12/08/2009

Jürgen Moltmann

Evangelho: compreendes o que lês?


A seção Teologi@ Internet, nº 136, 04-06-2009, do sítio da editora italiana Queriniana, publicou a “Lectio Magistralis” do teólogo alemão Jürgen Moltmann, proferida no Festival de Teologia, em Piacenza, Itália, neste ano. No artigo, Moltmann aborda suas experiências e ideias sobre a relação entre a teologia e o estudo do Novo Testamento. A tentativa é a de responder a seguinte questão: “O que dizem os estudiosos do Novo Testamento aos teólogos e o que dizem os teólogos a quem estuda o Novo Testamento na leitura comum da Sagrada Escritura?”. A tradução é de Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS




Compreendes aquilo que estás lendo? A exegese do Novo Testamento e a questão hermenêutica em teologia

A relação entre os estudiosos do Novo Testamento e os teólogos, e vice-versa, nem sempre foi das melhores, como bem sabeis, porque os primeiros precisam conduzir uma indagação crítica e os segundos devem dar formulação à certeza da fé.

Eu vos proponho, hoje, minhas experiências e minhas idéias sobre a relação entre a teologia e o estudo do Novo Testamento. Na realidade, a exegese do Novo Testamento está marcada pela tendência moderna de ceder ao historicismo, enquanto a teologia está marcada pela tendência de se autocompreender como filosofia cristã da religião, e assim ambas se afastam igualmente uma da outra, quem sabe, para não interferirem nem se perturbarem reciprocamente. Mas, existem também os alertas ao que nos é comum. A base de nossa leitura é o mesmo livro: o Novo Testamento no contexto do cânone bíblico. Certamente o lemos com olhos diversos e com diferentes interesses, mas trata-se das mesmas palavras e idéias e é a mesma mensagem que lemos. O que dizem, então, os estudiosos do Novo Testamento aos teólogos e o que dizem os teólogos a quem estuda o Novo Testamento na leitura comum da Sagrada Escritura?

A resposta é ao mesmo tempo simples e difícil, precisamente como acontece no encontro do apóstolo Felipe com o “funcionário etíope de Candace”. Este, em sua carroça, lia o profeta Isaías e exatamente no momento em que estava lendo o cap. 53 chegou em “Gaza, que é deserta” (como hoje). Filipe para o carro e interpela o leitor da Bíblia com a pergunta hermenêutica: “Entendes o que estás lendo?” e, “partindo daquele ponto da Escritura, anunciou-lhe (o Evangelho de) Jesus” (At 8,35). Compreendemos nós o que lemos, e entendemos bem aquilo que sabemos? Esta é a pergunta comum a exegetas do Novo Testamento e a teólogos, e se esta é a pergunta teológica dirigida aos exegetas do Novo Testamento que conhecem os seus textos do ponto de vista da crítica textual e do ponto de vista histórico, isso pressupõe, no entanto, nos teólogos, que também eles leiam o Novo Testamento com a ajuda dos exegetas: por conseguinte, a pergunta hermenêutica é dirigida a nós: “Aquilo que queres compreender, também o lês?“. Feliz o exegeta do Novo Testamento que sabe unir em si ambas as coisas, como o soube fazer Charles Moule; infeliz o teólogo que não o sabe fazer. Mas, como é possível unir as duas coisas, para responder à pergunta hermenêutica de tal modo que se possa acreditar?

No decurso dos meus estudos em Göttingen, entre 1948 e 1952, tive dois mestres do Novo Testamento, famosos em nível internacional: Joachim Jeremias e Ernst Käsemann. Com o professor Jeremias se podia aprender a exegese histórica, trabalhando com precisão sobre os textos. Sua teologia era, no entanto, uma devoção pessoal a Jesus, que ele aprendera na comunidade dos Fratelli de Herrnhut. Com Ernst Käsemann se era constrangido à mesma fadigosa análise dos textos, mas também sempre se era provocado imediatamente a uma decisão teológica. Sobre os evangelhos sinóticos era forte Jeremias; na Carta aos Romanos do apóstolo Paulo, Käsemann se sentia no seu elemento teológico. Na minha juventude segui Käsemann e estudei o que Jeremias propunha somente por dever. Na minha velhice comecei a apreciar sempre mais Jeremias. Como posso unir o melhor dos meus dois mestres do Novo Testamento?

