Para o psicanalista e pesquisador na UNAM [Universidad Nacional Autónoma de México] Fernando M. Gonzalez, autor do livro "La Iglesia del silencio: de mártires y pederastas" [A Igreja do silêncio: de mártires a pedófilos], os acordos tácitos da hierarquia católica e entre suas ordens impedirão que a comissão nomeada pelo Papa Bento XVI chegue a fundo nas transgressões cometidas pelo fundador dos Legionários de Cristo, Marcial Maciel. Entre os riscos que eles evitarão está, por exemplo, o de envolver o então cardeal Joseph Ratzinger na proteção da qual Marcial Maciel se beneficiou durante o papado de João Paulo II. A reportagem é de Rodrigo Vera, publicada na revista mexicana Processo, 31-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS
A cúpula dos Legionários de Cristo, liderada pelo sacerdote mexicano Álvaro Corcuera, corre o risco de ser completamente destituída pelo Para Bento XVI na conclusão da auditoria realizada pelo Vaticano nessa congregação, devido, entre outras razões, às acusações contra ela por proteger uma rede de sacerdotes pedófilos.
Essa é a conclusão do pesquisador Fernando M. Gonzalez, autor do livro "La Iglesia del silencio: de mártires y pederastas", no qual aborda a investida papal contra a congregação fundada por Marcial Maciel.
"O mais provável é que, ao concluir a investigação, o Vaticano destitua a cúpula dirigente dos Legionários para que a nova direção se encarregue de ir limpando lentamente a instituição", assegura Gonzalez.
A cúpula atual é liderada por mexicanos. É conveniente que ela continue sendo mexicana?
O mais adequado é que ela comece a variar, e que entrem pessoas novas, menos cúmplices do passado. Por exemplo, quando foram abertos os arquivos da KGB, o passado da União Soviética ficou totalmente incerto. O mesmo acontece aqui: com a atual condenação de Marcial Maciel, o fundador dos Legionários, o passado da congregação também fica totalmente incerto, não apenas seu futuro. Assim, se essa instituição quer sobreviver, há coisas que não devem continuar acontecendo nela.
O investigador considera como "cúmplices" de Maciel o atual diretor-geral da Legião Álvaro Corcuera; Luis Garza Medina, seu vigário geral, e Cristóforo Fernández, procurador-geral, todos eles mexicanos e colocados por Maciel na liderança da congregação.
Acrescenta Fernando M. Gonzalez: "Nas pesquisas, suas cumplicidades com Maciel vão aparecer. O Vaticano bem que poderia dizer a os três: 'Vão para fora, porque vocês sabiam das redes de pedofilia e, no entanto, se calaram'. Cristóforo, por exemplo, foi mancebo de Maciel e, além disso, conseguia menores de idade para que ele abusasse deles. E, no entanto, ele continua ali, como terceiro na hierarquia".
De Álvaro Corcuera, descendente de uma família conservadora de Guadalajara, diz-se que sofreu abuso sexual de Maciel, que, mais tarde, em janeiro de 2005, o nomeou seu sucessor (Processo 1474).
Em seu discurso de aceitação do cargo, pronunciado no dia 23 de janeiro desse ano, Corcuera deixou claro: "Quero manifestar meu desejo de continuar na mesma estreita fidelidade ao carisma da congregação e da pessoa do fundador. E continuar a obra por ele iniciada ao serviço da Igreja".
Embora nesse tempo Maciel havia sido acusado de pedofilia e de consumo de drogas há muitos anos, ninguém imaginava então que Bento XVI puniria ele e sua congregação.
A estratégia papal iniciou em maio de 2006, quando condenou Marcial Maciel ao ostracismo, e continuou em 2007, ao remover dos membros da ordem os chamados "votos privados", que lhes proibiam criticar os atos de seu fundador, falecido em janeiro de 2008.
Em fevereiro passado, o Vaticano obrigou que os Legionários de Cristo revelassem publicamente que Maciel teve uma filha e tinha uma "vida dupla". E três meses depois, em maio, anunciou-se que os Legionários seriam investigadas por uma comissão de cinco visitadores apostólicos. Essas auditorias são intervenções pontifícias que são realizadas quando há falhas ou situações anômalas em uma ordem.
Essa comissão é composta pelo mexicano Ricardo Watty, bispo de Tepic e membro da congregação dos Missionários do Espírito Santo, Charles Joseph Chaput, arcebispo de Denver, Estados Unidos; Giuseppe Versaldi, bispo de Alexandria, Itália; Ricardo Ezzati Andrello, arcebispo de Concepción, Chile, e Ricardo Blázquez Pérez, bispo de Bilbao, Espanha.
