Como vários amigos, fiquei estupefato quando li as acusações feitas por Clodovis Boff à teologia que ele chama de teologia de libertação. Não existe nenhuma instituição chamada teologia da libertação de tal modo que muitos podem perguntar-se se são da teologia da libertação ou não. A acusação feita à chamada teologia da libertação é totalmente indefinida.
Clodovis não cita nomes e não dá nenhuma referência, nenhuma a obras de alguns autores que seriam incriminados. Não cita as páginas em que estão os erros. A acusação é a seguinte: a teologia da libertação substituiu Cristo pelo pobre. O pobre ocupa o lugar de Cristo do cristianismo. Essa substituição é tão forte que os teólogos da libertação substituíram a cristologia por uma pobrelogia.
Essa acusação é espantosa. Suprimir o lugar central de Cristo é deixar de ser cristão. Na palavra de Clodovis os teólogos da libertação - cujo nome não aparece - já não são cristãos. Já estão fora da Igreja. Os sacramentos que celebram ou recebem são sacrilégios. Clodovis é muito mais severo do que a Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, porque condena muitos de uma vez. Além disso, os teólogos da libertação ficam totalmente desacreditados no povo de Deus. Deveriam ser evitados porque poderiam contaminar almas inocentes. Não existe lista oficial dos teólogos da libertação. Mas há alguns nomes que eventualmente poderiam entrar numa lista não oficial, e sujeita à revisão se alguns não aceitam essa identificação.
Quero dar testemunho de que os teólogos da seguinte lista, que conheci ou conheço pessoalmente crêem no lugar central de Cristo no cristianismo e não defendem a pobrelogia. Quero defender publicamente Gustavo Guitiérrez, Juan Luis Segundo, Ronaldo Muñoz, João Batista Libânio, Luiz Carlos Susin, Cleto Caliman, Leonardo Boff, Carlos Palácio, F. Taborda, Agenor Brighenti, Jon Sobrino, I. Ellacuría, Pedro Trigo, Luis del Valle, Carlos Bravo, Miguel Concha, Virgilio Elizondo, Hugo Echegaray, Víctor Codina, Alberto Parra, Roberto Oliveros, José Luis Caravias, Pablo Richard, Paulo Suess, Diego Irrarázaval, Marcelo Barros, Juan Hernándes Pico. Estes teólogos acreditam no lugar central de Cristo e não substituem Cristo pelos pobres. Todos querem destacar o lugar que ocupam os pobres na revelação cristã, mas ninguém os coloca no lugar de Cristo. Mas todos são suspeitos. Não quero citar nomes de teólogas para que não sejam expostas à suspeita, mas nenhuma se aproxima nem de longe da tese da pobrelogia. Aliás, elas se identificariam mais com a teologia feminina do que com a teologia da libertação.
Eu mesmo não sei se posso estar na lista e me pergunto se eu também não coloco os pobres no lugar de Cristo e já não seria mais cristão. No entanto, muitas pessoas me consideram como cristão. Eu estaria enganando-as? Como sair da dúvida?
Há com certeza teólogos que não conheço pessoalmente. Os culpados estariam entre eles? De qualquer maneira, já que a acusação é geral, ela atinge todos os nomes citados.
Achei muita petulância, para não dizer inconsciente arrogância, essa maneira de acusar todos os colegas teólogos latino-americanos, como se ele fosse o dono da verdade.
Se encontrou em alguns escritos algumas expressões que não entendeu bem, ou suscitam dúvidas que se lembre do princípio de caridade: quando não entendo bem uma expressão, preciso dar ao autor o benefício da interpretação mais favorável, até que argumentos convincentes venham demonstrar o contrário.
O autor poderia dizer que escreveu dentro de um gênero literário, o gênero de requisitório, o que explicaria e justificaria as suas expressões inflamadas. Usou um linguajar de procurador. Não se deveria tomar tão literalmente as acusações que são, antes de mais nada, exercícios de eloqüência.
Sucede que há leitores que vão tomar literalmente as acusações. Podem inclusive abrir processos. Estas denúncias lembram um fato histórico que poderia ser um precedente. Lembro-me do padre Roger Vekemans, que, para minha confusão, era do país em que nasci. Depois de Medellín, Vekemans declarou a guerra a Gustavo Gutierrez e lhe prometeu que iria destruí-lo. Deixou o Chile, foi para Colômbia e fundou um centro DESA, dedicado exclusivamente a atacar e denunciar a teologia da libertação. Vekemans lançou o tema da teologia da libertação como fachada que esconde o marxismo na Igreja. Segundo ele, a teologia da libertação era a penetração do marxismo na Igreja. Era uma corrupção total do cristianismo.
