10/06/2009

Às vésperas da nova encíclica, Marx retorna da Alemanha

Faltando poucas semanas para a publicação da “Caritas in veritate”, o jurista católico alemão Ernst Wolfgang Böckenförde, muito estimado pelo papa, quer que seja a Igreja quem escreva o definitivo “manifesto” contra o capitalismo, que deve ser desarticulado a partir de seus fundamentos, enquanto desumano. A análise é de Sandro Magister, publicada em seu sítio Chiesa, 05-06-2009. A tradução é de Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS


Da encíclica econômico-social, que há tempo está em gestação, se conhecem as primeiras palavras latinas: “Caritas in veritate”. Prognostica-se que será subscrita pelo papa aos dois de junho e difundida no início do verão europeu. Sabe-se que ela passou por várias reelaborações, que até a última deixaram Bento XVI insatisfeito.

Diversamente da encíclica sobre a esperança, escrita pessoalmente pelo papa da primeira linha até a última, e diversamente da encíclica sobre a caridade, cuja primeira metade também foi toda de escrita papal, na “Caritas in veritate” trabalharam muitas mentes e muitas mãos. Mas, Bento XVI lhe deixará, em todo o caso, sua própria marca, já visível nas palavras do título que conjugam indissoluvelmente caridade e verdade.

Sobre qual será esta marca papal, a curiosidade é forte. Porque pouco se conhece do pensamento de Joseph Ratzinger em matéria de economia. Em toda sua interminável produção de ensaios, somente um resulta ser dedicado expressamente a este tema. É uma conferência em língua inglesa, de 1985, intitulada: “Market economy and ethics”.

Naquela conferência, Ratzinger sustentava que uma economia que se priva de qualquer fundamento ético e religioso é destinada ao colapso. Hoje que um colapso efetivamente existiu, esperam- se, portanto, de Bento XVI análises e propostas mais circunstanciadas.

Há poucos meses, respondendo à pergunta de um sacerdote de Roma, o papa se expressou assim:

É dever da Igreja denunciar os erros fundamentais que se mostraram hoje no desmoronamento dos grandes bancos americanos. A avareza humana é uma idolatria que vai contra o verdadeiro Deus e é uma falsificação da imagem de Deus com um outro deus, Mamona. Devemos denunciar isso com coragem, mas também concretamente, porque os grandes moralismos não ajudam se não são sustentadas pelo conhecimento da realidade, que ajuda a entender o que de concreto se pode fazer. A Igreja desde sempre não só denuncia os males, mas mostra os caminhos que conduzem à justiça, à caridade, à conversão dos corações. Também na economia a justiça só se constrói se houver os justos. E estes se formam com a conversão dos corações”.

Era o dia 26 de fevereiro de 2009 e a encíclica estava em fase de redação. Estas palavras do papa tiveram o efeito de aumentar a curiosidade.

* * *

Mas, a curiosidade se tornou ainda mais intensa desde que saiu, em maio, o artigo bomba de um estudioso alemão que Ratzinger sempre leu com interesse e com estima.

O estudioso é Ernst-Wolfgang Böckenförde, coetâneo do papa, católico, filósofo, insigne cientista político. Marcou época um ensaio seu no qual sustentava o que foi depois definido como “o paradoxo de Böckenförde: a tese segundo a qual “o Estado liberal secularizado vive de pressupostos que não pode garantir”.

Nessa tese se basearam, aos 19 de janeiro de 2004, o então cardeal Ratzinger e o filósofo francofortense Jürgen Habermas para um debate em Munique, na Baviera, sobre o tema: “Ética, religião e Estado liberal”.

Pois bem, num artigo para a Süddeutsche Zeitung, publicado em maio também na Itália pela revista dos religiosos devonianos de Bolonha Il Regno – e reproduzido integralmente mais abaixo – Böckenförde aplicou seu “paradoxo” também ao capitalismo, mas em termos muito mais devastadores.

