20/09/2009

Dom Pedro Casaldáliga

Salvemo-nos com o Planeta

Artigo de Dom Pedro Casaldáliga, bispo Emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia, publicado no sítio Adital, 14-09-2009.
Fonte: UNISINOS





À maneira de introdução fraterna.

Vinte anos atrás tratavam de ecologia umas poucas pessoas, tachadas inclusive de bucólicas ou de derrotistas. Não era um tema sério nem para a política nem para a educação nem para a religião. Podia-se venerar Francisco de Assis como o santo das flores e dos pássaros, mas sem maior compromisso.

Agora, e quem sabe se tarde demais, o mundo inteiro está se sensibilizando, atordoado pelas notícias e pelas imagens de cataclismos atuais e de previsões pessimistas que enchem os nossos telejornais. E já são muitos os congressos e os programas que ventilam como um tema vital a ecologia, desnudando as causas e urgindo propostas concretas acerca do meio ambiente. Até as crianças sabem agora de ecologia...

O tema é novo, então, e desesperadamente urgente. Acabamos por descobrir a Terra, nosso Planeta, como a casa comum, a única que temos, e estamos descobrindo que somos uma unidade indissolúvel de relações e de futuro.

Frente aos gastos astronômicos nos espaços siderais, frente ao assassino negócio do armamentismo, frente ao consumismo e luxo de uma privilegiada parcela da Humanidade, agora vamos sabendo que o desafio é cuidar deste Planeta. A última grande crise, filha do capitalismo neoliberal, embrutecido na usura e no esbanjamento, que vem ignorando cinicamente tanto o sofrimento dos pobres como as limitações reais da Terra, está nos ajudando a abrir os olhos e esperamos que também o coração. Leonardo Boff define O grito da Terra como o grito dos pobres e James Lovelock nos avisa acerca de ‘A vingança da Terra’ – a teoria de Gaia e o futuro da Humanidade. "Durante milhares de anos, diz Lovelock, a Humanidade vem abusando da Terra sem ter em conta as consequências. Agora, que o aquecimento global e a mudança climática são evidentes para qualquer observador imparcial, a Terra começa a se vingar". Estamos tratando a Terra como um assunto apenas econômico e exigimos da Terra muitos deveres, mas ignoramos os direitos da Terra.

Certos especialistas e certas instituições internacionais nos vêm mentindo. A mão invisível do Mercado não resolvia o desastre mundial. Quanto mais livre era o comércio, mais real era a fome. Segundo a FAO, em 2007 havia 860 milhões de famintos; em janeiro de 2009 cento nove milhões a mais. A metade da população africana subsahariana, para dar um exemplo dessa África crucificada, sobrevive na extrema pobreza.

A ladainha de violência e desgraças provocadas é interminável. No Congo há 30.000 meninos soldados dispostos a matar e a morrer a troco de comida; 17% da floresta amazônica foi destruída em cinco anos, entre 2000 e 2005; o gasto da América Latina e do Caribe em defesa cresceu 91% entre 2003 e 2008; uma dezena de empresas multinacionais controla o mercado de semente em todo o mundo.

Os Objetivos do Milênio se evaporaram na retórica e em suas reuniões elitistas os países mais ricos dizem covardemente que não podem fazer mais para reverter o quadro.

É tradição da nossa Agenda enfrentar a cada ano um tema maior, de atualidade quente. Não podíamos, logicamente, deixar de lado este tema vulcânico. O tema é amplo e complexo. Somos nós ou é o Planeta quem está em crise mortal?

Foram feitas três propostas para o título desta Agenda 2010, que apontam para possíveis focos: "Salvar o Planeta", "Salvaremos o Planeta?", "Salvemo-nos com o Planeta". Optamos pelo último título, porque técnicos e profetas nos vêm recordando que nós somos o Planeta também; somos Gaia, estamos despertando para uma visão mais holística, mais integral; estamos descobrindo, finalmente, que o Planeta Terra é também o Planeta Água.

Um recente livro infantil intitula-se precisamente Ajudo o meu Planeta. A salvação do Planeta é a nossa salvação, e não faltam especialistas que afirmem que o Planeta vai-se salvar seguindo o curso do Universo e, entretanto, a vida humana e todas as vidas do Planeta serão um sombrio passado.

A Agenda não quer ser pessimista, não pode sê-lo. Quer ser realista, se comprometer com a realidade e abraçar vitalmente as causas que promovem uma ecologia esperançada e esperançadora.

