Clodovis Boff acumulou muitos méritos no âmbito da Teologia da Libertação. Produziu uma reflexão de fôlego sobre o método da teologia, sobre a eclesiologia das comunidades eclesiais de base e sua relevância para a renovação das tradicionais e pesadas instituições da Igreja. Produziu outrossim alguns trabalhos de pedagogia popular que causaram admiração a Paulo Freire. Fiel às intuições da Teologia da Libertação, durante 10 anos trabalhou, generosamente, nas CEBs do Acre, passando meio ano por lá, dando cursos populares e subindo e descendo os rios em visita aos povos da floresta e o outro meio ano no ensino e na produção teórica na PUC do Rio de Janeiro.
Nos últimos tempos se notou um certo recuo em sua atividade e reflexão, por razões que só a ele cabe dar. O texto que analisaremos Teologia da Libertação e volta do fundamento publicado no numero especial da Revista Eclesiástica Brasileira de outubro de 2007 ( fascículo 268 da REB) dedicado à análises da V Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho, em Aparecia, revela traços claros deste recuo. Na parte em que aborda a modernidade demonstra um pessimismo cultural também presente em muitos grupos de Igreja, especialmente em setores importantes do Vaticano. Na modernidade tendem a ver seu lado sombrio e menos os desafios a serem assumidos e pensados. Isso não é bom para a tarefa da evangelização assim como no-la ensinaram a Gaudium et Spes do Vaticano II e João XXIII na Pacem in terris (1963). Ai se diz que nas ideologias e movimentos histórico-sociais, primeiramente, deve-se estar atentos às busca dos seres humanos ai expressas, que deverão ser interpretadas com abertura e com coração aberto pelos cristãos. De princípio, importa recolher tudo o que existe de bom neles e somente depois proceder à critica judiciosa. O pressuposto é que a graça e o Ressuscitado estão em ação no mundo e seria blasfemar o Espírito Santo admitir que os modernos só pensaram erros e equívocos. Mas parece não ser esta a opção de Clodovis. As sombras dominam sobre as eventuais luzes, facilitando a rejeição. Ao contrário, quando se refere ao texto de Aparecida mostra um otimismo ingênuo e um entusiasmo verdadeiramente juvenil, sem dar-se conta do esquematismo e do ahistoricismo da cristologia e da eclesiologia, tão bem apontadas por José Comblin, neste mesmo numero da REB (pp. 875-880).
Dizendo diretamente: o texto de Clodovis causa perplexidade e perturbação. A coisa não pode ser assim como ele a expõe e critica. Seguramente a maioria dos teólogos da libertação que conheço não se sentiriam ai representados. Ademais, o autor assume uma postura magisterial que caberia melhor às autoridades doutrinárias que a um teólogo, frater inter fratres.
1. Cui prodest? A quem interessam as críticas?
Os questionamentos que faremos não se restringem a uma polêmica intrasistêmica à teologia, sempre necessária e útil para o aprofundamento das questões. Iremos também fazê-la. Mas recobrem também a preocupação por uma política eclesiástica repressiva que se sentiria bem apoiada pelas criticas contundentes operadas por Clodovis Boff contra o conjunto da Teologia da Libertação, sem a preocupação de diferenciar os vários tipos de Teologia da Libertação, índia, negra, feminina, ecológica e outras, com suas correspondentes práticas que se querem libertadoras.
É de todos sabido que esta espécie de telogia foi vigiada e também perseguida por poderosos da sociedade e pelo Vaticano que suspeitava ser ela uma espécie de cavalo de Tróia mediante o qual se introduziria na América Latina o marxismo. Entretanto, é uma das poucas teologias que produziu cristãos que foram presos, seqüestrados, torturados e assassinados em vários paises latino-americanos onde era e continua atuante.
A minha suspeita é de que as críticas suscitadas por Clodovis Boff à Teologia da Libertação forneçam às autoridades eclesiásticas locais e romanas as armas para condená-la novamente e, quem sabe, baní-la definitivamente do espaço eclesial. Como as críticas devastadoras provém de dentro, de um de seus mais reconhecidos formuladores, elas podem prestar-se a tal intento infeliz.
A impressão que sua argumentação provoca é de alguém que se despediu e já emigrou da Teologia da Libertação, daquela “realmente existente” que, na verdade, é a única que existe e se pratica nas Igrejas. Esta teologia é atacada em seu núcleo definidor porque cometeu, segundo ele, um “erro de princípio, grave para não dizer fatal...falha “mortal” que, levada a termo, termina pela morte da Teologia da Libertação”(REB 1004 e 1006).
Esse erro fatal – pasmem - é de ela ter colocado o pobre como “primeiro princípio operativo da teologia”, ou de ter substituído Deus ou Cristo pelo pobre (REB 1004). Afirma ainda que “do erro de princípio só podem provir efeitos funestos”. Acena para a contaminação em curso de toda “pastoral da libertação” nomeadamente “as pastorais sociais”. Por causa deste erro fatal, se instrumentalizou a fé, fé-la cair no utilitarismo e no funcionalismo, ocasionou seu enredamento com a modernidade antropologizante e secularista, pondo em risco a identidade cristã ”no plano teológico, eclesial e da própria fé” (REB 1007). Tais acusações são de grande monta e nos lembram os textos acusatórios de figadais inimigos da Teologia da Libertação dos anos 80 do século XX. E pour cause!
Perguntamos: sendo uma árvore assim tão ruim por que o autor, por várias vezes, se refere aos “preciosos frutos da Teologia da Libertação”(REB 1011 passim)? Vai mais longe ao sustentar que “grande parte da Teologia da Libertação se incorporou na teologia sem mais.... feita parte integrante do discurso da Igreja, em geral”(REB 1021). Não são contraditórias estas afirmações já que brotam de uma raiz e de um cerne contamidos que faz com que o bons frutos “peguem broca e com o tempo se deteriorem (REB 1006)?
Entretanto, com certa compaixão, confessa que “não entende refutar essa corrente, mas repô-la em seus fundamentos originários, pois só assim poderá ser salva”(REB 1011). Para mim esta pretensão equivale a dizer: “Meu irmão, eu vou apunhalar seu coração, mas fique tranqüilo, isso é para a sua salvação”, como se a punhalada não ferisse mortalmente o coração.
Sua posição agrada aos ouvidos daqueles que, distanciados do mundo e do sofrimento dos pobres, abominam esta teologia. Reforça o intento daqueles que na sociedade e em setores do Vaticano a querem ver morta ou impedem que seja estudada, ou proibem que seja feita referência para a prática pastoral com os pobres e marginalizados.
