O pensador Raimon Panikkar (foto) faleceu nesta quinta-feira em Barcelona, aos 91 anos. Havia nascido nessa mesma cidade em 1918, filho de um engenheiro hindu que ali se estabeleceu. Há um personagem de "La Regenta" de [Leopoldo Alas] Clarín que, quando chega ao cassino, sempre diz: "Do que se fala que me oponho?". Raimon Panikkar era assim: um pensamento em constante oposição. Também se poderia dizer que ele se opunha ao próprio fato de se opor, porque o que buscava de verdade era o diálogo, ao acordo, ao entendimento. Entre os homens, sem dúvida, mas também deles com os deuses, se acaso existirem. A reportagem é de Francesc Arroyo, publicada no jornal El País, 27-08-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Fonte: UNISINOS
Muito jovem, ele conheceu um sacerdote que então se chamava José María Escrivá: o fundador da Opus Dei. Alistou-se na ordem, e seu irmão Salvador Pániker (a diferença de sobrenomes é vontade deles) afirma que foi ele quem implantou o grupo em Barcelona, captando figuras como Valls Taverner ou López Rodó.
Fronteira do conhecimento
Panikkar estudou Química e Filosofia (esta última, provavelmente, por influência de um sacerdote chamado Ramón Roquer) e se doutorou em ambas, além de Teologia. Tanto seus estudos científicos quanto os filosóficos tentam estabelecer as fronteiras do conhecimento, para diluí-las.
Nos anos 40 e início dos 50, antes de instalar-se em Roma, primeiro, e na Índia, mais tarde, fundou a revista Arbor, vinculada ao Conselho Superior de Investigações Científicas, mas controlada por membros da Opus Dei. Era uma tentativa de abrir a filosofia espanhola a algo mais do que a religião, embora o predomínio dos pensadores católicos que tendiam a ver a filosofia como "escrava da filosofia" representou um forte obstáculo para alguns empreendimentos. Depois de Panikkar, o secretário de redação da revista seria Rafael Calvo Serer, então também membro da Opus Dei.
A atividade livre de Panikkar na Índia, já ordenado sacerdote, foi muito incômoda para a Opus Dei, que acabou tirando-o de cima com maus modos, contam seus achegados, e "deixando-o jogado". O que não deixa de ser uma forma de falar para um homem de seus recursos que, após primeiros movimentos indecisos, acabaria como professor de história da religião em Harvard e em Santa Bárbara.
Nos últimos anos, havia se instalado na Catalunha, onde realizava uma tarefa de difusão de suas ideias, baseadas em um certo panteísmo e, principalmente, na vontade de diálogo intercultural e inter-religioso. Rezava missa com regularidade e era visitado por estudiosos do pensamento em seu estilo dissidente de todas as dissidências. Participava de colóquios, no rádio ou na televisão, e dirigia teses doutorais.
Se anos atrás decidiu adaptar a grafia de seu sobrenome paterno (o materno era Alemany), já aposentado na Catalunha, decidiu catalanizar o Raimundo original e convertê-lo em Raimon, como mais uma demonstração de sua vontade de integração com o entorno imediato, com a história pessoas e, por meio da individualidade, com o universo inteiro.
Raimon Panikkar, teólogo católico, filho de pais indianos, é reconhecido internacionalmente por propugnar o diálogo inter-religioso.
O TEMPO DO PERDÃO E A LÓGICA DO INIMIGO. Artigo de Raimon Panikkar
Quando é que o cristianismo foi poderoso? Quando era perseguido. Portanto, mesmo nas perseguições uma civilização madura cresce, adquire uma identidade própria. Ter medo do inimigo não é a mesma coisa que não resistir ao inimigo. O Evangelho diz claramente. De que tenho medo? De perder uma identidade que é tão débil que não se mantenha sozinha? Se eu tiver pouca confiança em mim, como ocorre na civilização ocidental, qualquer ventinho me fará pensar que seremos atacados. Toda civilização contém tudo – o amor e o ódio, uma coisa e o seu oposto – e eu devo ter disso uma visão pormenorizada.
Qual é, para sermos concretos, o Estado muçulmano mais populoso do mundo? A Indonésia. E os indonésios não são tão perigosos! O segundo Estado: a Índia e depois o Paquistão. Até agora ainda não encontrei nestas populações nacionalismos e fundamentalismos tão ferozes. Índia e Paquistão se combateram muitas vezes, mas por razões históricas e políticas muito concretas.
Quero dizer que não devemos fazer uma caricatura das outras civilizações, pois, caso contrário, não nos lamentemos se também eles fazem uma simétrica de nós e de nossa civilização. A lógica da distorção não funciona como defesa contra o crime ou contra a desordem. Os últimos fatos que o demonstram são as conseqüências da guerra no Afeganistão e no Iraque. Há um caminho a explorar para não cair nos choques ideologizados de civilização: é o caminho da paz e do perdão. Segundo meu parecer, há uma relação direta entre paz e perdão. Escrevi, bastantes anos atrás, que somente o perdão rompe a lei do carma, do olho por olho e dente por dente. O perdão tem uma dimensão que o torna tão grande e tão difícil: ele é um ato eminentemente religioso. O perdão, se não sair do coração, não é tal. Eu posso não me vingar, mas a ferida continua.
