Artigo de Carlos Frederico Barboza de Souza, professor de Cultura Religiosa na PUC-MG e doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Sua tese intitulada Religio Cordis: um estudo comparado sobre a concepção de coração em Ibn ´Arabi e João da Cruz (2008) foi eleita a melhor tese nacional de Teologia e Ciências da Religião deste ano. Como premiação, a pesquisa será publicada pela Editora Paulinas. Fonte: UNISINOS
“O Grande Silêncio”, filme produzido e dirigido pelo cineasta alemão Philip Gröning, tem enchido salas de exibição na Europa, apesar de seu estilo pouco comum para nossa época: não se utiliza de efeitos especiais e nem de elementos básicos como a iluminação; nada comum, seu ritmo, a sugerir uma comparação com a agitada movimentação presente na contemporaneidade, possui uma velocidade própria, demorando-se longamente em algumas cenas e tomadas. Além do mais, a filmagem foi realizada por apenas uma pessoa, seu diretor – o que explica, em parte, seu baixo custo para este tipo de produção –, e sua edição sugere que foi fruto de uma longa e criteriosa seleção de imagens, uma vez que o total do tempo filmado foi de 300 horas e o filme tem apenas 2 horas e quarenta minutos.
O cenário que serve de pano de fundo é a Grande Cartuxa (Grande Chartreuse), perto de Grenoble, na França, na região do maciço rochoso chamado de Vale de Chartreuse nos Alpes. É este também o local onde São Bruno (1035-1101) funda em 1084 o que seria a primeira comunidade desta ordem que ficou conhecida como Cartuxa e tem sua singularidade na vivência da vida eremítica e solitária em comunidade.
A maior parte da vida de um cartuxo se passa na solidão de sua cela, embora alguns se dediquem a trabalhos para a comunidade religiosa, como cozinhar, limpar o ambiente, preparar lenhas para o aquecimento etc., e para isso tenham que ficar um bom tempo fora dela. A cela cartusiana é como uma pequena casa, dividida em vários aposentos dedicados à atividades específicas como a oração e o trabalho, além de possuir um pequeno jardim e uma ante-sala chamada Ave Maria que é um cômodo na entrada da cela dedicado à Maria e na qual o monge se detém ao entrar e sair. Segundo a tradição mística cartusiana, o monge leva sua vida oculta e solitária no “Coração da Virgem Mãe”. A sala na qual ele se dedica à oração é dividida em dois espaços: uma alcova em que se encontra o oratório para suas orações e outro espaço dedicado ao estudo e leitura espiritual. Além disso, normalmente existe uma varanda coberta para que o monge possa se locomover nos dias de árduo inverno e neve. Estas celas encontram-se unidas a um claustro que conduz à igreja, centro da vida destes eremitas.
O dia de um cartuxo é todo ele marcado por momentos oracionais em conjunto ou solitariamente nas celas e se distribui entre a realização de trabalhos manuais ou intelectuais, canto ou recitação do Ofício Divino e a leitura espiritual ou o estudo. Normalmente, já nas primeiras horas do dia, ele inicia a Prima na sua cela e logo em seguida se dirige à igreja para a Eucaristia. Após este primeiro momento comunitário, retira-se para a cela, onde rezará as demais horas e terá suas refeições e trabalhos, só saindo de lá para as Vésperas, normalmente no meio da tarde. Voltará a sair da cela novamente para cantar o ofício da Vigília, que se realiza por volta das 23 horas, após quatro horas de sono. Este ofício dura ao redor de três horas e de novo os monges retornam às suas celas para mais um período de quatro horas de sono antes de reiniciarem o dia. Esta rotina cotidiana só é alterada nos domingos e solenidades, que incluem um passeio dois a dois ou em comunidade ao redor do mosteiro por cerca de duas ou três horas e também o almoço no refeitório em silêncio e em comum, ouvindo alguma leitura edificante enquanto se alimentam.
