21/07/2009

Dom Pedro Casaldáliga e José María Vigil

A noite dos pobres está em vigília


Artigo de Dom Pedro Casaldáliga e do teólogo José María Vigil, publicado no sítio Religión Digital, 19-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



Já sabemos que a Solidariedade está em crise. Falar de crise de solidariedade poderá parecer um lugar comum, mas se trata de uma forte verdade que, de um lado ou de outro, afeta a todos nós: aos que deveriam dar solidariedade e aos que precisam recebê-la. Ou, melhor dito, a todos os que precisam recebê-la e dá-la, porque a solidariedade é um mistério de reciprocidade fraterna inevitável.

Dados dessa crise não faltam. Referimo-nos principalmente à solidariedade com a América Latina. Dos milhares de comitês de solidariedade que chegou a haver, em todo o mundo, com a Nicarágua, por exemplo, a maior parte deles desapareceu. E é curioso observar que, na Espanha, concretamente, desapareceram os chamados comitês "políticos" e permanecem os "cristãos". Pelo bem da verdade, é justo reconhecer que alguns dos primeiros se fundiram com outros organismos mais universais de solidariedade.

No entanto, permanece de pé a observação de Enrique Dussel: talvez, em certas horas de decepção histórica, quando a esperança "científica" foi derrotada pelos fatos, permanece, na noite da fé, além das certezas científicas, a esperança contra toda esperança dos cristãos. O que não significa que essa crise não afeta profundamente também os cristãos e cristãs, sobretudo quando eles também dão o seu devido valor à história e à ciência.

Começar por essa constatação da crise da solidariedade não é negativismo. Trata-se de uma crise de crescimento em última instância. Sempre que se lembre e se assuma responsavelmente o que, de fato, é a solidariedade à luz da fé.

A solidariedade é uma forma plena da caridade de sempre, mas com vivência crítica, histórica, política, geopolítica, de espiritualidade integrada. A solidariedade é a caridade potencializada pela opção pelos pobres. A solidariedade passa, logicamente, pela mesma crise que a opção pelos pobres está passando no coração de muitos e em muitos setores da Igreja.

A opção para os pobres entrou em sua noite escura

Muitos estão se perguntando "o que fica da opção pelos pobres". Entendida como a opção pelas Causas dos pobres, e não somente pelos seus sofrimentos ou sua marginalização.

Os motivos dessa crise maior da opção pelos pobres e, consequentemente, da solidariedade para com eles, são muitos, estrondosos, totais.

- O colapso do Leste Europeu e a queda do socialismo real. O fracasso de algumas revoluções populares. O suposto triunfo do novo império do liberalismo e da hegemonia absoluta do mercado.

- Porque não se "vê" um projeto histórico dos pobres, alternativo, que seja viável neste momento globalizado da política e da economia. Hoje, a opção pelos pobres deve ser feita mais à contramão, sem o respaldo sensível de um organograma que o respalde, sem a força manejável de uma esperança mecanicista que lhe dê credibilidade de faticidade histórica próxima. A opção pelos pobres e por suas Causas, nesta hora noturna, deve ser feita como no ar de fé, como no vento da utopia.

Falando na linguagem cristã, isso não é novidade, mas sim a verdade de sempre. Nossa "esperança contra toda esperança" é uma esperança contra toda aparência, a fé contra toda evidência, o amor contra toda impossibilidade. Ou seja: a opção pelos pobres e a solidariedade com eles deve ser hoje mais teologal do que nunca.

- A pós-modernidade, que, em certa medida, é o cansaço da modernidade ou sua autodecepção, proclama a renúncia aos "grandes relatos" e ao sonambulismo das "Grandes Causas", porque acredita que são inviáveis ou inúteis, e porque opta sistematicamente pelo pragmatismo palpável e pelo consumismo diário.

- A hora psicológica – convergência de todos esses fatores – é de um certo esgotamento ou depressão, de um cansaço de fim de dia, de alergia àquilo que tanto nos fez sofrer e pelo fato de que tantos e tantas, companheiros de caminho, deram tudo, até a vida. De decepção também, porque muitos, companheiros igualmente, falharam conosco. Passado o sopro forte das bandeiras no alto, são muitos e muitas aqueles que se acomodaram ao ritmo do oportunismo ou da segurança.

Hoje, falar de análise social, de conjuntura sócio-política, de crítica racional, de avaliação ética, de juízo teológico, além da prepotência e da evidência do sistema, é uma daquelas "linguagens duras" que aqueles que não estavam muito decididos a seguir Jesus de Nazaré atribuíam a ele (cf. Jo 6, 60).

Não é preciso comungar com rodas de moinho

Com frequência, deixamo-nos abater porque engrandecemos o negativo e comungamos gregariamente com as rodas de moinho que todo o mundo engole nesta hora de queda do "socialismo" e da euforia neoliberal. Também nós podemos acabar reconhecendo, mais ou menos irrefletidamente, que "a história já não vai além".

A fé é essa luz que brilha em um local tenebroso, como dizia o apóstolo Pedro (cf. 2Pe 1, 19). E é preciso usá-la para iluminar criticamente as trevas da história, a mentira do poder e o fascínio dos ídolos.

- Impõe-se uma melhor análise "do que aconteceu", seja no socialismo real (ou "nominal") do Leste, seja em nossas revoluções latino-americanas, seja no "triunfo" do neoliberalismo. Muitas pessoas, mesmo as que há pouco tempo eram críticas do projeto capitalista e da dominação imperialista, agora – introjetando a visão do opressor – aceita as versões que o capital e o Império dão "daquilo que aconteceu": o que aconteceu – pensam – é que o projeto dos pobres – seja qual for o seu nome ou a sua modalidade – entrou em colapso por si mesmo, internamente, porque era e é e será sempre um projeto inviável; na história só está a salvo o projeto dos ricos .

A Guerra Fria e, no nosso caso, a guerra de baixa (alta) intensidade, realizada pela potência mais agressiva da terra; as condenações internacionais, inclusive pelo Corte de Haia; a violação dos direitos dos Povos que as invasões da República Dominicana, Granada, Panamá supõem; a crescente dívida externa que nos impossibilita toda saída ao sol da normalidade, tudo isso ou não existiu, pelo que parece, ou já não existe. Tudo foi simplesmente o autocolapso interno do projeto "impossível" dos pobres.

- Impõe-se também uma rejeição crítica do suposto "triunfo" do capitalismo neoliberal. Porque nós, pelo menos, não vemos em nenhum lugar esse triunfo, se nos referimos à imensa maioria da humanidade. Com o acréscimo de que o próprio capitalismo neoliberal triunfante não se sente tão seguro de si mesmo diante de suas contradições internas. Mas é que, mesmo que tivesse ocorrido esse triunfo do egoísmo estrutural, seria um fracasso ético da família humana, pois estaria se evidenciando, mais uma vez, a impossibilidade de uma política e de uma economia honestamente fraternas; ter-se-ia imposto, outra vez, como única possibilidade, a "ética dos lobos".

- É preciso saber rejeitar as falsas certezas que estão sendo introjetadas quase inconscientemente em nós pela hegemonia do poder em alta. Nossa "década perdida", por exemplo, de fato tem sido para eles a década mais bem ganha. Wall Street tem os dados convincentes: essa foi a década de maiores receitas sustentadas no banco mundial.

- Não podemos acreditar no deus da guerra, aquele Deus que sempre vence, aquele que esmaga o outro, que está sempre do lado dos vencedores. Na própria Bíblia, Deus foi "corrigindo Deus". O Senhor dos exércitos, o abençoador dos grandes rebanhos e das colheitas plenas, foi se tornando cada vez mais o "go'el" dos injustiçados e a mãe das entranhas de misericórdia, até se fazer o Deus pobre, menino, marginalizado e perseguido, crucificado e derrotado em Jesus de Nazaré.

- Também não podemos perder nunca a memória histórica, fundamento da identidade de um povo e autoconsciência de sua viabilidade futura. Os triunfos e as queda dos sucessivos impérios fazem parte da roda da história da humanidade. Hoje, estamos vivendo simplesmente uma nova hora de um nobo império, uma a mais apenas. Aqui, em casa, a história dos 500 anos, sobre os povos indígenas e sobre o povo negro em particular pode nos iluminar oportunamente. Hoje, esses povos estão começando a forjar uns "outros" 500 anos, muito diferentes, do seu lado.

- Não é verdade que "qualquer tempo passado foi melhor". Nem o passado remoto nem o passado imediato. Em primeiro lugar, porque o melhor tempo para cada um de nós é o tempo que Deus nos concede para forjar a nossa vida. Os cristãos e cristãs, principalmente, devem viver sempre para o hoje de Deus em nosso hoje humano. Alguém inclusive classificou toda a Bíblia como "um tempo chamado hoje".

- A prepotência do mal aparece mais facilmente do que a força oculta das sementes do bem. Há muito mais vitalidade alternativa do que parece, na Sociedade e na Igreja, no nosso Terceiro Mundo e no Primeiro Mundo também. São muitas as vozes e as forças que estão se conjugando, em contestação, em profecia, em solidariedade. O fato de que nos sintamos sob a noite não significa que não haja muitas estrelas e que um novo sol está às portas do amanhecer. Hoje, certamente, a consciência, a autocrítica, a vontade de mudança são mais generalizados no mundo porque são mais realistas e estão mais interconectados. Além da CNN, ou da Televisa ou da Globo, há muitos outros canais, graças a Deus.

Nosso Deus é solidariedade

Sempre, mas hoje mais do que nunca, devemos fundamentar teológica e teologalmente a nossa solidariedade. Só com esta fundamentação ela poderá ser plenamente solidariedade cristã e vencer serenamente as vicissitudes da história ou do próprio coração.

Deus em si mesmo, no seu mistério original, é a plena solidariedade de três pessoas em uma mesma vida total. Como as comunidades eclesiais de base no Brasil dizem que "a Santíssima Trindade é a melhor comunidade", nós podemos dizer que "a Santíssima Trindade é a maior solidariedade".