A seu juízo, os princípios sobre os quais se fundamenta o sistema econômico capitalista não se sustentam mais. Seu desmoronamento atual é definitivo e pôs a descoberto as bases desumanas de tal sistema. A economia exige, por conseguinte, ser reconstruída a partir da base, sobre princípios não mais de egoísmo, mas de solidariedade. Toca aos Estados, in primis na Europa, assumir o controle da economia. E toca à Igreja, com sua doutrina social, recolher o testemunho de Marx, que havia enxergado corretamente.

Contra o “manifesto” anticapitalista de Böckenförde reagiram, na Itália, os economistas católicos mais acreditados junto à Igreja, entrevistados por Il Foglio: Luigi Campiglio, pro-reitor da Universidade Católica de Milão; Dario Antiseri, filósofo e cultor da escola econômica liberal de Viena; Flavio Felice, docente na Pontifícia Universidade Lateranense e presidente do Centro de Estudos Tocqueville-Acton; Ettore Gotti Tedeschi, banqueiro e comentador econômico para L’Osservatore Romano.

Em particular, Antiseri objeta que “revalidar hoje Marx é como continuar sendo ptolemaicos após Copérnico e Newton”; que “o individualismo é o oposto do coletivismo, não do solidarismo, e isto é possível somente quando se criam riquezas a compartilhar, como ocorre nas sociedades capitalistas”; e enfim, que de Bento XVI não se pode esperar que se afaste da “Centesimus annus” de João Paulo II e da “Rerum novarum” de Leão XIII com sua “defesa lúcida e apaixonada da propriedade privada”.

Flavio Felice contesta, em Böckenförde, a visão irreal de uma “economia angélica” alternativa a um capitalismo identificado com a pura cobiça do ganho. E, a propósito do controle salvífico do Estado sobre a economia faz notar que a encíclica de João Paulo II “Centesimus annus”, no parágrafo 25, põe em guarda precisamente em relação a esta utopia: “Quando os homens consideram possuir o segredo de uma organização social perfeita que torne impossível o mal, pensam também poder usar todos os meios, mesmo a violência ou a mentira, para realizá-la. A política torna-se, então, uma ‘religião secular’, que se ilude pensando poder construir o paraíso neste mundo”.

Ettore Gotti Tedeschi observa que Böckenförde se lança contra um capitalismo de matriz protestante, no qual dominam o egoísmo e a incapacidade humana de fazer o bem. Mas, não se dá conta que existe um capitalismo que concorda com a doutrina católica, do qual os papas, de Leão XIII a João Paulo II, denunciaram os erros, mas aceitaram a validez de fundo, ligada à propriedade privada e à liberdade de investir e de comercializar.

Num artigo em Il Sole 24 Ore – o cotidiano econômico mais difundido da Europa – Gotti Tedeschi sustentou que o atual desequilíbrio mundial não nasce dos excessos de avidez ou da falta de regras. Estes agravaram a crise, mas não a causaram. A verdadeira causa tem sido a redução dos nascimentos (?) e, portanto, daquele capital humano que é o único que podia assegurar o necessário crescimento de produção da riqueza.

O ataque frontal conduzido por Böckenförde ao capitalismo deverá, no entanto, ser mensurado com a resposta que a “Centesimus annus”, no parágrafo 42, dá à pergunta se o capitalismo seria um sistema que corresponde ao “verdadeiro progresso econômico e civil”.

A resposta da encíclica é a seguinte:
“Se com ‘capitalismo’ se indica um sistema econômico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da conseqüente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no setor da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de economia de empresa, ou de economia de mercado, ou simplesmente de economia livre”.

Em seu artigo, o estudioso alemão solicita, ao invés, à doutrina social da Igreja que se acorde de seu “sono de bela adormecida” e se aplique a uma “radical contestação” do capitalismo, tornada obrigatória por seu atual “evidente desmoronamento”.

Será, pois, interessante saber também como Böckenförde comentará a “Caritas in veritate”, quando for publicada.

Mas eis, entrementes, a seguir, seu artigo bomba, publicado na Itália em Il Regno n. 10 de 2009.