A comissão começou a trabalhar na quarta-feira passada, dia 15. Cada um de seus membros é responsável por ouvir as instituições da Legião por áreas geográficas. Ao mexicano Watty coube o México e a América Central. Eles revisam os estatutos e as regras da congregação, seus desvios dos princípios básicos da fé, a administração dos seus recursos econômicos.
Psicanalista e pesquisador titular do Instituto de Pesquisas Sociais da UNAM, Fernando M. Gonzalez comenta:
"A Comissão tem muitas possibilidades de avançar em suas pesquisas, muitas e por vários lados. Mas o substancial não é a nomeação da comissão, mas sim até onde ela está disposta a chegar. Neste momento, é difícil prever, porque vai depender de várias negociações".
Como quais?
Bem, cito o caso do único mexicano na comissão, dom Ricardo Watty. Além de bispo, ele é um religioso que pertence à Congregação dos Missionários do Espírito Santo. E não esqueçamos que todas as congregações, assim como os Legionários, têm seus pedófilos, seus religiosos com mulheres e seus homossexuais com seus parceiros. Por essa razão, há entre elas uma espécie de Omertà: "Eu cubro seus pedófilos, e você cobre os meus". Existem pactos entre elas. Assim é que a estrutura da igreja opera.
"Dom Watty irá se atrever a denunciar as redes de pedófilos da Legião de Cristo, que é muito mais poderosa do que a sua congregação? Essa é a questão. Watty considera isso muito difícil, porque os Legionários também podem denunciar os desvios dos Missionários do Espírito Santo. Watty e outros membros da comissão terão que chegar a negociações para depois saber o que dizer e o que vão calar. Esse é o problema das famosas comissões".
A verdade negociada
Entrevistado nos escritórios da Tusquets Editores, que acaba de publicar seu livro "La Iglesia del silencio" – no qual ele analisa o contraste entre a ocultação da pedofilia e a exaltação do martírio no seio da Igreja Católica mexicana – González defende que a rede de cumplicidades se estende à Cúria Romana:
"Para pode existir, um padre pedófilo sempre depende de uma relação social. E Marcial Maciel, durante mais de 50 anos, esteve protegido por três instâncias vaticanas: a Sagrada Congregação para os Religiosos, a Sagrada Congregação da Fé e da Secretaria de Estado. Até o Papa João Paulo II o protegeu. Ele teve cúmplices. E as investigações deveriam incluir os cúmplices".
Mas o Papa atual, seu acusador, esteve a cargo da Congregação da Fé durante o pontificado de João Paulo II.
Sim, mas nesse tempo Joseph Ratzinger também protegeu Maciel, bloqueando as denúncias contra ele que chegavam à Congregação da Fé, sob o argumento de que Maciel trazia muitos bens para a Igreja. Ele disse isso quando entregou-lhe uma carta na qual o Pe. Alberto Athié denunciou Maciel. Por que Ratzinger mudou agora? O que aconteceu aí? Eu não sei.
"O fato é que, na sua estratégia atual, Ratzinger tornando-se Papa começou eliminando primeiro Maciel, como se elimina um tumor cancerígeno que é retirado do resto do corpo. Essa foi sua sentença de 2006. Hoje, surge o corte cirúrgico da Legião. Um corte perfeito do cirurgião Ratzinger. Isso sim, sem envolver em nada as congregações vaticanas, como dizendo: 'Nós não tínhamos nada a ver, não somos cúmplices de nada', quando eles foram cúmplices de tudo."
O investigador indica que, até agora, os Legionários não admitiram a pedofilia nem a forte dependência de drogas de seu fundador, razão pela qual a comissão poderia questionar ambos os comportamentos:
"Os Legionários continuam sem admitir a pedofilia e a toxicomania de Marcial Maciel. Essas duas facetas ocorreram intramuros à congregação durante muitos anos e com a cumplicidade de muitos legionários, de modo que não podem ser demonstradas mais do que com testemunhos das vítimas. E é testemunho contra testemunho. Por isso continuam como se nada tivesse acontecido.
"Em vez disso, viram-se obrigados a aceitar que, pelo menos, Maciel teve uma filha, deixando aberta a possibilidade de que tivesse mais filhos. Isso porque, de acordo com algumas versões, a filha e mãe se apresentaram diretamente na Secretaria de Estado e pressionaram para que sua situação se tornasse pública. Não restou outra saída à Legião a não ser admitir o que já não podia esconder: que ele tem uma filha em Madri, na Espanha, produto de seus namoricos, dizem, com uma mulher mexicana."
