Artigo de Matt J. Rossano, professor e chefe do Departamento de Psicologia da Southeastern Louisiana University, dos EUA, publicado no sítio The Huffington Post, 28-07-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS
O cabo de força entre religião e ciência foi estabelecido há 1.600 anos por um bispo norte-africano. Como sempre, aqueles que aprendem com a história estão fadados a repetir seus piores erros.
O caminho à santidade foi um caminho sinuoso para Aurelius Augustinus Hipponensis (Agostinho de Hipona). Nascido em 354 em Tagaste, uma cidade naquilo que era então a África do Norte Romana (agora Souk Ahras, na Argélia), Agostinho foi o produto de um casamento "misto": uma devota mãe cristã e um pai pagão incorrigivelmente promíscuo.
Depois de alguns vandalismos juvenis e aventureirismos sexuais (provavelmente exagerados), Agostinho estabeleceu-se com uma concubina e começou a buscar a verdade. Ele preferia latim ao grego, Cícero e Virgílio a Aristóteles. Ele era inteligente – alguém inteligente do tipo convencido e arrogante, que irritava os mais velhos. Para a aflição de sua mãe, achou as escrituras cristãs muito humildes para serem de muito valor. Seu intelecto vagava junto com seus interesses românticos, indo do maniqueísmo, ao ceticismo e ao platonismo, mas nunca satisfeito. Então, foi para Milão, e encontrou-se com um mentor, Ambrósio, que poderia desafiá-lo e castigá-lo com a mesma autoconfiança. Finalmente uma voz – "Pegue e leia" –, e o cristianismo reivindicou seu prêmio intelectual mais formidável.
Tal como acontece com a maioria dos convertidos, Agostinho assumiu apaixonadamente a nova fé, mas a paixão era temperada pelo olhar crítico de um forasteiro. Para ele, o cristianismo não podia ser apenas uma fé simples e reconfortante – seria muito chato! Em vez disso, ele devia ser a culminação da incessante busca do homem por sabedoria. Agora como clérigo erudito, Agostinho escrevia abundantemente, tornando-se o intelecto líder de sua época e conquistando o respeito até mesmo dos filósofos ateus dos dias modernos. Bertrand Russell, que não pensava grande coisa de Aquino, levava Agostinho em alta conta.
Em nosso tempo, alguns religiosos optaram por um caminho claramente anti-intelectualista. Os criacionistas, os "designers-inteligentes" e os literalistas bíblicos parecem obstinados a usar a ignorância como um distintivo de piedade.
A história se repete. No tempo de Agostinho, a grande questão não era a religião e a ciência, ou a religião e a evolução, mas o cristianismo e o corpus de aprendizagem clássica. Com a ruína do Império Romano, ficou cada vez mais nas mãos da Igreja cristã incorporar ou abandonar a grande tradição clássica intelectual. Séculos antes de Agostinho, alguns Padres da Igreja já tinham preferido a ignorância. Tertuliano proclamou famosamente: "O que Atenas tem a ver com Jerusalém, a Academia com a Igreja? Não temos nenhuma necessidade de curiosidade a partir de Jesus Cristo, nem de investigação a partir do Evangelho".
Agostinho não faria nada disso. Com uma certeza direta, ele argumentou que a razão era tão crítica para a fé quanto a revelação. Alarmado pela sua postura, um amigo bispo, Consentius, escreveu para lembrar Agostinho que "Deus não deve ser buscado pela razão, mas seguido por meio da autoridade". Deixando a colegialidade de lado, a resposta de Agostinho foi inusitadamente brusca:
Dizeis que a verdade deve ser compreendida mais pela fé do que pela razão ... Que o céu proíba que Deus odeie em nós aquilo pelo qual ele nos fez superiores aos animais! Que o céu proíba que devamos acreditar em uma tal concepção, assim como a não aceitar ou buscar razões, já que não poderíamos acreditar se não tivéssemos almas racionais.