Para ler mais:


O HOMEM FUNCIONAL. CAPITALISMO, PROPRIEDADE, PAPEL DOS ESTADOS

Artigo "O homem funcional. Capitalismo, propriedade, papel dos Estados", de Ernst-Wolfgang Böckenförde, citado e comentado no "Às vésperas da nova encíclica, Marx retorna da Alemanha". A tradução é de Benno Dischinger. Fonte: UNISINOS

A crise bancária e consequentemente econômica que investiu contra nós e ainda está bem longe de terminar, levanta muitas questões. Foi ela causada pela irresponsabilidade e pela avidez de bancos desvairados, especialmente bancos de investimento? Ou então, pela falta de regras rígidas para os mercados financeiros internacionais, pelo não funcionamento do controle sobre bancos e finanças, pela separação e independência de uma economia financeira virtual (e acrobática), pela economia real da produção e dos bens? Provavelmente contribuíram para ela diversos fatores do gênero, ligados a uma ingênua confiança num mercado “livre” e sem regras.

Mas, a busca das causas unicamente nesta direção não nos leva longe. De fato, aquele sistema que se foi constituindo neste campo por décadas com sucesso e com amplos lucros materiais, mas também com uma crescente distância entre pobres e ricos, aquele “turbo-captialismo” (assim chamado por Helmut Schmidt) que, com a globalização mundial, atingiu uma nova qualidade, antes de provocar um desmoronamento, não pode ser definido e explicado fazendo referência somente a comportamentos errados de indivíduos isolados ou também de grupos.

Isso certamente pode ter contribuído, porém, mais globalmente se trata dos frutos de um sistema de interação consolidado e muito difundido, que segue uma lógica funcional própria, e a ela subordina todo o resto. Este sistema de interação se transformou num sistema de ação: o capitalismo moderno. Ele forja o comportamento econômico (e, em parte também não econômico) dos indivíduos e o integra no sistema. Estes são certamente os atores, mas, em seu comportamento não seguem tanto um impulso pessoal livre, senão antes os estímulos que derivam do sistema e de sua lógica funcional.

O caráter desumano do capitalismo

Mas, como se apresenta mais precisamente o capitalismo moderno enquanto sistema de ação? Nisso pode ajudar-nos um grande sociólogo humanista do século passado, Hans Freyer. Em seu livro “Theorie des gegenwärtigen Zeitalters [Teoria da época atual]” ele fala dos “sistemas secundários” como produtos específicos do mundo industrializado moderno e analisa com precisão sua estrutura [1].

Os sistemas secundários são caracterizados pelo fato de desenvolverem processos de ação que não se conectam a ordenamentos preexistentes, mas se baseiam em poucos princípios funcionais, a partir dos quais são construídos e extraem sua racionalidade. Estes processos de ação integram o homem não como pessoa em sua integralidade, mas somente com as forças motrizes e as funções que são requeridas pelos princípios e por sua atuação. O que as pessoas são ou devem ser fica de fora.

Os processos de ação deste tipo se desenvolvem e se consolidam num sistema difuso caracterizado por sua específica racionalidade funcional, que se sobrepõe – influenciando-a, modificando-a e modelando-a – à realidade social existente.

Eis a chave para a análise do capitalismo como sistema de ação. Ele se baseia em poucas premissas: liberdade geral do indivíduo e de associações de indivíduos em matéria de aquisições e contratos; plena liberdade em matéria de transferências de mercadorias, negócios e capitais fora dos limites nacionais; garantia e livre disposição da propriedade pessoal (incluindo o direito de sucessão), entendendo com propriedade a posse de bens e dinheiro, mas também de saber, tecnologia e capacidade.

O objetivo funcional é a liberação geral de um interesse lucrativo potencialmente ilimitado, bem como potencialidades de ganho e de produção, que atuam no livre mercado e entram em competição entre si. O impulso decisivo é dado por um individualismo egoísta que impele as pessoas envolvidas a adquirir, inovar e ganhar. Tal impulso constitui o motor, o princípio ativo; ele não persegue um objetivo conteudístico persistente, que fixe medida e limites, mas uma ilimitada dilatação de si, o crescimento e o enriquecimento. Por isso precisa eliminar ou acantonar todos os obstáculos e todos os regulamentos que não são requeridos pelas supracitadas premissas. O único princípio regulador deve ser o livre mercado.

