24/08/2009

Dom Bruno Forte

A parábola do humanismo ateu


"É possível uma ética sem Transcendência? Pode haver um código moral normativo e compartilhado sem a referência a Deus, ao 'Deus último'?" Essas são as perguntas colocadas por Bruno Forte, arcebispo e teólogo italiano, em artigo para o jornal Avvenire, da Conferência Episcopal Italiana, 19-08-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



No debate aceso nestes dias na imprensa sobre o conceito de niilismo e de humanismo ateu, a partir da frase pronunciada por Bento XVI no Ângelus do dia 09 de agosto com relação aos "campos de concentração nazistas, símbolos extremos do mal, como o niilismo contemporâneo", gostaria de me inserir concentrando-me em uma única pergunta, a que, do ponto de vista das consequências práticas, parece-me a mais decisiva: é possível uma ética sem Transcendência? Pode haver um código moral normativo e compartilhado sem a referência a Deus, ao "Deus último"?

Se sim, ele deve fundamentar a exigência absoluta de fazer o bem e de evitar o mal, a partir do momento em que não existiria nenhum absoluto no qual ancorar-se? Ou o bem se justifica por si mesmo e se impõe com uma evidência tal que não requeira motivações ulteriores? E o mal? Ele também é tão evidente que não supõe qualquer imperativo categórico em relação ao qual se coloca como contraponto, negação obstinada e até irônica do "assim chamado bem"?

Muitas vozes em séculos de história responderam a essas perguntas em uma mesma direção: o bem existe e é absoluto. Ele se identifica também com o próprio Absoluto, do qual é o rosto atraente, o esplendor irradiante, a exigência amável, o dom perfeito. O mal é a resistência oposta a esse apelo, o apaixonado permanecer na negação, a luta vivida em nome de uma causa falsa, a da própria liberdade entendida como absoluto contra o Absoluto.

Entre o mal e o bem, a escolha não seria então mais do que uma: com Deus ou contra Deus. Pelo Absoluto, ou pelas onívoras garras do nada? Do ethos clássico à moral dos Dez Mandamentos, ligadas ao Grande Código da aliança com o Deus bíblico, do sermão da montanha às exigências de justiça do direito romano, é essa implantação de uma moral fundada na transcendência que regeu os destinos da vida pessoal e coletiva do Ocidente.

É com o surgimento moderno do valor central da subjetividade que mudam também os termos do problema: da heteronomia – em que se queria forçar todo o complexo acenado de uma ética pela fundação objetiva e absoluta –, pretende-se sair para passar para o mundo da autonomia, rumo aos prados de uma vida moral emancipada, onde a coragem de existir autonomamente seja estendido do cognoscitivo "sapere aude!" – ousa saber! – ao decisório "libere age! – age segundo o código de uma liberdade absoluta!. A autonomia aparece como o desafio irrenunciável sobre o qual pode-se medir qualquer imperativo moral, para verificar se ele nos torna mais ou menos livres, mais ou menos humanos.

Dar normas a si mesmos, ser sujeito e não objeto do próprio destino, esse parece ser o projeto a ser seguido. A embriaguez desse sonho contagia os espíritos mais diversos, em formas burguesas ou revolucionárias, de progresso ou de conservação, de cálculo frio ou de paixões emotivas. Bem rapidamente, porém, a consciência da impossibilidade de uma ética totalmente subjetiva se impõe à reflexão dos modernos: que bem seria o bem que fosse tão somente para mim? E em nome de qual critério válido para todos se deveria evitar o mal? Não é também a fronteira entre a minha liberdade e a dos outros o limite de toda autonomia? E por que, se uma escolha me resultasse mais vantajosa – em termos morais ou econômicos ou políticos – deveria seguir um critério diferente do simples benefício e agir de maneira diferente?

Se, depois, um comportamento incorreto é difundido – justificado pelo "todos fazem isso!" – em nome de qual valor moral deveria evitá-lo, se a escolha é deixada ao arbítrio pessoal? É a partir do crisol dessas perguntas – as de uma modernidade ferida, insatisfeita com o passado e inquieta sobre si mesma – que se perfila como tema verdadeiramente urgente o da fundação da ética, em uma época em que a passagem do fenômeno ao fundamento parece tão necessário, assim como muito evadido. Além do declínio das pretensões absolutas de uma certa modernidade e a incompletude do niilismo da pós-modernidade enfraquecida, retorna com toda a sua força a necessidade de uma ética da transcendência, que, se faltar, tudo é permitido. Quatro teses poderão ajudar a compreender seu sentido, que, a meu ver, esclarece e motiva, da maneira mais adequada, as palavras do Papa. Formularei assim a primeira tese: não há ética sem transcendência.