O mistério da Encarnação é a expressão máxima, histórica, submetida a nossas vicissitudes, da solidariedade de Deus com a humanidade. Jesus é a solidariedade de Deus feita carne e sangue, vida e morte, paixão e ressurreição. Nele e por Ele, sabemos como Deus é amor solidário.

Nós não temos muitos mandamentos. Temos apenas um: "Amem-se uns aos outros como eu os amei". O mandamento novo do amor novo se traduz na prática diária e na vivência social e na organização política e econômica da sociedade, por meio da solidariedade efetiva: desinteressada e eficaz. Com todos, mas mais especificamente e acima de tudo e sempre, com esses irmãos e irmãs "menores", como o próprio Jesus nos pediu. No Antigo Testamento, Deus perguntava: onde está o teu irmão? No Novo Testamento, Deus pergunta, mais incisivo: onde está o teu irmão pequeno? Ainda mais, Deus se faz irmão dos irmãos menores.

Nossa fé passa sempre, necessariamente, pela cruz. Nossa solidariedade, também. Diante dessas decepções a que fizemos alusão antes, diante de qualquer gênero de fracasso, a solidariedade cristã apela confiadamente à esperança da ressurreição. Nenhuma vida morre para sempre. A solidariedade que se dá totalmente sempre é um gesto, uma celebração, um "sacramento pascal".

O Reino é a sociedade da solidariedade. Semente escondida, rede de arrasto, tesouro desconhecido para muitos, mas projeto de Deus: sua Causa. A Causa da Solidariedade total. No tempo e para além dele. A solidariedade já vai sendo, na esperança escatológica e na caridade política, o "para além da história".

Caminhante, sim, há caminho

Devemos ser realistas. Conhecer a realidade, responsabilizar-se dela, carregá-la. Isso é o que nos pede o teólogo mártir Ellacuría. Chamar sempre para a realidade mutante pelo seu próprio nome. Abandonar a nostalgia do passado que não vai voltar. Nós não vamos "em busca do tempo perdido." Outra é a nossa memória e a consciência responsável da luta ou do sangue que herdamos.

Pisemos o solo real do neoliberalismo, busquemos suas brechas. Temos que encontrar criativamente os estímulos de luta que pode haver, que há, na nova realidade neoliberal (com certas áreas de liberdade); só formalmente democrática (mas com alguma democracia, no final); supostamente de mercado livre (onde, de fato, como transitam as mercadorias, se transmitem também as ideias e as causas); de mundialização niveladora (mas também a mundialização de intercâmbios fraternos e de comunhão humana).

Sem ter nojo de assuntos que, há alguns anos poderiam nos parecer pequeno-burgueses, devemos entrar nesse combate. Um modo também eficaz de combater o neoliberalismo é combatê-lo – sem se contaminar – e seu próprio campo.

Esse realismo nos exige uma nova fidelidade à solidariedade, que poderia se caracterizar como a prática da solidariedade:

- de noite escura, aparentemente sem saída, no exercício tenso da fé;

- gratuita, sem "eficacionismos", sem compensações; a fidelidade dos que apontam para a marcha dos vencidos e não para o carro dos vencedores;

- sempre profética, porque continua acreditando no Deus que ouve o clamor do seu Povo e desce para libertá-lo, e consola os seus pobres e proclama como vitória a bem-aventurança dos marginalizados;

- que faz da opção pelos pobres "a" opção evangélica, "firme e irrevogável", segundo as palavras de João Paulo II em Santo Domingo;

- que não perde de vista a possibilidade das surpresas, o inesperado das conjunturas;

- que responde como um eco à fidelidade extrema dos nossos muitos mártires, eles e elas. A Igreja só é fiel quando acompanha radicalmente a Testemunha Fiel, Jesus, e suas outras muitas testemunhas fiéis testemunhas que o seguiram;

- que sabe aprender com o afinco daqueles e daquelas que mantiveram sua fidelidade ao longo dos séculos a causas derrotadas historicamente: a Causa indígena, a Causa Negra, a Causa da Mulher, a Causa Operária, a Causa dos Povos menores...

Esse realismo exige também que busquemos e encontremos novas formas de solidariedade, mais atuais e eficazes hoje, germinadoras de futuro:

- mundializemo-nos; pela comunhão universal sempre, em primeiro lugar, e pela comunicação, cada vez mais universal e mais rápida. Como existe uma guerra de morte do Norte contra o Sul, deve haver uma aliança de vida entre o Sul e o Norte. Além de que nem tudo o que existe no Norte é esse Norte de Morte.

- façamos da sociedade civil e de suas várias estruturas e mobilizações o grande espaço de solidariedade. A sociedade é hoje uma reivindicação universal. A maioria dos nossos respectivos concidadãos quer, à sua maneira, participar. Facilitemos sua participação solidária.

Ela deve continuar sendo uma "quinta coluna" dentro do âmbito capitalismo neoliberal e forçar a partir de dentro a evidência de sua perversidade, de suas contradições, de seu não-futuro para a humanidade.

No entanto, hoje e sempre, devemos cultivar a forma de solidariedade permanente, necessária, do pequeno, que se reproduz, que pode acabar fazendo com que o grande germine. Com muitas pequenas "ondas comuns" pode-se chegar a fazer uma grande mesa socializada.

Preparemos o futuro, o substituto que irá pegar a tocha. A rebeldia insatisfeita e a inesgotável generosidade da juventude nos esperam. Hoje, o mundo é mais solidário do que ontem. Amanhã vai ser mais do que hoje. O amanhã se chama solidariedade.

Às vezes teremos que saber enriquecer a nossa linguagem, para falar sem maniqueísmos de opressão-libertação; ou o tom, quando a análise pode parecer excessivamente racional ou pessimista; ou a disposição, cultivando a confiança em nós mesmos e nos demais e jogando a pimenta do bom humor sobre o mau humor da morte imposta; ou a perspectiva, sempre, porque a Humanidade não é suicida, e o Reino é maior do que a Igreja, e nosso Deus é o Deus da vida, e o nosso – como o Seu – é, decididamente, o Reino.

Vamos aprendendo. A tomada do poder será, cada vez mais, pelas armas da consciência comunitária, participante, alternativa. E, do mesmo modo, as maiores derrotas serão as derrotas éticas, da consciência, da solidariedade, do amor. A rebelião mais recentes do Continente, a dos zapatistas de Chiapas, ainda balbuciante como um grito, já está nos ensinando outro modo de se rebelar, com perspectivas maiores e penetrando nos diferentes setores da sociedade; sem canonizar as armas; canonizando só as Causas.

Detalhe: aí estão as jornadas de solidariedade; as datas memoráveis; as publicações; as visitas que vem e que vão; as outras entidades – cristãs ou não, mas comprometidas com alguma das grandes Causas –; as ajudas concretas também – campanhas, autoimposto, remessas de medicamentos ou de alimentos ou de roupa –; as vigílias; as ações artísticas; a militância diária pessoal, que conscientiza na família, no trabalho, na comunidade.

Terminamos, para não terminar e continuar caminhando juntos, com um soneto neobíblico que, no meio da noite dos pobres, pode nos ajudar a lembrar por onde o dia vem e Quem tem a última palavra. Um dos versos deste soneto diz que "a noite dos pobres está em vigília". Todos os pobres "com espírito" e todos os que querem ser solidários com os pobres, devem entrar plenamente nessa ardente vigília pascal.

Só uma flor guarda o entorno
da guarita, livres os terrenos baldios.
Tarda a chuva, mas no calor
já estala a nossa sede de redimidos.

Para que Deus se veja Deus agora,

é preciso ir fazendo o Reino, a contramão

de qualquer outro reino;
e é a hora
de que este mundo lobo seja humano.

Que aconteceu com o latifúndio, sentinela?

O que há de esperança, companheiros?

A noite dos pobres está em vigília,

e o Dono da terra decretou
que se abram os sulcos e silos
porque o eón do lucro já passou.

18/07/2009

Dom Giovanni Franzoni

Encíclica do papa: 'Aquele bem comum é muito genérico', afirma teólogo italiano


“Será que [as vítimas das guerras e dos conflitos étnico-religiosos] podem esperar alguma coisa, no momento em que o papa pega na mão a caneta para escrever uma carta ao mundo sobre a justiça e a caridade?” Essa é a pergunta de Giovanni Franzoni, teólogo e escritor italiano, ex-abade da abadia de São Paulo Fora dos Muros, na Itália, em artigo para o jornal Liberazione, 12-07-2009. A tradução é de Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS



Quando os poderosos da Terra se reúnem para se porem de acordo sobre como produzir riqueza e como distribuí-la igualitariamente sobre o planeta, os “condenados da terra”, os espoliados, os marginalizados, os prisioneiros, os repelidos para as plagas da miséria e da violência, para dar segurança à vida boa ao bem-estar do ocidente desenvolvido, deveriam aguçar os seus sentidos e aguardar algum vestígio de esperança de libertação. Temo precisamente que nos campos de prófugos do Darfur, na prisão a céu aberto de Gaza ou entre os iraquenses acampados nos confins da Síria, ou em qualquer outro campo de concentração no qual estão refugiadas as vítimas das guerras e dos conflitos étnico-religiosos não esperem que algo misterioso de qualquer G se reúna.

Será que podem esperar alguma coisa, no momento em que o papa pega na mão a caneta para escrever uma carta ao mundo sobre a justiça e a caridade?

A interrogação é premente no momento em que sai a encíclica do papa Bento "Caritas in veritate" (A caridade na verdade). Provavelmente a carta não chegará diretamente aos “pobres da terra” que dificilmente a lerão, mas certamente chega a todos aqueles que por fé religiosa ou por consciência humanitária estão envolvidos no problema da pobreza no mundo e esperam palavras novas daqueles que são devedores de uma esperança fundada sobre as promessas bíblicas e sobre o anúncio evangélico.