1. Os métodos exegéticos e o problema teológico

Tenho grande respeito pelos métodos científicos, com os quais os meus colegas de Novo Testamento indagam os textos, mas eu também me permito levantar interrogações teológicas.

1. O método histórico-crítico: Na minha juventude teológica este foi o primeiro método que aprendemos. O luminoso resultado de tal método foi a Leben-Jesu-Forschung (Pesquisa sobre a vida de Jesus). Albert Schweitzer publicou sua história em seu maravilhoso livro de 1906. É a história da progressiva libertação do verdadeiro “Jesus da história”, do Cristo em quem se crê com os dogmas cristãos. Albert Schweitzer escrevia com admiração: “A pesquisa sobre a vida de Jesus foi, para a teologia, a escola da veracidade. Uma luta pela verdade, tão dolorosa e plena de renúncias como é condensada nas Vidas de Jesus dos últimos cem anos, o mundo jamais a havia visto e nunca mais a verá”. Quais são as fontes, e como são avaliadas, quando se trata de lendas? Como pode a exposição histórica acertar-se com os “milagres sobrenaturais” de Jesus? O Jesus histórico se considerou pessoalmente o messias, o Cristo? Quais os ditos que remontam ao próprio Jesus, e quais lhe foram atribuídos pelos evangelistas? Conhecemos melhor Jesus compreendendo-o como personalidade histórica? Albert Schweitzer chegou a um resultado negativo: “Na pesquisa sobre a vida de Jesus as coisas andaram de modo estranho. A mesma partiu para encontrar o Jesus histórico e achou que depois podia inseri-lo, assim como ele é, na nossa época, como mestre e salvador. Esta pesquisa escolheu os elos com os quais há séculos ele era fixado à rocha da doutrina da Igreja, e se alegrou quando... viu chegar-lhe ao encontro o homem histórico Jesus. Ele, no entanto, não parou, mas seguiu além de nossa época e retornou à sua” (631-632). E sua época, de 2000 anos atrás em Israel, nos é estranha. Tudo há muito tempo já é tão longínquo que, como se diz na Suécia, “quase quase não é mais verdadeiro”. Todavia, segundo Albert Schweitzer, como um “desconhecido e anônimo”, ele vem ao nosso encontro como aos homens junto ao lago de Genesaré, e diz somente: “Segue-me”, e nos coloca diante das tarefas que ele deve enfrentar em nossa época. Aqui, somente a “vontade moral” sobrenatural nos liga hoje ao Jesus de Nazaré, o qual viveu e morreu há dois mil anos em terras da Judeia. Este é o resultado ao qual chegou Albert Schweitzer, já que ele não podia crer na ressurreição de Jesus.

Entrementes, os pressupostos do historicismo não são para nós tão evidentes. A relação histórica com a história conduz ao conhecimento de “fatos” e a separá-los das interpretações. Todavia, os fatos podem ser ou não ser conhecidos. Eles se tornaram mudos e nós não os entendemos. Na realidade, todavia, não há fatos sem interpretações. Em cada fato habita o seu significado e os próprios fatos começam a nos falar de acordo com a problemática com a qual nos aproximamos deles. O historicismo “historicizou” e reduziu ao silêncio a história viva, separando assim o presente do seu passado. Mas, se a história nada mais tem a nos dizer, por que devemos ocupar-nos dela?

