdade do homem como criatura de Deus”, respeitar a consciência livre, defender o direito e a justiça e criticar as manifestações que “depreciam a dignidade humana”.

Suas exigências, que prudentemente qualificam de “desafios”, incluem “maiores estruturas sinodais em todos os níveis da Igreja” e a participação dos fiéis na escolha de seus bispos e párocos.

O manifesto destaca que a Igreja católica necessita “também de sacerdotes casados e mulheres no ofício eclesiástico”, assinala que a falta de sacerdotes força a exigência de paróquias cada vez maiores e lamenta que os sacerdotes sejam “queimados” diante destas circunstâncias.

Destaca igualmente que “a defesa legal e a cultura do direito” na Igreja devem “melhorar urgentemente” e comenta que a elevada valorização do matrimônio e do celibato supõe “excluir pessoas que vivem o amor, a fidelidade e a preocupação mútua” em uma relação estável de casal do mesmo sexo ou como divorciados casados em segundas núpcias.

O manifesto critica, além disso, o “rigorismo” da Igreja católica e destaca que não se pode pregar a reconciliação com Deus sem criar as condições para uma reconciliação com aqueles “diante dos quais é culpada: por violência, por negar o direito, por converter a mensagem bíblica de liberdade em uma moral rigorosa sem misericórdia”.

À tempestade do ano passado (em referência aos escândalos de pederastia) não pode seguir tranquilidade nenhuma”, afirma o texto, que considera que “nas circunstâncias atuais só pode ser a tranquilidade da sepultura”.

E depois de exigir diálogo e comentar que o medo não é bom conselheiro, recorda que os cristãos foram “chamados pelo Evangelho a olhar com valor para o futuro e como o chamamento de Jesus a Pedro para caminhar sobre as águas: ‘por que estais com medo? Vossa fé é tão pequena?’”.
 

Os bispos alemães avaliam o manifesto dos teólogos como positivo

A Conferência Episcopal Alemã considera que o manifesto crítico à Igreja católica, subscrito por um grupo de professores de Teologia, é uma contribuição para a discussão sobre o futuro da fé e da Igreja neste país e reagiu positivamente a essa iniciativa. A reportagem está publicada no sítio espanhol Religión Digital, 04-02-2011. A tradução é do Cepat. Fonte: UNISINOS


Cento e quarenta e quatro professores de Teologia católica da Alemanha, Áustria e Suíça subscreveram um manifesto no qual exigem profundas reformas da Igreja católica, que incluem, entre outras, o fim do celibato, o sacerdócio feminino e a participação popular na escolha de bispos.

Um comunicado tornado público na sexta-feira passada, dia 4/02, pelo secretário da Conferência, Peter Hans Langendördf, destaca que o memorando resume em princípio ideias frequentemente discutidas e “não representa mais que um primeiro passo” no debate aberto neste país após os escândalos de pederastia no interior da Igreja no ano passado.

Uma série de questões do memorando dos teólogos “se encontra em tensão” com as convicções teológicas e os princípios eclesiásticos de elevado compromisso, reconhece Langendördf.

Os diferentes temas necessitam de um urgente esclarecimento”, assinala o porta-voz da Conferência Episcopal, que destaca que falta mais que uma aproximação dos bispos para enfrentar os difíceis desafios da Igreja.

Os erros e fracassos do passado devem ser tratados e reconhecidos, assim como os déficits e exigências de reformas da atualidade, admite Langendördf, que reconhece que “não se pode evitar os temas conflitivos” e anuncia que a Conferência Episcopal fará suas propostas durante a sua próxima reunião plenária.