É a partir desta ambientação que Philip Gröning nos propõe uma espécie de contemplação sobre o silêncio e a vivência do tempo marcado pela comunicação com Deus que organiza toda a vida cartusiana.
O filme inicia-se com as seguintes palavras: “Somente em completo silêncio se começa a escutar; somente quando a linguagem cessa se começa a ver”. Depois destas palavras, foca-se num monge totalmente absorto em oração dentro de sua cela. A seguir, após uma cena do céu e do fogo, aparece a citação de I Rs 19, 11-13: é o relato da experiência de Elias no Horeb, que ocorre depois de uma longa jornada pelo deserto fugindo da perseguição da rainha Jezabel (I Rs 18, 20-40). Ele se encontra numa gruta e não reconhece a presença divina nem no “furacão que fendia as montanhas”, nem no terremoto e nem no fogo, mas apenas no “murmúrio de uma brisa suave”.
A seguir, se desenrolam cenas do cotidiano repetitivo dos cartuxos, marcados pelas mudanças das estações do ano e ritmados pela oração e comunhão com Deus em meio aos trabalhos realizados. São cenas que envolvem a oração na cela e na igreja, trabalhos, recreação em comum, acolhida a dois noviços, refeição etc. Estas cenas são entremeadas pelo ambiente físico de cunho religioso (imagens de santos, pia da água benta etc.), natural (fogo, neve, montanhas, a passagem do dia à noite etc.) ou por objetos úteis nas tarefas cotidianas (pratos, copos, botões etc.). Todos estes elementos compõem cenas em que transparecem a economia nos gestos e decoração, a inexistência do supérfluo, a praticidade e a organização sóbria e centrada no que é essencial.
Além destas imagens, é interessante perceber o tom de Sagrado presente em tudo. No canto dos salmos, sempre a introduzir elementos bíblicos e a esperança em Deus, Companheiro a habitar a solidão cartusiana; também nos textos selecionados que são colocados em vários momentos do filme, a indicar a sedução para a solidão, o despojamento que o convite divino instaura como caminho de plenitude na vida destas pessoas e a necessária transformação pessoal para que se possa viver o encontro com Deus manifestado no projeto de vida cartusiano.
Este projeto é expresso na recepção dos noviços: “Estejam prontos para abraçar o nosso tipo de vida monástica como uma via através da qual Deus vos guiará até o santuário interior da vossa alma, lá onde Ele deseja revelar a Sua presença”. A presença forte do Mistério Sagrado ainda se encontra na conversa serena com o monge cego sobre a morte, a alegria do encontro com Deus que ela propicia e a concepção de tempo sagrado na qual só se vive o hoje, o presente, o Kairós. É a opinião de quem encara com naturalidade tudo isto porque aprendeu a conviver com a condição humana em sua concretude, finitude e perecibilidade. E esta forte Presença é que é capaz de transformar toda a rotina em Encontro e Comunicação, pois “Diante da imensidão desta Presença, o monge adotará espontaneamente, uma atitude de quietude apaixonada que, pouco a pouco, se apossará de toda a sua existência, convertendo-a em oração.” . Neste sentido, este filme, mais que falar do silêncio, fala da comunicação sutil entre Deus e estes monges e da comunicação existente nesta comunidade.
Porém, este Sagrado experimentado na vida cartusiana, não é oposto à condição humana. Aliás, o encontro com este Mistério é humanizante, uma vez que é capaz de “tirar o coração de pedra e colocar no lugar um coração de carne” (cf. Ez 36, 26). A humanidade é realçada, sobretudo na exposição simples de elementos cotidianos de suas vidas: na conversa com os gatos, na brincadeira durante a recreação e no prazer pueril de deslizar na neve, na conversa sobre uma viagem a ser feita, em alguns olhares com um leve sorriso para a câmera, no alimentar-se e nos trabalhos manuais, nos bilhetes revelando o que cada um necessita, no sentar-se no chão etc. Nesta simplicidade, aparece também a importância da vida fraterna, mesmo neste ambiente austero e solitário: abundam os gestos de afeto, de cortesia, de acolhida, de cuidado de um para com o outro, seja no preparo dos alimentos, na costura das roupas, na limpeza, no corte dos cabelos, no passar pomada no corpo de outro monge... Enfim, nos pequenos cuidados que a vida cotidiana exige de cada um para que tudo ande bem e a vocação a que se sentem chamados possa ser realizada.