Infelizmente a encíclica papal se alonga e se repete, intercalando os conceitos de justiça, caridade e verdade, sem dar perspectivas concretas e inovadoras. O que se pretende na encíclica na verdade aparece com bastante evidência no contínuo referir-se à autoridade do romano pontífice e na total ausência de uma harmonização das intervenções no âmbito ecumênico e inter-religioso. Parece realmente que a verdade da qual se fala seja a doutrina católica, rigorosamente controlada pela Congregação para a Doutrina da Fé. De colaboração no plano ecumênico realmente não se fala. Certamente o papa se dirige ao mundo e por isso pode ignorar que na Itália haja, com prazo restrito, a declaração dos rendimentos incluindo a destinação dos oito por mil.

Mas, quem assegura que algum pregador, desconsiderado no plano teológico e espertinho no pragmático, não aproveite a ocasião para usar a encíclica como instrumento de apoio à publicidade da igreja católica na TV? As estatísticas nos informam que as igrejas evangélicas tem uma base para conferir os oito por mil muito mais ampla do que tudo o que se poderia esperar dos seus membros de igreja; isto poderia derivar do fato de que as igrejas protestantes publicam os seus balanços sobre oito por mil e só usam os proventos para intervenções sociais, estruturais e assistenciais, excluindo o seu uso para a manutenção do culto e dos pastores. O fato de que a igreja católica use estes fundos também para a manutenção do clero, pode ter convencido muitos católicos a dar sua contribuição aos protestantes. E eis a iluminação que poderia descer de qualquer púlpito: mas a caridade dos protestantes não acontece “na verdade” – é o papa que o diz! – e portanto, não é verdadeira caridade.

Grande alegria espiritual e generoso passo em frente se verificaria no ecumenismo no dia em que as igrejas de qualquer denominação e as religiões de todo o planeta convergissem com os “homens” (... e as mulheres) de “boa vontade” no enfrentamento do problema da pobreza no mundo. Então se poderia exclamar com as palavras das Bíblia: “E a luz se fez”. Um aspecto positivo da encíclica do papa Bento está no espaço dado ao Concílio e aos documentos sociais de Paulo VI. Entre as muitas afirmações dos documentos conciliares sobre os valores da pobreza e sobre a dignidade e as esperanças dos pobres deve-se recordar quanto é afirmado na Apostolicam actuositatem (A atividade apostólica) a propósito da relação entre justiça e caridade.

No parágrafo 8 deste documento, referente ao papel dos leigos na igreja, se lê: “... a pureza de intenção não seja manchada por nenhuma investigação da própria utilidade ou do desejo de domínio; sejam acima de tudo cumpridas as obrigações de justiça, para que não os ofereça como dom de caridade aquilo que já é devido a título de justiça; sejam eliminados não só os efeitos, mas também as causas dos males...” e a ação seja ordenada a libertar da dependência e criar auto-suficiência. Este pensamento foi retomado pelo papa João Paulo II na Mensagem pela Paz de 2000, em vista do Jubileu, mas depois foi esquecido e submerso pela prática das indulgências e das peregrinações. Seria o tempo de retomá-lo e enfrentar agora o tema dos “bens comuns”, ao invés de continuar sempre a falar de convergência para o “bem comum”, que depois cada um interpreta como quer, talvez considerando as recusas dos que requerem asilo como ações voltadas ao bem comum e as ceias de beneficência como a alternativa à solidariedade vivida.

A práxis da solidariedade é bem conhecida entre aqueles que se empenham nas faixas sociais débeis e une crentes e não crentes em projetos concretos e libertadores. Há aqui uma verdade e uma honestidade de ação que poderia ser mais conhecida e apreciada.

[grifos do blog]

Para ler mais:


Monge Enzo Bianchi

'Caritas in veritate': além da lógica da troca

Artigo de Enzo Bianchi, teólogo italiano e prior do Mosteiro de Bose, publicado no jornal La Stampa, 12-07-2009. A tradução é e Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS



A nova encíclica de Bento XVI "Caritas in veritate" – a terceira do seu pontificado – é um apelo dirigido não só à Igreja em sua catolicidade, mas também “a todos os homens de boa vontade”, segundo a expressão inaugurada pelo papa João XXIII com a "Pacem in terris". Um apelo a redescobrir a face autêntica da caridade, sua articulação com a razão, o seu existir inseparável da justiça, sua capacidade de plasmar o bem comum. Não uma espécie de suplemento de alma para uma sociedade em busca de valores perdidos – “um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente trocado por uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social, mas marginais” – porém antes o testemunho de tudo o que pertence à profundidade do coração humano e, ao mesmo tempo, excede a própria justiça.

“A caridade na verdade, da qual Jesus Cristo se fez testemunho”, se lança, como nos atestam os evangelhos, até o extremo do amor pelo inimigo, é vivida na gratuidade que não procura nem espera a reciprocidade, se manifesta no perdão unilateral, no saber responder ao mal com o bem. Como esquecer a audácia com que João Paulo II sublinhava esta excelência da caridade com respeito à justiça em sua mensagem para a Jornada mundial da Paz em 2002, quando se animou a afirmar que “não há justiça sem perdão”?

É este o amplo sopro que atravessa as páginas da nova encíclica. Não é por acaso que Bento XVI quis conectá-la, com força e convicção, ao magistério social da Igreja que veio se desenvolvendo no último século, propondo em particular uma sábia e aprofundada leitura da "Populorum progressio" de Paulo VI, publicada “numa fecunda relação com o concílio e em particular a Constituição pastoral 'Gaudium et spes'”. A “mensagem da "Populorum progressio" não é somente o objeto, e o título, do primeiro capítulo da nova encíclica, mas atravessa toda a "Caritas in veritate", servindo de fio condutor das reflexões de Bento XVI.

De resto, é um texto que, relido na distância de mais de 40 anos, em nada aparece ultrapassado, porém mostra uma vez mais todo o seu alcance profético: nestas décadas assistimos ao fim do eurocentrismo, ao desaparecimento do colonialismo, ao desmoronamento das ideologias dominantes – da implosão do socialismo real à crise do neoliberalismo – mas a voz autorizada da Igreja no campo social conservou uma profunda continuidade, mostrando-se “um único ensinamento, coerente e ao mesmo tempo sempre novo”.

Sem dúvida os eventos mais ou menos recentes que abalaram convicções radicadas na abordagem das realidades sociais e econômicas – da globalização à crise que estamos atravessando – são atentamente tomados em consideração e fornecem o estímulo para uma leitura não desencarnada do mundo e de suas ocorrências, mas o olhar sabe voltar-se às experiências do passado, sabe lançar-se a perscrutar o horizonte futuro, sabe descer mais em profundidade precisamente graças àquele “pensar grande” que é próprio da Igreja como comunidade viva e não só como instituição histórica. Toda vez que a Igreja relê o próprio passado é chamada, de fato, à luz da palavra de Deus e, a perceber-se a si mesma como uma única realidade viva, habitada por uma comunhão que vai além da pertença a um determinado período histórico ou a uma realidade geopolítica específica.

A análise do papa procede, assim, sem deixar-se condicionar por estéreis contraposições, porém antes convidando a um sábio discernimento em vista da assunção de responsabilidades precisas, tanto da parte de cada pessoa como de quem reveste uma função de governo institucional. Neste sentido, há alguns elementos da encíclica que vale a pena sublinhar, precisamente enquanto capazes de conduzir o leitor pelos aspectos mais amplamente implicados no complexo sócio-econômico com instâncias mais universais, com princípios que, profundamente atinentes à fé cristã, contêm uma “boa nova” também para quem não é cristão.

Penso em particular na “economia da gratuidade e da fraternidade” – expressão já utilizada por João Paulo II na "Centesimus annus" – tão necessária num mundo sempre mais voltado à eficiência, mas que na realidade esquece o dom, mortifica a solidariedade, dissolve a responsabilidade. A gratuidade, declinação da “caridade na verdade” é capaz de se endereçar “além da lógica da troca dos equivalentes e do lucro como fim em si mesmo”, e de inserir nas existências dos indivíduos e nas relações sociais dinâmicas autenticamente libertadoras.

Um segundo aspecto evidenciado por Bento XVI é a “responsabilidade pelo desenvolvimento integral próprio e do próximo”, hoje ameaçada pela progressiva perda de consciência de que “os direitos pressupõem deveres sem os quais se transformam em arbítrio”. Responsabilidade, portanto, como assunção do nosso dever de prestar contas, “re-sponder” a quem condivide o nosso espaço vital, mas também a quem de longe sofre hoje as conseqüências do nosso agir ou às gerações futuras que receberão em herança um mundo marcado, no bem e no mal, pelas nossas condutas cotidianas. De resto, esta capacidade de “prestar contas da esperança” a quem aqui habita é uma das qualidades que a Igreja desde seu nascimento requer dos cristãos, como já testemunhava o apóstolo Pedro nos albores do cristianismo: a quem lhe pede satisfação das motivações de seu agir, o cristão deve saber responder “com doçura e respeito” (Pedro 3,15), não só e não tanto em palavras, mas com a eloqüência do próprio estilo de vida.

E enfim, não seja silenciada a renovada insistência com que Bento XVI convida ao “diálogo fecundo entre fé e razão”, que não só “torna mais eficaz a obra da caridade no social”, mas que “constitui a moldura mais apropriada para incentivar a colaboração fraterna entre crentes e não crentes, na compartilhada perspectiva de trabalhar pela justiça e pela paz da humanidade”. Sim, juntos podemos buscar e perseguir perspectivas compartilhadas, juntos podemos edificar, dia após dia, uma humanidade digna de tal nome, capaz de viver num mundo no qual, segundo a profecia do salmo, “misericórdia e verdade se encontrarão, paz e justiça se beijarão”.

[grifos do blog]

Para ler mais:



07/07/2009

A primeira encíclica social de Bento XVI foi publicada

Hoje, de manhã, foi publicada a primeira encíclica social de Bento XVI, Caritas in Veritate.