Analogamente ocorre com Clodovis Boff o mesmo que aconteceu com um certo ministro de Estado. Foi ao Parlamento e anunciou:” É preciso acabar com a idéia de que a Amazônia deve ser mantida como um santuário para o deleite da humanidade”. “Devemos levar desenvolvimento para aquelas áreas”. Todos sabem que o modelo atual de desenvolvimento é de puro crescimento material a qualquer custo, implicando desmatamentos, grandes queimadas com o conseqüente aquecimento do clima da Terra. Imediatamente madeireiros, pecuaristas e plantadores de soja apoiaram o Ministo dizendo: ”finalmente alguém que nos entende e que tem idéias adequadas e modernas para a Amazônia”. Os ambientalistas se encheram de preocupação e o criticaram duramente denunciando-o como inimigo da natureza e da vitalidade do Planeta.
Podemos imaginar que os que condenaram a Jon Sobrino (Clodovis aprova a Notificação romana), a Gustavo Gutiérrez, a Ivone Gebara, a Marcelo Barros, a José Maria Vigil, a Juan José Tamayo, a Castillo, a Dupuis e a Küng entre outros, se acercarão de Clodovis e lhe dirão satisfeitos e com o peito inflado de fervor doutrinário: ‘Bravo, irmão. Enfim alguém que teve a coragem de desmascar os equívocos e os graves e fatais erros da Teologia da Libertação”.
Com igual coragem me sinto urgido a dizer o contrário: estas suas criticas contundentes não fazem justiça à “Teologia da Libertação realmente existente”, torna inseguros os agentes de pastoral e confusos os pobres que sempre viram nesta teologia uma fonte de esperança e de motivação para o compromisso libertador. Como já se disse:”podemos irritar os poderosos, mas não nos é permitido nunca defraudar os pobres”.
Por isso, julgo que esta posição de Clodovis tem que ser refutada com argumentos bem fundados, por ser equivocada, teologicamente errônea e pastoralmente danosa. Não apenas por interesses da pastoral e de política eclesiástica mas por razões internas da teologia. Na minha avaliação, suas insuficiências teóricas e teológicas são tantas que invalidam o peso de seus argumentos. Pende mais para uma teologia aristotélico-pagã e neo-escolástica, rigorosa no seu método, mas no fundo formalista, incapaz de dar conta do desafio que os pobres representam para o pensamento e para a prática cristã. Eles aparecem sempre como tema entre outros, algo secundário, de segunda ordem e um princípio secundum quid, coisa que não se sustenta quando tomamos a sério a mensagem e a prática do Jesus histórico e dos Apóstolos. Por isso, este modo de estruturar o método teológico corre o risco de condenar a Igreja e a teologia à irrelevância histórica e à esterelidade pastoral.
Parece-nos que não é a Teologia da Libertação que deve ser “reconduzida a seus fundamentos”(REB1001) mas a teologia de Clodovis Boff a fim de que ele volte ao primeiro amor.
Há três ausências que tiram sustentabilidade à sua reflexão: a ausência de uma adequada teologia da encarnação; a ausência do sentido singular de pobre dado pela Teologia da Libertação; e a ausência de uma teologia do Espírito Santo. Em cada parte, seremos sumários, porque as matérias são, em grande parte, conhecidas.
2. Ausência de uma teologia da encarnação
Que nos diz a tradição dogmática sobre a encarnação? Que o Filho de Deus, deixou sua transcendência e assumiu em Jesus da Nazaré a natureza humana em situação de “carne” quer dizer, limitada, vulnerável e pobre. A partir da concepção em Maria pela força do Espírito, aquela humanidade começou a pertencer a Deus de forma “inconfundível, imutável, indivisa e inseparável” sendo Jesus, a um só tempo, “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem”(Calcedônia ano 451). Mas a encarnação não se limita somente a Jesus. Comenta a Gaudium et Spes: ”Por sua encarnação, o Filho de Deus, uniu-se de algum modo a todo homem”(n.22). Todo homem é formado pelos mesmos elementos do universo, forjados há bilhões de anos no coração das grandes estrelas vermelhas. Por isso é parte de nosso sistema cósmico que também foi tocado pela encarnação. Jesus não seria salvador universal se não salvasse também o universo que de alguma forma assumiu.
Como encarnado, o Filho estava limitado ao espaço e ao tempo palestinense. Pela ressurreição rompeu todas as limitações e se transformou no “novissimus Adam”(1Cor 15,45). De sárquico (a forma de ser do humano, fraco e mortal) ele se tranformou em pneumático (a forma de ser de Deus). “O Senhor é Espírito”(2Cor 3,17), quer dizer, pela ressurreição manifestou em si o modo de ser próprio de Deus que é ser Espírito de vida.
Consoante as reflexões do prólogo de São João e das epístolas paulinas aos Efésios e Colossenses, fica claro que o Cristo ganhou pela encarnação e pela ressurreição dimensões cósmicas. Ele é “tudo em todas as coisas”(Col 3,11): o pleroma, a cabeça do cosmos e da Igreja (cf. Col 1, 16-18; Ef 1,10).
A encarnação não deve ser entendida como um evento metafísico ahistórico (duas naturezas) mas como um processo de assunção da totalidade da vida de Jesus na pessoa do Filho. O Filho se encarna numa cultura, numa linguagem, numa família, numa profissão (artesão e camponês mediterrâneo), numa determinada religião. Como o disse Bento XVI no discurso inaugural do V Celam em Aparecida:”O Verbo de Deus, fazendo-se carne em Jesus Cristo, se fez também história e cultura”(n.1). E nós acrescentaríamos, com os avatares que estão ai implicados.
Enfrentou conflitos e perseguições. Opôs o Reino de Deus ao Reino de César, o que significava um crime de lesa-majestade, confrontou a religião do amor e do perdão com a religião da lei e da cobrança. Sua morte não foi simplesmente um ato de doação, mas resultado de um tipo de pregação e de prática que suscitou um enfrentamento que acabou por provocar seu assassinato judicial, pela cruz. A despeito da condenação, foi fiel a seu projeto e ao Pai e, em razão disso, doou sua vida.
Lugar central de seu anúncio e prática é reservada aos pobres (“bem-aventurados os pobres”). É a partir deles que o Evangelho aparece como boa-notícia de vida e libertação. A preocupação pelos pobres pertence à essência do Evangelho, como aparece claramente no encontro de Paulo com aqueles que eram considerados as colunas em Jerusalém, relatado na epístola aos Gálatas 2,10. Entre Paulo e eles há plena concordância doutrinária mas recomendam ao apóstolo das gentes: lembre-se dos pobres,” coisa que ele diz ter feito desde o início”.