Dito em termos teológicos: o perdão é uma des-criação. Se a criação é fazer do nada uma coisa, o perdão é fazer que aquela coisa volte ao nada. E por isso não necessito de vingança, não necessito de restituição, não necessito de nada. A grande dificuldade consiste em como seja possível traduzir isso em termos políticos. Não tenho uma solução, mas tenho dois comentários. O primeiro comentário é que todos os nossos grandes esforços para solicitar a restituição de um dano sofrido (evitando o perdão) não têm funcionado por quarenta séculos. Quanto ao perdão, realmente ainda não o experimentamos.
O segundo comentário é que o perdão tem um efeito catártico ou purificador tão importante que modifica o outro. O outro se dá conta que fez uma coisa que não ficava bem e que tu lhe retribuíste com um ato unilateral de perdão: por toda a vida ele será feliz e fiel, porque o curaste para sempre com o teu perdão. Mas é preciso ser claro sobre um tema tão delicado. O perdão não é ação-reação. Ele necessita de um tempo de maturação. Para perdoar, é necessário esperar. Saber esperar custa, e nós vivemos numa civilização que gostaria de fazer tudo imediatamente. Há um tempo para o perdão, que não é a reação instantânea à ofensa. Seria quase uma burla ou uma impunidade. O perdão tem um tempo de maturação, é uma decisão que chegará a seu tempo. Se não tiver havido essa maturação interior, eu não estarei disposto a perdoar, porque ainda sinto a ferida, nem o outro estará disposto a reconhecê-lo, porque se sentiria impune. Encontrar este equilíbrio entre tempo e ato de perdoar é importantíssimo. Isso pertence à virtude real da prudência.
É necessário realçar que os choques de civilização têm, historicamente, a ver com o problema da verdade e de sua posse exclusiva. Não se pode negar, de fato, que em nome da verdade tenham sido cometidos crimes pavorosos e sido encontradas horríveis justificações. Nós não somos os donos da verdade. Citando Santo Tomás: “quem encontrou a Verdade é possuído pela verdade, não é seu proprietário”. A verdade se possui. A verdade é relação, é sempre o estar com o outro, se não não é verdade. A verdade absoluta é uma contradição, precisamente porque a verdade é relação.
O grande perigo, e aqui não gostaria de escandalizar ninguém, é o monoteísmo. O monoteísmo pensa que Deus é a Verdade, porque o monoteísmo pensa um Deus isolado, um Deus solitário. Não é assim em todos os monoteísmos, a questão é muito complexa, mas existe este perigo constante: embora eu não possua a verdade, há um Deus que a possui e este Deus a revelou. Não me convence o monoteísmo. Penso que o monoteísmo não seja cristão, porque o cristianismo crê na Trindade.
Mas, também para a mística do Islã há três realidades: o amor, o amante e o amado. Para a Cabala, são três as coisas criadas por Deus: a Tora, a Lei e o povo. A Trindade é muito mais extensa, também nas assim ditas religiões monoteístas, do que se acredita. Embora reconhecendo que em nome da verdade absoluta se cometeram muitíssimos crimes, digo isto: aquela não é a verdade. Uma verdade que eu imagino como absoluta, eximindo-a, portanto, de toda relacionalidade – que é a essência da verdade – por definição não é verdade, nem mesmo aquela que é apresentada como divina. Por conseguinte, desmascarar esta chaga da humanidade é um progresso que é necessário realizar neste momento histórico. O contrário de uma verdade absoluta não é a indiferença, não é afirmar que a verdade não existe. A verdade existe, mas é relativa: a nós, a uma mente, a qualquer coisa.
A este propósito devo dizer imediatamente aos puritanos, não para consolá-los, mas para clarificar, que a relatividade que eu defendo e da qual estou convencido não é o relativismo, onde tudo é igual. A relatividade não é relativismo: a verdade é relativa. Mas, para superar o relativismo, não se deve cair no absolutismo. O remédio seria pior do que a doença. O relativismo não vai bem, mas a relatividade implica não perder a medida humana. Ela não se projeta sobre um ponto ômega infinito.
É a nossa vida que conta e a minha verdade (para sem sincero, direi: a minha convicção e estou plenamente convencido de tudo aquilo que digo) eu não absolutizo, porque pode existir um ponto de vista diverso do meu e uma angulação diferente. Por isso, embora reconhecendo que, em nome da verdade, se cometeram grandes crimes, eu ainda defendo a idéia da verdade como relacionalidade e não como absolutismo. O homem isolado, sozinho – e a solidão do homem contemporâneo é uma doença da alma – não se sustenta, não pode respirar, não existe. Tem necessidade do outro, o outro como portador de uma mensagem. Como diz a tradição muçulmana: “o desconhecido pode ser um anjo”. Devemos ajudar-nos reciprocamente e estar cônscios, precisamente no confronto entre culturas e espiritualidades diversas, que a verdade não é posse pessoal, eu não sou o único ente bom deste mundo, o único que entende o que é a verdade. Temos necessidade de compreender que a verdade, quem sabe, “quando cai do céu sobre a terra se rompe em cem pedaços, um pedacinho à disposição de cada um”.