Vekemans fundou uma revista para repetir indefinidamente as mesmas denúncias. Há uma frase famosa de Voltaire em que diz que repetindo sempre a mesma mentira, sempre produz um efeito. Foi o que fez Vekemans. Teve bastante êxito. Forneceu a Alfonso Lopez Trujillo toda a documentação para atacar os teólogos da libertação. Este foi mais alto. A Instrução do cardeal Ratzinger sobre a teologia da libertação repete todos os argumentos de Vekemans.
É verdade que o Papa João Paulo II proclamou que a teologia da libertação estava morta. Mas de repente agora em Roma podem descobrir que ainda não estava totalmente morta e precisa de um golpe final.
A nova heresia já recebeu um nome: pobrologia. Dar um nome é muito perigoso porque as pessoas se contentam como repetir o nome, o que as dispensa de ler as obras. O nome inclusive não é muito adequado literariamente. Mistura o português com o grego. Todas as palavras que terminam em -logia, começam com uma palavra grega: teologia, cristologia, pneumatologia antropologia, cardiologia, oftalmologia, ecologia, psicologia, oncologia, dermatologia, etc. Aqui devia ser "ptochologia" já que em grego pobre se diz ""ptochos".
Clodovis multiplica os argumentos para mostrar que Jesus está no centro do cristianismo. Ninguém vai discordar. É como ensinar o catecismo ao senhor vigário.. Mas essa repetição dos argumentos parece insinuar que os teólogos da libertação são muito ignorantes da cristologia. Então muitos leitores vão pensar que esses teólogos são mesmo muito ignorantes. O que se consegue com isso?
Quem vai sofrer com essas controvérsias, são os pobres. Os teólogos têm comida garantida, casa garantida. Se são condenados, não vão sofrer muito. Quem vai sofrer serão os pobres na medida em que a Igreja se desinteressa deles por medo de cair numa heresia. Sempre ouvi Gustavo Gutiérrez dizendo que a teologia da libertação pode morrer e não importa. O que importa, são os pobres. Para um cristão a teologia é algo completamente secundário e dispensável. Mas os pobres não são dispensáveis. Não se pode ser cristão sem acolher a mensagem que vem dos pobres.
Alguns podem ficar exasperados pela preocupação constante pelos pobres. Lembro-me de uma frase que ficou famosa e que foi pronunciada por um alto dignitário eclesiástico. Dom Leonidas Proaño foi bispo de Riobamba no Equador durante 30 anos. Na sua diocese os índios constituem 80º% da população. Quando chegou na diocese, descobriu o estado de horrível miséria dos índios tratados como animais. Dedicou a sua vida à libertação dos índios, a libertação cristã. Viveu pobre, visitou constantemente os miseráveis povoados da montanha onde moram os índios. A sua casa estava sempre aberta para os índios que vinham à cidade para vender as poucas coisas que podiam vender. A primeira coisa que fez dom Leônidas foi organizar uma casa de acolhida na cidade para que os índios pudessem tomar banho. Pois nas suas montanhas falta água. A segunda coisa que fez, foi a reforma agrária em duas fazendas da diocese em que descobriu os instrumentos de tortura que se usavam para forçar os índios a trabalhar.
Foram 30 anos de luta. Basta ver os índios hoje em dia para ver que o seu trabalho não foi em vão. Há alguns meses atrás o presidente da república foi a Riobamba para proclamar Proaño patrimônio da pátria. A assembléia constituinte decidiu que seria obrigatório em todas as escolas do país ensinar a vida e os ensinamentos de Proaño. Um dia um jornalista perguntou a essa alta personalidade eclesiástica o que pensava de dom Leônidas Proaño. A personalidade respondeu "É um homem muito bom. Mas ele tem a mania dos índios!"
Então poderíamos também dizer de alguns teólogos: "É um homem bom, mas ele tem a mania dos pobres!".
Compreendi melhor a centralidade dos pobres no cristianismo num episódio da minha vida. Foi no Equador também. Foi em 1976, quando 17 bispos foram presos em Riobamba . Havia também umas 40 pessoas, padres, religiosas, leigos e leigas. Entre estes estava Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz. Eu estava no meio. Fomos todos levados por soldados armados de metralhetas até um quartel de Quito e deixados numa sala, sem explicação. No meio da noite, alguns bispos acharam que seria muito bom celebrar a eucaristia. Mas como achar pão e vinho? Uma senhora equatoriana foi falar com os soldados e conseguiu convencê-los que trouxessem algo de pão e de vinho.