Manfred Hauke

Iniciativa dos teólogos alemães: renovação ou demolição? 
"Os signatários da DM podem sinceramente apresentar a Professio fidei exigida como condição indispensável para ensinar, em nome da Igreja, nas faculdades de teologia?", questiona o teólogo alemão, Manfred Hauke, professor de Patrística e Dogmática na Faculdade de Teologia de Lugano e vice-diretor da Revista Teológica de Lugano. Segundo ele, "o memorando dos 143 teólogos entristece pois não oferece nenhuma contribuição para lançar-se rumo a um futuro cheio de esperança, mas sim uma demolição põe em perigo o tesouro da fé eclesial". O artigo, intitulado "Aufbruch oder Abbruch? – Eine Stellungnahme zum Theologen-Memorandum, Kirche 2011“ foi, originalmente, publicado pelo jornal alemão Die Tagepost, 07-02-2011. A tradução é da Agência Zenit, 13-02-2011.
Fonte: UNISINOS


Em 3 de fevereiro, um conhecido jornal alemão, o Süddeutsche Zeitung, publicou um relatório (Memorándum) assinado por 143 teólogos alemães, com o título "Igreja 2011: uma adesão necessária" (Ein notwendiger Aufbruch (1)). As petições lembram, em muitos aspectos, a "Declaração de Colônia", de 1992, e a iniciativa "Nós Somos Igreja", de 1995. A faculdade teológica mais representada entre os signatários é a de Münster, com 17 teólogos, incluindo o decano Klaus Müller; uma teóloga de Münster faz parte do comitê de redação do memorando (cf. M. Drobinski, Theologen gegen den Zölibat, Süddeutsche Zeitung, 3.2.2011). Também uma petição muito específica remete à influência de Münster, a de constituir tribunais administrativos para a Igreja (Klaus Lüdicke). Portanto, o texto poderia tranquilamente ser chamado de "Declaração de Münster" (DM).

Por ocasião da DM, seus signatários indicam o debate público sobre os abusos sexuais que houve no ano passado. Ao procurar por "causas do abuso, do silêncio e da moral dupla", teria "crescido a convicção de que são necessárias reformas profundas". O convite dos bispos ao "diálogo" teria suscitado expectativas que seria preciso acolher. Os teólogos querem fazer de 2011 um "ano de partida" para que a Igreja possa sair de "estruturas fossilizadas". O "diálogo aberto" deve incluir seis "áreas de ação":

(1) São necessárias "mais estruturas sinodais em todos os níveis da Igreja", sob o princípio: "O que afeta todos deve ser decidido entre todos".

(2) A vida da comunidade necessitaria, para sua condução, de estruturas mais democráticas (para sua orientação). "A Igreja também precisa de padres casados e mulheres no ministério eclesial."

(3) Um primeiro passo para alcançar uma "cultura do direito" seria "a criação de uma jurisdição administrativa" (ou seja, de tribunais administrativos).

(4) Com relação ao que chamam de "liberdade de consciência", foi dito: "A alta estima do casamento por parte da Igreja (...) não exige a exclusão de pessoas que vivem responsavelmente o amor, a fidelidade e o apoio mútuo em uma união de pessoas do mesmo sexo [casais homossexuais] ou como divorciados recasados".

(5) No espírito de "reconciliação", seria preciso ir contra "uma moral estrita, sem misericórdia".

6) A liturgia vive graças à participação ativa dos fiéis e não deveria ser tão unificada de maneira centralista.
Temos de dar a razão aos signatários da DM em que a Igreja (de língua alemã) está passando por uma "crise profunda". Por outro lado, muitas sugestões apresentadas pelos teólogos signatários fazem parte desta crise e não podem favorecer a superação dos problemas. Os pedidos contidos no memorando são, em boa parte, pedidos conhecidos, procedentes dos anos 60 e 70 do século passado. Existe um "passo adiante" nos esforços a favor da práxis vivida da homossexualidade. O debate público sobre os abusos sexuais é instrumentalizado para empurrar uma Igreja enfraquecida para uma situação que se afasta da sua origem apostólica e se aproxima do protestantismo liberal. Segundo as estatísticas, o percentual (deplorável) do abuso sexual pelo clero católico é muito menor comparado ao que acontece nas estruturas (comparáveis) do âmbito secular (por exemplo: famílias, escolas, associações esportivas) e até mesmo com relação ao que se sabe dos pastores protestantes, casados, em sua maioria (cf. J. M. Schwarz, Kirche, Zölibat und Kindesmissbrauch, http://www.kath.net/, 3.2.2010).

