O Irmão Marista Antonio Cechin formou-se em Letras Clássicas e em Direito, pela PUCRS, onde também foi professor. Fez sua pós-graduação no Centro de Economia e Humanismo, em Paris. Iniciou na Instituição Católica de Paris a especialização em catequese, quando foi chamado para o Vaticano, na Sagrada Congregação dos Ritos, no início da década de 1960. Depois, retornou ao Brasil e iniciou a luta junto aos movimentos sociais. Fonte: UNISINOSSábado, dia 25 de janeiro, dia em que o calendário religioso assinala como festividade da conversão do apóstolo Paulo, foi encerrado com grande solenidade, na antiga Fazenda Anoni, o Décimo Terceiro Encontro Nacional, comemorativo dos 25 anos de existência do MST.
Como fizemos parte do grupo que acompanhou o Movimento desde o nascedouro em Ronda Alta, motivados pela sentença do grande escritor católico Alceu de Amoroso Lima “o passado não é aquilo que passa, mas o que fica do que passou”, Jacques Alfonsin, o advogado do MST e eu tivemos o maior dos interesses em participar do balanço que se realizaria no Encontro Nacional de Sarandi
Ficamos impressionados com a capacidade de mobilização do Movimento. Para o encerramento eram esperadas em torno de 3000 pessoas convidadas. Lá estavam lideranças de todos os Estados do Brasil, representantes de dezenas de entidades apoiadoras; para além das nacionais, outras dos cinco continentes. Entre as inúmeras figuras históricas vieram para a premiação das lutas e dos apoios: Ana Leocádia, filha de Luís Carlos Prestes e de Olga Benário; a filha de Che Guevara como substituta de Fidel Castro, impossibilitado por doença de comparecer pessoalmente; o filho do economista Celso Furtado; o filho do sociólogo Florestan Fernandes; uma religiosa da mesma congregação da Irmã Dorothy Stang, todos para receberem prêmios póstumos dos grandes apoiadores mortos; além de inúmeros políticos governadores de Estado, Prefeitos, deputados federais e estaduais e vereadores.
João Pedro Stedile, valente assessor e incansável estrategista do MST, nesta semana em que são celebrados os 25 anos do Movimento (1984 a 2009) escreveu um artigo brilhante, intitulado “25 anos de teimosia”. Como condividimos com ele, ainda que seja por longe, a partir da Comissão Pastoral da Terra, o acompanhamento desses anos todos de luta, causou-nos uma certa surpresa que ele, assim como a coordenação do Movimento, tenham decidido celebrar, neste início de 2009, 25 anos do Movimento.
Por que 25 anos e não 30, se no ano de 1979 ocorreu a ocupação da Fazenda Macáli; no ano de 1980, da Fazenda Brilhante e logo em seguida, o acampamento da Encruzilhada Natalino, considerado o marco por excelência de toda a história de lutas pela terra, realizado em plena ditadura militar e momento em que o MST derrotou o exército brasileiro comandado pelo famigerado coronel Curió? Como explicar, sabendo que isso tudo e muitas outras coisas, fazem parte do patrimônio histórico dos SEM-TERRA antes de 1984, ano em que, na cidade de Cascavel (Paraná), tiveram início os 25 anos, hoje celebrados?
Haveria desinteresse ou mesmo um certo pudor, por parte do MST, em não abiscoitar exclusivamente para si, o esplendor do NATALINO, por exemplo?
Intrigados com a circunstância, depois de refletir com mais atenção, imaginamos primeiro a hipótese que Stedile e os Sem-Terra tenham ficado atraídos pelo número 25 com seu peso significativo de data jubilar - jubileu de prata. Depois nos convencemos de que estão com carradas de razão, porque os 5 primeiros anos foram, em nosso modesto entender e interpretar, um TEMPO DE PROFECIA (1979 a 1984), de acúmulo de força mística. Os 25 anos sub-sequentes (1984 a 2009), um TEMPO DE UTOPIA e que o João Pedro se tenha limitado ao tempo em que o MST se dedicou de fato, como Movimento autônomo, a construir seu Projeto de Reforma Agrária para o Brasil inteiro, utopia mantida acesa até hoje.
I. TEMPO DE PROFECIA
Pela nossa Teologia da Libertação, o papel dos profetas é transmitir as mensagens de Deus ao seu Povo. Trata-se de desinstalar o povo quando este se acomodou dentro de uma rotina. O Deus de todas as religiões, do ponto de vista do cristianismo, não está lá em cima, na transcendência, fora do mundo. Ele caminha conosco, em nosso dia-a-dia, à frente de nós, na história. Por isso a profecia tem duas dimensões: denúncia e anúncio (práxis). Denúncia da situação de opressão em que o povo vive acomodado, e anúncio (ou práxis) de caminhos novos, por onde se retome a caminhada para frente, nas pegadas do próprio Deus deixadas por Jesus de Nazaré, o Homem-Deus. Vejamos os fatos:
No ano de 1979 – 30 anos atrás – estávamos reunidos no Colégio Marista de São Gabriel com mais de uma centena de membros das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica, provenientes de lugares os mais diversos de nosso Rio Grande do Sul, a fim de participar do primeiro Encontro Estadual.