Celebraram a eucaristia. Ora, nesse mesmo dia, um dos bispos, dom Parra León, bispo de Cumaná na Venezuela, celebrava os seus 50 anos de sacerdócio. Estava tão emocionado que chorava. Então ele disse: "Faz 50 anos que celebro a eucaristia todos os dias sem perder nenhum dia. Mas só agora estou entendendo!".
Pode-se celebrar a eucaristia pensando em tudo o que ensinam os teólogos e os liturgistas. Pode-se celebrar com muita piedade e devoção, com muitos sentimentos de amor, mas sem entender. Não se entende a eucaristia e de modo geral não se entende Jesus Cristo a partir da piedade, dos sentimentos religiosos, ou a partir dos conhecimentos teológicos. Tudo isso é secundário e não permite penetrar na realidade. Quando o bispo estava preso ( uma prisão ainda bem suave), estava numa situação de impotência, era pobre. Então entendeu.
Clodovis quer salientar que o fundo da teologia é professar: "Cristo é o Senhor". Acho que todos os teólogos sabem disso e ninguém vai discutir. Mas o problema é outro. O problema é "quem diz "Cristo é Senhor"? Onde? Quando?
O general Videla dizia "Cristo é Senhor". O general Pinochet dizia "Cristo é Senhor" Era fé? Ou era blasfêmia? A elite latino-americana que oprimiu os povos durante 500 anos sempre proclamou: "Cristo é Senhor". Era ato de fé? Ainda é ato de fé? Este é o nosso problema. Os teólogos latino-americanos afirmaram: quem pode dizer "Cristo é Senhor" com sinceridade, como expressão de toda a sua vida, são os pobres. Daí o lugar central dos pobres, que não afeta em nada o lugar central de Cristo, pelo contrário, o confirma.
Os poderosos proclamam "Cristo é Senhor", mas a sua vida diz: "Senhor, sou eu!" O grito de Paulo "Cristo é Senhor" é um protesto contra todos os "Senhores", uma denúncia da opressão, um desafio lançado contra os que se acham os Senhores. É uma negação de todos os poderes opressores. Há somente um Senhor!
O papel da teologia não consiste em buscar quais são as palavras que expressam a fé, mas o que é a fé realmente vivida.
Pois, não se entende Jesus a partir da teologia, seja ela de libertação ou de prosperidade. A questão não é saber o que significam as palavras atribuídas a Jesus nas celebrações ou na teologia. Não se trata de entender as palavras escritas na Bíblia para entender a realidade. Jesus aparece no seu verdadeiro sentido, como realidade, a partir de uma situação na qual o cristão se assimila a ele. Vivendo o que ele viveu, se pode entender. Somente os pobres dizem de modo autêntico "Cristo é Senhor!" Todos os outros podem dizer as palavras corretas que no seu caso, somente expressam figuração, imaginação, sensibilidade, até comédia. A piedade pode enganar muito, criando a ilusão de fé quando se trata de uma fantasia mental, ou de uma fórmula administrativa de um bom funcionário que é pago para dizer essas coisas.
Quem não é pobre, pode aprender dos pobres, com a condição de ser muito humilde. Jesus viveu a impotência, a fragilidade dos pobres. Para entendê-lo é preciso entrar na mesma condição.
Jesus Cristo é o centro do Reino de Deus, o centro de toda a história da salvação, o centro de cada vida de discípulo. Mas não se trata do nome "Jesus Cristo", mas da realidade. Ora, essa realidade de Cristo somente se manifesta a quem vive nele, com ele, fazendo a mesma experiência humana. Por isso há uma centralidade da pobreza como acesso à centralidade de Jesus Cristo.
Isto não é novidade. Em todas as fases da história da Igreja houve cristãos que entenderam bem isso. Na América latina, depois de séculos de dependência e de passividade colonial com os olhos fechados sobre a condição dos índios ou dos negros, houve um despertar. Os olhos abriram-se. Bispos, sacerdotes, religiosas, religiosos, leigos e leigas, converteram-se quando descobriram a realidade da humanidade e o vazio da sua religião.
Por isso houve a Conferência de Medellín que foi como o descobrimento de Jesus Cristo na sua realidade, na sua presença. Era preciso descobrir os pobres para descobrir Jesus Cristo. A Conferência de Medellín foi preparada pelo Pacto das Catacumbas. No dia 16 de novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio, 40 bispos do mundo inteiro reuniram-se na catacumba de Santa Domitila em Roma e assinaram o Pacto das Catacumbas. Cada um se comprometia a viver pobre, a rejeitar todos os símbolos ou os privilégios do poder e a colocar os pobres no centro do seu ministério pastoral. Não era comédia, porque já estavam agindo assim. Nesses quarenta havia um número importante de brasileiros e latino-americanos e , mais tarde, outros subscreveram também.