Essa ecologia profunda, integral, deve incluir todos os aspetos da nossa vida pessoal, familiar, social, política, cultural, religiosa... E todas as instituições políticas e sociais, em nível local, nacional e internacional, têm de fazer programa fundamental seu "a salvação do Planeta". É imprescindível uma globalização de sinal positivo, trabalhando pela mundialização da ecologia. Rechaçando e superando a atual democracia de baixa intensidade urge implantar uma democracia de intensidade máxima e, mais explicitamente, uma "biocracia cósmica".

Urge criar, estimular, potenciar, em todas as religiões e em todos os humanismos uma espiritualidade "profunda e total" de sinal positivo, de atitude profética na libertação de todo tipo de escravidão; vivendo e militando por uma nova valoração de toda vida, da matéria, do corpo, do eros. O ecofeminismo sai ao encontro de um desafio fundamental, Gaia é feminina. Impõe-se uma nova relação com a natureza, naturalizando-nos como natureza que somos e humanizando a natureza na qual vivemos e da qual dependemos. Eu sou eu, diria o filósofo, e a natureza que me circunda.

O melhor que a Terra tem é a Humanidade, apesar de todas as loucuras que temos cometido e seguimos cometendo, verdadeiros genocídios e verdadeiros suicídios coletivos.

Propiciando essa mudança radical que se postula e proclamando que é possível outra ecologia em outra sociedade humana, fazemos nossos estes dois pontos do Manifesto da Ecologia Profunda: "A mudança ideológica consiste principalmente em valorizar a qualidade da vida – de viver em situações de valor intrínsecas – mais do que tratar incessantemente de conseguir um nível de vida mais elevado. Terá que se produzir uma tomada de consciência profunda da diferença que há entre crescimento material e o crescimento pessoal independente da acumulação de bens tangíveis".

E acrescenta o Manifesto: "Quem subscreve os pontos que se enunciam no Manifesto tem a obrigação direta ou indireta de agir para que se produzam estas mudanças, necessárias para a sobrevivência de todas as espécies do Planeta", incluindo «a santa e pecadora» espécie humana.

Militantes e intelectuais comprometidos com as grandes causas estão preparando uma Declaração Universal do Bem Comum Planetário que se expressa através de quatro pactos:
1) O Pacto ecológico natural, responsável por proteger a Terra.
2) O Pacto ecológico social, responsável de unir todas as esperanças e vontades.
3) O Pacto ecológico cultural, que deve estar baseado na promoção do pluralismo, da tolerância e do encontro da Humanidade com os ecossistemas, os biomas, a vida do Planeta.
4) O Pacto ecológico ético espiritual, fundado na dimensão do cuidado, a compaixão, a corresponsabilidade de todos com tudo.

Devemos escutar o que nos dizem simultaneamente as novas ciências e as novas teologias. Queremos viver este kairós ecológico de militância e de mística com o Deus de todos os nomes e de todas as utopias.

Com Jesus de Nazaré muitos libertários, profetas e mártires em Nossa América nos precedem e nos acompanham nesta marcha pelo deserto para "a Terra sem Males".

É uma utopia absurda? Só utopicamente nos salvaremos. A arrogância dos poderes, o lucro desenfreado, a prepotência, as claudicações, vêm a nos desanimar; mas nós nos negamos ao desânimo, à corrupção, à resignação. A Pacha Mama e Gaia estão vivas, são vivificadoras. Nenhuma estrutura de morte terá mais poder que a Vida.

[grifos do blog]

Para ler mais:

Pampa. Silencioso e desconhecido
Por uma ética do alimento. Sobriedade e compaixão
Sociedade Sustentável
Terra Habitável: um desafio para a teologia e a espiritualidade cristãs
Da possibilidade de morte da Terra à afirmação da vida. A teologia ecológica de Jürgen Moltmann
O decrescimento como condição de uma sociedade convivial

Teologia da Libertação
Frida Kahlo. 1907-2007. Um olhar de teólogas e teólogos
Na fragilidade de Deus a esperança das vítimas. Um estudo da cristologia de Jon Sobrino
Saúde Coletiva. Uma proposta integral e transdisciplinar de cuidado
Espiritualidade e respeito à diversidade
Francisco. O santo
Che Guevara
Rio dos Sinos. Um ano depois da tragédia. Ainda é possível salvá-lo?
O pampa e o monocultivo do eucalipto
Alternativas energéticas em tempos de crise financeira e ambiental
América Latina, hoje
Ecoeconomia. Uma resposta à crise ambiental?
Agrotóxicos. Remédio ou Veneno? Uma discussão