Então, os pobres não podem ser apenas “tema”, ainda que fundamental (RE 1002); uma vez tratado, podemos passar a outros. Nem é “apenas princípio segundo e prioridade relativa” como afirma (REB 1004). O pobre pertence à substância do Evangelho e à essência da mensagem e do legado de Jesus. Dizer o contrário é colocar-se fora da sagrada herança de Jesus e dos Apóstolos.
Ademais, a atitude face aos pobres e maltratados é decisiva no momento supremo da vida quando se define o quadro final de cada um e da inteira humanidade. O Juiz Supremo se identifica com os pobres:”todas as vezes que fizestes a um destes meus irmãos menores, foi a mim que o fizestes”(Mt 25,40) ou “foi a mim que não o fizestes”(Mt 25, 45). Na tarde da vida, lembrando as palavras de Santa Tereza D’Avila, não seremos julgados pela fé, pelo princípio epistemológico primeiro ou segundo da teologia, nem pelos dogmas, nem pela nossa pertença à Igreja, mas pelo amor mínimo que tivermos tido ou não para com “esses pequeninos”.
É sintomático e perturbador que o texto de Mt 25, 31-46, tão central para a teologia e particularmente para Teologia da Libertação não seja citado nenhuma vez por Clodovis. É que ele não cabe na sua perspectiva. Basta ele para invalidar toda sua construção teórica. Aqui está punctum stantis et cadentis da salvação. Como não deveria ser também para a teologia e seu método?
Então podemos dizer enfaticamente: não é erro teológico identificar o pobre com Deus e com o Cristo. Não é verdade que a Teologia da Libertação substitui Deus e Cristo pelo pobre. Se for erro, o Juiz supremo deve ser o primeiro a ser recriminado. Foi Cristo que quis se identificar com os pobres. O lugar do pobre é um lugar (há outros) privilegiado de encontro com o Senhor. Quem encontra o pobre, encontra infalivelmente a Cristo, na forma ainda crucificada, pedindo para ser baixado da cruz e ser ressuscitado. É falsa por causa da fé na encarnação, a segunda parte da seguinte afirmação: ”o princípio-Cristo inclui sempre o pobre, sem que o princípio-pobre inclua necessariamente Cristo”(REB 1012). Dizer que o pobre não inclui necessariamente o Cristo é desdizer o que o Juiz supremo diz.
Desde que o Filho se fez homem e homem pobre, o lugar do pobre é lugar de Cristo e vice-versa. Desde que Deus por Jesus se fez pobre, o pobre foi estatuído em “princípio operativo da libertação”. Devemos respeitar esta forma como Ele quis se acercar de nós. Ele estabeleceu esta densidade sacramental dos pobres e nenhuma teologia e pureza metodológica pode pretender anulá-la.
Paulo VI disse, encerrando o Vaticano II e repetiu-o em seu discurso aos Bispos em Medellín em 1968:"Para conhecer a Deus é necessário conhecer o homem, especialmente os pobres e sofredores". Não dá para secundarizar o pobre e fazê-lo simplesmente relativo ou tema, mesmo que fundamental, como quer o texto de Clodovis.
Apraz-nos citar, neste contexto, Karl Barth que serve como crítica ao que Clodovis diz da modenidade com seu intento de fazer do homem a medida de todas as coisas. Diz Barth: "Pelo fato de que Deus se fez homem, o homem se tornou a medida de todas as coisas". Nós latino-americanos diríamos: “Desde que Deus se fez homem-pobre, o homem—pobre se torna a medida de todas as coisas”. Por causa da encarnação, do Deus bíblico que optou pelos pobres do Egito e de Babilônia e por causa de Cristo que compartilhou a condição de pobre e se identificou com eles.
Mas a encarnação traz ainda uma conseqüência de grandes proporções que a teologia clássica de viés grego raramente recepcionou: a transparência. Não se trata mais de imanência e transcendência, tão acentudas pelo texto de Clodovis. Essa é uma categoria pagã, do pensar filosófico grego que cria oposições abissais. A encarnação inaugura outra categoria, esta sim tipicamente cristã: a transparência. Pela transparência, a transcendência participa da imanência e vice-versa. O resultado desta mútua presença é a transparência de Deus na santa humanidade de Jesus: “quem vê a mim vê o Pai”(Jo 14,9). Teilhard de Chardin foi um dos poucos que viu claramente esta singularidade ao escrever:”Se nos é permitido modificar ligeiramente uma palavra sagrada, diríamos que o mistério do Cristianismo não consiste exatamente na Aparição, mas na Transparência de Deus no universo. Oh! Sim, Senhor, não somente o raio que aflora, mas o raio que penetra. Não vossa Epifania, Jesus, mas vossa Diafania”(Le Milieu Divin, Seuil, Paris 1957, p. 162).
3. Ausência do sentido de pobre na Teologia da Libertação
Clodovis Boff em outros escritos enfatizou com justa razão que não podemos reduzir o pobre a uma visão economicista mas que importava se abrir às diferentes formas de pobreza com suas correspondentes libertações. Surpreende-nos o fato de que em seu texto tenha esquecido esta sua compreensão e tenha assumido o conceito raso de pobre num sentido economicista, como aquele carente de meios de vida. Com isso olvidou a perspectiva típica que a Teologia da Libertação conferiu ao pobre como transparência do Encarnado e Crucificado entre nós.
Ela, desde seu início, viu o pobre pela ótica da fé cristológica. Por isso, o primeiro momento da Teologia da Libertação, enfatiza Gustavo Gutiérrez, é de silêncio e de contemplação diante dos pobres que nos revelam o Cristo pobre. Depois, é o momento do amor que se traduz pela opção pelos pobres. Só quem ama verdadeiramente os pobres, opta por eles. Optar pelos pobres é optar afetivamene pelo Cristo pobre que se vela e revela neles. Finalmente, importa comprometer-se efetivamente com eles para juntos realizar a obra da libertação concreta.
Na verdade, o pobre é um injustiçado e um empobrecido. Comenta Gustavo Gutiérrez, neste mesmo numero da REB (1036):”A partir do ponto de vista da fé, as causas da marginalização de tantos refletem uma recusa do amor, da solidariedade, e a isso chamamos de pecado”.
