29/08/2010

Vito Mancuso

O adeus a Panikkar (foto), teólogo da cosmoteandria


Artigo do teólogo italiano Vito Mancuso, publicado no jornal La Repubblica, 28-08-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS





Cosmoteandria. Nessa difícil palavra, está contido o núcleo do pensamento de Raimon Panikkar (falecido nesta quinta-feira aos 92 anos na sua casa na Catalunha), um dos maiores teólogos da nossa época, destinado a se tornar sempre mais uma permanente fonte de luz para todos os buscadores sinceros da verdade.

Cosmoteandria é o termo cunhado por Panikkar para expressar a sua intuição filosófico-teológica fundamental, isto é, que o Absoluto (teo) é atingível só em união com o mundo (cosmos) e em união com o homem (andria) e, simetricamente, que o homem explica a sua essência só em harmonia com o mundo natural e com o divino.

Trata-se de uma perspectiva que, nele, não nasce como uma sacada de gênio extemporâneo – embora, falando de Panikkar é necessário falar de "gênio" começando pelas 20 línguas, entre antigas e modernas, perfeitamente dominadas e pelos inumeráveis reconhecimentos internacionais e láureas honoris causa (dentre as quais a conferida em 2004 pela Faculdade de Teologia da Universidade de Tübingen, isto é, uma espécie de Nobel da pesquisa teológica).

A intuição da cosmoteandria é o destilado da sua vida. Nascido em 1918 em Barcelona, de mãe catalã e pai indiano (um aristocrata com passaporte britânico), formou-se em química, letras, filosofia e teologia nas melhores universidades europeias, quase marcando com os seus estudos uma progressiva ascensão dos fundamentos da matéria às alturas do espírito.

Ordenado sacerdote, dedicou-se só por pouco tempo à vida pastoral, enquanto logo começou a ensinar e a proferir conferências nas melhores universidades de todos os continentes. A respeito disso, lembro particularmente dos 20 anos entre 1966-1987, quando, por um semestre, ele viveu nos Estados Unidos, ensinando em Harvard, na Califórnia, e em Nova York, e, por um semestre, na Índia, estudando e principalmente vivendo o hinduísmo e o budismo.

E eis-nos chegados ao ponto que mais se ressalta do gênio de Panikkar, o diálogo inter-religioso, que, para ele, foi pesquisa existencial em primeira pessoa. Estas suas célebres palavras são um significativo testemunho disso: "Parti cristão, descobri-me hindu e retorno budista, sem deixar por isso de ser cristão".

Lá onde espíritos míopes e inseguros veem o perigo da heresia e do sincretismo, Panikkar oferece, na realidade, a indicação luminosa para o único sentimento que o nosso mundo globalizado pode hoje percorrer se quer a paz e o encontro entre as civilizações, e não o contrário. Nessa perspectiva, é significativo saber que Panikkar quis que o diálogo inter-religioso por ele praticado durante toda a vida o acompanhasse até o fim: nestas horas, o seu corpo será cremado, e metade das cinzas serão depositadas no túmulo da família, metade levadas ao Ganges e colocadas sobre uma folha, segundo a antiga tradição hindu.

A Itália tem a honra de ser o país no qual a opera omnia de Panikkar viu a luz pela primeira vez graças à editora Jaca Book de Milão, ao seu presidente Sante Bagnoli e principalmente à curadora Milena Carrara Pavan. Trata-se de 12 volumes, dos quais quatro já foram publicados, e um quinto está para sair com o título "Religione e religioni" [Religião e religiões], provavelmente o coração do pensamento do grande teólogo.

É desta forma que ele mesmo apresenta os seus livros: "Os meus escritos cobrem um período de cerca de 70 anos, em que me dediquei a aprofundar o sentido de uma vida humana mais justa e mais plena. Não vivi para escrever, mas escrevi para viver de um modo mais consciente e para ajudar os meus irmãos com pensamentos que não surgem apenas da minha mente, mas britam de uma Fonte superior que se pode chamar de Espírito". E ainda: "Abri-me à vida que está ao meu redor na sua concretude e descobri que não era profana, mas sagrada". E eis-nos de volta à cosmoteandria: o espaço para uma nova e mais radical intuição do sagrado é a abertura à vida real e concreta.

Mas o que me vem à mente agora, à pouca distância da sua morte, do Raimon Panikkar que eu conheci é principalmente o sorriso e a paixão pelo chocolate. Um sorriso docíssimo, que revelava a alegria de viver, o inevitável senso de humor, a real atenção pelos outros, o amor terno e forte por todo fragmento de ser. E a paixão pelo chocolate que protegia nele, até o fim, a simplicidade do menino.