Através de que, propriamente, uma pessoa da história se torna histórica? Através de seu passado, através de sua morte. O Jesus histórico é o Cristo morto, para dizê-lo de modo duro, mas com clareza. “Nós históricos – assim escrevia um conhecido homem de ciência de Göttingen, que foi Reinhard Wittramfazemos uma estranha atividade: habitamos cidades dos mortos, ocupamo-nos de sombras, cadastramos os desaparecidos... A história passada é uma cidade dos mortos. Jamais vamos além disso” (Das Interesse an der Geschichte [O interesse na história], Göttingen 1958, 16.30). Foi este o erro dos estudiosos da Leben-Jesu-Forschung [Pesquisa da vida de Cristo]: o fato de indagar a história de um morto e considerar Jesus sob a perspectiva da história de morte? Como aparece a história de Jesus se nós, na base de sua ressurreição, a lemos como a “História de um vivente”, como Eduard Schillebeeckx intitulou o seu livro sobre Jesus? Talvez nos encontremos então no mesmo comprimento de onda dos evangelistas, os quais contam a vida de Jesus, sua obra e sua morte, à luz da ressurreição, tornando-a, assim, atual? Não devemos considerar o passado como o conjunto dos tempos perdidos, mas podemos considerá-lo também como “futuro passado”, como propôs Reinhard Kosellec. Interrogamo-nos, então, sobre o futuro presente no passado.

2. Nos anos vinte do século passado apareceu o método da história das formas (Formgeschichte), cujos representantes na Alemanha foram Martin Albertz e Rudolf Bultmann. Deixou-se de lado a indagação sobre os fatos e se investigaram os significados. Assim se descobriu que todos os testemunhos do Novo Testamento tem o seu específico “Sitz im Leben” [= inserção na vida]: se é um dito, o Sitz im Leben é procurado num diálogo; se é uma parábola, num discurso religioso; se são partes de uma liturgia ou um anúncio em pregações, se são cantos ou preces na comunidade. Os textos começaram a ser lidos em seus contextos e, para obter a melhor compreensão, se indagaram os contextos sociais que os textos deixaram reconhecer. É verdade que os interesses eram absolutamente ambivalentes: foram investigados os contextos sociais, econômicos e políticos para compreender melhor os textos, ou será que se usaram os textos para procurar os contextos? No final, penso eu, é o texto que faz tornar-se contexto o seu Sitz im Leben, e não vice-versa: nem todos os exegetas são, no entanto, da mesma opinião. Das diversas “teologias contextuais” modernas também se aprende mais sobre os contextos da pobreza em diversos países, do que sobre o texto bíblico que fala de sua libertação. O método da história das formas é um método típico das ciências sociais e, para quem o utiliza, ele determina a base socioeconômica da superestrutura espiritual e religiosa. Rudolf Bultmann, que soube utilizá-lo magistralmente em exegese, deve tê-lo entendido: enquanto utilizava este método para explicar os evangelhos sinóticos, ele o transformou na interpretação existencial para compreendê-los teologicamente, de modo que a interpretação do texto permitisse, ao mesmo tempo, ao leitor a interpretação de si mesmo. Para esta interpretação a religião é “uma questão privada” (Privatsache), priva de qualquer relevância social ou política.