A notícia é do portal do jornal La Repubblica, 07-07-2009.

Bento XVI aborda, na encíclica, de 137 páginas e seis capítulos, a ética na economia.

Ela é publicada precisamente quando se abre a reunião do G-8, em L'Aquila, na Itália.

Segundo o portal do jornal espanhol El País, 07-07-2009, a encíclica manifesta "Um Ratzinger globalizado e de esquerda".

A versão portuguesa pode ser lida na íntegra aqui.
Fonte: UNISINOS

04/07/2009

Chaves de leitura da encíclica social de Bento XVI

Os italianos têm uma expressão maravilhosa, "chiave di lettura", que literalmente significa "chave de leitura". Ela se refere a alguma ideia ou perspectiva central, que pode ajudar a se entender o sentido de um montante complexo de material. Como a tão esperada encíclica sobre a economia está marcada para aparecer na próxima terça-feira, 07, parece ser um bom momento para sugerir uma possível "chiave di lettura" para o documento, que eu posso expressar em uma palavra: síntese. A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 02-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Intitulada "Caritas in Veritate" (em inglês o título é "Love in Truth", amor na verdade), a encíclica será apresentada na próxima terça-feira em uma coletiva de imprensa no Vaticano. Eu vou estar de olho nela, assim como ao encontro do Papa Bento com o presidente Barack Obama, na próxima quinta-feira, 09.

Mesmo que o Papa possa não dizer isto dessa forma, grande parte da "Caritas in Veritate" bem poderia assumir a forma de uma tentativa de sintetizar três das mais persistentes – e Bento XVI diria, sem dúvida, artificiais – dicotomias da experiência católica recente:

* Conversão pessoal versus reforma social;
* Compromisso pró-vida versus compromisso com a justiça;
* Espiritualidade horizontal versus vertical.

Todos os três pontos podem ser entendidos como versões parciais de uma "grande dicotomia", a dicotomia entre verdade e amor.

Na verdade, essa ideia provavelmente não irá aparecer em muitas manchetes na terça-feira, que provavelmente estarão focadas nas recomendações políticas do papa, e/ou na sua condenação à cobiça. Nos blogs, enquanto isso, uma troca de acusações certamente irá surgir sobre o fato de a encíclica se inclinar mais à direita ou à esquerda política. (A nota que irá sair sobre ela três dias antes de o presidente Barack Obama se encontrar com Bento, provavelmente irá alimentar esse círculo de efeitos).

Porém, para aqueles interessados em ir mais fundo, suspeito que a "síntese" irá provar ser uma forma de ajudar a desatar os nós do documento.

A inspiração para essa "chiave di lettura" vem do próprio Bento, em uma sessão de perguntas e respostas há dois anos com padres da diocese de Belluno-Feltre e Treviso, na Itália. Naquela ocasião, Bento disse: "O catolicismo, um pouco simplistamente, foi sempre considerado a religião do grande 'et et': não de grandes exclusivismos, mas da síntese".

Inspecionando o que já foi dito sobre "Caritas in Veritate", parece que esse espírito "e/e" provavelmente irá pulsar no documento.

Conversão pessoal e mudança social

Talvez, nenhuma ideia singular irá parecer maior do que a insistência de que uma real solução para a crise econômica global – que deve envolver, claro, a análise de questões estruturais, como as relações de mercado, as políticas de impostos, as práticas de empréstimo e assim por diante – deve estar, em primeiro lugar, enraizada na conversão pessoal. A menos que, individualmente, os seres humanos ajam eticamente e se vejam como responsáveis pelo bem comum, qualquer sistema pode ser seqüestrado, subvertido e corrompido, independentemente de quão nobre é o seu formato.

Há poucos dias, trechos não oficiais da "Caritas in Veritate" foram publicados na imprensa italiana, e essa ideia figurou em peso naquelas passagens.

"O desenvolvimento é impossível sem homens retos, sem operadores econômicos e homens políticos que vivam fortemente, nas suas consciências, o apelo ao bem comum", foi o que se publicou como aquilo que o Papa teria escrito.

No entanto, não precisamos de brechas para captar um sentido do que está a caminho, porque muitas das declarações públicas de Bento durante a semana passada pareceram ser uma prévia da encíclica.

Em uma homilia na segunda-feira, Bento refletiu sobre a ligação entre o pessoal e o social: "O desinteresse pela alma, o empobrecimento do homem interior, não só destrói a própria pessoa, mas também ameaça o destino da humanidade em seu conjunto. Sem curar a alma, sem curar o homem a partir de dentro, não pode haver salvação para a humanidade".

No dia anterior, durante as vésperas na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, para marcar o encerramento do "Ano Paulino", Bento ofereceu outra versão da mesma questão: "São Paulo nos diz: o mundo não pode se renovar sem homens novos", disse. "Só haverá homens novos se também houver um mundo novo, um mundo renovado e melhor".

Em parte, essa ênfase em manter o pessoal e o social juntos retoma uma ideia chave da primeira encíclica de Bento, "Deus Caritas Est", em que ele argumenta que os programas de justiça social nunca podem eliminar a necessidade de atos individuais de caridade. Nesse sentido, "Caritas in Veritate" provavelmente deve aplicar a mesma intuição à economia: não há justiça econômica sem moralidade individual – enraizada, enfim, na verdade.

Compromissos pró-vida e de paz-e-justiça

Assim como fez em outros lugares, Bento provavelmente irá rejeitar qualquer tentativa de escolha dentre os ensinamentos sociais da Igreja, particularmente no que se refere à tendência cansativamente familiar dentre os católicos de se dividir entre campos pró-vida e de paz-e-justiça.

Durante as vésperas na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, Bento fez uma homilia que lembrou o seu famoso discurso sobre a "ditadura do relativismo" no auge do conclave que o elegeu ao papado. Assim como há quatro anos, Bento, na segunda-feira, estava refletindo sobre a carta de São Paulo aos efésios, convidando os cristãos a não serem como crianças "ao sabor das ondas, agitados por qualquer sopro de doutrina, ao capricho da malignidade dos homens" [Efésios 4, 14].

Nesse espírito, Bento disse que a renovação espiritual requer "não conformismo", uma disposição a "não se submeter ao esquema da época atual". Bento retomou a insistência de Paulo em uma "fé adulta", zombando do uso dessa frase para justificar o dissenso da doutrina católica oficial.

"A frase 'fé adulta', nas últimas décadas, se tornou um slogan difuso", disse o Papa. "Muitas vezes, ela é entendida no sentido da atitude de quem não dá mais ouvidos à Igreja e aos seus Pastores, mas que escolhe autonomamente em que quer crer e não crer – uma fé 'faça-você-mesmo', portanto. E ela se apresenta como 'coragem' de se expressar contra o Magistério da Igreja".

"Na realidade, porém, não se precisa de coragem para isso, porque sempre se pode estar certo do aplauso público", disse o Papa. "O que exige coragem é aderir à fé da Igreja, mesmo que ela contradiga o 'esquema' do mundo contemporâneo".

Bento destacou especificamente a oposição entre o aborto e o casamento gay.

"Faz parte dessa fé adulta, por exemplo, o compromisso com a inviolabilidade da vida humana desde o primeiro momento, opondo-se radicalmente com isso ao princípio da violência, justamente na defesa das criaturas humanas mais indefesas", disse o Papa. "Faz parte da fé adulta reconhecer o casamento entre um homem e uma mulher por toda a vida, como ordem do Criador, restabelecida novamente por Cristo".

As pequenas porções da "Caritas in Veritate" que apareceram sugerem que Bento irá voltar a esse ponto na encíclica.

"A abertura à vida está no coração do verdadeiro desenvolvimento", escreveu o Papa, de acordo com as notícias. "Se perdermos a sensibilidade pessoal e social para acolher a nova vida, então outras formas de acolhida que também são úteis para a vida social irão murchar".

Espiritualidade horizontal e vertical

Uma terceira tensão recorrente na vida católica ocorre entre uma espiritualidade primariamente "vertical", focada na vida de fé pessoal do fiel e na relação com Deus, e uma que é mais "horizontal", enfatizando-se a comunhão do fiel e um maior engajamento com o mundo. Essa tensão às vezes acaba por colocar os esforços missionários e o ativismo pela justiça social em conflito, como se pregar o evangelho fosse uma distração para se construir um mundo melhor.

Em outras ocasiões, quando Bento XVI tocou em temas sociais, ele defendeu que não apenas as espiritualidades vertical e horizontal podem se reconciliar, como também a primeira é uma condição "sine qua non" para a segunda. Não pode haver um mundo justo, insistiu o Pontífice, sem Cristo, que é a fonte da justiça.

Esse tema surgiu mais claramente durante a viagem de Bento ao Brasil, em 2007, quando ele refletiu em profundidade sobre a ideia da América Latina como um "continente de esperança".

"Não é uma ideologia política, nem um movimento social, nem mesmo um sistema econômico", disse o Papa, "mas é a fé em Deus Amor, encarnado, morto e ressuscitado em Jesus Cristo, o autêntico fundamento dessa esperança".

Bento assumiu que uma espiritualidade vertical "não deve ser motivo de evasão da realidade história em que a Igreja vive compartilhando as alegrias e as esperanças, as dores e as angústias da humanidade contemporânea, especialmente dos mais pobres e daqueles que sofrem". Porém, Bento insistiu que a solidariedade social também não deve excluir a proclamação de Cristo, a participação nos sacramentos e a promoção da santidade.

De acordo com os trechos que circulam, Bento também irá abordar esse ponto na "Caritas in Veritate".

A verdade e o amor de Cristo, segundo aquilo que o Papa teria escrito, são "as principais fontes para o serviço do verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa humana e de toda a humanidade".