Esta vivência da fraternidade e do desprendimento parece apontar para um sentido profético da vocação monástica em sua radicalidade: a abertura ao Absoluto e a vida pautada por valores nascidos do encontro com o Sagrado podem indicar que é possível e necessária a construção de uma sociedade que se paute mais pela justiça, solidariedade e verdade nas relações interpessoais e sociais e nos faz sonhar com um futuro de harmonia e de comunhão entre os seres todos e com Deus. Também possuem uma dimensão escatológica, pois nos propiciam uma reflexão sobre o sentido último da realidade e das coisas que nos cercam e com as quais convivemos, muitas vezes absolutizando-as e tornando-nos escravos delas e coisificando nossas relações com as pessoas e com o próprio Deus. Além do mais, esta vocação não é resultado de uma proposta individualista, mas é vivida no compromisso com a humanidade, pois “Separados de todos, estamos unidos a todos já que é em nome de todos que nos mantemos na presença do Deus vivo” (Estatuto da Ordem dos Cartuxos 34.2), sendo solidários com todos os que sofrem.
O filme termina retomando as cenas iniciais do monge absorto em oração e novamente entra a citação de I Rs 19, 11-13, que é um ótimo retrato de todo trabalho apresentado e da vida dos cartuxos: nada de extraordinário ocorreu. Nada de fantástico. Somente homens frágeis e simples – e aqui está o extraordinário –, vivendo compenetradamente a busca de se centrar no Absoluto de Deus e escutar Sua voz. Somente neste silêncio se é capaz de perceber o murmúrio suave de Sua voz, obedecê-La e viver sem medo de encontrá-La.
Neste sentido é que gostaria de reproduzir aqui um texto presente no diário de Thomas Merton: “A grande alegria da vida solitária não se encontra simplesmente na quietude, na beleza e na paz da natureza, do canto nos pássaros, etc., nem na paz do coração da própria pessoa, mas no despertar e sintonizar o coração com a voz de Deus – com a certeza íntima, inexplicável, serena, definida da vocação para obedecê-Lo, para ouvi-Lo, para adorá-Lo aqui, agora, hoje, em silêncio e sozinho, e que é essa toda a razão da existência, isso que torna a existência fecunda e dá fecundidade a todos os outros (bons) atos da pessoa em pauta e é a redenção e purificação de seu coração, que esteve morto em pecado. Não é simplesmente uma questão de ‘existir’ sozinho, e sim de fazer, com compreensão e alegria, ‘o trabalho de cela’, que é feito em silêncio e não de acordo com a escolha pessoal ou a pressão das necessidades, mas em obediência a Deus. Como a voz de Deus não é ‘ouvida’ a todo instante, parte do ‘trabalho de cela’ é atenção, para que nenhum dos sons dessa Voz possa ficar perdido. Quando vemos quão pouco nós ouvimos, e quão obstinados e grosseiros são os nossos corações, percebemos como o trabalho é importante e como estamos mal preparados para fazê-lo.”
É um filme rico que além de apresentar a vida em uma comunidade organizada a partir de um ideal contemplativo, propõe uma reflexão sobre a condição humana em sua riqueza e finitude, sobre a sociedade, as relações estabelecidas com as coisas e a natureza e, sobretudo, aponta para a dimensão de interioridade presente em toda pessoa e que precisa ser recordada. Somente o cultivo desta dimensão é que permite perceber que a realidade é habitada por algo da ordem do indizível, do inominável, do inapreensível por nossos conceitos e categorias.
Uma observação:
Já vi esse filme 5 vezes e não sei usar palavras para expressar os sentimentos despertados cada vez que o vejo. É um filme escandalosamente belo e terno!!