A razão foi essencial para uma correta compreensão da Bíblia. Sim, a Bíblia deve ser tomada literalmente, onde faz sentido fazer isso, instruiria Agostinho. Mas onde ela obviamente contradiz a nossa experiência cotidiana, devemos buscar outros significados. Em "A Cidade de Deus" (16,7), por exemplo, Agostinho discute a Arca de Noé e como os animais estavam presentes em ilhas distantes, tão logo depois da grande enchente:
Questiona-se como eles [os vários animais selvagens] puderam ser encontrados nas ilhas depois do dilúvio (...) Pode-se, de fato, dizer que eles atravessaram até as ilhas a nado, mas isso só poderia ser verdade para os que estavam muito perto do continente. Considerando que existem algumas tão distantes, imaginamos que nenhum animal poderia nadar até elas (...). Eles foram gerados da terra assim como em sua primeira criação (...). Isso torna mais evidente que todos os tipos de animais foram preservados na arca, nem tanto com o fim de renovar o estoque, mas sim para prefigurar as diversas nações que deviam ser salvas na Igreja.
Espere um minuto, Santo Agostinho, repita isso. Noé não salvou literalmente todos os animais da terra na arca? (Como é que um bom bispo católico nunca ouviu a música do unicórnio dos Irish Rovers?) É representacional, você diz, o fato de a Igreja salvar as nações da terra? Mas nós temos agora museus da Arca que nos mostram como Noé fez isso. Encontraram a Arca real no Monte Ararat na Turquia, não? Quinhentos anos antes de qualquer pensamento europeu acerca de usar um garfo no jantar, Agostinho já havia entendido que a Bíblia requer uma interpretação crítica, não uma mera passada de olhos. O que ele deve estar pensando sobre alguns cristãos hoje?
Na verdade, não precisamos perguntar. Na obra "Comentário ao Gênesis" (1,19), Agostinho é muito claro sobre o que ele pensa de cristãos estúpidos. Depois de lembrar aos cristãos que muitos não-crentes em Deus são bem versados em áreas como astronomia, biologia e geologia, eles os adverte contra o uso despreocupado das escrituras como base para falar sobre esses tópicos com não-crentes inteligentes:
Agora, é algo infeliz e perigoso para um infiel ouvir um cristão, presumivelmente dando o sentido da Sagrada Escritura, falando bobagens sobre esses tópicos. E devemos fazer todo o possível para prevenir uma situação tão embaraçosa, na qual as pessoas mostram a grande ignorância de um cristão e riem disso com desprezo.
Se um cristão se mostra ignorante e estúpido, a religião e suas escrituras, então, podem ser menos do que isso?
Se eles [os não-crentes] se encontram com um cristão equivocado em um campo que eles mesmos conhecem bem e ouvem-no mantendo suas tolas opiniões sobre nossos livros, como vão acreditar nesses livros em questões relativas à ressurreição dos mortos, à esperança da vida eterna e ao reino dos céus, quando pensam que suas páginas estão cheias de falsidades e de fatos que eles próprios aprenderam com a experiência e à luz da razão?
Na verdade, as opiniões de Agostinho sobre a tolerância religiosa, o pecado e a sexualidade podem ofender as sensibilidades modernas. Ele nem sempre transcendeu o seu tempo (poucos fazem isso). Mas o seu exemplo de que a razão é um dom de Deus tanto quanto a revelação ofereceu os fundamentos para o dito de que "a Verdade (da razão) não pode contradizer a Verdade (da revelação)", que depois foi defendida tão vigorosamente por Alberto Magno e Tomás de Aquino.
O melhor da tradição intelectual cristã não oferece nenhum conforto ou cobertura para os cristãos tolos de hoje, que ignoram a ciência e a razão, em um esforço equivocado de guardar a fé. Sua timidez e covardia intelectual mancham o imponente edifício que os grandes pensadores cristãos do passado trabalharam tão arduamente para construir.