Artigo do jornalista Eugênio Mattos Viola estraído da ADITAL
"Se eu dou comida a um pobre, me chamam de santo, mas se eu pergunto por que ele é pobre, me chamam de comunista".
"Se eu dou comida a um pobre, me chamam de santo, mas se eu pergunto por que ele é pobre, me chamam de comunista".
Talvez essa frase possa servir como síntese da vida de Helder Pessoa Camara, nascido em 7 de fevereiro de 1909, em Fortaleza, no Ceará.
Combatido pelas elites insensíveis ao sofrimento humano e carregando a cruz do preconceito, ele não se deixou abater e chegou a ser indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel da Paz. Percorreu o mundo na luta contra todo tipo de opressão. Mereceu o reconhecimento internacional, enquanto no Brasil seu nome era proibido de ser mencionado pela mídia durante mais de dez anos, no triste período de total cerceamento da ditadura militar, em seguida ao AI-5, em 1968. "A justiça e a paz serão estabelecidas ao fim de tortuoso caminho, de longas marchas e contramarchas em que os homens se irão depurando dos ódios, das vaidades e dos preconceitos. Se o ódio pode ser mais forte e intenso do que o amor, num curto espaço de tempo, só o amor construirá para sempre", escrevia o editor Ênio Silveira na apresentação de um dos livros de Dom Helder (O Deserto é Fértil), publicado pela Civilização Brasileira, naquele período de trevas. Como Gandhi, abraçou a perseverança - a Força da Verdade (Satyagraha). Sabia discernir com sua abençoada sabedoria a diferença entre a caridade, que vê no pobre apenas o objeto de sua generosidade - do expurgo de suas culpas conscientes e inconscientes -, daquela que é a verdadeira caridade: a que tenta resgatar os desamparados, ofertando possibilidades concretas de alcançar o que não lhe foi proporcionado na infância ou ao longo da vida, como direito à educação, saúde, salário digno, moradia descente, ou seja, esperança e não apenas esmola.
Ordenado padre em 15 de agosto de 1931, em 1952 era nomeado bispo-auxiliar no Rio de Janeiro. Participou da criação do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM). Dom Helder alcançou altos cargos na hierarquia eclesial, mas a humildade nunca o afastou do povo de Deus. Teve influência marcante nos novos rumos adotados pela Igreja durante e pós o Concílio Vaticano II, que abriu as janelas do Vaticano para que os ventos da História tirassem a poeira do trono de Pedro. Seu espírito se manifestou leve e sábio nos tantos livros que deixou publicado. Os profetas não se calam. Tornam o deserto fértil, mesmo sob o martírio.
"É bom que ninguém se iluda, ninguém aja de maneira ingênua: quem escuta a voz de Deus e faz sua opção interior e arranca-se de si e parte para lutar pacificamente por um mundo mais justo e mais humano, não pense que vai encontrar caminho fácil, pétalas de rosa debaixo dos pés, multidões à escuta, aplausos por toda a parte e, permanentemente, como proteção decisiva, a Mão de Deus. Quem se arranca de si e parte como peregrino da Justiça e da Paz, prepare-se para enfrentar desertos". E ele soube enfrentar os desertos com firmeza e mansidão de espírito.
Schopenhauer dizia que "talento é quando um atirador atinge um alvo que os outros não conseguem; gênio é quando um atirador atinge um alvo que os outros não vêem". Quando muitos se esforçavam para ‘catequizar’ os jovens, Dom Helder enxergava além e serenamente apontava o caminho: "Os jovens estão sempre com suas antenas ligadas, e sabem muito bem como captar os sinais do amor apaixonado e apaixonante de Deus. Por que falar sempre de ‘prática religiosa’e jamais de ‘prática evangélica’, feita de amor e de coragem, sempre a serviço dos outros? Ao que tudo indica, essa prática não foi abandonada. Muito pelo contrário, eu a vejo em plena ação por onde quer me passe. Se os jovens vão menos à igreja, talvez seja porque nela não encontram adequadamente reunidas a Vida e o Evangelho". Era uma visão profética, nos idos de 70, do esvaziamento dos templos e seminários, principalmente na Europa e na América do Norte, como constata-se atualmente."O desespero, na juventude, é a coisa mais terrível que há, tão terrível que mal posso pensar nisso. E, no entanto, me dizem que ele existe aqui, que está ao lado e em torno de vocês! Exorto-vos a não aceitarem de braços cruzados, jamais! A pior coisa que se pode retirar de um jovem é sua esperança no futuro. Tenham coragem e firmeza para auxiliá-los a reconquistá-la".