30/06/2009

Nicole Sotelo

Não conte ao Papa

Artigo de Nicole Sotelo, autora de "Women Healing from Abuse: Meditations for Finding Peace" (Paulist Press), e coordenadora do sítio www.womenhealing.com. publicado no sítio National Catholic Reporter, 11-06-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



O Papa Bento XVI declarou o dia 19 de junho como o começo do Ano Sacerdotal. Ele proclamou que, "sem o ministério presbiteral, não haveria Eucaristia, não haveria missão e nem mesmo Igreja". Eu odeio ser a primeira pessoa a informá-lo, mas a Eucaristia, a missão e a Igreja já existiam bem antes do surgimento do sacerdócio.

De acordo com os Evangelhos, Jesus não era um padre, nem os seus discípulos. Vemos referências a Jesus como um padre na Carta aos Hebreus. O autor usa a palavra para se referir a Jesus como o novo e último "Sumo Sacerdote", encerrando uma grande sucessão de líderes judeus. O autor afirma que os padres não são mais necessários, porque não se precisa mais de sacrifícios. Jesus foi o sacrifício último e é o nosso sumo sacerdote último.

Talvez o Papa tenha esquecido que Jesus não estava focado no sacerdócio. Ele estava focado no ministério. Ele chamou as pessoas a ministrar junto com ele, independentemente de seu status na sociedade. Ele chamou pescadores e coletores de impostos e a mulher com sete demônios. Todos eram responsáveis pela edificação do reino de Deus.

Todos eram convidados a ministrar, e fizeram isso com vários títulos dados a eles pela comunidade, baseados em seus dons. Alguns eram chamados de profetas, outros, de mestres, e outros ainda de apóstolos. Foi apenas depois que se começou a ver a emergência de uma estrutura ministerial formal com uma terminologia correspondente, quando os seguidores de Jesus foram influenciados e integrados ao Império Romano. Até 215 d.C., não temos evidências de uma ordenação ritual de bispos, padres e diáconos.

O surgimento de uma estrutura clerical levou, eventualmente, à divisão da fé cristã em "clero" e "leigos". Nos primeiros anos do surgimento do cristianismo, porém, Paulo lembrou os seguidores de Jesus: "Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gálatas 3, 28).

Depois do surgimento da ordenação e do sacerdócio, desenvolveu-se uma ordem hierárquica entre os fiéis. A palavra "ordenação" deriva do latim "ordinare", que significa "criar ordem". Desenvolveu-se do uso romano da palavra "ordines", que se referia às classes de pessoas de Roma de acordo com a sua elegibilidade para as posições de governo.

Os leigos se tornaram "des-ordenados" do clero. A palavra "leigo" se origina da palavra "laikoi", que se refere àqueles que, na sociedade greco-romana, não eram "ordenados" no âmbito da estrutura política estabelecida. O termo "clero" vem da palavra "kleros", que significa "grupo separado".

Enquanto muitos cristãos continuaram a ministrar dentro da Igreja, e até algumas mulheres sustentavam os títulos de diaconisas, sacerdotisas e bispas, muitos dos que possuíam esses títulos faziam parte de um grupo limitado de homens pertencentes ao contexto de uma ordem sócio-política e religiosa particular.

Isso perdurou até 1964, quando o Concílio Vaticano II lembrou para a Igreja que o papel de ministro, ou padres, não estava limitado aos ordenados, mas era um chamado a todos os batizados. O documento "Lumen Gentium" proclamava que os leigos se tornavam " participantes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real de Cristo, e exercem, pela parte que lhes toca, a missão de todo o Povo cristão na Igreja se no mundo" (31).

O presbiterato, que deriva do fundamento dos ministérios primitivos dos seguidores de Jesus, voltou então para todos os cristãos. Todas as pessoas são novamente chamadas ao ministério. Todos os cristãos são chamados a participar dos papéis proféticos, soberanos e, sim, até mesmo sacerdotais dentro da missão da Igreja.

Portanto, enquanto o Papa exorta os padres ordenados a refletir neste Ano Sacerdotal, o chamado se dirige a todos nós para que reflitamos sobre como estamos vivendo o nosso ministério na Igreja e no mundo.

Eu não me preocuparia em contar ao Papa que a Eucaristia, a missão e a Igreja existiam bem antes do sacerdócio, nem que o Ano Sacerdotal deveria realmente ser um ano dedicado a todos os leigos. Pelo contrário, precisamos compreender isso por nós mesmos.

O Ano Sacerdotal é uma oportunidade para todos os fiéis cristãos refletirem sobre o ministério presbiteral e, fazendo isso, reivindicar o nosso próprio ministério.

29/06/2009

Cardeal Dionigi Tettamanzi

Solidariedade, sobriedade, justiça: os três deveres em tempos de crise


Em entrevista ao L'Osservatore Romano, o arcebispo de Milão, cardeal Dionigi Tettamanzi, fala de seu último livro – "Non c'è futuro senza solidarietà. La crisi economica e l'aiuto della Chiesa" [Não há futuro sem solidariedade. A crise econômica e a ajuda da Igreja, em tradução livre] – e da iniciativa que o fez nascer, ou seja, o Fundo Família-Trabalho, anunciado no Duomo no Natal, durante a missa do galo. A reportagem é de Alberto Manzoni, publicado no jornal do Vaticano, L'Osservatore Romano, 25-06-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Eminência, no livro, o senhor dedica um capítulo inteiro ao tema da sobriedade. Como é possível propor esse valor ao homem de hoje, imerso em uma mentalidade consumista?

Justiça, solidariedade e sobriedade formam um tema inseparável. Bento XVI, na sua homilia do dia 31 de dezembro de 2008, lançou um apelo: a crise "pede a todos mais sobriedade e solidariedade para ajudar sobretudo as pessoas e as famílias em dificuldades mais graves". A sobriedade é uma virtude que nasce e cresce por meio de um sábio e corajoso discernimento, que a mantém intimamente unida à sua finalidade: ser um caminho privilegiado que conduz à solidariedade, à partilha verdadeira e concreta de tudo o que é necessário para viver segundo a dignidade humana, que é de todos, sem nenhuma discriminação. É um desafio o que o Papa lança, para mudar de modo radical uma cultura dos estilos de vida construídos sobre o consumismo. A sobriedade é uma virtude não apreciada, talvez porque muitas vezes é mal-entendida e aplicada só à esfera econômica. A sobriedade é confundida com uma vivência que tem o sabor de economia minuciosa, de abstenção dos consumos. Mas a sobriedade autêntica é uma coisa bem diferente, é um estilo de vida complexo: sobriedade nas palavras, na exibição de si mesmo, no exercício do poder, na vivência cotidiana. Sobriedade significa curar o nosso comportamento cotidiano dos excessos, reconduzindo-o à "justa medida".

Portanto, há uma relação muito estreita entre sobriedade e solidariedade?

Não é possível ser solidário sem ser sóbrio: senão, se compartilharia só o que excede às necessidades pessoais. É preciso dar bem mais do que o supérfluo, segundo o exemplo da "viúva pobre" do capítulo 21 do Evangelho de Lucas, que soube compartilhar tudo. Só a partir dessas premissas é possível entender corretamente também a solidariedade, que não deve ser confundida com uma atitude voluntarista ou com a filantropia. A solidariedade encontra a sua origem no fato de estar totalmente ligada, "solidamente", pela mesma ligação que nos une no mesmo gênero humano. E temos uma prova disso no fato de que a solidariedade é um dos valores sobre os quais se funda a Constituição da República Italiana, que, no artigo 2, considera-a um "dever imprescindível". Viver a solidariedade é sobretudo e fundamentalmente um dever de justiça – eis a terceira palavra –, antes ainda que sinal de virtude.

Como o senhor julga, hoje, o andamento do fundo diocesano?

A coleta diocesana superou os quatro milhões e meio de euros. Ao um milhão de euros destinado inicialmente e proveniente em parte da cota de oito por mil [1] a ser destinada às obras de caridade, de ofertas que já haviam chegado, acrescentou-se um milhão de euros doado pela Fundação Cariplo. De contribuições individuais e das iniciativas das paróquias, somaram-se – no dia 15 de junho – outros dois milhões e meio de euros. Uma quantia não pequena. Mas a diocese é grande, a crise é forte, as necessidades que se mostram, enormes. Milhares de famílias já recebem um subsídio graças a esse fundo.

Além da conjuntura econômica atual, qual herança de valores e de compromisso poderia ser deixada nos próximos anos?

O dinheiro não é a única e nem mesmo a maior palavra que devemos e podemos levar. As comunidades cristãs, com a sua rede discreta, capilar e eficaz, podem interceptar e ajudar outras necessidades: as solidões, as angústias, os temores que essa crise está gerando. A palavra do Evangelho e o seu testemunho vivo são uma presença de esperança que vale mais do que um subsídio econômico. Poderemos sair dessa crise purificados nos estilos de vida se aprendermos a autêntica virtude da sobriedade, e reforçados, se soubermos renovar o laço da solidariedade.

Notas:

1. "Otto per mille" é uma norma pela qual o Estado italiano reparte 8‰ de tudo o que é recolhido no imposto de renda italiano, com base nas escolhas dos contribuintes, entre o Estado e as diversas confissões religiosas, para propósitos definidos pela lei.

Para ler mais:


25/06/2009

Monge Enzo Bianchi

Para um cristão, o estilo é a mensagem

Fonte: UNISINOS






Conjugar a exigência do Evangelho com a realidade na qual é dado viver sempre foi a preocupação e o desafio de toda geração de cristãos, chamados- para usar as próprias palavras de Jesus – “estar no mundo mas não ser do mundo”. É o tema escolhido pela Convenção nacional do dia 22 de junho em Lingotto, das Caritas diocesanas (isto é, dos organismos que se encarregam de testemunhar no cotidiano e em seu território a atenção da Igreja pelos “últimos”, dando corpo a um modo de viver a fé cristã que é imediatamente perceptível e legível também numa sociedade secularizada como a ocidental e mesmo por aquele que não compartilha daquela fé) indica muito bem a consciência da comunidade cristã: “Não vos conformeis com este mundo. Por um discernimento comunitário”. A primeira afirmação é uma admoestação de São Paulo aos cristãos de Roma no primeiro século depois de Cristo, exortação que é atualizada com um apelo à importância de operar um discernimento sobre o pensar, sobre o agir e sobre a necessidade que esta reflexão seja “comunitária”, isto é, fruto e também semente de uma comunidade viva e vital.