Enoisa Veras
“O Grande Silêncio”, filme produzido e dirigido pelo cineasta alemão Philip Gröning, tem enchido salas de exibição na Europa, apesar de seu estilo pouco comum para nossa época: não se utiliza de efeitos especiais e nem de elementos básicos como a iluminação; nada comum, seu ritmo, a sugerir uma comparação com a agitada movimentação presente na contemporaneidade, possui uma velocidade própria, demorando-se longamente em algumas cenas e tomadas. Além do mais, a filmagem foi realizada por apenas uma pessoa, seu diretor – o que explica, em parte, seu baixo custo para este tipo de produção –, e sua edição sugere que foi fruto de uma longa e criteriosa seleção de imagens, uma vez que o total do tempo filmado foi de 300 horas e o filme tem apenas 2 horas e quarenta minutos.
O cenário que serve de pano de fundo é a Grande Cartuxa (Grande Chartreuse), perto de Grenoble, na França, na região do maciço rochoso chamado de Vale de Chartreuse nos Alpes. É este também o local onde São Bruno (1035-1101) funda em 1084 o que seria a primeira comunidade desta ordem que ficou conhecida como Cartuxa e tem sua singularidade na vivência da vida eremítica e solitária em comunidade.
A maior parte da vida de um cartuxo se passa na solidão de sua cela, embora alguns se dediquem a trabalhos para a comunidade religiosa, como cozinhar, limpar o ambiente, preparar lenhas para o aquecimento etc., e para isso tenham que ficar um bom tempo fora dela. A cela cartusiana é como uma pequena casa, dividida em vários aposentos dedicados à atividades específicas como a oração e o trabalho, além de possuir um pequeno jardim e uma ante-sala chamada Ave Maria que é um cômodo na entrada da cela dedicado à Maria e na qual o monge se detém ao entrar e sair. Segundo a tradição mística cartusiana, o monge leva sua vida oculta e solitária no “Coração da Virgem Mãe”. A sala na qual ele se dedica à oração é dividida em dois espaços: uma alcova em que se encontra o oratório para suas orações e outro espaço dedicado ao estudo e leitura espiritual. Além disso, normalmente existe uma varanda coberta para que o monge possa se locomover nos dias de árduo inverno e neve. Estas celas encontram-se unidas a um claustro que conduz à igreja, centro da vida destes eremitas.
O dia de um cartuxo é todo ele marcado por momentos oracionais em conjunto ou solitariamente nas celas e se distribui entre a realização de trabalhos manuais ou intelectuais, canto ou recitação do Ofício Divino e a leitura espiritual ou o estudo. Normalmente, já nas primeiras horas do dia, ele inicia a Prima na sua cela e logo em seguida se dirige à igreja para a Eucaristia. Após este primeiro momento comunitário, retira-se para a cela, onde rezará as demais horas e terá suas refeições e trabalhos, só saindo de lá para as Vésperas, normalmente no meio da tarde. Voltará a sair da cela novamente para cantar o ofício da Vigília, que se realiza por volta das 23 horas, após quatro horas de sono. Este ofício dura ao redor de três horas e de novo os monges retornam às suas celas para mais um período de quatro horas de sono antes de reiniciarem o dia. Esta rotina cotidiana só é alterada nos domingos e solenidades, que incluem um passeio dois a dois ou em comunidade ao redor do mosteiro por cerca de duas ou três horas e também o almoço no refeitório em silêncio e em comum, ouvindo alguma leitura edificante enquanto se alimentam.
É a partir desta ambientação que Philip Gröning nos propõe uma espécie de contemplação sobre o silêncio e a vivência do tempo marcado pela comunicação com Deus que organiza toda a vida cartusiana.