Alguns acham que a opção pelos pobres é expressão de caridade para com os pobres. Acham que significa amor aos pobres É isso também, mas é secundário. A grande questão é o conhecimento de Jesus Cristo. O que é conhecer Jesus? Onde e como se conhece Jesus Cristo? A centralidade dos pobres vem do fato que os pobres entenderem o que é Jesus Cristo. Não se quer dizer que todos os pobres fazem essa experiência, mas que o conhecimento se faz dentro dessa condição. Nós podemos aprender deles. Nada vamos aprender nocionalmente, mas vivencialmente.
A centralidade dos pobres não compromete em nada a centralidade de Cristo. Pelo contrário, permite que se entenda melhor.
Um sacerdote pode ser um bom funcionário do culto, que celebra com muita piedade, sempre bem comportado, um desses padres que nunca dão problema ao bispo. Mas não entende nada. Provavelmente nunca teve oportunidade de aprender. A culpa não é dele.
Por outro lado, nos evangelhos Jesus identifica-se com os pobres. O que se dá aos pobres, é dado a ele. A sabedoria popular transmitiu fielmente esse ensinamento. Encontrar um pobre no caminho é encontrar Jesus Cristo. O problema aparece nas grandes cidades. A gente encontra tantos pobres que é impossível evocar Jesus Cristo cada vez. Somente alguns podem fazer isso.
Por outro lado, muita gente tem dificuldade em aceitar que a consideração dos pobres muda toda a cristologia, como muda a pneumatologia, a eclesiologia e as representações usadas para falar de Deus. Muda toda a teologia tradicional, pelo menos no Ocidente. Isto não pode surpreender. A cristologia tradicional concentrou-se em torno dos dogmas dos 4 primeiros Concílios, e da teoria anselmiana da redenção. Isto quer dizer que era muito parcial, muito particular, centrada em poucas questões. Historicamente, novas questões aparecem que obrigam a situar tudo de uma nova maneira. Novas leituras da Bíblia fazem com que apareçam novas perspectivas.
É significativo que os bispos da geração de Medellín, os padres que os seguiram, tiveram que passar por uma conversão. De repente, descobriram que a teologia que tinham aprendido no seminário escondia uma parte da realidade e que fatos evidentes obrigaram a descobrir, por exemplo, o que a Bíblia diz dos pobres.
Um obstáculo é o preconceito de que Jesus anuncia uma boa nova para todos. Ora ele anuncia uma notícia péssima para os ricos que vão perder tudo, para os sacerdotes que vão perder o templo e desaparecer, para os doutores cuja ciência se torna irrelevante, para os fariseus cuja santidade fica desmascarada para Herodes.
A boa noticia é para os pobres, os desarmados, os perseguidos. Mas sucede que muitos cristãos fazem questão de apagar as diferenças e lêem o evangelho como se se dirigisse a todos igualmente, como se Jesus falasse para os homens em geral, sem nenhuma referência à sua situação, assim como fazem os filósofos gregos. O próprio documento de Aparecida apresenta o evangelho como boa noticias válida para todos, sem nenhuma diferença. De fato, para quem estudou somente a teologia tradicional, não há problema. Para eles o evangelho é o mesmo para todos, embora os textos bíblicos e inúmeros documentos da Tradição manifestem a cada página que não é verdade. A teologia podia esconder o evangelho. Desconfio que ela não era completamente inocente, mas que tinha alguns motivos menos religiosos para silenciar certos aspetos dos evangelhos.
Um dia um camponês do sertão pernambucano disse-me: "Eu sou alfabeto, mas quando ouço o vigário explicar o evangelho, acho que ele não lê tudo, porque o que lê, sempre dá razão a ele". Esse camponês era muito inteligente. Pois o vigário escolhe sempre o que é favorável a ele.
Claro está que Clodovis sabe tudo isso. Mas muitos leitores não sabem e podem ficar confirmados nos seus preconceitos. Continuarão achando que os pobres não têm nada a ver com a doutrina cristã, em particular com a cristologia. Pensarão como sempre que os pobres são objeto da caridade dos cristãos e os cristãos devem reconhecer esse dever de caridade. Como dizia um dia o cardeal Daniélou: "os pobres têm lugar num parágrafo de um artigo de um capítulo do tratado sobre a caridade". Os pobres seriam objeto da compaixão dos cristãos porque sofrem muito.