Esta concepção indica bem o difícil equilíbrio da presença cristã na sociedade: nenhuma “fuga do mundo”, nenhum enclausuramento numa cidadela de “puros”, mas também nenhuma concessão a uma mentalidade mundana que considera descontados ou privados de validade ética comportamentos lesivos da dignidade humana. Já o Antigo Testamento admoestava, de resto, a “não seguir a maioria para praticar o mal?” (Ex 23, 2). Na vivência cotidiana há escolhas que a fé cristã impõe e inspira, certamente deixando aos pastores da Igreja, às figuras representativas institucionais a tarefa de agir no terreno profético, pré-político, pré-econômico, pré-jurídico, mas assinalando aos fiéis, aos leigos cristãos o encargo de uma realização de tais instâncias sob sua responsabilidade mediada pela sua consciência. Parece-me que estes comportamentos capazes de mostrar a diferença cristã possam ser reassumidos em algumas opções de fundo.

O “mandamento novo”, isto é, último e definitivo, deixado por Jesus aos seus discípulos é: “Amai-vos como eu vos amei” (Jo 13,34), amai-vos até despender a vida pelos outros, até doá-la pelos irmãos. Ora, este mandamento que narra a especificidade do cristianismo requer que o cristão não ame somente o próximo, não ame somente os seus familiares, mas ame todos os outros que encontra, e entre estes privilegie os últimos, os sofredores, os necessitados. Ao observar este mandamento, o cristão não pode, pois, pensar na forma política a dar à igualdade, à solidariedade, à justiça social. Se não houvesse também uma epifania política do amor pelo último, da atenção ao necessitado, faltaria à polis algo decisivo nas relações sociais e teria certamente evadido uma grave responsabilidade cristã. Não esqueçamos que, segundo as palavras de Jesus, o juízo para a vida ou para a morte será feito precisamente sobre a relação que houve na vida e na história, aqui e agora, com o homem em necessidade, faminto, sedento, estrangeiro, nu, doente, prisioneiro.

À mesma evangelização da Igreja pertence também a tarefa de indicar o ser humano e sua dignidade como critério primário e essencial à humanização, a um caminho de autêntica plenitude de vida. Isto requer que os cristãos saibam, acima de tudo, dar um testemunho com sua vida, mas saibam também tornar eloqüentes as suas convicções sobre as exigências de respeito, salvaguarda, defesa da vida humana. Diante da guerra que, não obstante as experiências vividas, continua atraindo os poderes políticos e os seres humanos, os cristãos devem saber manifestar sua contrariedade e sua condenação, na convicção de que não pode existir uma guerra justa, como profeticamente indicou o magistério de João XXIII, retomado por João Paulo II por ocasião da segunda Guerra do Golfo.

Os cristãos devem saber manifestar de modo eloqüente sua opção em favor do respeito da vida dos povos e das pessoas, ameaçados também por possíveis catástrofes ecológicas. Devem promover o respeito da vida de cada ser humano individual que, por certo, nasce de um homem e de uma mulher, mas, na visão de fé é sobretudo querido, pensado, amado por Deus que o chama à vida; o respeito de cada homem e cada mulher, dos quais tem sentido não só a vida, mas também o sofrimento até a morte. São necessárias hoje, da parte dos crentes, a criatividade, a fadiga de investigar e de pensar, a capacidade de expressar-se em termos que sejam compreensíveis também pelos não cristãos, termos antropológicos, portanto, e não teológicos ou dogmáticos.

Esta ação na polis – não me cansarei de repeti-lo – não deve nunca prescindir do estilo de comunicação e de práxis: também esta é uma instância fundamental, porque o estilo tem sido importante quanto ao conteúdo da mensagem, principalmente para não cristãos. Sim, o estilo com o qual o cristão está na companhia dos homens é determinante: dele depende a própria fé, porque não se pode anunciar um Jesus que narra Deus na mansidão, na humildade, na misericórdia, e o faz com estilo arrogante, com tons fortes ou até mesmo com atitudes que pertencem à militância mundana! E, precisamente para salvaguardar o estilo cristão é preciso resistir à tentação de exibir-se, de fazer-se falar, de mostrar os músculos... A fé não é questão de números, mas de convicção profunda e de grandeza de ânimo, de capacidade de não ter medo do outro, do diverso, mas de sabê-lo escutar com doçura, discernimento e respeito. Do testemunho cotidiano dos cristãos no mundo depende a recepção do Evangelho como boa ou má comunicação, e portanto, boa ou má notícia.

[grifos do blog]

Para ler mais:



23/06/2009

Nota Pública da CPT






Quem é o responsável por estas mortes?

Abiner José da Costa, de 49 anos, pai de 5 filhos e Edeuton Rodrigues do Nascimento, 48 anos, pai de 5 filhos foram mortos a tiros, no dia 17 de junho, quando participavam do Bloqueio da BR 158, à altura do km 340, município de Bom Jesus do Araguaia (MT), exigindo solução para as centenas de famílias acampadas às margens da rodovia depois de terem sido retiradas, por decisão judicial, da Fazenda Bordolândia, desapropriada pela presidente da República, em 2004.

Quem foi o responsável por mais estas mortes de trabalhadores da terra? Ainda não estão claras as informações a respeito de quem teria cometido o duplo assassinato. A Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Prelazia de São Félix do Araguaia, porém, afirmam que este é mais um caso de mortes anunciadas. Apesar de todas as denúncias feitas ao Incra e inclusive ao Gabinete da Presidência da República e de todos os apelos, não foram tomadas as medidas cabíveis e necessárias e se deixou que a situação chegasse a este desfecho. Nos primeiros dias de junho a Prelazia de São Félix divulgou manifesto sobre o clima de tensão que se gerou na área e a Coordenação da CPT enviou carta ao Presidente do Incra pedindo providências.

Depois da desapropriação da área, o INCRA, em 2005, foi imitido na posse da mesma. A partir daí, o vai e vem de recursos na justiça, ora tem assegurado ao INCRA a posse da terra, ora a tem devolvido à empresa proprietária (Agropecuária Santa Rosa LTDA., devedora da União). Em 18 de outubro de 2007, o Incra novamente foi imitido na posse do imóvel e as famílias foram conduzidas pelo Incra para as terras da fazenda. Desde a entrada das famílias na fazenda foram feitas denúncias da presença de grupos cujos integrantes não correspondiam ao perfil de famílias beneficiárias da reforma agrária. Era visível que pretendiam aproveitar-se apenas da madeira ali existente e para tanto destruíam o meio ambiente. As denúncias foram encaminhadas principalmente ao Ministério Público Federal no estado do Mato Grosso. Solicitava-se uma investigação local destas denúncias.

Numa das vezes em que esteve na presidência do INCRA, o Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, Dom Leonardo Ulrich Steiner, alertou, verbalmente, que a seleção das famílias a serem assentadas deveria ser acompanhada por agentes da polícia federal para impedir que grupos estranhos, com outros interesses, impedissem o bom andamento do procedimento. Isso não aconteceu.

Sem terem sido tomadas as devidas providências, o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual ingressaram na Justiça com Ação Cautelar por danos ao meio ambiente e o Juízo da Primeira Vara Federal da Seção Judiciária de Mato Grosso determinou, no final de março, a retirada de todos os ocupantes da fazenda, inclusive das famílias cadastradas pelo INCRA, que tinham iniciado os procedimentos para a regularização de seus assentamentos e que já haviam plantado roças e aguardavam suas colheitas.

As famílias acabaram acampando novamente em barracos, expostas ao sol, à poeira, às intempéries do tempo, sem água potável. Como não se apresentava a elas qualquer solução, apelaram para o bloqueio da BR como forma de pressão. Neste contexto aconteceram as mortes.
A CPT e a Prelazia exigem que o Incra assuma a responsabilidade por estas mortes por seu marasmo e omissão na resolução do conflito e por não ter tomado todas as cautelas exigidas no caso. As famílias sem terra encontravam-se na fazenda por iniciativa do Estado, responsável pela solução definitiva do caso, bem como pela proteção à sua integridade física e à sua dignidade de pessoas humanas. Cabia ao Ministério Público zelar por estes valores, porém, propôs a retirada de todas as famílias, cadastradas e não cadastradas, como forma de defender o meio ambiente, não levando em conta os princípios constitucionais que consagram a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho como princípios fundantes da República Federativa brasileira.

Este é mais um dos conflitos na grande Amazônia brasileira. Só nos primeiros meses deste ano, a CPT registrou o assassinato de nove trabalhadores em conflitos no campo. Oito destas mortes na Amazônia, onde ocorre o maior número de assassinatos, 253 dos 365 registrados nos últimos dez anos. Quando os direitos dos pobres, especificamente dos sem terra, serão respeitados?

Quando o governo quer e se empenha consegue em pouco tempo aprovar medidas mesmo que não estejam em consonância com a Consituição.

O sangue destes trabalhadores mais uma vez clama por Justiça!


Goiânia e São Félix do Araguaia, 22 de junho de 2009.


Dom Leonardo Ulrich Steiner
Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia

Dom Ladislau Biernaski
Presidente da Comissão Pastoral da Terra

19/06/2009

NOTA DA CNBB sobre a corrupção na política

Para CNBB, corrupção leva ao descrédito generalizado

A corrupção e a impunidade são grandes ameaças ao sistema democrático, por afastar a população da participação política, levando-a ao descrédito generalizado não só pelos políticos, mas também pelas instituições. Este é o tom da nota divulgada ontem pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em repúdio às "repetidas acusações de corrupção nas instâncias dos poderes constituídos". A notícia é do jornal Valor, 19-06-2009.
Fonte: UNISINOS

Em meio à crise enfrentada pelo Senado, com uma série de denúncias de corrupção e mau uso dos recursos públicos, a CNBB protestou contra as irregularidades nos poderes. "A superação da corrupção exige pessoas e partidos com perfil íntegro para o exercício do mandado público", afirmou a confederação da Igreja Católica. Os bispos defenderam que os políticos tenham "virtudes sociais, como competência, retidão, transparência e espírito de serviço".