Os teólogos da DM cometem um "abuso com o abuso" ao promover petições que certamente não podem combater as causas que estão na base dos próprios abusos. Não se diz que a castidade é necessária para uma verdadeira renovação. Não se fala sequer sobre a exigência da conversão. Pelo contrário: Deseja-se o reconhecimento, por parte da Igreja, da situação dos divorciados novamente casados, que vivem (nas palavras de Jesus) em um estado de adultério (cf. Mc 10,11), e mesmo os casais homossexuais, cuja prática sexual, de acordo com os catálogos dos vícios no Novo Testamento, leva à exclusão do Reino de Deus (cf. 1Cor 6,10).

Aqui não se vê a influência de um conhecimento teológico mais profundo, mas sim uma perda de fé e de moral. Os elementos fundamentais da doutrina apostólica são sacrificados devido a um pensamento que quer estar "a par" da situação atual. A petição de retirar a obrigação do celibato recorda os pedidos do Iluminismo tardio, superados há muito tempo por Johann Adam Möhler e outros protagonistas na renovação católica do século XIX. Nem mesmo aos ilustrados das igrejas estatais da época josefinista, entretanto, teria ocorrido rebaixar os valores do matrimônio cristão ou encorajar o concubinato homossexual.

Inclusive o pedido de ter "mulheres no ministério apostólico" é dirigido contra a origem apostólica da Igreja, pelo menos quando se entende "ministério" no sentido do sacramento da Ordem. Recorde-se aqui a Carta Apostólica de João Paulo II, Ordinatio Sacerdotalis (1994), na qual o Papa sublinha que "a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e esta sentença deve ser considerada definitiva por todos os fiéis da Igreja". O que se aplica a "todos os fiéis da Igreja" vale, provavelmente de maneira mais forte, para os teólogos que têm uma missio canonica.

Vamos dar uma breve olhada em outros pedidos, ainda que não possamos dar aqui uma resposta exaustiva. Certamente é importante uma "participação" de todos os fiéis na vida da Igreja, mas esta participação não deve ser confundida com as formas políticas da democracia. De acordo com a sucessão apostólica, a Igreja é guiada pelo Papa e pelos bispos. No início da Igreja, também os fiéis, muitas vezes, participaram da eleição de bispos por meio do seu testemunho e consentimento: mas estes fiéis foram preparados pelo testemunho dos mártires, na época das perseguições; não era a situação de hoje, em que quase 90% dos "católicos" alemães não vão à Missa no domingo e dependem quase que inteiramente da influência da mídia, a qual, em sua maior parte, é decididamente desfavorável à fé católica.

As eleições episcopais não eram decisões tomadas pelo povo, mesmo na Igreja antiga. Segundo o Papa Leão Magno, o bispo deveria ser eleito pelo clero, aclamado pelo povo e ordenado pelos bispos da província, com o consentimento do Metropolitano. O princípio jurídico citado pela DM vem originalmente do direito romano privado e foi interpretado em 1958 por Yves Congar, no sentido da recepção dentro da Igreja, mas não como democratização do Magistério  nem do ministério de guia (Quod omnes tangit, ab omnibus tractari et approbari debet); explicar o consentimento do povo de Deus como "decisão" ou inclusive como base de "estruturas mais sinodais" é sinal de uma ideologização fora da história eclesial.

O que se afirma sobre a questão das "paróquias XXL" refere-se a uma dolorosa realidade. A solução das dificuldades não está em mudar as estruturas da Igreja, procedentes de Cristo (como o sacerdócio ministerial reservado aos homens e sua responsabilidade específica para a guia da comunidade). Para organizar bem a vida das comunidades, é necessária a prudência pastoral e o compromisso de todos, mas não uma laicização na guia de das comunidades paroquiais. A "liberdade de consciência" proclamada na DM separa claramente a consciência do sujeito da verdade objetiva à qual a consciência deve se orientar.