O ponto de partida e a base da construção não são a satisfação das necessidades dos homens e seu crescente bem-estar; estes seguem o processo e seu progresso e são, por assim dizer, uma consequência do sistema em funcionamento. O direito e o Estado como seu tutor têm unicamente a tarefa de assegurar a possibilidade de desenvolvimento e o funcionamento deste sistema de ação; são uma variável funcional, não uma força pré-existente de ordenamento e limitação.

O dinamismo e a influência sobre os comportamentos de tal sistema são enormes. O próprio sistema se torna e é sujeito de comércio. Realização de lucros, crescimento de capital, aumento da produção e da produtividade, auto-afirmação e crescimento no mercado constituem o princípio motor e dominante, cuja racionalidade funcional integra e subordina todo o resto. Os trabalhadores só são tomados em consideração com base na função que desenvolvem e os custos que comportam, pelo que se reduzem ao menor número possível. Sua substituição, onde for possível, por máquinas ou tecnologias automatizadas para reduzir os custos parece não só racional, mas economicamente necessária.

A compensação para os problemas sociais e os licenciamentos que deles derivam não entram nesta lógica funcional, mas é exigida do Estado e de sua função de garantia, que precisamente por isso pode impor taxas e exigir tributos que, em todo o caso, ainda comportam custos para as empresas. O princípio estrutural não é a solidariedade com as pessoas e entre elas; ela só é tomada em consideração como reparação para bloquear e em parte compensar as conseqüências danosas e desumanas do sistema, que se desenvolve baseado em sua própria lógica interna.

Não podem ser postas em dúvida as extraordinárias realizações, em termos econômicos e de bem-estar, que o capitalismo assim estruturado produz não só em determinados países, mas hoje também em nível mundial, apesar de todas as suas falhas e deficiências. Nós próprios, habitantes do Ocidente, haurimos grandes lucros. Todavia, não se pode não ver que se trata de um processo em contínua progressão. Com base em sua própria dinâmica, ele procura continuamente estender-se e integrar em sua lógica funcional todos os âmbitos da vida, na medida em que os mesmos têm um lado econômico, com amplas repercussões também no campo da cultura e do estilo de vida pessoal. Resulta daqui a difusão do traço economicista em todos os aspectos da vida. Hoje nós o constatamos principalmente no sistema sanitário.

Marx tinha visto corretamente

Já há mais de 150 anos Karl Marx o havia claramente analisado e expresso e se fica impressionado pela atualidade de seu prognóstico: “Graças ao desfrutamento do mercado mundial, a burguesia tornou cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Privou a indústria de seu fundamento nacional. As antiqüíssimas indústrias nacionais foram e são diariamente aniquiladas. São substituídas por indústrias novas, cuja introdução se torna uma questão de vida ou de morte para todas as nações civis, indústrias que não trabalham mais matérias primas locais, e sim matérias primas importadas das zonas mais distantes e nas quais os produtos não são consumidos exclusivamente no país, mas por toda parte no mundo. [...] Em lugar da antiga auto-suficiência e do isolamento local e nacional entra um tráfico universal, uma dependência universal recíproca entre as nações. E, como na produção material, assim também na intelectual. Graças à célere melhoria de todos os instrumentos de produção, às comunicações tornadas extremamente mais ágeis, a burguesia leva a civilização a todas as nações. Os baixos preços de suas mercadorias são a artilharia pesada com que ela deita ao solo todas as muralhas chinesas, [...] constringe todas as nações a adotar, se não querem morrer, o modo de produção burguesa [2].

Para nossa época é preciso acrescentar que, graças a uma perfeita organização em nível mundial do transporte de containeres via marítima, os custos do transporte de mercadorias e produtos são mínimos, pelo que as grandes distâncias não desencorajam mais, mas antes estimulam o comércio em nível mundial.

E não se situa fora do desenvolvimento, mas corresponde antes à sua lógica, o fato de que, na busca de possibilidades sempre novas de ganho, se difundam sempre mais, no campo dos mercados financeiros, os negócios baseados unicamente em capital fictício e em sua multiplicação, com a tendência de não serem tomados em conta os dados da economia real e de prejudicá-los. Karl Marx já vira também isto [3].