3. Após o método da história das formas foi desenvolvido o método histórico-social. Estamos agora bem informados sobre as condições econômicas na terra da Judéia e da cidade de Jerusalém e, além disso, sobre a sociedade escravagista do império romano. Seguiram os métodos da antropologia cultural, que aprendi a conhecer dos escritos do estudioso do Novo Testamento Gerd Theissen (Evangelische Theologie, fasc. 6, 2008). Na teologia isto é considerado como “cultural turn”: o conhecimento da igreja se torna ciência da cultura religiosa e no estudo do Novo Testamento a hermenêutica científico-cultural toma o lugar do paradigma hermenêutico-bíblico. Em lugar da responsabilidade eclesial da teologia se investiga a relevância cultural da religião cristã. A exegese antropológico-cultural enriquece a exegese histórico-social com perspectivas culturais. Como Paulo, assim também os cristãos das origens se puseram em relação com as culturas do judaísmo e da Grécia, enquanto isso possa ter ocorrido de modo crítico. Com respeito às imagens de Jesus dos evangelhos há tanto analogias internas às culturas como também entre as culturas: por exemplo, Jesus o taumaturgo, os taumaturgos presentes no judaísmo e na Grécia de seu tempo, e os xamãs ativos em culturas distantes ou no presente. Em perspectiva antropológico-cultural o antigo código de honra e vergonha adquire significado para a veneração do Crucifixo, e o código de pureza e impureza é importante para a compreensão da cura, da parte de Jesus, da mulher hemorroíssa. A exegese antropológico-cultural faz tomar consciência do ambiente da Bíblia. A Bíblia vem de um mundo diverso e é ambientada numa cultura diferente com respeito à nossa. A antropologia cultural pode documentar o aspecto irritante e o que é considerado loucura da fé cristã, como também as adaptações cristãs ao mundo cotidiano da antiguidade, como se vê, por exemplo, nas tabuletas domésticas para a vida familiar cristã. Na Alemanha, a moderna teologia protestante da cultura, que veio depois da velha teologia liberal, mostra um forte interesse legitimador ante as primeiras culturas cristãs.

Descrevi assim somente um desenvolvimento dos métodos praticados na exegese do Novo Testamento. Há, além disso, uma multiplicidade de outros métodos para ler os textos: métodos lingüísticos, retóricos, psicológicos. Todos estes métodos são utilizados universalmente e são aplicáveis também ao Corão, à Bagavadgita ou Al Taoteking. Há também uma pluralidade de interesses com os quais são lidos os textos. E eis agora a minha pergunta teológica, que anunciei acima: Como seriam lidos os textos do Novo Testamento, na hora em que se queira ler no sentido dos seus autores e no sentido daquilo de que eles falam? Em tal caso, de objetos de pesquisa eles se tornariam sujeitos do discurso, e nós nos tornaríamos em primeiro lugar ouvintes da palavra. O que, de fato, nos querem dizer os textos do Novo Testamento? Para dizê-lo de modo claro e simples: eles querem anunciar-nos o Evangelho de Jesus Cristo, querem contar-nos e comunicar-nos o Evangelho para despertar a fé. Naturalmente, podem-se indagar os dramas de Shakespeare que falam de reis também do ponto de vista histórico-crítico, para conhecer a história desses reis, mas pode-se, então, entender o seu drama?

Para explicar a coisa de modo um pouco mais forte, recorro a um íncubo: eu me imagino subir ao púlpito, numa igreja, para anunciar o evangelho e, se possível, para suscitar a fé. Porém, não há ouvintes das minhas palavras: nos bancos senta um historiador que analisa criticamente os fatos dos quais falo: depois, há um psicólogo que analisa minha psique, assim como a revelo através do meu discurso; e, além disso, há um antropólogo da cultura, que observa o meu estilo pessoal; e ainda um sociólogo, que indaga a classe social a que pertenço, da qual me considera um representante, e assim por diante. Todos analisam a mim e o meu contexto, mas nenhum escuta o que eu quero dizer. E, a coisa pior: nenhum me contradiz, nenhum quer discutir comigo sobre aquilo que eu disse.