O filme inicia-se com as seguintes palavras: “Somente em completo silêncio se começa a escutar; somente quando a linguagem cessa se começa a ver”. Depois destas palavras, foca-se num monge totalmente absorto em oração dentro de sua cela. A seguir, após uma cena do céu e do fogo, aparece a citação de I Rs 19, 11-13: é o relato da experiência de Elias no Horeb, que ocorre depois de uma longa jornada pelo deserto fugindo da perseguição da rainha Jezabel (I Rs 18, 20-40). Ele se encontra numa gruta e não reconhece a presença divina nem no “furacão que fendia as montanhas”, nem no terremoto e nem no fogo, mas apenas no “murmúrio de uma brisa suave”.
A seguir, se desenrolam cenas do cotidiano repetitivo dos cartuxos, marcados pelas mudanças das estações do ano e ritmados pela oração e comunhão com Deus em meio aos trabalhos realizados. São cenas que envolvem a oração na cela e na igreja, trabalhos, recreação em comum, acolhida a dois noviços, refeição etc. Estas cenas são entremeadas pelo ambiente físico de cunho religioso (imagens de santos, pia da água benta etc.), natural (fogo, neve, montanhas, a passagem do dia à noite etc.) ou por objetos úteis nas tarefas cotidianas (pratos, copos, botões etc.). Todos estes elementos compõem cenas em que transparecem a economia nos gestos e decoração, a inexistência do supérfluo, a praticidade e a organização sóbria e centrada no que é essencial.
Além destas imagens, é interessante perceber o tom de Sagrado presente em tudo. No canto dos salmos, sempre a introduzir elementos bíblicos e a esperança em Deus, Companheiro a habitar a solidão cartusiana; também nos textos selecionados que são colocados em vários momentos do filme, a indicar a sedução para a solidão, o despojamento que o convite divino instaura como caminho de plenitude na vida destas pessoas e a necessária transformação pessoal para que se possa viver o encontro com Deus manifestado no projeto de vida cartusiano.
Este projeto é expresso na recepção dos noviços: “Estejam prontos para abraçar o nosso tipo de vida monástica como uma via através da qual Deus vos guiará até o santuário interior da vossa alma, lá onde Ele deseja revelar a Sua presença”. A presença forte do Mistério Sagrado ainda se encontra na conversa serena com o monge cego sobre a morte, a alegria do encontro com Deus que ela propicia e a concepção de tempo sagrado na qual só se vive o hoje, o presente, o Kairós. É a opinião de quem encara com naturalidade tudo isto porque aprendeu a conviver com a condição humana em sua concretude, finitude e perecibilidade. E esta forte Presença é que é capaz de transformar toda a rotina em Encontro e Comunicação, pois “Diante da imensidão desta Presença, o monge adotará espontaneamente, uma atitude de quietude apaixonada que, pouco a pouco, se apossará de toda a sua existência, convertendo-a em oração.” . Neste sentido, este filme, mais que falar do silêncio, fala da comunicação sutil entre Deus e estes monges e da comunicação existente nesta comunidade.
Porém, este Sagrado experimentado na vida cartusiana, não é oposto à condição humana. Aliás, o encontro com este Mistério é humanizante, uma vez que é capaz de “tirar o coração de pedra e colocar no lugar um coração de carne” (cf. Ez 36, 26). A humanidade é realçada, sobretudo na exposição simples de elementos cotidianos de suas vidas: na conversa com os gatos, na brincadeira durante a recreação e no prazer pueril de deslizar na neve, na conversa sobre uma viagem a ser feita, em alguns olhares com um leve sorriso para a câmera, no alimentar-se e nos trabalhos manuais, nos bilhetes revelando o que cada um necessita, no sentar-se no chão etc. Nesta simplicidade, aparece também a importância da vida fraterna, mesmo neste ambiente austero e solitário: abundam os gestos de afeto, de cortesia, de acolhida, de cuidado de um para com o outro, seja no preparo dos alimentos, na costura das roupas, na limpeza, no corte dos cabelos, no passar pomada no corpo de outro monge... Enfim, nos pequenos cuidados que a vida cotidiana exige de cada um para que tudo ande bem e a vocação a que se sentem chamados possa ser realizada.