Fruto da reflexão das Assembléias da Igreja Latino-Americana de Medellín (1968) e Puebla (1979), em nossa opção pelos pobres, as Comunidades Eclesiais de Base se propunham em sua prática, ser ao mesmo tempo focos de evangelização (Profecia) e motores de libertação (Utopia).
Escolhêramos a cidade por causa de Sepé Tiaraju, índio guarani martirizado juntamente com 1.500 companheiros pelo exército dos impérios aliados de Espanha e Portugal, no ano de 1756, nesse exato lugar, em que hoje se ergue a cidade de São Gabriel.
O que nos movia era a intenção de impregnar gente pobre do campo e das periferias urbanas, com a espiritualidade libertadora com que estiveram embebidos nossos irmãos-de-fé-e-de-utopia, os índios guarani, em sua luta pela defesa da terra que lhes pertencia, ao grito de “Esta Terra-Sem-Males tem dono!” Pois sabemos que na cabeça de todo guarani, desde o nascimento, está sempre a Mística pela incansável busca da TERRA-SEM-MALES, realidade que haviam conseguido realizar em seus queridos SETE POVOS. Os imperialistas vinham armados até os dentes para implantar um projeto oposto: o capitalismo ou da TERRA-DE-TODOS-OS-MALES.
Na data de 7 de setembro de 1979, feriado nacional comemorativo da independência do Brasil, bem cedo, o sino do colégio nos acorda com a alegre notícia de que nossos companheiros das Comunidades de Base da paróquia de Ronda Alta, durante a noite, acabavam de ocupar a Fazenda Macáli. Era o primeiro fruto da nossa espiritualidade missioneira, calcada no exemplo de luta por TERRA, de Sepé Tiaraju e dos índios guarani, nos primórdios de nosso Estado (1750 a 1756), ao grito de “Esta Terra-Sem-Males tem dono!” Os delegados encontristas daquele município, que estavam conosco em São Gabriel, naquele mesmo dia, partiram para o abraço jubiloso com os vitoriosos da tomada da Fazenda Macáli.
No ano seguinte de 1980, foi a vez da ocupação da Fazenda Brilhante no mesmo município de Ronda Alta, depois veio o grande acampamento da Encruzilhada Natalino com mais de 600 famílias em beira de estrada. O ponta-pé inicial deste acampamento do Natalino fora dado pelos índios kaingang de Nonoai.
Havíamos participado, no ano de 1975, do primeiro Encontro Estadual do Centro Indigenista Missionário do Rio Grande do Sul, que se realizou durante as férias de julho, na Faculdade Católica de Ijuí. Lá estiveram conosco, como participantes, durante 15 dias de reflexão e planejamento, índios do centro-oeste do país: os xavante, os bororo e os terena, juntamente com nossos kaingang e guarani. A um determinado momento, na mesa do almoço, o cacique xavante dialogava com o cacique kaingang Xangrê, face à queixa que este expressava a respeito dos sofrimentos do seu povo, cada vez mais acuado pelos “intrusos” brancos que, sempre em maior número, ocupavam suas terras: “Vocês têm que reagir! Estão vivendo em verdadeiro campo de concentração!”, interrompia o xavante a toda hora.
Três anos mais adiante, em 1978, inesperadamente, eis que os kaingang, com o cacique Xangrê à frente, tirando proveito do preconceito que branco tem para com índio, já que o considera um selvagem, realizaram o “Levante de Nonoai”. Começaram com o incêndio de várias escolas, enclaves simbólicas da imposição da cultura do branco sobre o índio. Em seguida abateram um leitão de uma família intrusa, mais adiante torceram o pescoço de uma galinha de outra família e fizeram a ameaça: “se não saírem dentro de três dias, faremos com todos o que nos permitimos fazer com esses animais domésticos.”
Era um exército de 40 índios “desintrusando” 7.500 roceiros invasores. Limparam a área dentro do prazo estabelecido. Esse embate passou para a história como a “guerra dos miseráveis”. Pobre contra pobre. A vitória dos esfarrapados índios kaingang como exemplificamos acima, foi conseguida através de meios extremamente pobres.
Não fosse a intervenção da Brigada, dando cobertura de imediato à “desintrusão” dos brancos, certamente motivada pelo fato de a ditadura nacional ter mostrado interesse em levar colonos para a transamazônica, o segundo momento da refrega teria sido dos pobres agricultores que, com um mínimo de organização, em número bem maior, ter-se-iam jogado de volta para cima dos kaingang.
O governo do Estado da época houve por bem remover as famílias “desintrusadas”, para os pavilhões da exposição de animais em Esteio. Lá permaneceram acampadas durante meses. Posteriormente a maioria foi transferida para a Transamazônica.
Algumas dessas famílias que perderam casa e terra em Nonoai optaram por se instalar na Encruzilhada Natalino. Aos poucos, outros Sem-Terra foram se alinhando nessa mesma estrada. Quando o governo se deu conta, já eram em número de 600 barracos. Foi quando a ditadura deslocou o coronel Curió e uma tropa de soldados a fim de desmantelar o acampamento.