2. Exegese teológica de textos teológicos

Naturalmente, com meu íncubo eu evidenciei a crítica e fiz aparecer alguns colegas meus na melhor luz. Mas, um bom estudo do Novo Testamento não se exaure no emprego daqueles múltiplos métodos de interpretação contextual, embora seja sempre concentrado na leitura e na escuta atenta dos próprios textos e na compreensão do objeto do qual eles falam. Já que os textos do Novo Testamento, como também os do Antigo Testamento, são textos teológicos, no estudo do Novo Testamento trata-se de exegese teológica. Objetivo de todo estudo do Novo Testamento de minha geração, que eu conheça, é o de escrever, pelo menos uma vez na vida, um comentário a um escrito bíblico e, como ideal máximo, é considerado o fato de redigir uma teologia inteira do Novo Testamento, como aquela produzida por Rudolf Bultmann. Nem todos atingem o objetivo e somente poucos conseguem realizar o ideal ao ponto de poder mensurar-se com o livro de Bultmann. Com estas observações penso poder reobter a aprovação dos exegetas do Novo Testamento aqui presentes, já que, em definitivo, no Novo Testamento se trata de textos teológicos e não de documentos históricos ou de análises sociológicas relativas àquela época.

Caso se queira compreender os textos do Novo Testamento no sentido dos seus autores, deve-se entrar em relação com sua mensagem cristã, a mensagem que eles pretendem comunicar. Eu devo compreender o que eles querem anunciar, contar ou descrever como Evangelho de Jesus Cristo. Isso não significa que eu deva estar de acordo ou que somente cristãos possam hoje compreender os cristãos de então. Nem devo ser necessariamente um crente para poder estudar teologia. Mas, a exegese teológica de textos neotestamentários toma os textos ao pé da letra e procura captar o seu conteúdo. Nisto desempenham papel importante, ao qual é preciso prestar sempre atenção, o contexto, o kairós e a comunidade de origem destes textos, mas os textos não tem somente estes ambientes de referência, mas também o seu conteúdo específico, tanto que devemos considerar as suas afirmações também segundo aquilo que é dito.

Uma indagação teológica sobre a teologia do apóstolo Paulo na Carta aos Romanos, em sua época e em sua situação, é, todavia, somente um lado da exegese teológica. Do outro lado se coloca a pergunta sobre o que esta mensagem teológica pode significar para nós hoje. Aqui se levanta a ponte hermenêutica from what meant to what it means (daquilo que tem significado àquilo que significa), e aqui inicia o trabalho do teólogo. Ele deve ler a Carta de Paulo aos Romanos como se ela não fosse escrita somente aos cristãos da Roma de então, mas também a ele, leitor, e aos seus contemporâneos de hoje. Pode então, o teólogo, prescindir do trabalho teológico do exegeta do Novo Testamento e fazer aparecer, como por encanto, sua própria exegese?

Tomemos por exemplo Karl Barth. Seu livro "A Carta aos Romanos" aparece em 1922, deu vida à nova teologia dialética e foi, para muitos, a obra teológica mais importante da primeira metade do século vinte. O prefácio inicia com as frases:

Paulo falou aos seus contemporâneos como um filho de seu tempo. Mas, muito mais importante do que esta verdade é esta outra, de que ele fala como profeta e apóstolo do Reino de Deus a todos os homens de todos os tempos”.

Toda a minha atenção tem sido dirigida no sentido de penetrar com o olhar através do aspecto histórico, segundo o espírito da Bíblia, que é o Espírito eterno”.

É preciso confrontar-se com o texto e com aquilo que nele se encontra até que o muro entre o primeiro século e nosso século se torne transparente, até que Paulo fale lá e o homem escute aqui, até que “o diálogo entre o documento e o leitor seja todo concentrado no conteúdo em questão... enquanto eu, aquele que compreende, devo impelir-me em frente até o ponto em que me encontro ainda quase só diante do enigma do objeto e quase não mais diante do enigma do documento”; portanto, até o ponto em que “esqueço que eu não sou o autor, mas deixo-o falar em meu nome e ele pode, da mesma forma, falar em seu nome”.