Esta vivência da fraternidade e do desprendimento parece apontar para um sentido profético da vocação monástica em sua radicalidade: a abertura ao Absoluto e a vida pautada por valores nascidos do encontro com o Sagrado podem indicar que é possível e necessária a construção de uma sociedade que se paute mais pela justiça, solidariedade e verdade nas relações interpessoais e sociais e nos faz sonhar com um futuro de harmonia e de comunhão entre os seres todos e com Deus. Também possuem uma dimensão escatológica, pois nos propiciam uma reflexão sobre o sentido último da realidade e das coisas que nos cercam e com as quais convivemos, muitas vezes absolutizando-as e tornando-nos escravos delas e coisificando nossas relações com as pessoas e com o próprio Deus. Além do mais, esta vocação não é resultado de uma proposta individualista, mas é vivida no compromisso com a humanidade, pois “Separados de todos, estamos unidos a todos já que é em nome de todos que nos mantemos na presença do Deus vivo” (Estatuto da Ordem dos Cartuxos 34.2), sendo solidários com todos os que sofrem.
O filme termina retomando as cenas iniciais do monge absorto em oração e novamente entra a citação de I Rs 19, 11-13, que é um ótimo retrato de todo trabalho apresentado e da vida dos cartuxos: nada de extraordinário ocorreu. Nada de fantástico. Somente homens frágeis e simples – e aqui está o extraordinário –, vivendo compenetradamente a busca de se centrar no Absoluto de Deus e escutar Sua voz. Somente neste silêncio se é capaz de perceber o murmúrio suave de Sua voz, obedecê-La e viver sem medo de encontrá-La.
Neste sentido é que gostaria de reproduzir aqui um texto presente no diário de Thomas Merton: “A grande alegria da vida solitária não se encontra simplesmente na quietude, na beleza e na paz da natureza, do canto nos pássaros, etc., nem na paz do coração da própria pessoa, mas no despertar e sintonizar o coração com a voz de Deus – com a certeza íntima, inexplicável, serena, definida da vocação para obedecê-Lo, para ouvi-Lo, para adorá-Lo aqui, agora, hoje, em silêncio e sozinho, e que é essa toda a razão da existência, isso que torna a existência fecunda e dá fecundidade a todos os outros (bons) atos da pessoa em pauta e é a redenção e purificação de seu coração, que esteve morto em pecado. Não é simplesmente uma questão de ‘existir’ sozinho, e sim de fazer, com compreensão e alegria, ‘o trabalho de cela’, que é feito em silêncio e não de acordo com a escolha pessoal ou a pressão das necessidades, mas em obediência a Deus. Como a voz de Deus não é ‘ouvida’ a todo instante, parte do ‘trabalho de cela’ é atenção, para que nenhum dos sons dessa Voz possa ficar perdido. Quando vemos quão pouco nós ouvimos, e quão obstinados e grosseiros são os nossos corações, percebemos como o trabalho é importante e como estamos mal preparados para fazê-lo.”
É um filme rico que além de apresentar a vida em uma comunidade organizada a partir de um ideal contemplativo, propõe uma reflexão sobre a condição humana em sua riqueza e finitude, sobre a sociedade, as relações estabelecidas com as coisas e a natureza e, sobretudo, aponta para a dimensão de interioridade presente em toda pessoa e que precisa ser recordada. Somente o cultivo desta dimensão é que permite perceber que a realidade é habitada por algo da ordem do indizível, do inominável, do inapreensível por nossos conceitos e categorias.
Para ler mais:
- O grande silêncio. Faustino Teixeira, teólogo, comenta o documentário de Philip Gröning
- O Grande Silêncio. Entrevista com Philipp Gröning, diretor do filme
- O grande silêncio. Um comentário e Olegário González de Cardedal O Grande Silêncio
- Documentário que enche salas na Europa
Uma observação:
Já vi esse filme 5 vezes e não sei usar palavras para expressar os sentimentos despertados cada vez que o vejo. É um filme escandalosamente belo e terno!!
Enoisa Veras