Como diz Frei Betto "procura-se incutir nos jovens a idéia de que não adianta querer mudar o mundo, exceto no que se refere à tecnologia e à ciência. Mas há os jovens que lutam por ‘um outro mundo possível’, que preferem injetar utopia na veia do que drogas". E Dom Helder foi um eterno jovem. A santa utopia corria em suas veias, em seu coração, em suas palavras, dando o fôlego necessário para enfrentar desertos e tempestades.
Não é difícil imaginar o quanto seria enriquecedora a participação de Dom Helder nas atuais divergências entre os irmãos Clodovis Boff e Leonardo Boff sobre a teologia da libertação.
"Não devemos ficar tão presos assim às palavras. É possível que muitas pessoas não hajam compreendido bem a essência da ‘teologia da libertação’, pois ouviram dizer que ela tinha influência marxista, ou coisa parecida. Mas há também os que a entendem, adequadamente, como a redescoberta do poder revolucionário do amor de Deus na história dos homens, o que lhes parece muito perigoso. É por isso que se vê tanto debate em torno da ‘teologia da libertação’, embora seja indiscutível que o Cristo queira que todos os homens lutem pela libertação de seus semelhantes. O progresso humano, a campanha contra as causas das injustiças, a conquista da dignidade, são a maneira mais direta dos homens poderem cooperar para a sua própria redenção e salvação, causas pelas quais o Senhor deu sua vida". Sem aprofundar muito os pontos de vista levantados por cada um, observo que a síntese do pensamento de Clodovis é de que o pobre não leva necessariamente ao Cristo. O pobre estaria ocupando lugar do Cristo, o que seria uma heresia. Enquanto a visão de Leonardo é justamente contrária, de que "o Cristo leva necessariamente ao pobre, é a Face do Cristo. Diante dessa polêmica, bem ressaltou o teólogo José Comblin: "Quem vai sofrer com essas controvérsias, são os pobres. Os teólogos têm comida garantida, casa garantida. Se são condenados, não vão sofrer muito. Quem vai sofrer serão os pobres na medida em que a Igreja se desinteressa deles por medo de cair numa heresia. Sempre ouvi Gustavo Gutiérrez dizendo que a teologia da libertação pode morrer e não importa. O que importa, são os pobres. Para um cristão a teologia é algo completamente secundário e dispensável. Mas os pobres não são dispensáveis. Não se pode ser cristão sem acolher a mensagem que vem dos pobres".
Quem terá perdido um pouco da Compaixão? Quem teria trocado - como os fariseus-, o Amor pela Lei? Os que acusam os teólogos da libertação de terem se valido de elementos do marxismo na leitura da História ou os que propõem uma atuação pastoral vertical, voltada para uma dimensão que coloca em segundo plano a Condição Humana?