Como se depreende, o pobre da Teologia da Libertação realmente existente pouco tem a ver com o pobre do texto de Clodovis Boff. Nela pobre e Cristo são vistos e pensados juntos por causa do mistério da encarnação. Em Clodovis ocorre uma ruptura: por um lado está Cristo com “seu primado epistemológico”, como “princípio primeiro”(REB 1004) e do outro o pobre “como princípio segundo e prioridade relativa”(REB 1004). Esta divisão não se sustenta em teologia cristã que toma a sério a verdade dogmática da unidade inconfundível e indivisível do homem-pobre Jesus com o Filho eterno do Pai.
Observemos que nos soa rara e sem base na tradição teológica esta sua distinção peregrina entre teologia primeira e teologia segunda. Não falavam assim os mestres medievais e os modernos. O que há, é uma só teologia, uma única mirada ou pertinência. Na Suma Teológica Santo Tomas é cristalino: “teologia é o pensar sobre Deus e sobre todas as coisas à luz de Deus”. Trata-se de um processo único, onde Deus e tudo o que é de Deus, gozam de centralidade.
4. Ausência de uma teologia do Espírito Santo
Há no texto de Clodovis uma centração demasiada na figura de Cristo e num Cristo sárquico que ainda não conheceu as transformações operadas pela ressurreição. Pois, como vimos, pela ressurreição ele ganha uma ubiqüidade cósmica e fermenta dentro da escalada humana rumo ao Reino da Trindade. Clodovis é, no fundo, cristomonista, como se Cristo fosse tudo, esquecendo o Pai e o Espírito Santo. Esta “ditadura” de Cristo em sua teologia o aproxima, em algumas passagens, ao fundamentalismo (REB 1013). Ou reduz o encontro com Cristo “na escuta orante da Palavra, no exercício da oração e no amor à Eucaristia”(REB 1016). Por que se esquece da presença de Cristo no sacramento do pobre?
Quem não inclui o Espírito na cristologia não está falando do Chirstus totus. Ele é obra do Espírito (Lc 1,35), sua vida e gesta são feitas no Espírito (cf. Mc 1,12; Mt 4,1; Lc 3,22; 4,1) e sua ressurreição é obra do Espírito (Rm 8,11). Sua obra é continuada e prolongada pelo Espírito (Jo 14,26; 15,26).
O Ressuscitado e o Espírito chegam antes da Igreja e do missionário. Eles estão presentes na história humana, suscitando amor, bondade, perdão, enfim, a salvação em curso. Sem uma teologia do Espírito e do Ressuscitado (que assumiu a modalidade do Espírito) não se fará um diálogo fecundo com as religiões, com os movimentos históricos que buscam sentido e com as culturas. Fechados apenas numa cristologia do Jesus histórico sem incluir suas dimensões cósmicas advindas da encarnação e da ressurreição, não sairemos do sistema fechado da Igreja. E ela, pela ação das duas divinas Pessoas, se constitui sempre como um sistema aberto que dá e recebe, aprende e ensina e se compõe com a humanidade restante que se encontra sempre sob o arco-íris da graça divina.
É o Espírito que nos faz superar o sufoco que sentimos pelo peso das instituições eclesiásticas ou que areja continuamente a Igreja não permiitindo que se autofinalize mas que seja sempre sacramento, quer dizer, sinal e instrumento da salvação oferecida indistintamente a todos especialmente aos pobres e sobrecarregados pela vida.
O Espírito é a fantasia de Deus e como tal anima a teologia a ser criativa e a superar seu engessamento nas tradições e nas doutrinas codificadas.
É o Espírito que alimenta a espiritualidade e nutre a experiência mística de perceber no curso da história humana e nas pessoas a ação divina, para além dos limites institucionais das Igrejas e das religiões.
5. Conclusão: cuidar da qualidade evangélica da teologia
Com nossas reflexões tentamos resgatar a qualidade evangélica da teologia, máxime, da Teologia da Libertação. Para isso precisa-se sempre resgatar a dignidade sagrada dos pobres e, para os cristãos, sua centralidade jesuânica e evangélica. Não é possível que aquilo que é decisivo para a salvação eterna - os pobres e oprimidos - não seja decisivo para a teologia ou seja apenas relativo e secundário.
A teologia, em último termo, deve servir ad salutem animarum. Até o código de Direito Canônico, sempre tão formal e piramidal, se sujeita a esta regra. Por isso seu último cânon (1752) termina dizendo, quem sabe, confessando:"tenha-se diante dos olhos a salvação das almas que, na Igreja, deve ser sempre a lei suprema" (prae oculis habita salute animarum, quae in Ecclesia suprema sempre lex esse debet).
Não se cumpre esta missão sem uma aura espiritual e mística, que deve sempre perpassar o discurso teológico. Isso não se garante, citando simplesmente a oportuna palavra de Rahner ("o século XXI será místico ou não será”) como o faz Clodovis. Ela deve penetrar o modo próprio de fazer teologia. A articulação metodológica de Clodovis é excessivamente racional, de uma racionalidade cartesiana na linha do “modo geométrico”. Ela pode ser adequada para uma teologia “modo aristotélico” ou “modo althusseriano” mas não para uma teologia cristã que, por causa da encarnação, não se permite jamais separar Deus e ser humano e Jesus, dos pobres. Todos os teólogos devem se preocupar com a qualidade espiritual e evangélica de seu discurso, para que seja conatural ao evento cristão.
Não há dois amores, um a Deus e outro ao próximo ou ao pobre. É um só amor pois há um só impulso que vai de Deus ao próximo e do próximo a Deus. Assim também não há duas teologias, mas uma só, na pluralidade de suas expressões, que, balbuciando, reflete e ama a Deus e ao mundo de Deus.
É mérito da Teologia da Libertação ter articulado o discurso de Deus com o discurso do pobre e do oprimido, inspirado no Deus da vida que, por sua natureza, opta pelos que menos vida têm e fundado no mistério da encarnação que uniu indissoluvelmente mas sem confusão o Cristo com os pobres ou o Juiz supremo com os maltratados e sofredores de nossa história. Esta teologia confere centralidade à dignidade evangélica dos pobres, honra o evangelho e é fiel à herança bem-aventurada de Jesus e dos Apóstolos no quadro da história que nos toca viver.
Por fim, permito-me confessar como vejo a tarefa essencial do teólogo no seio da comunidade cristã e no coração do mundo: A nós foi confiado o cuidado da Luz Santa que arde em cada coração humano e que sustenta a vida, a resistência e o compromisso libertador dos pobres e dos oprimidos. Nossa missão é alimentá-la permanentemente porque se ela se ofuscar, o que há de mais sagrado e digno no ser humano se transformará em estrela morta e significará um mergulho no abismo.