Não faz sentido aplicar a "liberdade de consciência" para aprovar os casais do mesmo sexo e o adultério. Newman falaria aqui de um pretendido "direito à voluntariedade" (Carta ao Duque de Norfolk). A "misericórdia" na moral, mencionada sob a voz da "reconciliação", não deve se separar da necessidade de respeitar os mandamentos de Deus: Deus perdoa o pecador sinceramente arrependido, mas lhe dá a entender também (como Jesus à adúltera): "De agora em diante, não peques mais" (Jo 8, 11).

A petição da DM de integrar as "experiências e expressões da época contemporânea" na liturgia já tem seu lugar conveniente no atual ordenamento - por exemplo, na oração dos fiéis e na homilia. O acolhimento de "situações concretas da vida" não deve obscurecer a importância da liturgia como glorificação de Deus, juntamente com toda a Igreja, que proporciona formas muito precisas para a expressão comum.

Certamente, é preciso elogiar o "diálogo" dentro da Igreja. Para um debate legítimo entre cristãos católicos, entretanto, deve estar claro o pré-requisito presente na profissão comum da fé católica. Diversos pontos da DM questionam essa base. Os signatários da DM podem sinceramente apresentar a Professio fidei exigida como condição indispensável para ensinar, em nome da Igreja, nas faculdades de teologia? Os bispos responsáveis terão a coragem de insistir contra a dissidência sobre o caráter eclesial da teologia? A próxima visita do Santo Padre à Alemanha será uma grande oportunidade para uma renovação na fé católica. O memorando dos 143 teólogos, porém, entristece: não oferece nenhuma contribuição para lançar-se rumo a um futuro cheio de esperança, mas sim uma demolição põe em perigo o tesouro da fé eclesial.

Jerome Anciberro

Peter Seewald e o ''stalinismo teológico'' 
Jornalista tornado célebre por suas entrevistas com Joseph Ratzinger/Bento XVI, Peter Seewald (foto) também era conhecido pelo seu robusto catolicismo e certa verve crítica perante a ideologia liberal de nossas sociedades ocidentais. O comentário é de Jerome Anciberro e publicado pelo sítio da revista francesa Temoignage Chrétien, 08-02-2011. A tradução é de Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS


Em Luz do mundo, seu último livro-entrevista com Bento XVI, suas perguntas e algumas digressões suas haviam atraído a atenção dos comentaristas. Emergia, de fato, uma visão do mundo um tanto pessimista e muito severa sobre o estado cultural e ideológico do Ocidente. Em algumas passagens do livro até se podia ter a impressão que o papa procuraria tranqüilizar seu interlocutor e acalmar um pouco os seus ardores de polemista.

O manifesto Igreja 2011, firmado por aproximadamente 200 teólogos de língua alemã e que convida a uma “indispensável renovação” da Igreja católica não continha evidentemente nada que pudesse agradar ao nosso ardente defensor do papado.

O sítio católico austríaco kath.net teve, por isso, a boa idéia de ir entrevistar nosso homem, a quem já se atribui certa proximidade simbólica ao papa – proximidade que não reveste, em todo o caso, nenhum caráter oficial – para obter suas reações àquele documento. O resultado é impressionante. Peter Seewald se entrega, de fato, a um ataque de pleno rigor e não se controla no uso das invectivas.

Segundo ele, o Memorandum dos teólogos resultaria de uma “ação concertada por forças neoliberais que fazem pressão por transformações que teriam como resultado espoliar a Igreja católica de seu próprio ser e, portanto, de seu espírito e de sua força.”

Uma passagem do texto dos teólogos evocava a paralisia que deriva da auto-referencialidade, da obsessão de si demonstrada pela Igreja católica. Peter Seewald inverte a crítica explicando que são precisamente os contestadores que estão obsessionados pelo funcionamento interno da Igreja e que impediriam a esta última de tratar dos “verdadeiros problemas”.