A corrupção, disse a entidade, trai a "justiça e a ética social", compromete o funcionamento do Estado e aumenta as desigualdades sociais, a miséria, a fome e a pobreza. Os bispos criticaram o fato de serem raras restituição dos recursos e bens públicos usurpados, por meio de desvios nos poderes.

A CNBB defendeu a realização de uma reforma política para "sanar os males da corrupção" e convocou a população para se mobilizar e fazer com que as eleições de 2010 sejam baseadas em princípios éticos e fortaleçam " a participação" e "a credibilidade dos processos democráticos".

Entre as propostas de mobilização está o projeto de lei de iniciativa popular sobre a Vida Pregressa dos Candidatos a eleições, também conhecido como Projeto Ficha Limpa.

A atuação da imprensa também foi criticada pela entidade. A CNBB afirmou que os meios de comunicação têm divulgado a prática de corrupção nos meios políticos "como um círculo vicioso, um hábito enraizado na inversão dos meios e do fim da ´coisa pública". E contestou ações da mídia por "semear na opinião pública a idéia da inutilidade do Congresso, desvalorizando a democracia". A nota foi assinada pelo presidente da confederação, Dom Geraldo Lyrio Rocha (Arcebispo de Mariana), pelo vice-presidente da entidade, Dom Luiz Soares Vieira (Arcebispo de Manaus) e pelo secretário-geral da CNBB, Dom Dimas Lara Barbosa (Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro).


A SUPERAÇÃO DA CORRUPÇAO NA POLÍTICA:
SALVAGUARDA DA ÉTICA E DA DEMOCRACIA

Na verdade, a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tm 6,10).

Nós, membros do Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, reunidos em Brasília, DF, nos dias 16 a 18 de junho de 2009, manifestamos indignação diante das repetidas acusações de corrupção nas instâncias dos Poderes constituídos. A corrupção e a decorrente impunidade constituem grandes ameaças ao sistema democrático.

A corrupção aumenta o fosso das desigualdades sociais, como também a miséria, a fome e a pobreza. Além de ferir gravemente o princípio do destino universal dos bens, raramente se tem notícias sobre a restituição dos recursos e bens públicos usurpados. A corrupção trai a justiça e a ética social, compromete o funcionamento do Estado, decepciona e afasta o povo da participação política, levando-o ao desprezo, perplexidade, cansaço, revolta, e ao descrédito generalizado, não somente pelos políticos, mas também pelas Instituições Públicas.

A imprensa nacional e os órgãos públicos competentes têm divulgado a prática de comprovada corrupção nos meios políticos como um círculo vicioso, um hábito enraizado na inversão dos meios e do fim da “coisa pública”. Ao mesmo tempo em que a mídia funciona como caixa de ressonância, denunciando os males presentes na vida política, muitas vezes pode semear na opinião pública a idéia da inutilidade do Congresso, desvalorizando a democracia.

Diversas instâncias da sociedade civil já se manifestaram em favor da reforma política para, entre outros objetivos, sanar os males da corrupção sedimentados na vida pública. A Igreja quer contribuir para o bem comum, lembrando as exigências éticas do Evangelho. A política é um serviço ao bem comum, na construção da sociedade justa, fraterna e solidária. Os políticos sejam pessoas dotadas de virtudes sociais, como competência, retidão, transparência e espírito de serviço, sendo os primeiros responsáveis pela ordem justa na sociedade. A superação da corrupção exige pessoas e partidos com perfil íntegro para o exercício do mandado público.

Convocamos a todos para que, através do Projeto de Lei de Iniciativa Popular sobre a Vida Pregressa dos Candidatos (Projeto Ficha Limpa), da Reforma Política e outras mobilizações, possamos garantir eleições regidas pela ética em 2010, fortalecendo a participação e garantindo a credibilidade dos processos democráticos. Nesse sentido, a Igreja oferece, por meio das escolas de Fé e Política, uma concreta e valiosa contribuição.

Que Nossa Senhora Aparecida, serva de Deus e da humanidade, ajude o povo brasileiro a combater a corrupção, criando condições para uma sociedade justa e plenamente democrática.

Dom Geraldo Lyrio Rocha
Arcebispo de Mariana
Presidente da CNBB

Dom Luiz Soares Vieira
Arcebispo de Manaus
Vice-Presidente da CNBB

Dom Dimas Lara Barbosa
Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro
Secretário-Geral da CNBB

Fonte: CNBB

18/06/2009

Pe. Luiz Augusto Ramos Vieira

Bangladesh: terra de um mar de gente

É a nação com mais densidade populacional do mundo. É como colocar toda a população do Brasil dentro do Estado de São Paulo
Fonte: Missionários Xaverianos do Brasil


Com uma população de cerca 150 milhões de habitantes, o Bangladesh é hoje a nação com mais densidade populacional do mundo. O país tem uma extensão geográfica mais ou menos como o Estado do Paraná. É como se colocássemos toda a população do Brasil dentro do Estado de São Paulo. Façam uma idéia de como seja grande, entre essa multidão de gente, a procura pela terra. Somente para dar um exemplo cerca de 85% das causas judiciais aqui são por problemas que envolvem a terra. A grande maioria do povo, por volta de 98%, é bengalês e os outros 2% são aborígines e tribais. Com relação à religião, quase 90% são muçulmanos, 8% hinduístas e cerca de 2% entre budistas, cristãos e religiões tradicionais.

A vida aqui é predominantemente rural, por isso 75% da mão de obra é empregada no cultivo do arroz e de outros produtos como a juta e vegetais vários. Infelizmente, os bengaleses vivem ainda num sistema de castas, isto é de divisão social, mesmo se as vezes isso é mascarado. Originalmente, as castas eram apenas quatro: os brâmanes (religiosos e nobres), os xatrias (guerreiros), os vaixas (camponeses e comerciantes) e os sudras (escravos). À margem dessa estrutura social havia os párias, sem-casta ou intocáveis. Com o passar do tempo, vêm acontecendo centenas de subdivisões que não param de se multiplicar. Nós missionários xaverianos estamos trabalhando com as pessoas consideradas sem casta.

Geralmente, os bengaleses se sentem orgulhosos da pátria deles, de sua língua e sua cultura, mas certamente não são tão felizes de viver neste sistema excludente e opressor. Sentem vergonha, na própria pele, do duro peso que o “destino” reservou para eles, sobretudo os sudras e os intocáveis que fazem trabalhos considerados indignos, como coveiro ou curtumeiro, e outros empregos que os mantêm em constante contato com aquilo que o resto da sociedade considera desagradável. Eles são considerados individualmente sujos, e assim não podem ter contato físico com os “puros”, da sociedade. Vivem separados do resto das pessoas. Ninguém pode interferir em sua vida social, pois os intocáveis são os últimos, são considerados menos que humanos e não são considerados parte do sistema de castas.

Em contrapartida, as pessoas aqui pensam e agem sempre em grupo. Pelo menos tinha sido assim até pouco tempo. Todavia hoje com a globalização a idéia de individualismo começa a surgir também no meio deles. De qualquer modo, para exemplificar, não dizem quase nunca “o meu país”, “o meu vilarejo”, “a minha casa”, etc., mas preferem dizer “o nosso país”, “o nosso vilarejo”, “a nossa casa”. A ação de um indivíduo pode refletir diretamente sobre a vida do grupo. Um ato de maldade difama todo o grupo e, ao contrário, uma ação boa concede a todos que fazem parte do grupo uma boa reputação. Talvez aqui encontramos a raiz do fato que o conceito de privacidade para eles seja um tanto diferente do nosso. Por isso, logo no inicio nos assustam com suas perguntas que parecem violar nossa intimidade. Por exemplo, uma das frequentes perguntas que fazem quando lhe vêm pela primeira vez é o que veio fazer no Bangladesh, se você é casado, se tem filhos, qual o seu salário, etc.

A Igreja ensina que os missionários “para poderem dar frutuosamente este testemunho de Cristo, unam-se a esses homens com estima e caridade, considerem-se a si mesmos como membros dos agrupamentos humanos em que vivem, e participem na vida cultural e social através dos vários intercâmbios e problemas da vida humana; familiarizem-se com as suas tradições nacionais e religiosas; façam assomar à luz, com alegria e respeito, as sementes do Verbo nelas adormecidas;” (Concílio Vaticano II, Decreto Ad Gentes, 11). Somente se estivermos livres de julgamentos precipitados, conseguiremos perceber as sementes do Evangelho já presentes no Bangladesh antes mesmo da chegada dos primeiros missionários portugueses há 400 anos. Quando entramos numa nova realidade compreendemos melhor o que significa tirar as sandálias dos pés, porque o lugar no qual estamos pisando é sagrado (cf. Ex 3,4b). Resta-nos, então, confiar em Deus que nos chamou para a missão, ter humildade suficiente para saber que somos apenas instrumentos d’Ele e é Ele quem faz e age em nós.

16/06/2009

Entrevista - Rosino Gibellini

Karl Rahner, o primeiro teólogo católico moderno

Rosino Gibellini é doutor em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e doutor em filosofia pela Universidade Católica de Milão. Dirige as coleções Giornale di Teologia e Biblioteca de teologia contemporânea da Editora Queriniana de Brescia, Itália. O estudioso é autor, entre outros livros, de A teologia do século XX (Edições Loyola, 1998). Ele já concedeu várias entrevistas para a revista IHU On-Line.
Fonte: UNISINOS



IHU On-Line – Quais eram, para Rahner, os principais desafios e as principais possibilidades da modernidade para a vida de fé?