(Os negritos no texto são desse blog)
Fonte: UNISINOS
Para ler Frei Clodovis M. Boff, OSM, no texto Teologia da Libertação e volta ao fundamento, clicar aqui.
Nos últimos tempos se notou um certo recuo em sua atividade e reflexão, por razões que só a ele cabe dar. O texto que analisaremos Teologia da Libertação e volta do fundamento publicado no numero especial da Revista Eclesiástica Brasileira de outubro de 2007 ( fascículo 268 da REB) dedicado à análises da V Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho, em Aparecia, revela traços claros deste recuo. Na parte em que aborda a modernidade demonstra um pessimismo cultural também presente em muitos grupos de Igreja, especialmente em setores importantes do Vaticano. Na modernidade tendem a ver seu lado sombrio e menos os desafios a serem assumidos e pensados. Isso não é bom para a tarefa da evangelização assim como no-la ensinaram a Gaudium et Spes do Vaticano II e João XXIII na Pacem in terris (1963). Ai se diz que nas ideologias e movimentos histórico-sociais, primeiramente, deve-se estar atentos às busca dos seres humanos ai expressas, que deverão ser interpretadas com abertura e com coração aberto pelos cristãos. De princípio, importa recolher tudo o que existe de bom neles e somente depois proceder à critica judiciosa. O pressuposto é que a graça e o Ressuscitado estão em ação no mundo e seria blasfemar o Espírito Santo admitir que os modernos só pensaram erros e equívocos. Mas parece não ser esta a opção de Clodovis. As sombras dominam sobre as eventuais luzes, facilitando a rejeição. Ao contrário, quando se refere ao texto de Aparecida mostra um otimismo ingênuo e um entusiasmo verdadeiramente juvenil, sem dar-se conta do esquematismo e do ahistoricismo da cristologia e da eclesiologia, tão bem apontadas por José Comblin, neste mesmo numero da REB (pp. 875-880).
Dizendo diretamente: o texto de Clodovis causa perplexidade e perturbação. A coisa não pode ser assim como ele a expõe e critica. Seguramente a maioria dos teólogos da libertação que conheço não se sentiriam ai representados. Ademais, o autor assume uma postura magisterial que caberia melhor às autoridades doutrinárias que a um teólogo, frater inter fratres.
1. Cui prodest? A quem interessam as críticas?
Os questionamentos que faremos não se restringem a uma polêmica intrasistêmica à teologia, sempre necessária e útil para o aprofundamento das questões. Iremos também fazê-la. Mas recobrem também a preocupação por uma política eclesiástica repressiva que se sentiria bem apoiada pelas criticas contundentes operadas por Clodovis Boff contra o conjunto da Teologia da Libertação, sem a preocupação de diferenciar os vários tipos de Teologia da Libertação, índia, negra, feminina, ecológica e outras, com suas correspondentes práticas que se querem libertadoras.
É de todos sabido que esta espécie de telogia foi vigiada e também perseguida por poderosos da sociedade e pelo Vaticano que suspeitava ser ela uma espécie de cavalo de Tróia mediante o qual se introduziria na América Latina o marxismo. Entretanto, é uma das poucas teologias que produziu cristãos que foram presos, seqüestrados, torturados e assassinados em vários paises latino-americanos onde era e continua atuante.
A minha suspeita é de que as críticas suscitadas por Clodovis Boff à Teologia da Libertação forneçam às autoridades eclesiásticas locais e romanas as armas para condená-la novamente e, quem sabe, baní-la definitivamente do espaço eclesial. Como as críticas devastadoras provém de dentro, de um de seus mais reconhecidos formuladores, elas podem prestar-se a tal intento infeliz.
A impressão que sua argumentação provoca é de alguém que se despediu e já emigrou da Teologia da Libertação, daquela “realmente existente” que, na verdade, é a única que existe e se pratica nas Igrejas. Esta teologia é atacada em seu núcleo definidor porque cometeu, segundo ele, um “erro de princípio, grave para não dizer fatal...falha “mortal” que, levada a termo, termina pela morte da Teologia da Libertação”(REB 1004 e 1006).
Esse erro fatal – pasmem - é de ela ter colocado o pobre como “primeiro princípio operativo da teologia”, ou de ter substituído Deus ou Cristo pelo pobre (REB 1004). Afirma ainda que “do erro de princípio só podem provir efeitos funestos”. Acena para a contaminação em curso de toda “pastoral da libertação” nomeadamente “as pastorais sociais”. Por causa deste erro fatal, se instrumentalizou a fé, fé-la cair no utilitarismo e no funcionalismo, ocasionou seu enredamento com a modernidade antropologizante e secularista, pondo em risco a identidade cristã ”no plano teológico, eclesial e da própria fé” (REB 1007). Tais acusações são de grande monta e nos lembram os textos acusatórios de figadais inimigos da Teologia da Libertação dos anos 80 do século XX. E pour cause!
Perguntamos: sendo uma árvore assim tão ruim por que o autor, por várias vezes, se refere aos “preciosos frutos da Teologia da Libertação”(REB 1011 passim)? Vai mais longe ao sustentar que “grande parte da Teologia da Libertação se incorporou na teologia sem mais.... feita parte integrante do discurso da Igreja, em geral”(REB 1021). Não são contraditórias estas afirmações já que brotam de uma raiz e de um cerne contamidos que faz com que o bons frutos “peguem broca e com o tempo se deteriorem (REB 1006)?
Entretanto, com certa compaixão, confessa que “não entende refutar essa corrente, mas repô-la em seus fundamentos originários, pois só assim poderá ser salva”(REB 1011). Para mim esta pretensão equivale a dizer: “Meu irmão, eu vou apunhalar seu coração, mas fique tranqüilo, isso é para a sua salvação”, como se a punhalada não ferisse mortalmente o coração.
Sua posição agrada aos ouvidos daqueles que, distanciados do mundo e do sofrimento dos pobres, abominam esta teologia. Reforça o intento daqueles que na sociedade e em setores do Vaticano a querem ver morta ou impedem que seja estudada, ou proibem que seja feita referência para a prática pastoral com os pobres e marginalizados.