Os exegetas do Novo Testamento do seu tempo, ligados ao método histórico, estavam horrorizados: Adolf von Harnack relegou a obra de Barth, em sua biblioteca, ao compartimento “Bela literatura”; somente Rudolf Bultmann a acolheu benevolamente, porque ele compreendeu esta forma de apropriação existencial como teólogo, embora se, como historiador, considerasse estranho que Barth realmente não se tenha interessado “na língua estrangeira judaico-vulgar-cristã-helenística de Paulo”. Com efeito, Barth provoca os seus leitores, já no prefácio, com a declaração que, se tivesse devido escolher entre o método histórico-critico e a velha doutrina da inspiração, ele decididamente teria adotado esta: “Sua validade é maior, mais profunda, mais importante, porque a tarefa que se propõe é o próprio entendimento do texto”.

Barth, no entanto, não teve que escolher e recusou a alternativa que ainda hoje é colocada por fundamentalistas. Ele nem sequer se lançou sobre a Carta aos Romanos com a “Hybris de um pneumático” (Julicher), de modo de todo despreparado e desinibido. Ele, após Calvino, utilizara o comentário, do ponto de vista bíblico-teológico bastante preciso, do exegeta do Novo Testamento de Tubinga, Johann Tobias Beck, mas sem citá-lo particularmente, suponho porque ele queria provocar a corporação [dos exegetas], a qual depois o puniu negando-lhe atenção. Mas, isto é história passada. Karl Barth fixou de modo muito pertinente o lado presente da ponte hermenêutica, a ponte daquilo que tem significado àquilo que significa (what it meant to what it means). Ao meu ver, não existe nenhum entre os teólogos do século vinte que o tenha feito melhor, mais radicalmente e mais eficazmente. Compreendes o que lês tão a fundo que isso vive em ti e se exprime através de ti: Paulo escreve em seu tempo como apóstolo à comunidade de Roma, mas, o que ele diz enquanto apóstolo de Cristo é, no conteúdo, tão extraordinário que atravessa os tempos e promete um futuro diante do qual nós nos encontramos ainda hoje.

Barth não encontrou muitos seguidores que adotassem seu tipo de meditação teológica dos textos neotestamentários. No entanto, há hoje uma série de filósofos que procuram este encontro direto com as idéias do apóstolo Paulo e desenvolvem sua filosofia em diálogo com a Carta aos Romanos, como por um tempo Kierkegaard creu poder viver a “contemporaneidade” com o Novo Testamento. São Alain Badieu, Giorgio Agamben e Slavoj Zizek. Eles se entusiasmam pela radicalidade e os paradoxos presentes no pensamento de Paulo.

Eu próprio creio que nós temos necessidade de ambas as coisas, da New Testament Theology e da Present Theology. Creio também que a New Testament Theology perde interesse se não tende à teologia do presente e que a teologia do presente perde o seu fundamento se não se põe à escuta da teologia do Novo Testamento. Infelizmente, todavia, nos dois campos não há muitos teólogos que lêem os escritos uns dos outros. Por isso, no próximo parágrafo enfrento a questão:

3. O que podem dizer-se reciprocamente a exegese do Novo Testamento e a teologia

Creio que devemos distinguir acuradamente a teologia do Novo Testamento e a teologia do presente, entrelaçando-as, todavia, uma com a outra.

1. A teologia do presente não deveria atribuir os próprios pensamentos ao apóstolo Paulo, para depois divulgá-los com a autoridade dele. Karl Barth escreveu, de fato, sua Carta aos Romanos como se Paulo e ele próprio fossem uma só pessoa, e por isso também o seu título soa simplesmente "Carta aos Romanos". Por amor a Paulo deve-se respeitar o caráter peculiar e a estraneidade da teologia do apóstolo, que remonta a dois mil anos. Deve-se ter respeito também pela própria liberdade e pela própria responsabilidade teológica. Não é permitido apropriar-se da teologia de Paulo, nem é lícito consignar-se à sua teologia, a ponto de renunciar a si próprio. O presente deve conservar o seu direito em relação à tradição. Muitas coisas, nos evangelhos e nas cartas do apóstolo, são condicionadas pelo tempo e não exprimem o “Espírito eterno”. Muitas coisas são decididas hoje e para estas decisões não encontramos nenhuma orientação na Sagrada Escritura. Por isso, eu distingo entre o evangelho de Jesus Cristo que vale para todos os tempos até que ele retorne, e a forma que o texto encontrou no Novo Testamento há dois mil anos.

