Fonte: UNISINOS
No decurso dos milênios o homem tem sido atraído, com freqüência obsessionado e talvez fascinado por duas forças que os místicos chamariam transcendência e imanência, os poetas céu e terra, os filósofos espírito e matéria. O homem se debateu entre estes dois pólos, atribuindo de quando em vez mais importância a um ou ao outro, desprezando, transcurando ou quem sabe negando realidade a um dos dois (a matéria é um mal, o corpo é escravidão, o tempo é ilusão) ou mesmo vice-versa (o céu não existe, o espírito é mera projeção, a eternidade um sonho).
A religião, entendida como dimensão humana que poderemos chamar religiosidade, colocada diante do problema do significado da vida, oscilou entre estes dois pólos sem conseguir esquecer completamente o outro. Carpe diem: a terra é demasiado atraente para não se gozar dos seus prazeres. Fuga mundi: o mundo é demasiado fugaz para colocar nele nossa confiança.
Não resta dúvida, no entanto, que muitas das principais religiões em nossos dias deslocaram decididamente a balança para o transcendente, o espiritual, o ultra-terreno. “Como chegar ao céu” é a tarefa da religião; “como vão os céus” é a incumbência da ciência: tem sido esta a matéria de discussão entre um cientista (Galileu Galilei) e um teólogo (Roberto Bellarmino).
A dicotomia tem sido letal para ambos. A religião é banida dos negócios humanos e a ciência se torna uma especialidade abstrata, afastada da vida humana. A religião se torna uma ideologia e a ciência uma abstração. Em ambos os casos o corpo é praticamente irrelevante. Tarefa da nossa geração, se não quisermos contribuir à extinção do homo sapiens, é voltar a celebrar a união entre céu e terra, aquele hieros gamos ou sagrada união da qual falam tantas tradições, não excluída a cristã.
O estudo das tradições religiosas da humanidade nos mostra que “ciência” (para não usar outros termos) tem querido dizer algo mais do que descrição empírica de comportamentos “religiosos” e de suas interpretações “científicas” e que religião não é redutível a práticas ou crenças definidas “religiosas” do ponto de vista da racionalidade entendida no sentido em que a interpretou o assim dito iluminismo. Dizendo “ciências” não queremos excluir alguma forma de consciência nem de sabedoria. Ao dizer “religiões” não queremos cair no monopólio desta palavra da parte de instituições (“religiosas”). Referimo-nos, ao invés, àquele núcleo último de toda cultura, e também de toda vida humana que se crê dar certo sentido à vida.
É muito significativo que a palavra polissêmica “religião” tenha sido considerada pouco menos do que inconveniente em alguns ambientes e que se tenha querido substituí-la com “espiritualidade”. Isso, todavia, demonstra que a alergia à palavra “religião” é somente superficial, dado que a palavra “espírito” poderia fazer-nos cair por sua vez num outro “gueto” exclusivo dos “espiritualistas”. Quando se critica a religião enquanto Oasis fechado que exclui os assim ditos não-crentes, a espiritualidade poderia, por sua vez, ser entendida como a confederação de religiões em antítese àqueles que negam o que é espiritual. Desde os tempos de Confúcio se sabe que existe uma política das palavras.