Analogamente ocorre com Clodovis Boff o mesmo que aconteceu com um certo ministro de Estado. Foi ao Parlamento e anunciou:” É preciso acabar com a idéia de que a Amazônia deve ser mantida como um santuário para o deleite da humanidade”. “Devemos levar desenvolvimento para aquelas áreas”. Todos sabem que o modelo atual de desenvolvimento é de puro crescimento material a qualquer custo, implicando desmatamentos, grandes queimadas com o conseqüente aquecimento do clima da Terra. Imediatamente madeireiros, pecuaristas e plantadores de soja apoiaram o Ministo dizendo: ”finalmente alguém que nos entende e que tem idéias adequadas e modernas para a Amazônia”. Os ambientalistas se encheram de preocupação e o criticaram duramente denunciando-o como inimigo da natureza e da vitalidade do Planeta.
Podemos imaginar que os que condenaram a Jon Sobrino (Clodovis aprova a Notificação romana), a Gustavo Gutiérrez, a Ivone Gebara, a Marcelo Barros, a José Maria Vigil, a Juan José Tamayo, a Castillo, a Dupuis e a Küng entre outros, se acercarão de Clodovis e lhe dirão satisfeitos e com o peito inflado de fervor doutrinário: ‘Bravo, irmão. Enfim alguém que teve a coragem de desmascar os equívocos e os graves e fatais erros da Teologia da Libertação”.
Com igual coragem me sinto urgido a dizer o contrário: estas suas criticas contundentes não fazem justiça à “Teologia da Libertação realmente existente”, torna inseguros os agentes de pastoral e confusos os pobres que sempre viram nesta teologia uma fonte de esperança e de motivação para o compromisso libertador. Como já se disse:”podemos irritar os poderosos, mas não nos é permitido nunca defraudar os pobres”.
Por isso, julgo que esta posição de Clodovis tem que ser refutada com argumentos bem fundados, por ser equivocada, teologicamente errônea e pastoralmente danosa. Não apenas por interesses da pastoral e de política eclesiástica mas por razões internas da teologia. Na minha avaliação, suas insuficiências teóricas e teológicas são tantas que invalidam o peso de seus argumentos. Pende mais para uma teologia aristotélico-pagã e neo-escolástica, rigorosa no seu método, mas no fundo formalista, incapaz de dar conta do desafio que os pobres representam para o pensamento e para a prática cristã. Eles aparecem sempre como tema entre outros, algo secundário, de segunda ordem e um princípio secundum quid, coisa que não se sustenta quando tomamos a sério a mensagem e a prática do Jesus histórico e dos Apóstolos. Por isso, este modo de estruturar o método teológico corre o risco de condenar a Igreja e a teologia à irrelevância histórica e à esterelidade pastoral.
Parece-nos que não é a Teologia da Libertação que deve ser “reconduzida a seus fundamentos”(REB1001) mas a teologia de Clodovis Boff a fim de que ele volte ao primeiro amor.
Há três ausências que tiram sustentabilidade à sua reflexão: a ausência de uma adequada teologia da encarnação; a ausência do sentido singular de pobre dado pela Teologia da Libertação; e a ausência de uma teologia do Espírito Santo. Em cada parte, seremos sumários, porque as matérias são, em grande parte, conhecidas.
2. Ausência de uma teologia da encarnação
Que nos diz a tradição dogmática sobre a encarnação? Que o Filho de Deus, deixou sua transcendência e assumiu em Jesus da Nazaré a natureza humana em situação de “carne” quer dizer, limitada, vulnerável e pobre. A partir da concepção em Maria pela força do Espírito, aquela humanidade começou a pertencer a Deus de forma “inconfundível, imutável, indivisa e inseparável” sendo Jesus, a um só tempo, “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem”(Calcedônia ano 451). Mas a encarnação não se limita somente a Jesus. Comenta a Gaudium et Spes: ”Por sua encarnação, o Filho de Deus, uniu-se de algum modo a todo homem”(n.22). Todo homem é formado pelos mesmos elementos do universo, forjados há bilhões de anos no coração das grandes estrelas vermelhas. Por isso é parte de nosso sistema cósmico que também foi tocado pela encarnação. Jesus não seria salvador universal se não salvasse também o universo que de alguma forma assumiu.
Como encarnado, o Filho estava limitado ao espaço e ao tempo palestinense. Pela ressurreição rompeu todas as limitações e se transformou no “novissimus Adam”(1Cor 15,45). De sárquico (a forma de ser do humano, fraco e mortal) ele se tranformou em pneumático (a forma de ser de Deus). “O Senhor é Espírito”(2Cor 3,17), quer dizer, pela ressurreição manifestou em si o modo de ser próprio de Deus que é ser Espírito de vida.
Consoante as reflexões do prólogo de São João e das epístolas paulinas aos Efésios e Colossenses, fica claro que o Cristo ganhou pela encarnação e pela ressurreição dimensões cósmicas. Ele é “tudo em todas as coisas”(Col 3,11): o pleroma, a cabeça do cosmos e da Igreja (cf. Col 1, 16-18; Ef 1,10).
A encarnação não deve ser entendida como um evento metafísico ahistórico (duas naturezas) mas como um processo de assunção da totalidade da vida de Jesus na pessoa do Filho. O Filho se encarna numa cultura, numa linguagem, numa família, numa profissão (artesão e camponês mediterrâneo), numa determinada religião. Como o disse Bento XVI no discurso inaugural do V Celam em Aparecida:”O Verbo de Deus, fazendo-se carne em Jesus Cristo, se fez também história e cultura”(n.1). E nós acrescentaríamos, com os avatares que estão ai implicados.
Enfrentou conflitos e perseguições. Opôs o Reino de Deus ao Reino de César, o que significava um crime de lesa-majestade, confrontou a religião do amor e do perdão com a religião da lei e da cobrança. Sua morte não foi simplesmente um ato de doação, mas resultado de um tipo de pregação e de prática que suscitou um enfrentamento que acabou por provocar seu assassinato judicial, pela cruz. A despeito da condenação, foi fiel a seu projeto e ao Pai e, em razão disso, doou sua vida.
Lugar central de seu anúncio e prática é reservada aos pobres (“bem-aventurados os pobres”). É a partir deles que o Evangelho aparece como boa-notícia de vida e libertação. A preocupação pelos pobres pertence à essência do Evangelho, como aparece claramente no encontro de Paulo com aqueles que eram considerados as colunas em Jerusalém, relatado na epístola aos Gálatas 2,10. Entre Paulo e eles há plena concordância doutrinária mas recomendam ao apóstolo das gentes: lembre-se dos pobres,” coisa que ele diz ter feito desde o início”.