E embora eles tenham tentado aparentar que não sabiam de nada, porque essa relação se desenvolveu fora das instalações da ordem, enfatiza o pesquisador, os dirigentes dos legionários a conheciam e a ocultaram durante anos. Se agora eles admitem só o caso da filha é porque adotam o que ele chama de " estratégia da vacina: tiro isto para não tirar outra coisa, aceito uma das partes para poder silenciar a mais contundente", a pedofilia.
"A última coisa que eles estão dispostos a aceitar – reitera – é a pedofilia, pois se o fizerem terão que admitir a existência de toda a rede de pedófilos dentro da instituição, e também em suas escolas, em cumplicidade com os leigos. Por aí é que a comissão investigadora pode avançar.
"Também pode avançar pelo lado da toxicomania de Maciel. Sobre esse ponto, há denúncias que estão nos Arquivos Secretos do Vaticano desde 1952. Existem testemunhos de um Marcial Maciel que caía no hospital totalmente drogado, o relatório de um farmacêutico enviado à Congregação dos Religiosos, dentre outros casos."
Alguns ex-legionários supõem inclusive que Maciel era traficante de drogas nos anos 50 e que, com o dinheiro da droga, impulsionou a Legião.
Sim, essas especulações existem, especialmente a versão de que, naquele então, ele costumava viajar com aquela famosa maleta de pele de crocodilo que tinha fundo falso. Diz-se que ali ele transportava um pó branco. Quando chegava ao aeroporto de Nova Iorque, dizia a seus jovens acompanhantes: "Meninos, carreguem minha maleta, eu espero vocês aqui fora". Existe a história de que, em uma ocasião, abriram a mala no aeroporto, e o pó branco se esparramou. Marcial interveio, dizendo: "É pó de gesso em pó para fabricar santos". E saiu dessa graças ao fato de o virem vestido de batina. Mas esses testemunhos não comprovam que ele traficava drogas. Não sabemos se a comissão vai esclarecer o assunto.
Então, a comissão não está obrigada a ir a fundo?
Só na teoria. As negociações podem neutralizá-la em boa medida. Depois, cada um dos seus cinco membros elaborará seu relatório secreto. Vão entregá-lo diretamente à Secretaria de Estado e à Congregação dos Religiosos, e estas, por sua vez, vão avaliar conjuntamente o que dizer e o que calar, já que, em sua estrutura, a Igreja está marcada pelo silêncio e pelo segredo. Por isso o título do meu livro é "A Igreja do silêncio".
Mas aqui disposição papal conta muito. Qual é a atitude atual dele diante dos Legionários como instituição?
Ele tem a Legião na mira, mas não acho que vão aventar a possibilidade de eliminá-la sem mais nem menos, porque ela traz muitas vantagens econômicas e políticas. Os Legionários mandam rios de dinheiro ao Vaticano. Ao criar essa comissão, o Papa tenta, pelo contrário, lançar uma mensagem simbólica às demais congregações para lhes dizer que sua política é de tolerância zero. No entanto, ela irá castigar os Legionários em alguma medida, mas será um castigo muito delimitado. Ele não irá a fundo nas cumplicidades com Maciel, porque ele mesmo estaria envolvido.
O que ele poderá fazer para dar a impressão de que as investigações de sua comissão investigadora foram eficazes?
Insisto: remover a cúpula dos Legionários, acusá-la de cumplicidade com Maciel. Será outra de suas incisões de cirurgião. Principalmente, Álvaro Corcuera, Luis Garza e Cristóforo Fernandez, as três cabeças cemtraos impostas por Maciel, irão para a rua. Com esse único ato, Bento XVI se cubrirá de glória, sem chegar ao fundo do problema.
Fernando M. Gonzalez assinala que essa medida não será tão difícil para o pontífice, em comparação com o golpe que ele desferiu à figura de Marcial Maciel:
"No plano simbólico, esse sim foi um golpe brutal para os Legionários de Cristo, já que a figura de seu fundador foi vituperada e insultada, sendo que eles até queriam torná-lo santo, já que, na bolsa de valores das congregações, todas aspiram a que seus fundadores sejam levados aos altares. Aquelas que não conseguem, passam para uma espécie de segunda classe."
Não há formas de compensar essa desvantagem?
Não vejo nenhuma. A Legião está configurada como uma seita, em que seu chefe e seu líder carismático é Maciel. De sua figura depende de toda a mensagem e a ordem simbólica. Ao contrário dos partidos políticos, aqui não se pode fazer uma mudança de líder. Não se pode!
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