Se essa fosse a opção preferencial pelos pobres, esta seria totalmente inofensiva e irrelevante.
Os pobres não tomam o lugar de Cristo, mas eles têm um lugar especial, fundamental, central em Cristo.Que a teologia da libertação morra ou não, não importa. Mas depois de Medellín a teologia não poderá continuar sendo o que era.
Fonte: ADITAL
Para ler Frei Clodovis M. Boff, OSM, no texto Teologia da Libertação e volta ao fundamento, clicar aqui.
Clodovis não cita nomes e não dá nenhuma referência, nenhuma a obras de alguns autores que seriam incriminados. Não cita as páginas em que estão os erros. A acusação é a seguinte: a teologia da libertação substituiu Cristo pelo pobre. O pobre ocupa o lugar de Cristo do cristianismo. Essa substituição é tão forte que os teólogos da libertação substituíram a cristologia por uma pobrelogia.
Essa acusação é espantosa. Suprimir o lugar central de Cristo é deixar de ser cristão. Na palavra de Clodovis os teólogos da libertação - cujo nome não aparece - já não são cristãos. Já estão fora da Igreja. Os sacramentos que celebram ou recebem são sacrilégios. Clodovis é muito mais severo do que a Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, porque condena muitos de uma vez. Além disso, os teólogos da libertação ficam totalmente desacreditados no povo de Deus. Deveriam ser evitados porque poderiam contaminar almas inocentes. Não existe lista oficial dos teólogos da libertação. Mas há alguns nomes que eventualmente poderiam entrar numa lista não oficial, e sujeita à revisão se alguns não aceitam essa identificação.
Quero dar testemunho de que os teólogos da seguinte lista, que conheci ou conheço pessoalmente crêem no lugar central de Cristo no cristianismo e não defendem a pobrelogia. Quero defender publicamente Gustavo Guitiérrez, Juan Luis Segundo, Ronaldo Muñoz, João Batista Libânio, Luiz Carlos Susin, Cleto Caliman, Leonardo Boff, Carlos Palácio, F. Taborda, Agenor Brighenti, Jon Sobrino, I. Ellacuría, Pedro Trigo, Luis del Valle, Carlos Bravo, Miguel Concha, Virgilio Elizondo, Hugo Echegaray, Víctor Codina, Alberto Parra, Roberto Oliveros, José Luis Caravias, Pablo Richard, Paulo Suess, Diego Irrarázaval, Marcelo Barros, Juan Hernándes Pico. Estes teólogos acreditam no lugar central de Cristo e não substituem Cristo pelos pobres. Todos querem destacar o lugar que ocupam os pobres na revelação cristã, mas ninguém os coloca no lugar de Cristo. Mas todos são suspeitos. Não quero citar nomes de teólogas para que não sejam expostas à suspeita, mas nenhuma se aproxima nem de longe da tese da pobrelogia. Aliás, elas se identificariam mais com a teologia feminina do que com a teologia da libertação.
Eu mesmo não sei se posso estar na lista e me pergunto se eu também não coloco os pobres no lugar de Cristo e já não seria mais cristão. No entanto, muitas pessoas me consideram como cristão. Eu estaria enganando-as? Como sair da dúvida?
Há com certeza teólogos que não conheço pessoalmente. Os culpados estariam entre eles? De qualquer maneira, já que a acusação é geral, ela atinge todos os nomes citados.
Achei muita petulância, para não dizer inconsciente arrogância, essa maneira de acusar todos os colegas teólogos latino-americanos, como se ele fosse o dono da verdade.
Se encontrou em alguns escritos algumas expressões que não entendeu bem, ou suscitam dúvidas que se lembre do princípio de caridade: quando não entendo bem uma expressão, preciso dar ao autor o benefício da interpretação mais favorável, até que argumentos convincentes venham demonstrar o contrário.
O autor poderia dizer que escreveu dentro de um gênero literário, o gênero de requisitório, o que explicaria e justificaria as suas expressões inflamadas. Usou um linguajar de procurador. Não se deveria tomar tão literalmente as acusações que são, antes de mais nada, exercícios de eloqüência.
Sucede que há leitores que vão tomar literalmente as acusações. Podem inclusive abrir processos. Estas denúncias lembram um fato histórico que poderia ser um precedente. Lembro-me do padre Roger Vekemans, que, para minha confusão, era do país em que nasci. Depois de Medellín, Vekemans declarou a guerra a Gustavo Gutierrez e lhe prometeu que iria destruí-lo. Deixou o Chile, foi para Colômbia e fundou um centro DESA, dedicado exclusivamente a atacar e denunciar a teologia da libertação. Vekemans lançou o tema da teologia da libertação como fachada que esconde o marxismo na Igreja. Segundo ele, a teologia da libertação era a penetração do marxismo na Igreja. Era uma corrupção total do cristianismo.