Então, os pobres não podem ser apenas “tema”, ainda que fundamental (RE 1002); uma vez tratado, podemos passar a outros. Nem é “apenas princípio segundo e prioridade relativa” como afirma (REB 1004). O pobre pertence à substância do Evangelho e à essência da mensagem e do legado de Jesus. Dizer o contrário é colocar-se fora da sagrada herança de Jesus e dos Apóstolos.
Ademais, a atitude face aos pobres e maltratados é decisiva no momento supremo da vida quando se define o quadro final de cada um e da inteira humanidade. O Juiz Supremo se identifica com os pobres:”todas as vezes que fizestes a um destes meus irmãos menores, foi a mim que o fizestes”(Mt 25,40) ou “foi a mim que não o fizestes”(Mt 25, 45). Na tarde da vida, lembrando as palavras de Santa Tereza D’Avila, não seremos julgados pela fé, pelo princípio epistemológico primeiro ou segundo da teologia, nem pelos dogmas, nem pela nossa pertença à Igreja, mas pelo amor mínimo que tivermos tido ou não para com “esses pequeninos”.
É sintomático e perturbador que o texto de Mt 25, 31-46, tão central para a teologia e particularmente para Teologia da Libertação não seja citado nenhuma vez por Clodovis. É que ele não cabe na sua perspectiva. Basta ele para invalidar toda sua construção teórica. Aqui está punctum stantis et cadentis da salvação. Como não deveria ser também para a teologia e seu método?
Então podemos dizer enfaticamente: não é erro teológico identificar o pobre com Deus e com o Cristo. Não é verdade que a Teologia da Libertação substitui Deus e Cristo pelo pobre. Se for erro, o Juiz supremo deve ser o primeiro a ser recriminado. Foi Cristo que quis se identificar com os pobres. O lugar do pobre é um lugar (há outros) privilegiado de encontro com o Senhor. Quem encontra o pobre, encontra infalivelmente a Cristo, na forma ainda crucificada, pedindo para ser baixado da cruz e ser ressuscitado. É falsa por causa da fé na encarnação, a segunda parte da seguinte afirmação: ”o princípio-Cristo inclui sempre o pobre, sem que o princípio-pobre inclua necessariamente Cristo”(REB 1012). Dizer que o pobre não inclui necessariamente o Cristo é desdizer o que o Juiz supremo diz.
Desde que o Filho se fez homem e homem pobre, o lugar do pobre é lugar de Cristo e vice-versa. Desde que Deus por Jesus se fez pobre, o pobre foi estatuído em “princípio operativo da libertação”. Devemos respeitar esta forma como Ele quis se acercar de nós. Ele estabeleceu esta densidade sacramental dos pobres e nenhuma teologia e pureza metodológica pode pretender anulá-la.
Paulo VI disse, encerrando o Vaticano II e repetiu-o em seu discurso aos Bispos em Medellín em 1968:"Para conhecer a Deus é necessário conhecer o homem, especialmente os pobres e sofredores". Não dá para secundarizar o pobre e fazê-lo simplesmente relativo ou tema, mesmo que fundamental, como quer o texto de Clodovis.
Apraz-nos citar, neste contexto, Karl Barth que serve como crítica ao que Clodovis diz da modenidade com seu intento de fazer do homem a medida de todas as coisas. Diz Barth: "Pelo fato de que Deus se fez homem, o homem se tornou a medida de todas as coisas". Nós latino-americanos diríamos: “Desde que Deus se fez homem-pobre, o homem—pobre se torna a medida de todas as coisas”. Por causa da encarnação, do Deus bíblico que optou pelos pobres do Egito e de Babilônia e por causa de Cristo que compartilhou a condição de pobre e se identificou com eles.
Mas a encarnação traz ainda uma conseqüência de grandes proporções que a teologia clássica de viés grego raramente recepcionou: a transparência. Não se trata mais de imanência e transcendência, tão acentudas pelo texto de Clodovis. Essa é uma categoria pagã, do pensar filosófico grego que cria oposições abissais. A encarnação inaugura outra categoria, esta sim tipicamente cristã: a transparência. Pela transparência, a transcendência participa da imanência e vice-versa. O resultado desta mútua presença é a transparência de Deus na santa humanidade de Jesus: “quem vê a mim vê o Pai”(Jo 14,9). Teilhard de Chardin foi um dos poucos que viu claramente esta singularidade ao escrever:”Se nos é permitido modificar ligeiramente uma palavra sagrada, diríamos que o mistério do Cristianismo não consiste exatamente na Aparição, mas na Transparência de Deus no universo. Oh! Sim, Senhor, não somente o raio que aflora, mas o raio que penetra. Não vossa Epifania, Jesus, mas vossa Diafania”(Le Milieu Divin, Seuil, Paris 1957, p. 162).
3. Ausência do sentido de pobre na Teologia da Libertação
Clodovis Boff em outros escritos enfatizou com justa razão que não podemos reduzir o pobre a uma visão economicista mas que importava se abrir às diferentes formas de pobreza com suas correspondentes libertações. Surpreende-nos o fato de que em seu texto tenha esquecido esta sua compreensão e tenha assumido o conceito raso de pobre num sentido economicista, como aquele carente de meios de vida. Com isso olvidou a perspectiva típica que a Teologia da Libertação conferiu ao pobre como transparência do Encarnado e Crucificado entre nós.
Ela, desde seu início, viu o pobre pela ótica da fé cristológica. Por isso, o primeiro momento da Teologia da Libertação, enfatiza Gustavo Gutiérrez, é de silêncio e de contemplação diante dos pobres que nos revelam o Cristo pobre. Depois, é o momento do amor que se traduz pela opção pelos pobres. Só quem ama verdadeiramente os pobres, opta por eles. Optar pelos pobres é optar afetivamene pelo Cristo pobre que se vela e revela neles. Finalmente, importa comprometer-se efetivamente com eles para juntos realizar a obra da libertação concreta.
Na verdade, o pobre é um injustiçado e um empobrecido. Comenta Gustavo Gutiérrez, neste mesmo numero da REB (1036):”A partir do ponto de vista da fé, as causas da marginalização de tantos refletem uma recusa do amor, da solidariedade, e a isso chamamos de pecado”.
Como se depreende, o pobre da Teologia da Libertação realmente existente pouco tem a ver com o pobre do texto de Clodovis Boff. Nela pobre e Cristo são vistos e pensados juntos por causa do mistério da encarnação. Em Clodovis ocorre uma ruptura: por um lado está Cristo com “seu primado epistemológico”, como “princípio primeiro”(REB 1004) e do outro o pobre “como princípio segundo e prioridade relativa”(REB 1004). Esta divisão não se sustenta em teologia cristã que toma a sério a verdade dogmática da unidade inconfundível e indivisível do homem-pobre Jesus com o Filho eterno do Pai.
