03/09/2009

Pe. Alfredo J. Gonçalves

Culto do ‘eu’

Pe. Alfredo J. Gonçalves é assessor das Pastorais Sociais
Fonte: Adital

No individualismo exacerbado da sociedade moderna ou pós-moderna, o culto ao "eu" ganha uma relevância sem precedentes. Semelhante culto se expressa de variadas formas: a primeira e mais visível é a busca obsessiva do corpo perfeito protagonizada especialmente pelas meninas vinculadas ao mundo da moda, com seus desfiles, passarelas, luzes e glamour. A tirania da beleza lhes impõe um regime de verdadeira tortura, além de difundir uma espécie de remorso nas pessoas "normais".

Mas o culto ao "eu" também está presente no assédio impudico às celebridades, ou grandes personalidades. De alguma forma, tanto as câmaras e holofotes da mídia quanto o público em geral, projetam nessas figuras o sucesso que sonham para si mesmos, embora continuem rastejando pelo mundo dos simples mortais. De fato as estrelas, embora ofusquem os planetas, conferem-lhe algum brilho. Mesmo girando em órbitas distintas os astros se atraem na infinitude do universo. Daí o afã dos "paparazzi" pela invasão de privacidade a todo custo.

O hedonismo, entendido como o prazer pelo prazer, é outra marca do culto ao "eu". Se confrontarmos os anos de 1950, 60 e 70, com os dias atuais, podemos ter uma idéia do que isso significa. De fato, em décadas passadas, predominava na cultura geral a preocupação com o "bem estar social". Basta reportarmo-nos a figuras como John Lennon ou The Beatles, a Nelson Mandela, Dom Oscar Romero e Hélder Câmara, às canções da Bossa Nova ou da MPB, à manifestações juvenis dos anos 60 em Paris e México, por exemplo, às ações das Igrejas no processo de libertação latinomericano, aos movimentos sociais, universitários e estudantis, à educação Paulo Freire e Ligas Camponesas, enfim, ao desenvolvimento dos debates em torno do socialismo e suas ações concretas. Em tudo isso, o foco das atenções estava centrado numa perspectiva claramente sócio-política.

Atualmente o foco do"bem estar social" foi substituído pelo foco do "bem estar pessoal". "Estar numa boa" é uma das expressões dessa virada histórica. O verbo ficar ao invés de namorar também não deixa de ser uma metáfora dessa mudança cultural mais abrangente. As relações tendem a ser mais efêmeras, descartáveis, sem responsabilidades duradouras. A própria dança, em lugar de revelar um casal apaixonado, aparece muito mais como um exibicionismo contorcionista de um parceiro frente ao outro. Mas isso não se dá somente entre os jovens e adolescentes, como se costuma insinuar. Na sociedade como um todo, é frequente o isolamento individual diante da multidão de estranhos.

Desde um ponto de vista religioso e católico, uma rápida olhada para os hinos tocados nas missas ou celebrações segue a mesma direção. Em não poucos casos, o "nós" de décadas passadas dá lugar ao "eu": ao invés do "Povo de Deus", eu e Jesus, eu e Deus, e assim por diante. A Teologia da Libertação, as CEBs e as Pastorais Sociais sofrem um processo de encolhimento, ao mesmo tempo que florescem os movimentos religiosos de caráter espiritual e intimista. Também a fé tende a privatizar-se, tornando-se uma opção individual com pouca ou nenhuma repercussão social.

O resultado é que o conceito de transformação social ou política está desacreditado. Mudança virou sinônimo de espetáculo, não de processo lento e laborioso. Funcionam melhor os analgésicos da vida moderna. Não se pensam em projetos de longo prazo, mas em remédios imediatos para problemas imediatos. O importante é responder aos males do "aqui e agora". Daí o sucesso da varinha mágica de Henry Porter, da força de Rambo, da sorte lotérica, das lições de auto-ajuda, dos milagrismos, entre tantos outros paliativos.

Facilmente se esquece que as mudanças, a exemplo da espiga, da flor, da árvore e do edifício, levantam-se do chão. A exemplo das sementes, maturam na terra escura e úmida, antes de se projetarem no céu e no ar livre. Criam raízes antes de verem a luz do sol, crescem para baixo antes de cresceram para cima. O mesmo se dá com os sonhos e utopias. Se não partirem do contexto histórico, com o complexo de seus problemas econômicos, políticos e sociais, jamais poderão elevar-se a um horizonte alternativo. Sem raízes, a árvore é manipulada pelos ventos e os projetos sociais pelas tempestades variantes da política.