O Estado e o direito podem certamente fixar, do exterior, limites ao sistema do capitalismo e impor-lhe regras, limitar os excessos e as conseqüências inaceitáveis, na medida em que o ordenamento estatal, que de sua parte se vincula à promoção de uma economia favorável ao crescimento, tem a força para fazê-lo. E, em certa medida também o faz. No entanto, mesmo em caso de êxito, ela continua sendo uma correção marginal que deve ser extraída da lógica funcional do sistema, enquanto esta última visa sempre a maior desregulamentação possível.

Desmontar o capitalismo até seus fundamentos

De que mal sofre, portanto, o capitalismo? Não sofre apenas por causa dos seus excessos e da avidez e do egoísmo dos homens que nele operam. Sofre por causa do seu ponto de partida, do seu princípio funcional e da força que cria o sistema. Por isso, é impossível curar esta doença com remédios marginais; ela só pode ser curada mudando o ponto de partida.

É necessário substituir o extenso individualismo em matéria de propriedade, que toma como ponto de partida e princípio estruturador o lucro dos indivíduos potencialmente ilimitado, considerando ser ele um direito natural e não sujeito a alguma orientação conteudística, por um ordenamento normativo e uma estratégia de ação baseados no princípio segundo o qual os bens da terra, ou seja, a natureza e o ambiente, os produtos do solo, a água e as matérias primas não pertençam àqueles que por primeiro deles se apossam e os desfrutam, mas são destinados a todos os homens, para a satisfação de suas necessidades vitais e para a obtenção do bem-estar.

Este é um princípio radicalmente diverso; seu ponto de partida e de referência é a solidariedade dos homens em sua vida em comum e em competição. É daqui que é preciso deduzir as normas fundamentais, com base nas quais informar os processos de ação, tanto econômicos como também não econômicos [4].

A escolha de tal ponto de partida não é de todo nova. Ele se vincula a uma antiga tradição que só se perdeu no momento da passagem ao individualismo da propriedade e ao capitalismo. Tomás de Aquino, o grande teólogo e filósofo da Idade Média, afirma explicitamente que com base no direito natural, ou seja, no ordenamento da natureza querido por Deus, os bens terrenos são ordenados à satisfação das necessidades de todos os homens. A propriedade privada de cada um só existe no quadro desta destinação universal e a ele subordinada. Ela não pertence ao direito natural em si, mas é um acréscimo legislativo que se justifica por motivos práticos, porque cada um cuida acima de tudo daquilo que pertence a ele mesmo, antes do que a todos conjuntamente, por ser mais conforme ao objetivo que cada um possua e administre as coisas por si mesmo e, enfim, porque a propriedade privada favorece a paz entre os homens [5]. Depois, Tomás também distingue entre posse, administração e uso daquilo que se possui. Enquanto o primeiro diz respeito somente a cada indivíduo, o uso deve tomar em conta o fato de que os bens exteriores, com base em sua destinação originária, são comuns, pelo que, quem os possui deve compartilhá-los voluntariamente com os pobres [6]. Por isso, para Tomás, em caso de extrema necessidade, o furto não é pecado [7].

Aparece aqui um modelo que é contrário ao capitalismo. Um modelo que parte de outros princípios fundamentais e assim desmascara também o caráter desumano do capitalismo. A solidariedade não aparece mais como reparação para bloquear e compensar as conseqüências danosas de um individualismo desenfreado em matéria de propriedade, mas como princípio estruturante da convivência humana também em âmbito econômico.

Este ponto de partida opera de muitos modos: atribuição dos produtos do solo e das matérias primas naturais, relação com os bens de consumo e o ambiente, natureza, água e ar; papel diretivo daquilo que é trabalho em referência ao capital; limites à acumulação de propriedades e de capitais; reconhecimento dos outros seres humanos – também das futuras gerações – como sujeitos e parceiros no campo do uso, do comércio e da posse, ao invés de serem objetos de um possível desfrutamento.