O que é inquestionável é que a Conferência de Medellín, em 1968, foi o ‘aggionarmento’ da Igreja na América Latina, deixando no passado uma atuação condenável em relação aos índios, aos escravos, aos desamparados, firmando pacto com os Estados e a aristocracia, com as forças opressoras que de cristã nada tinham. Essa chama não pode morrer, ainda que muitos apontem que haveria ‘poeira ideológica’. É um debate rico, que convida à participação até de ‘não-crentes’ na busca de um mundo mais digno e fraterno, como fez o Cardeal Carlo Maria Martini ao se abrir no belo diálogo epistolar com o escritor Umberto Eco no livro "Em que crêem os que não crêem?". Dom Helder com o olhar voltado para o Ecumenismo já tinha declarado anos antes: "desculpem-me se porventura lhes dei a impressão de que apenas os crentes, os cristãos, é que podem trabalhar por um mundo melhor. Não é assim que penso de modo algum. Quando olho em torno de mim, logo percebo que nem todos os que se dizem crentes têm esperança verdadeira de paz, justiça e felicidade para os homens, para os que vivem nesse mundo de riscos e incertezas, ao passo que muitos daqueles que em nada crêem, que sequer reconhecem a existência de Deus, estão dispostos a participar nos combates da esperança sem receio de colocar suas próprias vidas em jogo. Bem imagino a surpresa que muitos terão quando souberem que o Senhor dirá àqueles que sem O conhecerem - ou reconhecerem - viveram a fraternidade universal: "Agradeço-vos por me terdes acolhido, tratado, vestido, alimentado, defendido e amparado contra a injustiça’. Muitos cristãos, muitos católicos terão surpresa ao constatar que não serão eles os únicos convidados a entrar na casa Pai. Pois o coração do Pai é muito mais amplo do que os registros de todas as paróquias do mundo, e o Espírito Santo sopra em todas as direções, mesmo aquelas onde os pés dos missionários não tenham ainda pousado".
Nesses dias de angústia em que nos sentimos impotentes diante do ‘holocausto dos palestinos’, da fúria israelense sobre Gaza - sem poupar crianças, mulheres e idosos -, Dom Helder dizia ‘por mais que o homem avance na ciência e na técnica, enquanto houver guerras no mundo daremos um triste atestado de falta de amadurecimento espiritual’.
Como as muitas vozes que hoje apontam para a urgência de aprofundamento dos avanços do Concílio Vaticano II de João XXIII, como a necessidade do fim do celibato, da eleição direta dos bispos, da maior participação dos leigos na construção do Reino, da maior inserção das mulheres na hierarquia eclesiástica, do fim da condenação ao homossexualismo. Como as vozes dos apaixonados pela Igreja, que enxergam além de nosso tempo cronológico e sofrem com o esvaziamento dos templos, abrindo espaço ao surgimento e fortalecimento dos falsos pastores e profetas que arrebatam multidões aflitas e assumem o controle da mídia. Como vozes que não atingem o coração da Cúria Romana e são até perseguidos. Como vozes que vêem da América Latina do bispo Dom Clemente Isnard ou da Europa do Cardeal Martini, Dom Helder também já havia se manifestado e deixado como legado em sua biografia espiritual: "sou um velho bispo, e não tenho receio em pedir-lhes que jamais se conformem com as fraquezas, os compromissos, ou talvez até mesmo com as traições da Igreja, assim como jamais perderem a confiança no Espírito do Senhor, que sempre está dentro dela".
Certa vez, questionado por um grupo de jovens franceses sobre a razão de Deus permitir o sofrimento humano, Dom Helder despiu-se de todas as doutrinas, de toda fria intelectualidade e, numa demonstração de humildade, de quem também chorou no Monte das Oliveiras, respondeu: "Eu bem que gostaria, quando chegar a minha hora de partir para a eternidade, de levar comigo um bom número de perguntas que desejo fazer, um bom número de questões sobre as quais preciso ser esclarecido, um bom número de hipóteses que pretendo verificar. E isso sem falar nos mistérios que jamais chegarei a esclarecer, a respeito dos esforços que Deus faz para ser entendido perfeitamente. Bem sabemos que o Senhor conheceu o sofrimento. Ele foi capaz de chorar. Ele teve de alimentar, de curar, de consolar. Ele já teve de reconduzir um filho aos braços de seus pais. No entanto, quando a agonia O acometeu, Ele próprio não teve dúvida em implorar piedade. Ele jamais nos disse que o sofrimento era bom, necessário ou Justo".
Dom Helder Camara foi ao encontro do Senhor no dia 28 de agosto de 1999, aos 90 anos de idade. Para ele, já não há mais mistérios ou dúvidas. Para nós, ficou a certeza de uma vida dedicada em plenitude ao amor, humildade e fé. Em fevereiro do ano passado, a Comissão Nacional de Presbíteros, vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), encaminhou à Congregação para a Causa dos Santos o pedido de beatificação de Dom Helder Pessoa Camara. Em seu deserto, nasceram flores.
Os negritos são do blog.