Vekemans fundou uma revista para repetir indefinidamente as mesmas denúncias. Há uma frase famosa de Voltaire em que diz que repetindo sempre a mesma mentira, sempre produz um efeito. Foi o que fez Vekemans. Teve bastante êxito. Forneceu a Alfonso Lopez Trujillo toda a documentação para atacar os teólogos da libertação. Este foi mais alto. A Instrução do cardeal Ratzinger sobre a teologia da libertação repete todos os argumentos de Vekemans.
É verdade que o Papa João Paulo II proclamou que a teologia da libertação estava morta. Mas de repente agora em Roma podem descobrir que ainda não estava totalmente morta e precisa de um golpe final.
A nova heresia já recebeu um nome: pobrologia. Dar um nome é muito perigoso porque as pessoas se contentam como repetir o nome, o que as dispensa de ler as obras. O nome inclusive não é muito adequado literariamente. Mistura o português com o grego. Todas as palavras que terminam em -logia, começam com uma palavra grega: teologia, cristologia, pneumatologia antropologia, cardiologia, oftalmologia, ecologia, psicologia, oncologia, dermatologia, etc. Aqui devia ser "ptochologia" já que em grego pobre se diz ""ptochos".
Clodovis multiplica os argumentos para mostrar que Jesus está no centro do cristianismo. Ninguém vai discordar. É como ensinar o catecismo ao senhor vigário.. Mas essa repetição dos argumentos parece insinuar que os teólogos da libertação são muito ignorantes da cristologia. Então muitos leitores vão pensar que esses teólogos são mesmo muito ignorantes. O que se consegue com isso?
Quem vai sofrer com essas controvérsias, são os pobres. Os teólogos têm comida garantida, casa garantida. Se são condenados, não vão sofrer muito. Quem vai sofrer serão os pobres na medida em que a Igreja se desinteressa deles por medo de cair numa heresia. Sempre ouvi Gustavo Gutiérrez dizendo que a teologia da libertação pode morrer e não importa. O que importa, são os pobres. Para um cristão a teologia é algo completamente secundário e dispensável. Mas os pobres não são dispensáveis. Não se pode ser cristão sem acolher a mensagem que vem dos pobres.
Alguns podem ficar exasperados pela preocupação constante pelos pobres. Lembro-me de uma frase que ficou famosa e que foi pronunciada por um alto dignitário eclesiástico. Dom Leonidas Proaño foi bispo de Riobamba no Equador durante 30 anos. Na sua diocese os índios constituem 80º% da população. Quando chegou na diocese, descobriu o estado de horrível miséria dos índios tratados como animais. Dedicou a sua vida à libertação dos índios, a libertação cristã. Viveu pobre, visitou constantemente os miseráveis povoados da montanha onde moram os índios. A sua casa estava sempre aberta para os índios que vinham à cidade para vender as poucas coisas que podiam vender. A primeira coisa que fez dom Leônidas foi organizar uma casa de acolhida na cidade para que os índios pudessem tomar banho. Pois nas suas montanhas falta água. A segunda coisa que fez, foi a reforma agrária em duas fazendas da diocese em que descobriu os instrumentos de tortura que se usavam para forçar os índios a trabalhar.
Foram 30 anos de luta. Basta ver os índios hoje em dia para ver que o seu trabalho não foi em vão. Há alguns meses atrás o presidente da república foi a Riobamba para proclamar Proaño patrimônio da pátria. A assembléia constituinte decidiu que seria obrigatório em todas as escolas do país ensinar a vida e os ensinamentos de Proaño. Um dia um jornalista perguntou a essa alta personalidade eclesiástica o que pensava de dom Leônidas Proaño. A personalidade respondeu "É um homem muito bom. Mas ele tem a mania dos índios!"
Então poderíamos também dizer de alguns teólogos: "É um homem bom, mas ele tem a mania dos pobres!".
Compreendi melhor a centralidade dos pobres no cristianismo num episódio da minha vida. Foi no Equador também. Foi em 1976, quando 17 bispos foram presos em Riobamba . Havia também umas 40 pessoas, padres, religiosas, leigos e leigas. Entre estes estava Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz. Eu estava no meio. Fomos todos levados por soldados armados de metralhetas até um quartel de Quito e deixados numa sala, sem explicação. No meio da noite, alguns bispos acharam que seria muito bom celebrar a eucaristia. Mas como achar pão e vinho? Uma senhora equatoriana foi falar com os soldados e conseguiu convencê-los que trouxessem algo de pão e de vinho.