2. Por isso, a teologia do presente, diversamente da teologia do Novo Testamento, deve entrar num intenso diálogo com o texto e com seu autor sobre o que é dito no texto. Para dizê-lo de modo prático: eu leio o texto segundo a edição crítica do Novo Testamento grego (ed. Nestlé/Aland) e interpelo os respectivos comentários sobre a passagem em questão, depois confronto o que ali é dito com outras passagens que expressam a mesma coisa; além disso, me pergunto se o que é entendido nessa passagem basta e se foi bem expresso, com o resultado de que aceito o texto ou o critico antes de escrever o meu texto ou de fazer a minha prédica. Aceitação e crítica não se orientam segundo o espírito do presente, mas com base no confronto entre o que é dito e o que deve ser dito. Este é o círculo entre a exegese do texto e a exegese (objetiva) do conteúdo.

Forneço um exemplo para o aspecto positivo e dois para o negativo:

a) As afirmações de Paulo sobre o significado do dom de Cristo até a morte de cruz e sobre sua ressurreição dos mortos introduzem tão profundamente nos mistérios da salvação que eu acabo imergindo nestes textos com grande estupor e procuro continuar a pensá-los também para o futuro. Não chego a nenhum fim e de fato não tomo distância da crítica: somente escuto o evangelho de Deus.

b) Os reformadores e todos os teólogos protestantes pensam da mesma forma a doutrina da justificação na Carta aos Romanos, ou seja, “que o homem é justificado por graça”. Também eu creio e retenho que estes capítulos sejam o evangelho dos pecadores. Todavia, quanto mais neles reflito e confronto a doutrina paulina sobre a justificação com a mensagem do reino de Deus anunciada por Jesus aos pobres segundo os evangelhos sinóticos, me surgem dúvidas sobre se o apóstolo não teria entendido unilateralmente somente a justificação dos pecadores, não, porém, a justificação das vítimas. Segundo o cap. 7 da Carta aos Romanos, o homem é aquele que faz o mal e que transcura o bem. Mas, onde estão os outros seres humanos, que “sofrem injustiça e violência” e se tornaram vítimas dos pecados de quem pratica o mal? Deus não procura, quem sabe, “justiça àqueles que sofrem violência”? Não faz justiça aos “órfãos e às viúvas” que são privadas de ajuda? A partir de Paulo e de Agostinho e dos reformadores em diante, na doutrina eclesial sobre a justificação e no sacramento eclesial da penitência somos unilateralmente centrados sobre aquele que pratica o mal. Não devemos considerar e anunciar a justiça de Deus, que cria vida, tendo presentes também as vítimas? Aqui, ao meu aviso, em nome do que nos é comum, é necessária uma integração da teologia do apóstolo: o evangelho das vítimas.

c) Com isto chego, enfim, a tocar dois pontos críticos, nos quais avança uma crítica às afirmações de Paulo, a qual não se refere somente ao tempo em que foram feitas, mas, a meu ver, também ao seu conteúdo: o que Paulo escreve em 1 Cor 14 e 1 Tm 2 sobre a submissão da mulher ao homem e sobre o silêncio da mulher na liturgia hoje não é só anacronístico, mas não corresponde sequer à mensagem de Jesus Cristo, da qual Paulo escreve: “... não há macho e fêmea, porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gal 3, 28); e não corresponde sequer à realidade de sua colaboradora Phoebe, guia de comunidade, e de sua co-apóstola Junia (Rm 16, l..7). Isso, enfim, contradiz a mensagem pascal das mulheres. Por conseguinte, nestas passagens eu não o seguirei, mas o contradirei.