Rosino Gibellini – Karl Rahner compreendeu os sentidos dos desafios da modernidade para a teologia cristã, assim como, em seu tempo, Schleiermacher as tinha compreendido. Na análise da situação cultural e teológica – a qual era possível diagnosticar já nos anos 50 do século XX –, Rahner identificava três elementos característicos:

a) vivemos numa sociedade secular e pluralista, em que os enunciados da fé perderam a sua obviedade;

b) justamente com o pluralismo, é preciso registrar um aumento dos conhecimentos em todas as áreas do saber, o que torna particularmente difícil fazer sínteses;

c) a essas dificuldades modernas da anunciação cristã e do fazer teologia, deve-se acrescentar uma espécie de enrijecimento (Fixierung) e de incrustação (Verkrustung) de conceitos teológicos que, permanecendo imutáveis no decorrer dos séculos, não correspondem mais à situação transformada da vida e da cultura do homem moderno. Daí a sua tentativa de uma reforma metodológica da teologia católica.

IHU On-Line – Como avaliar as ideias de Rahner, claramente em diálogo com a modernidade, quando alguns pensadores afirmam que já estamos vivendo na pós-modernidade? Rahner estaria superado?

Rosino Gibellini – Poder-se-ia dizer que Rahner é o primeiro teólogo católico moderno. A modernidade é caracterizada pela racionalidade crítica (Descartes, Kant), e Rahner introduziu na teologia católica o exercício da racionalidade crítica, que iria substituir a racionalidade metafísica da neoescolástica e da prática católica. A grande teologia francesa visava principalmente uma reforma do tomismo na linha de Maritain e Gilson. A tentativa de Rahner é mais ousada.

E o dever do exercício da racionalidade crítica na teologia permanece também no tempo da pós-modernidade, que é interpretada como “modernidade tardia” (Habermas) ou como “nova modernidade” (Robert Schreiter): o exercício da racionalidade crítica deverá unir-se, no tempo da pós-modernidade, à atenção aos temas que foram esquecidos ou desvalorizados pelo projeto moderno (David Tracy).

IHU On-Line – Por que Rahner teve tanta importância nos debates do Concílio Vaticano II? Quais foram as circunstâncias que possibilitaram que ele tivesse essa relevância nos debates?

Rosino Gibellini – O Concílio Vaticano II (1962-1965) – anunciado de surpresa por João XXIII há 50 anos, no dia 25 de janeiro de 1959 – propôs uma “atualização” da igreja, para torná-la mais correspondente à sua missão pastoral. A teologia de Rahner estava em sintonia com esse programa. Justamente em 1959 – ano da proposta do Concílio – Rahner publicou “Missão e Graça”, que inicia com um significativo ensaio intitulado “Significado teológico do cristão no mundo moderno” (de 1954), em que ilustra a passagem do regime da cristandade para uma situação na qual a igreja existe como minoria no interior das nações; e no qual sustenta que tal situação não deve ser suportada, e sim assumida como “imperativo histórico de salvação” e afrontada como uma renovação dos métodos da práxis eclesiástica. Nota-se, então, que a teologia de Rahner estava em sintonia com o grande projeto inovador do Concílio.

IHU On-Line – Como Rahner se posicionava nas polarizações conceituais e políticas do Concílio? Frente a quais ideias e teólogos Rahner se posicionou contra ou a favor?

Rosino Gibellini – Com o Concílio já anunciado, Rahner foi atingido por uma “censura preventiva” para excluí-lo completamente do evento. Mas acabou chegando a Roma como perito pessoal do cardeal König, de Viena, presidente da Conferência Episcopal Austríaca. Introduziu-se nas comissões com cautela. Escreverá na “Breve correspondência do período do Concílio” publicada em 1986: “Pode ser que Alfredo Ottaviani, então prefeito do Santo Ofício, tenha notado que sou um teólogo completamente inofensivo e normal. E, dessa forma, aquele decreto romano (da censura preventiva), foi simplesmente esquecido”. Mas trabalhou com afinco, a ponto de tornar-se um dos teólogos mais célebres justamente durante o Concílio. Deve-se reconhecer, porém, que a verdadeira estrela do Concílio era Joseph Ratzinger, na época docente de teologia fundamental em Bonn e consultor oficial do cardeal Frings de Colônia, presidente da Conferência Episcopal Alemã. Escreveu Rahner (1962): “Com Ratzinger, me entendo bem. Ele é muito estimado por Frings”.

Rahner colocava-se na linha da renovação e nas polarizações se ocupava em lançar uma ponte entre tradicionalistas e progressistas. Suas maiores contribuições são em sede eclesiológica, mas também, e principalmente, sobre a doutrina católica da revelação e sobre uma compreensão mais profunda da vontade de salvação universal. Mas é no pós-Concílio que os caminhos se dividem. Para Rahner, o Concílio é o início de um caminho de reforma a dar continuidade para uma “transformação estrutural da Igreja”, como diz o título de um seu volume programático de 1972. O teólogo Ratzinger estará longe desse programa e insistirá sempre num retorno aos textos do Concílio, dos quais somente resulta o espírito do evento Conciliar. Se Rahner ressalta a descontinuidade operada pelo Concílio, Ratzinger interpretará o Concílio no sentido da continuidade.

IHU On-Line – Quais foram as contribuições de Rahner para o diálogo inter-religioso e o ecumenismo?

Rosino Gibellini – O maior ecumenista católico no Concílio era o teólogo francês Congar, mas a solução católica mais avançada para o problema ecumênico no pós-Concílio foi dada por Karl Rahner e por Heinrich Fries, que assinaram o mediato e corajoso texto “União das Igrejas – Possibilidade real” (1984), que aparecia como nº 100 da célebre Biblioteca Herderiana Quaestiones Disputatae”. Livro e projeto que o teólogo Ratzinger criticou.

Rahner também deu sua contribuição à teologia das religiões com a sua tese dos “cristãos anônimos”, que lhe permitia ver as religiões não-cristãs como “vias legítimas de salvação”, na dependência de “todo o verdadeiro e o bom do cristianismo”, como a monografia completa de Doris Ziebritzki sobre o tema publicada na Coleção “Innsbrucker theologische Studien” reconstruiu.

A contribuição de Rahner deve ser agora criticamente integrada a uma grande bibliografia, católica e ecumênica, que se desenvolveu nas últimas duas, três décadas. Resumo a passagem desta forma: “Do cristianismo anônimo a um cristianismo relacional”.

IHU On-Line – Frente aos atuais problemas de governo da Igreja, Rahner ainda oferece respostas? Como Ratzinger vê Rahner?

Rosino Gibellini – Rahner e Ratzinger são duas grandes figuras da teologia da época moderna. O teólogo jesuíta espanhol Santiago Madrigal dedicou uma recente monografia ao confronto entre os dois teólogos: duas grandes personalidades que colaboraram na realização do Concílio, mas que depois se diferenciaram na concreta aplicação deste, até entrar, sob certos aspectos, como teólogos, em contraste entre si, mas convergentes sobre a dificuldade do dever, assim expresso por Rahner: “Com certeza passará muito tempo até que a igreja, que recebeu de Deus a graça do Concílio Vaticano II, seja a igreja do Concílio Vaticano”.

IHU On-Line – Como Rahner é visto hoje na teologia? Quais são seus principais discípulos nos debates teológicos atuais?

Rosino Gibellini – Rahner é o protagonista da virada antropológica na teologia católica, que mantém “o ouvinte da Palavra“ sempre presente na proposição da verdade cristã, e se confronta, portanto, com a cultura moderna. Essa é uma das maiores linhas da teologia do século XX, que se diferencia (sem se contrapor) das teologias da identidade católica, representadas pelas figuras de Von Balthasar e Ratzinger.

Rahner fez escola e teve numerosos discípulos, dos quais o mais criativo, que, partindo de Rahner foi além de Rahner, é Johann Baptist Metz, em cujo pensamento a racionalidade crítica se concretiza com a racionalidade prática, que desenvolve as implicâncias históricas e sociais do pensamento cristão.

IHU On-Line – Passados 25 anos de sua morte, qual é a principal herança que Rahner deixou para a Igreja?

Rosino Gibellini – Vinte e cinco anos após sua morte (30 de março de 1984), está em fase de avançada realização a edição crítica da Opera omnia do grande teólogo, que representará um seguro ponto de referência para o futuro da teologia. Recordo de ter participado, com Gustavo Gutiérrez (que se encontrava naquele mês em Roma) dos solenes funerais do teólogo alemão em Innsbruck, onde havia se retirado nos últimos anos. Nos funerais também estavam presentes Metz, Lehmann, Kasper e Schillbeeckx. Aos participantes, foi distribuído o Boletim informativo dos Jesuítas da província da Alemanha meridional (datado em München, abril 1984/2), dedicado à figura de Rahner. Sempre o conservei e comentei várias vezes com os jovens teólogos a sua última entrevista ali reproduzida. O entrevistador perguntava: “Como se pode transmitir a fé à nova geração?” Rahner respondia: “Antes de tudo deve-se pregar bem. Para pregar bem, deve-se primeiro estudar bem teologia. Mas, para pregar bem, devem existir homens vivos, devotos, radicalmente cristãos, que possam pregar. Naturalmente também deve existir uma certa liberdade no exercício de uma atividade apostólica ou pastoral”. A teologia, portanto, é um instrumento do anúncio e da missão.

O teólogo evangélico Wolfhart Pannenberg identificou bem o maior legado de Karl Rahner, vendo na teologia rahneriana uma das tentativas mais consistentes do nosso tempo de manter aberta a racionalidade reduzida da cultura secular ao mais vasto horizonte de uma racionalidade que reconhece também o mistério de Deus “enquanto ele nos ensinou a ver em cada tema teológico, aquilo que é universalmente humano”, introduzindo-se assim no vasto sulco da mais autêntica teologia cristã: “A aliança com a razão pertence desde o início á dinâmica missionária do Evangelho”.

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