Celebraram a eucaristia. Ora, nesse mesmo dia, um dos bispos, dom Parra León, bispo de Cumaná na Venezuela, celebrava os seus 50 anos de sacerdócio. Estava tão emocionado que chorava. Então ele disse: "Faz 50 anos que celebro a eucaristia todos os dias sem perder nenhum dia. Mas só agora estou entendendo!".
Pode-se celebrar a eucaristia pensando em tudo o que ensinam os teólogos e os liturgistas. Pode-se celebrar com muita piedade e devoção, com muitos sentimentos de amor, mas sem entender. Não se entende a eucaristia e de modo geral não se entende Jesus Cristo a partir da piedade, dos sentimentos religiosos, ou a partir dos conhecimentos teológicos. Tudo isso é secundário e não permite penetrar na realidade. Quando o bispo estava preso ( uma prisão ainda bem suave), estava numa situação de impotência, era pobre. Então entendeu.
Clodovis quer salientar que o fundo da teologia é professar: "Cristo é o Senhor". Acho que todos os teólogos sabem disso e ninguém vai discutir. Mas o problema é outro. O problema é "quem diz "Cristo é Senhor"? Onde? Quando?
O general Videla dizia "Cristo é Senhor". O general Pinochet dizia "Cristo é Senhor" Era fé? Ou era blasfêmia? A elite latino-americana que oprimiu os povos durante 500 anos sempre proclamou: "Cristo é Senhor". Era ato de fé? Ainda é ato de fé? Este é o nosso problema. Os teólogos latino-americanos afirmaram: quem pode dizer "Cristo é Senhor" com sinceridade, como expressão de toda a sua vida, são os pobres. Daí o lugar central dos pobres, que não afeta em nada o lugar central de Cristo, pelo contrário, o confirma.
Os poderosos proclamam "Cristo é Senhor", mas a sua vida diz: "Senhor, sou eu!" O grito de Paulo "Cristo é Senhor" é um protesto contra todos os "Senhores", uma denúncia da opressão, um desafio lançado contra os que se acham os Senhores. É uma negação de todos os poderes opressores. Há somente um Senhor!
O papel da teologia não consiste em buscar quais são as palavras que expressam a fé, mas o que é a fé realmente vivida.
Pois, não se entende Jesus a partir da teologia, seja ela de libertação ou de prosperidade. A questão não é saber o que significam as palavras atribuídas a Jesus nas celebrações ou na teologia. Não se trata de entender as palavras escritas na Bíblia para entender a realidade. Jesus aparece no seu verdadeiro sentido, como realidade, a partir de uma situação na qual o cristão se assimila a ele. Vivendo o que ele viveu, se pode entender. Somente os pobres dizem de modo autêntico "Cristo é Senhor!" Todos os outros podem dizer as palavras corretas que no seu caso, somente expressam figuração, imaginação, sensibilidade, até comédia. A piedade pode enganar muito, criando a ilusão de fé quando se trata de uma fantasia mental, ou de uma fórmula administrativa de um bom funcionário que é pago para dizer essas coisas.
Quem não é pobre, pode aprender dos pobres, com a condição de ser muito humilde. Jesus viveu a impotência, a fragilidade dos pobres. Para entendê-lo é preciso entrar na mesma condição.
Jesus Cristo é o centro do Reino de Deus, o centro de toda a história da salvação, o centro de cada vida de discípulo. Mas não se trata do nome "Jesus Cristo", mas da realidade. Ora, essa realidade de Cristo somente se manifesta a quem vive nele, com ele, fazendo a mesma experiência humana. Por isso há uma centralidade da pobreza como acesso à centralidade de Jesus Cristo.
Isto não é novidade. Em todas as fases da história da Igreja houve cristãos que entenderam bem isso. Na América latina, depois de séculos de dependência e de passividade colonial com os olhos fechados sobre a condição dos índios ou dos negros, houve um despertar. Os olhos abriram-se. Bispos, sacerdotes, religiosas, religiosos, leigos e leigas, converteram-se quando descobriram a realidade da humanidade e o vazio da sua religião.