Uma coisa análoga vale em relação aos judeus que, segundo aquilo que se diz, “mataram o Senhor Jesus” (1Ts 2, 14.15). Paulo sabia bem que tinham sido Pôncio Pilatos e os romanos “que mataram” Jesus, e não os judeus. Destes, no máximo se pode dizer que recusaram a mensagem de Jesus. Que por este motivo os judeus “são inimigos de todos os homens” e “não agradam a Deus”, eu, nos capítulos 9-11 da Carta aos Romanos, capítulos que me convencem, não o encontro. “Após Auschwitz”, então, aquela passagem da Carta aos Tessalonicenses é inoportuna, e não é um bom testemunho do Evangelho aos judeus e aos pagãos.

4. Por que devemos ler o Novo Testamento, por que devemos compreendê-lo e interpretá-lo para o presente?

A questão hermenêutica é a questão do ‘como’: como devo compreendê-lo? A hermenêutica não dá respostas à questão do ’por que’: por que devo compreendê-lo? Ela supõe a resposta positiva. Por isso: por que fazemos este esforço?

Talvez porque o Novo Testamento é o documento fundador da tradição cristã e caracterizou a história da nossa cultura européia? Para isso, no entanto, bastariam a pesquisa histórica sobre os documentos e sobre a história dos seus efeitos no cristianismo.

- Talvez porque o Novo Testamento seja lido, explicado e pregado em toda liturgia da Igreja? Isto é verdade: o Novo Testamento não tem o seu Sitz im Leben somente na terra da Judéia de 2000 anos atrás, mas também nos altares e nos púlpitos das igrejas e nas mãos dos leitores de hoje. A palavra que suscita a fé, que motiva o amor e encoraja a esperança, torna Cristo presente. Para compreender esta palavra, a exegese teológica e uma correspondente teologia eclesial do presente são necessárias. Mas, tudo isto basta?

- Agora eu falo como teólogo: a ponte hermenêutica, à qual por mais vezes se acena e que leva do Jesus histórico e de seu Evangelho a nós hoje, é a ponte sobre o rio Lete, o rio do esquecimento. Ela é também a ponte sobre o rio daquilo que passa, já que no fundo é, em primeiro lugar e em definitivo, a ponte do Jesus histórico ao Cristo presente. Se partirmos da presença do Ressurgido, recordaremos a vida, a obra e a morte de Jesus como “a história de um vivente”, precisamente como os evangelistas contaram sua vida e sua paixão à luz de sua ressurreição.

A ponte hermenêutica tem o seu fundamento nesta virada não dedutível e inesperada da morte à vida, que nós reconhecemos como tendo ocorrido em Jesus Cristo: o seu fim temporal tornou-se o seu início eterno. Sobre a ponte hermenêutica percebemos a história da morte de Jesus Cristo à luz do futuro da vida. Olhamos para trás, ao futuro passado de Cristo e vivemos no presente daquele que virá. Na história da morte dos historiadores Jesus se torna ‘histórico’ e permanece a nós estranho; na história do futuro da vida eterna nós o compreendemos e realmente acendemos a chama da esperança nos cemitérios da história, já que Jesus não só ressurgiu de sua morte de cruz, mas ressurgiu “dos mortos” também como o primogênito daqueles que adormeceram e como o autor da verdadeira vida. De tal maneira se chega ao horizonte universal daquilo de que fala o Novo Testamento. No Cristo da Igreja há mais do que a igreja: trata-se da vinda de Deus e do futuro do novo mundo da vida, que supera a morte.

Compreendemos o que lemos? Quando lemos o Novo Testamento e temos dele profunda compreensão, aproximamo-nos de recordações surpreendentes e da fulgurante luz de uma grande esperança.

Filipe tinha, pois, provavelmente razão, quando “começando desta passagem da Escritura, anunciou o Evangelho de Jesus”.

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