Observemos que nos soa rara e sem base na tradição teológica esta sua distinção peregrina entre teologia primeira e teologia segunda. Não falavam assim os mestres medievais e os modernos. O que há, é uma só teologia, uma única mirada ou pertinência. Na Suma Teológica Santo Tomas é cristalino: “teologia é o pensar sobre Deus e sobre todas as coisas à luz de Deus”. Trata-se de um processo único, onde Deus e tudo o que é de Deus, gozam de centralidade.
4. Ausência de uma teologia do Espírito Santo
Há no texto de Clodovis uma centração demasiada na figura de Cristo e num Cristo sárquico que ainda não conheceu as transformações operadas pela ressurreição. Pois, como vimos, pela ressurreição ele ganha uma ubiqüidade cósmica e fermenta dentro da escalada humana rumo ao Reino da Trindade. Clodovis é, no fundo, cristomonista, como se Cristo fosse tudo, esquecendo o Pai e o Espírito Santo. Esta “ditadura” de Cristo em sua teologia o aproxima, em algumas passagens, ao fundamentalismo (REB 1013). Ou reduz o encontro com Cristo “na escuta orante da Palavra, no exercício da oração e no amor à Eucaristia”(REB 1016). Por que se esquece da presença de Cristo no sacramento do pobre?
Quem não inclui o Espírito na cristologia não está falando do Chirstus totus. Ele é obra do Espírito (Lc 1,35), sua vida e gesta são feitas no Espírito (cf. Mc 1,12; Mt 4,1; Lc 3,22; 4,1) e sua ressurreição é obra do Espírito (Rm 8,11). Sua obra é continuada e prolongada pelo Espírito (Jo 14,26; 15,26).
O Ressuscitado e o Espírito chegam antes da Igreja e do missionário. Eles estão presentes na história humana, suscitando amor, bondade, perdão, enfim, a salvação em curso. Sem uma teologia do Espírito e do Ressuscitado (que assumiu a modalidade do Espírito) não se fará um diálogo fecundo com as religiões, com os movimentos históricos que buscam sentido e com as culturas. Fechados apenas numa cristologia do Jesus histórico sem incluir suas dimensões cósmicas advindas da encarnação e da ressurreição, não sairemos do sistema fechado da Igreja. E ela, pela ação das duas divinas Pessoas, se constitui sempre como um sistema aberto que dá e recebe, aprende e ensina e se compõe com a humanidade restante que se encontra sempre sob o arco-íris da graça divina.
É o Espírito que nos faz superar o sufoco que sentimos pelo peso das instituições eclesiásticas ou que areja continuamente a Igreja não permiitindo que se autofinalize mas que seja sempre sacramento, quer dizer, sinal e instrumento da salvação oferecida indistintamente a todos especialmente aos pobres e sobrecarregados pela vida.
O Espírito é a fantasia de Deus e como tal anima a teologia a ser criativa e a superar seu engessamento nas tradições e nas doutrinas codificadas.
É o Espírito que alimenta a espiritualidade e nutre a experiência mística de perceber no curso da história humana e nas pessoas a ação divina, para além dos limites institucionais das Igrejas e das religiões.
5. Conclusão: cuidar da qualidade evangélica da teologia
Com nossas reflexões tentamos resgatar a qualidade evangélica da teologia, máxime, da Teologia da Libertação. Para isso precisa-se sempre resgatar a dignidade sagrada dos pobres e, para os cristãos, sua centralidade jesuânica e evangélica. Não é possível que aquilo que é decisivo para a salvação eterna - os pobres e oprimidos - não seja decisivo para a teologia ou seja apenas relativo e secundário.
A teologia, em último termo, deve servir ad salutem animarum. Até o código de Direito Canônico, sempre tão formal e piramidal, se sujeita a esta regra. Por isso seu último cânon (1752) termina dizendo, quem sabe, confessando:"tenha-se diante dos olhos a salvação das almas que, na Igreja, deve ser sempre a lei suprema" (prae oculis habita salute animarum, quae in Ecclesia suprema sempre lex esse debet).
Não se cumpre esta missão sem uma aura espiritual e mística, que deve sempre perpassar o discurso teológico. Isso não se garante, citando simplesmente a oportuna palavra de Rahner ("o século XXI será místico ou não será”) como o faz Clodovis. Ela deve penetrar o modo próprio de fazer teologia. A articulação metodológica de Clodovis é excessivamente racional, de uma racionalidade cartesiana na linha do “modo geométrico”. Ela pode ser adequada para uma teologia “modo aristotélico” ou “modo althusseriano” mas não para uma teologia cristã que, por causa da encarnação, não se permite jamais separar Deus e ser humano e Jesus, dos pobres. Todos os teólogos devem se preocupar com a qualidade espiritual e evangélica de seu discurso, para que seja conatural ao evento cristão.
Não há dois amores, um a Deus e outro ao próximo ou ao pobre. É um só amor pois há um só impulso que vai de Deus ao próximo e do próximo a Deus. Assim também não há duas teologias, mas uma só, na pluralidade de suas expressões, que, balbuciando, reflete e ama a Deus e ao mundo de Deus.
É mérito da Teologia da Libertação ter articulado o discurso de Deus com o discurso do pobre e do oprimido, inspirado no Deus da vida que, por sua natureza, opta pelos que menos vida têm e fundado no mistério da encarnação que uniu indissoluvelmente mas sem confusão o Cristo com os pobres ou o Juiz supremo com os maltratados e sofredores de nossa história. Esta teologia confere centralidade à dignidade evangélica dos pobres, honra o evangelho e é fiel à herança bem-aventurada de Jesus e dos Apóstolos no quadro da história que nos toca viver.
Por fim, permito-me confessar como vejo a tarefa essencial do teólogo no seio da comunidade cristã e no coração do mundo: A nós foi confiado o cuidado da Luz Santa que arde em cada coração humano e que sustenta a vida, a resistência e o compromisso libertador dos pobres e dos oprimidos. Nossa missão é alimentá-la permanentemente porque se ela se ofuscar, o que há de mais sagrado e digno no ser humano se transformará em estrela morta e significará um mergulho no abismo.
(Os negritos no texto são desse blog)
Fonte: UNISINOS
Para ler Frei Clodovis M. Boff, OSM, no texto Teologia da Libertação e volta ao fundamento, clicar aqui.