Quem semeia vento recolhe tempestade”, adverte ele, voltado aos teólogos do manifesto, evocando um possível efeito de mobilização daqueles que permanecem “fiéis à Igreja”.

Segundo um motivo recorrente de certa crítica dos anos 90, Peter Seewald considera que o manifesto dos teólogos seja datado e que evoque uma “rebelião de casa de repouso”.

O “establishment teológico” se une, a seu ver, aos “agitadores que perderam há muito tempo a autorização para ensinar porque fizeram do filho de Deus um caudilho” (alusão a certos pesquisadores especialistas do método histórico-crítico).

“Ramos podres”

Considera, portanto, que estes críticos já seriam superados e, se os teólogos subscritores do manifesto podem ter entre suas fileiras algum militante, não poderão “jamais entusiasmar as multidões, sobretudo os jovens”. Muito vivamente, Peter Seewald compara abertamente os subscritores a “ramos podres que ainda podem causar dano, mas que já estão caindo da árvore à qual estão pendurados”. Chama-os, entre outras coisas de “sacerdotes teólogos, pequeno-burgueses, fanfarrões que vão perorar em todos os microfones que lhes são oferecidos”.

Com igual firmeza, o jornalista alemão recorda que os ataques mais graves contra a Igreja “vem do interior”. Cita como exemplo a tempestuosa reintegração dos bispos integristas de janeiro de 2009 e a revelação dos escândalos de pedofilia de janeiro de 2010.

Peter Seewald acusa também (erradamente) os subscritores de considerarem que o celibato dos padres e a moral sexual católica sejam a causa dos fatos de pedofilia na Igreja. Aproveita isso também para dar um puxão de orelhas em certos “jesuítas de alto nível” que se permitiriam criticar a moral sexual católica enquanto escândalos de pedofilia tem tido lugar “em suas casas”, fazendo alusão aos abusos sexuais no interior de institutos secundários jesuítas alemães, como o colégio Canisius de Berlim.

Mas, Peter Seewald, encorajado por seus entrevistadores, não se detém aqui. Respondendo a uma preocupação clássica dos ambientes católicos, explica seriamente que não há falta de padres. De fato, assegura, quando se relaciona o número dos padres com o dos fiéis que vão regularmente à missa, a proporção é até melhor do que antes! E, do ponto de vista financeiro, um surplus [uma sobra] de padres seria até prejudicial para a Igreja.

Suspeitando que a minoria (reformadora) quer impor suas visões (modernistas) à maioria dos católicos, Peter Seewald fala, com uma fórmula surpreendente, de “uma espécie de stalinismo teológico”. Invectiva, além disso, tanto os movimentos contestadores como Wir sind Kirche (Nós somos Igreja) quanto o Comitê central dos católicos alemães que compara ao comitê central da SED (o partido comunista da Alemanha oriental) antes da queda do Muro.

Agressivo, o fogoso jornalista também pede a demissão do porta-voz da Conferência Episcopal Alemã, o padre Hans Langendörfer, jesuíta, que acolheu o manifesto dos teólogos anunciando prudentemente propostas futuras da parte dos bispos.

Entrevista - Gianni Vattimo

Igreja se salvará de seu próprio suicídio somente com um pensamento fraco'' 
 
Gianni Vattimo (foto) é o filósofo italiano vivo mais traduzido. Criador da expressão “pensamento fraco”, foi professor, eurodeputado e ativista político e cultural. Há um tempo surpreendeu o mundo ao anunciar sua reconversão ao catolicismo. Nas livrarias espanholas há agora duas novidades: Adiós a la verdad (Gedisa) e ¿Verdad o fe débil? Diálogo sobre cristianismo y relativismo (Paidós), onde polemiza com o antropólogo René Girard sobre a religião. A entrevista é de Francesc Arroyo e pubicada por El País, 12-02-2011. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS



Você se declara católico, mas sua fé parece mais a de um ateu que a de um crente monoteísta.

