12/03/2009

O nome escondido de Deus é revelado

Mark Sameth, formado pelo Hebrew Union College-Jewish Institute of Religion, rabino da Sinagoga Comunitária de Pleasantville, em Nova Iorque, publicou um polêmico artigo na revista Reform Judaism, em sua edição do primeiro quadrimestre de 2009. No texto, Sameth defende que o verdadeiro nome de Deus, tão buscado por gerações e gerações de judeus, é, na verdade, um nome andrógino, que mescla em equidade "todas as energias masculinas e femininas". A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Quando Deus começa a criar o primeiro ser humano – Adão – ele diz: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança". O texto continua: "Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher" (Gênesis 1, 26-27).

O texto parece estar dizendo (e os rabinos do Talmud e do Midrash entendem dessa forma) que Adão foi criado por Deus como homem e mulher. Os rabinos falam abertamente disso, e até compuseram com esmero relatos especulativos sobre a separação dessa criatura hermafrodita em personagens homem e mulher que conhecemos como Adão e Eva. O que os rabinos não estavam dispostos a discutir abertamente era até onde essa criatura terrena foi criada "b’tzelem Elohim", na imagem de gênero duplo de Deus.

Mas se lermos o texto como um místico o leria, prestando uma atenção extremamente grande e assumindo que o texto bíblico mais esconde do que revela, podemos encontrar pistas que se referem à natureza andrógina de Deus. Consideremos, por exemplo, que a Torá:

  • identifica Moisés como um pai que amamenta (Números 11, 12) [1]
  • nos diz que Adão deu o nome de Eva a sua esposa "ki hu hay’tah eim", "porque ele era a mãe de todos os seres vivos" (Gênesis 3, 20) [2]
  • narra que Abraão instruiu o seu servo para estar atento a uma mulher que irá dar água aos camelos porque "hu ha’ishah", "ele será a mulher" para o meu filho (Gênesis 24, 44) [3]
  • e a lista continua.

Por que a Torá repetidamente confunde os gêneros de seus personagens principais? A que a Torá está aludindo?

Eu acredito que esses não são erros/enganos de escrita, mas a verdadeira chave para abrir um dos mistérios mais permanentes da Torá.

Mas antes uma nota sobre as muitas ocorrências estranhas na Torá sobre os nomes. O nome do nosso patriarca Jacó é duas vezes modificado para Israel. Faraó não é um nome. E Moisés não é um nome. Moisés, em egípcio, significa "nascido de" – assim como no nome Tutmosis (nascido de Tut).

Consideremos: se o nome do nosso grande líder Moisés não é realmente um nome, ele significa alguma outra coisa? De um modo interessante, se soletrarmos o nome Moisés em hebraico de trás para frente, Moshe se torna HaShem, que literalmente significa "O Nome", uma das formas dos judeus se referirem a Deus.

Então, consideremos: se o nome de Moisés soletrado de trás para frente se torna HaShem, refletindo a natureza divina do ser humano, o nome de Deus, soletrado de trás para frente, não deveria refletir, da mesma forma, algo essencial sobre o gênero humano? De fato, sim.

Observem o Yod-He-Vau-He [YHWH], o inefável nome de Deus. Conhecido como o Tetragrammaton, permitiu-se que o Nome fosse usado nas saudações diárias pelo menos até o ano 586 a.C., quando o Primeiro Templo foi destruído (Mishnah Berakhot 9, 5). Nesse tempo, sua pronúncia era permitida apenas aos sacerdotes (Mishnah Sotah 7, 6), que o pronunciavam em sua benção pública ao povo. Depois da morte do Sumo Sacerdote Shimon HaTzaddik, por volta do ano 300 a.C., (Talmud Babilônico, Tractate Yoma 39b), o nome foi pronunciado apenas pelo Sumo Sacerdote no Santo dos Santos no Yom Kippur (Mishnah Sotah 7:6; Mishnah Tamid 7, 2). Os sábios passavam a pronúncia do Nome aos seus discípulos apenas uma vez (alguns dizem duas vezes) a cada sete anos (Talmud Babilônico, Tractate Kiddushin 71a). Finalmente, com a destruição do Segundo Templo em 70 a.C., o Nome nunca mais foi pronunciado.

Mais tarde, alguns especularam que o Nome era pronunciado como "Jeová" ou possivelmente "Yahweh", mas os estudiosos não concordaram. Ninguém sabia com certeza como se pronunciava o inefável Nome de Deus.

Mas e se o Yod-He-Vau-He foi por muito tempo impronunciável pela simples razão de que está escrito ao contrário?

De trás para frente, o Nome de Deus se torna He-Vau-He-Yod. E essas duas sílabas, He-Vau e He-Yod, podem ser vocalizadas como os sons equivalentes dos pronomes hebraicos "hu" e "hi", que são traduzidos como "ele" e "ela" respectivamente. Combinando-os, He-Vau e He-Yod se torna "Ele-Ela".

Ele-Ela, eu acredito, é o impronunciável Nome de Deus! Esse segredo esteve escondido a olhos vistos durante todos esses anos, porque se afirma explicitamente na Torá: Deus criou a terra e as criaturas à própria imagem de Deus, masculino e feminino.

É desnecessário dizer que a noção de um Deus andrógino que cria essencialmente seres humanos andróginos tem profundas implicações. Há muito tempo, o Zohar, o livro de misticismo judeu por excelência, declarou: "É de incumbência de um homem ser sempre masculino e feminino" – uma afirmação estranha, especialmente no século XIII. Mas a nossa sociedade recentemente começou a mostrar sinais de ser capaz de entender e de querer aceitar essa mensagem.