As Comunidades Eclesiais de Base do Rio Grande, as Paróquias e as dioceses, acudiram de todos os lados com alimentos, roupas, remédios etc. e deram proteção o tempo todo que durou o acampamento e a pressão do coronel e de sua soldadesca que não mediam esforços e artimanhas para dissolver os colonos que, em boa hora, logo que iniciaram na estrada, pediram a assessoria do Padre Arnildo Fritzen e da Irmã Aurélia, da paróquia de Ronda Alta.
Depois que a ditadura militar desistiu de pressionar os Sem-Terra da Encruzilhada, as Igrejas do Rio Grande se cotizaram e compraram um gleba próxima de uma linda represa a fim de poderem usufruir de sossego para se organizarem melhor em sua luta por terra. Ao assentamento feito pelas Igrejas, os colonos deram o nome de NOVA RONDA ALTA.
Essas famílias até aí sob a proteção das Igrejas, dentro da nova morada, tiveram a tranqüilidade para completar sua conscientização sobre os caminhos da luta que estavam dispostas a continuar a fim de conseguir um pedaço de chão para plantar e sobreviver. Para tanto construíram um ícone que lhes lembrasse sempre a PROFECIA. Tratava-se de uma Cruz enorme simbolizando o peso desmedido que teriam de enfrentar no futuro, se não esmorecesssem na luta pela conquista definitiva de um pedaço de chão.
Os TEMPOS DA PROFECIA tinham chegado a plenitude.
Dom Pedro Casaldáliga, bispo profeta e poeta, quando visitou a Nova Ronda Alta e pousou num dos barracos, fortificou a esperança de todos por terra e casa compondo até um hino que se tornou verdadeiro canto de “guerra”. Eis a letra:
Nova Ronda Alta, Terra prometida!
Quando a união não falta, sobra Terra e Vida.
Terra Prometida que conquistaremos
com a força unida e os irmãos que temos.
Nós pobres podemos, Deus está junto de nós.
Juntos venceremos muitos curiós.
Para a gauchada que firme onde está,
a golpe de enxada o chão crescerá.
Esta terra é nossa, viva São Sepé,
e não há quem possa dobrar nossa fé.
Cada encruzilhada que vencer o povo
é uma CAMINHADA para o mundo novo.
A terra vermelha como o sangue puro
germina na história o nosso futuro.
Batiza a barragem o resto que espera
águas de passagem, páscoa verdadeira.
Muitos vão em frente de nossa esperança
e dentro da gente todo o povo avança.
A Cruz por bandeira, o amor deste chão.
Somos sementeira de libertação.
II. TEMPO DE UTOPIA
A palavra utopia foi criada por Thomas Morus (1478-1535) por justaposição das palavras gregas topos (lugar, região) e ou (não, negação) para designar a cidade imaginária (que não existe). Costuma ser usada quando se tem um projeto ou sonho de uma sociedade e, por extensão, de um futuro desejável.
As experiências de algumas ocupações e principalmente o treino que tiveram com a “guerra” contra o exército do coronel Curió foi um TEMPO DE FÉ E DE EVANGELIZAÇÃO em que se robusteceram com a mística missioneira personificada em Sepé Tiaraju e particularmente no profeta valente que foi JESUS DE NAZARÉ, simbolizado pelo ícone que passou para a história como a Cruz de Ronda Alta.
No Encontro que os do Natalino tiveram no ano de 1984, com as representações de outros SEM-TERRA de todo o Brasil, juntos se sentiram suficientemente fortes para serem os PROFETAS da Reforma Agrária, agora como movimento autônomo a fim de congraçar todos os Sem-Terra do Brasil. Transformaram-se em Movimento escolhendo para si o nome de MOVIMENTO DOS SEM TERRA (MST).
Face ao projeto capitalista, trazido pelo europeu, no arrastão iniciado pelo “descobridor” Cabral, o MST optou pelo projeto nativo de fundo socialista dos índios, que também depois foi adotado pelos negros QUILOMBOLAS e agora engrossado por todos os movimentos populares dos quais a locomotiva é o próprio MST. A UTOPIA vai se tornando dia-a-dia mais concretizada Haja vista a CONQUISTA DO CAIBOATÉ, a ex-fazenda do latifundiário Southall neste início de 2009.
Neste Encontro Nacional realizado na semana passada a UTOPIA SOCIALISTA foi reafirmada com todas as letras pelo MST. Como bons profetas, anunciam que em 2009 estamos começando uma rica etapa de re-ascenso dos Movimentos Populares. Em época de crise mundial do projeto capitalista, um KAIRÓS (tempo favorável) do projeto em marcha de índios, negros e pobres de todos os matizes é inteiramente possível para um salto qualitativo. Com a união da via campesina com os movimentos urbanos prevêem a confluência da PROFECIA COM A UTOPIA. Foi o que se viu na premiação final do Encontro: a filha de Luís Carlos Prestes, o grande utopista do socialismo brasileiro, em comunhão com a religiosa da mesma congregação da Irmã Dorothy que de bíblia em punho, o livro por excelência da PROFECIA, enfrentou seu próprio assassino.