É que nem sequer sei se Deus existe. O teólogo Dietrich Bonhoeffer disse que “um Deus que existe, não existe”. Não sei se Deus é uma entidade nem onde está. Sempre pensávamos que estava no céu. A verdade é que não posso chamar-me monoteísta. O monoteísmo tem implicações de dominação, de colonização, de violência, e desconfio dele. Também não sou politeísta. Não posso falar de Deus como se fosse uno ou três ou quatro ou muitos. Sou cristão ou não? É um problema que tenho, sobretudo quando morrer e tiver de enfrentar o juízo final. Chamo-me cristão porque me sinto uma criatura, alguém que não se fez a si mesmo. Me sinto dependente de um infinito. E isso procede da minha leitura do Evangelho. Não sei se o Evangelho é a única verdade religiosa no mundo. Eu não procuraria converter os não crentes.

Chamar a sua fé de cristianismo não induz a confusão?

É um nome histórico. Cresci na comunidade da Igreja. E em nome de seus princípios posso criticá-la. Como Lutero criticou o Papa em nome do Evangelho. Não creio que haja uma religiosidade natural. Sem ter conhecido o Evangelho, me teria perguntado pela existência de Deus? Não há “a” religião, há religiões. Eu cresci em uma e a interpreto filosoficamente, racionalmente, como um chamado do infinito do qual dependo. E chamo a esse infinito de Deus e Jesus é seu filho, sem saber em que termos.

O que não parece assumir é que a vida seja um vale de lágrimas.

Não. Muitas vezes o é, mas não posso aceitar que isso seja a essência do mundo. Não creio que tenha que atribuir a Deus o sofrimento. De fato, não sei se se deve atribuir a Deus tudo o que acontece no mundo. Não sei se criou o universo e suas leis. Deus é minha esperança espiritual, espero sobreviver como espírito.

Na Bíblia você vê um Deus que não é astrônomo nem moral. O que resta?

A mensagem de salvação. Uma mensagem de caridade a aplicar na minha relação com os outros. A humanidade: sentir-se melhor em um mundo de amigos que de inimigos.

Você diz que Deus é relativista. O relativismo filtrou a defesa do criacionismo.

Eu me sinto mais evolucionista que criacionista. Sou criacionista na medida em que o anúncio da salvação não é um produto da evolução. Pode ser inclusive que a fé seja resultado da evolução. Eu não creio na objetividade do real. Deus existe? Não sei. Se digo que existe ou que não existe, entro em um objetivismo que não casa com a minha espiritualidade.

Também diverge da tendência da Igreja de proibir.

Porque não creio que haja uma essência do bem e do mal. Há condições de vida compartilhadas. A moral é o código de circulação mais a caridade. Tudo é convencional, salvo o respeito ao outro. E isso é bastante cristão e bastante comunista.

Ao final, seu Deus é caridade e amor. Que diferença há entre os dois termos?

Tradicionalmente, se baseou na repressão. Fazemos um pouco de caridade ou um pouco de amor? Trata-se de organizar o erotismo de forma tolerante, porque não há uma ordem natural do amor. Estamos condicionados por uma tradição repressora, familiarista. O Papa precisa pregar sobre o uso do preservativo? Não. Se gosto de dormir com uma mulher ou com um senhorzinho, como regulá-lo? Desde a perspectiva da caridade, o divórcio está bem. Não se pode obrigar duas pessoas a viverem juntas.

A Igreja celebra as conversões, mas sobre a sua não fala.

Creio que eu deveria ser Papa, por mais que seja quase o único que pensa assim. Mas estou convencido de que a Igreja se salvará de seu próprio suicídio somente com um pouco de pensamento fraco. Creio nisso como pensador fraco e também como cristão ocidental. A Igreja está pensando que a secularização atual é apenas coisa do Ocidente e que os povos convertidos da África serão cristãos mais sérios. Também serão mais primitivos, porque creem mais nos milagres e inclusive praticam a magia, como, por exemplo, o bispo Milingo. Eu, na verdade, não me sentiria à vontade em uma Igreja dominada por esses cristãos. Espero que a providência intervenha.