Deste modo tem-se um quadro normativo, no interior do qual o sentido da posse e do uso pessoal e a garantia da propriedade podem e devem ter seu significado pragmático e sua função como forças motrizes do processo econômico e de seu progresso. Mas, permanecem ligados ao conceito prioritário da solidariedade, que oferece orientação conteudística e estabelece limites a uma expansão ilimitada.

Depois de Marx é a hora da igreja

Não é esta a sede para elaborar em detalhes tal modelo teórico e prático, inspirado pelo princípio de solidariedade. Os fundamentos para fazê-lo encontram-se na tradição da doutrina social cristã. Basta despertá-los de seu sono de bela adormecida no bosque e aplicar-se com decisão a traduzi-los em prática.

Esta doutrina social da Igreja assumiu amplamente, no que se refere ao capitalismo, impressionada por seus indiscutíveis êxitos, um comportamento antes defensivo. Ela o criticou sobre pontos específicos, em vez de po-lo em discussão enquanto tal. O evidente desmoronamento atual do capitalismo por causa de sua expansão ilimitada e quase desregulada pode e deveria permitir à doutrina social da Igreja uma contestação radical.

Para isso o magistério social pode referir-se simplesmente ao papa João Paulo II, o crítico mais lúcido e enérgico do capitalismo depois de Karl Marx. Já em sua primeira encíclica ele empreendeu uma avaliação do sistema enquanto tal, das estruturas e dos mecanismos que dominam a economia mundial no campo das finanças e do valor do dinheiro, da produção e do comércio. Em seu ponto de vista, eles se demonstraram incapazes de responder aos desafios e às exigências éticas do nosso tempo [8]. O homem “não pode tornar-se escravo das coisas, escravo dos sistemas econômicos, escravo da produção, escravo dos seus próprios produtos [9].

Mas, a nova orientação solidarista e a transformação de um extenso sistema econômico de ação que, como mostramos, não considera a natureza e a vocação do homem, e até as contradiz, não ocorre por si. Requer um poder estatal em condições de agir e decidir que ultrapasse a mera função de garantia do desenvolvimento do sistema econômico e de averiguação do paralelogramo das forças, mas assuma eficazmente a responsabilidade do bem comum mediante a limitação, a orientação e também a recusa da persecução do poder econômico, procurando continuamente reduzir ao mesmo tempo as desigualdades sociais.

É impossível realizar tal transformação com simples intervenções de coordenação. Mas, onde se encontra hoje tal estrutura social? Ante o tecido econômico mundial a força do Estado nacional não é mais suficiente, mas será sempre vencida pelas forças econômicas que operam em nível mundial. De outra parte, é impossível organizar uma estrutura estatal em nível mundial, sob a forma de Estado planetário. Isso se pode fazer somente para e em áreas limitadas, que estão relacionadas entre si e colaboram. O apelo é, pois, dirigido antes de tudo à Europa. Mas, terá ela a vontade e a força para fazê-lo?

Notas:

1. H. Freyer, “Theorie des gegenwârtigen Zeitalters“ [Teoria da época contemporânea], Deutsche Verlag-Anstalt, Stuttugart, 1956, p. 79 ss.
2. K. Marx, F. Engels, „Manifesto del partito comunista“, Marietti, Gênova, 1973, p. 60.
3. K. Marx, “Das Kapital”, vol. III, c. 25, Dietz-Verlag, Berlin, 1956, pp. 436-452.
4. Cf. E.-W. Böckenförde, „Ethische und politische Grundsatsfragen zur Zeit“ [Questões éticas e políticas fundamentais para a época], in Id., „Kirche und christlicher Gaube in den Herausforderungen der Zeit“ [Igreja e fé cristã nos desafios da época], Münster, 2007, pp. 362-366.
5. Tomás de Aquino, „Summa Theologiae“, IIa-IIae, q. 66, art. 2 e art. 7.
6. Ibidem, q. 66, art. 2, resp.
7. Ibidem, art. 7, resp.
8. Cf. João Paulo II, “Redemptor hominis”, 1979, n. 16. Cf. Tb.: Idem, “Laborem exercens”, 1981; Centesimus annus”, 1991.
9. João Paulo II, “Redemptor hominis”, 1979, n. 16.

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