Não pode haver agir moral onde não houver o outro, reconhecido em toda a espessura irredutível da sua alteridade. A fundação da ética é inseparável desse reconhecimento: quem afirma a si mesmo a ponto de negar conscientemente ou de fato todos os demais sobre os quais se mede, no ato mesmo dessa afirmação cheia, idolátrica, nega a si mesmo como sujeito moral, nega também a possibilidade mesma de uma escolha ética entre bem e mal, porque afunda toda diferença no oceano asfixiante da própria identidade. Nenhum homem é uma ilha: e quem pensa ou quer ser isso, no ato mesmo de pensá-lo ou querê-lo, anularia assim a si mesmo como sujeito de relação, e por isso de vida e de história real. A negação do outro é negação de si. Fazer do outro o "estrangeiro moral" é fazer-se estrangeiro à verdade de si mesmos, é renegar a mais profunda dignidade do próprio ser pessoal e do próprio destino. Não há responsabilidade e vida moral sem um movimento de êxodo de si para ir rumo ao outro, principalmente se frágil, indefeso e sem voz ou capacidade de fazer valor seus próprios direitos. A essa primeira tese se une diretamente a segunda: não há ética sem gratuidade e responsabilidade.

Essa segunda tese recorda como todo movimento de transcendência tem um caráter gratuito e potencialmente infinito: sair de si em vista de um retorno, calcular com o outro ao fim de um interesse próprio é esvaziar de todo valor a escolha moral, tornando-a simplesmente um comércio ou uma troca entre pares. Aqui, a lição de Kant conserva toda a sua verdade: o imperativo moral ou é categórico e portanto incondicional, ou não é. Ou ou destinar-se ao outro é um ato gratuito e sem condições, motivado apenas pela exigência e pela indigência do outro – "exode de soi sans retour", diria Lévinas – , ou não é autotranscendência, mas reflexo, projeção de si fora de si em vista do retorno egoístico a si mesmo. Nesse caráter gratuito e potencialmente infinito da transcendência moral, compreende-se como a alma mais profunda dela é o amor, o dar sem cálculo e sem medida pela única força irradiante do dom. O bem é razão em si mesmo!

A terceira tese dilata a segunda às formas da objetividade social e comunitária: não há ética sem solidariedade e justiça. É no próprio movimento de autotranscendência que se descobre a rede dos outros que circunda o eu como fonte um conjunto complexo de exigências éticas: harmonizá-las de modo que o dom feito a um não seja ferida ou fechamento aos outros é conjugar a moral com a justiça. Regular de forma coletiva essa rede de exigências é medir-se na necessidade do direito: não é a abstrata objetividade da norma, nem o despotismo do soberano que funda a autoridade da lei, mas a urgência de harmonizar as relações éticas para que nenhuma esteja em vantagem exclusiva de alguns e a despeito da dignidade de outros. A ética da solidariedade integra aqui a ética da responsabilidade, retirando-a do risco sempre próximo de um seu destruir-se no absolutismo infecundo da intenção apenas. O bem comum é medida e norma do agir individual, especialmente no campo dos deveres cíveis.

Enfim, quase se reconhece que o movimento de transcendência para com o outro e a rede de outros na qual estamos postos apresenta um caráter de exigência infinita, no horizonte da ética perfila-se uma outra transcendência, última e escondida, da qual a próxima e penúltima é rastro e atualização: a ética remete à transcendência livre e soberana, última e absoluta. No rosto dos outros está o imperativo categórico do amor absoluto que me alcança, e na absolutez da urgência da solidariedade com o mais frágil está um amor infinitamente indigente que me chama.

Essa transcendência absoluta, essa absoluta necessidade do amor é o princípio que une a ética filosófica à ética teológica: aqui, a ética da responsabilidade e a ética da solidariedade apelam à ética do dom, à moral da Graça. Aqui, o amor – soberana exigência moral – remete ao Amor como eterno evento interpessoal do único Deus. Aqui, nas formas do ser o um para o outro, está o impossível amor, gratuitamente doado ao outro, que deve ser narrado no tempo: a caridade, que "nunca terá fim (1 Cor 13,8). Sobre ela, medir-se-á a verdade profunda das nossas escolhas: no entardecer da vida, seremos julgados pelo amor! Compreende-se assim como o Papa da "Deus caritas est" e da "Caritas in veritate" é a chave interpretativa mais autêntica e iluminadora da frase pronunciada no Ângelus do dia 09 de agosto passado.

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