O Dr. James Garbarino, um dos especialistas mais influentes da nossa geração em desenvolvimento de crianças, observa que as chamadas "meninas tradicionais que tem apenas características 'femininas' estão em desvantagem no que se refere ao coping[4]" e os chamados meninos tradicionais também estão em desvantagem. "Combinar os traços tradicionalmente femininos com os traços masculinos", escreveu Garbarino em "See Jane Hit", "contribui para uma maior resiliência".

O rabino Jeffrey Salkin, autor de "Searching for My Brothers", indica que as culturas judaicas e ocidentais mantiveram por muito tempo perspectivas diferentes sobre a questão da androginia. Enquanto a cultura ocidental diz "seja um homem", ele explica, a mensagem da cultura judaica sempre foi "seja um homem bom". Ser um homem bom – o que ele define como "masculinidade madura" – é "uma combinação tanto de traços masculinos quanto de femininos".

Em seu famoso livro "Deborah, Golda, and Me", a feminista judaica Letty Cottin Pogrebin desafia os judeus a "ampliar a capacidade do homem para as expressões emocionais e para o cuidado com a família, e a expandir as opções das crianças independentemente de seu gênero. É possível", ela pergunta retoricamente, "que maiores oportunidades para as crianças, homens mais amorosos e mulheres mais competentes e confiantes não sejam bons para os judeus?".

Ao discutir o patriarcado em "The Torah: A Women’s Commentary", Rachel Adler comenta que o mundo "implora por reparos" – não apenas por causa das mulheres, mas por causa dos homens também. O trabalho do judaísmo reformado – de fato, o trabalho de todas as comunidades religiosas progressistas e igualitárias do mundo – requer um compromisso sempre mais profundo com esse reparo. Isso significa esforçar-se pela integridade em nós mesmos; com os nossos familiares; na relação entre si mesmo e a comunidade; e na relação entre as comunidades individuais e o mundo como um todo. Significa fazer tudo o que fizermos, nas palavras dos nossos místicos antigos, "l’shem yichud", basicamente pela causa da unificação de Deus.

Agora, baseados nessa nova compreensão de Deus como Ele-Ela, é o momento de livrar-nos da concepção estereotipada de Deus como um velho homem com uma longa barba branca nas nuvens. Pensar em Deus como Ele-Ela nos concede a liberdade de ver a Divindade como a totalidade de toda a energia masculina e feminina.

É o momento de considerarmos a mudança de nossas orações mais sagradas, particularmente aquelas que se referem a Deus como Senhor. Os antigos rabinos empregaram a palavra "Senhor" (Adonai, em hebraico) como um substituto respeitável para o impronunciável Tetragrammaton e recentemente alguns judeus reformistas – incluindo os editores de "The Torah: A Women’s Commentary" – preferiram não usá-lo. Com essa nova cognição do Tetragrammaton, podemos revisitar confiantemente nossa declaração de fé: "Shema Yisrael, Adonai Elohenu, Adonai Echad – Escuta, Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é Um" (Deuteronômio 6, 4) e afirmar, pelo contrário: "Shema Yisrael, Adonai Elohenu, Adonai Echad – Escuta, Israel, Ele-Ela é nosso Deus, Ele-Ela é Um".

É o momento de afirmarmos que a tradição de igualdade de gênero da reforma do judaísmo – que deu poder às mulheres para se tornarem rabinas, cantoras e líderes leigas da congregação – não é uma invenção moderna e, de certa forma, menos autêntica, mas sim emblemática da mais antiga concepção de Deus do judaísmo.

E é o momento de repensarmos como escolhemos passar adiante a nossa herança às próximas gerações. Se você já tentou ensinar Deus a uma classe de estudantes judeus precoces, você provavelmente já ouviu aquele sussurro do fundo da sala: "Sim, claro". Bem, recentemente eu aproveitei a oportunidade e ensinei a minha turma pós-bar/bat mitzvah a minha idéia do nome secreto de Deus e seu significado. Então, discutimos sobre o que isso implicaria em nossas relações entre nós mesmos e com Deus. Quando terminamos, uma das jovens voltou-se para os outros que estavam sentados ao redor da mesa e disse as palavras pelas quais os rabinos dão sua vida: "O judaísmo", ela exclamou, "é tão legal".

Notas:

1. O versículo, na edição Ave Maria, diz: "Porventura fui eu que concebi esse povo? Ou acaso fui eu que o dei à luz, para me dizerdes: leva-o em teu seio como a ama costuma levar o bebê, para a terra que, com juramento, prometi aos seus pais?".

2. "Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela era a mãe de todos os viventes", na edição Ave Maria. Ou "O homem chamou sua mulher Eva, por ser a mãe de todos os viventes", na Bíblia de Jerusalém.

3. "A jovem que vier buscar água e a quem eu disser: Dá-me de beber, por favor, um pouco de água de teu cântaro, e que responder Bebe, não somente tu, mas tirarei água também para os camelos, essa deverá ser a mulher que o Ssenhor destinou para o filho do meu senhor’."

4. Coping é o termo da psicologia utilizado para designar o conjunto de estratégias cognitivas e comportamentais desenvolvidas pelo sujeito para lidar com as exigências internas e externas que são avaliadas como excessivas (circunstâncias adversas ou estressantes), ou as reações emocionais dessas exigências.