Por isso houve a Conferência de Medellín que foi como o descobrimento de Jesus Cristo na sua realidade, na sua presença. Era preciso descobrir os pobres para descobrir Jesus Cristo. A Conferência de Medellín foi preparada pelo Pacto das Catacumbas. No dia 16 de novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio, 40 bispos do mundo inteiro reuniram-se na catacumba de Santa Domitila em Roma e assinaram o Pacto das Catacumbas. Cada um se comprometia a viver pobre, a rejeitar todos os símbolos ou os privilégios do poder e a colocar os pobres no centro do seu ministério pastoral. Não era comédia, porque já estavam agindo assim. Nesses quarenta havia um número importante de brasileiros e latino-americanos e , mais tarde, outros subscreveram também.
Alguns acham que a opção pelos pobres é expressão de caridade para com os pobres. Acham que significa amor aos pobres É isso também, mas é secundário. A grande questão é o conhecimento de Jesus Cristo. O que é conhecer Jesus? Onde e como se conhece Jesus Cristo? A centralidade dos pobres vem do fato que os pobres entenderem o que é Jesus Cristo. Não se quer dizer que todos os pobres fazem essa experiência, mas que o conhecimento se faz dentro dessa condição. Nós podemos aprender deles. Nada vamos aprender nocionalmente, mas vivencialmente.
A centralidade dos pobres não compromete em nada a centralidade de Cristo. Pelo contrário, permite que se entenda melhor.
Um sacerdote pode ser um bom funcionário do culto, que celebra com muita piedade, sempre bem comportado, um desses padres que nunca dão problema ao bispo. Mas não entende nada. Provavelmente nunca teve oportunidade de aprender. A culpa não é dele.
Por outro lado, nos evangelhos Jesus identifica-se com os pobres. O que se dá aos pobres, é dado a ele. A sabedoria popular transmitiu fielmente esse ensinamento. Encontrar um pobre no caminho é encontrar Jesus Cristo. O problema aparece nas grandes cidades. A gente encontra tantos pobres que é impossível evocar Jesus Cristo cada vez. Somente alguns podem fazer isso.
Por outro lado, muita gente tem dificuldade em aceitar que a consideração dos pobres muda toda a cristologia, como muda a pneumatologia, a eclesiologia e as representações usadas para falar de Deus. Muda toda a teologia tradicional, pelo menos no Ocidente. Isto não pode surpreender. A cristologia tradicional concentrou-se em torno dos dogmas dos 4 primeiros Concílios, e da teoria anselmiana da redenção. Isto quer dizer que era muito parcial, muito particular, centrada em poucas questões. Historicamente, novas questões aparecem que obrigam a situar tudo de uma nova maneira. Novas leituras da Bíblia fazem com que apareçam novas perspectivas.
É significativo que os bispos da geração de Medellín, os padres que os seguiram, tiveram que passar por uma conversão. De repente, descobriram que a teologia que tinham aprendido no seminário escondia uma parte da realidade e que fatos evidentes obrigaram a descobrir, por exemplo, o que a Bíblia diz dos pobres.
Um obstáculo é o preconceito de que Jesus anuncia uma boa nova para todos. Ora ele anuncia uma notícia péssima para os ricos que vão perder tudo, para os sacerdotes que vão perder o templo e desaparecer, para os doutores cuja ciência se torna irrelevante, para os fariseus cuja santidade fica desmascarada para Herodes.
A boa noticia é para os pobres, os desarmados, os perseguidos. Mas sucede que muitos cristãos fazem questão de apagar as diferenças e lêem o evangelho como se se dirigisse a todos igualmente, como se Jesus falasse para os homens em geral, sem nenhuma referência à sua situação, assim como fazem os filósofos gregos. O próprio documento de Aparecida apresenta o evangelho como boa noticias válida para todos, sem nenhuma diferença. De fato, para quem estudou somente a teologia tradicional, não há problema. Para eles o evangelho é o mesmo para todos, embora os textos bíblicos e inúmeros documentos da Tradição manifestem a cada página que não é verdade. A teologia podia esconder o evangelho. Desconfio que ela não era completamente inocente, mas que tinha alguns motivos menos religiosos para silenciar certos aspetos dos evangelhos.
Um dia um camponês do sertão pernambucano disse-me: "Eu sou alfabeto, mas quando ouço o vigário explicar o evangelho, acho que ele não lê tudo, porque o que lê, sempre dá razão a ele". Esse camponês era muito inteligente. Pois o vigário escolhe sempre o que é favorável a ele.
Claro está que Clodovis sabe tudo isso. Mas muitos leitores não sabem e podem ficar confirmados nos seus preconceitos. Continuarão achando que os pobres não têm nada a ver com a doutrina cristã, em particular com a cristologia. Pensarão como sempre que os pobres são objeto da caridade dos cristãos e os cristãos devem reconhecer esse dever de caridade. Como dizia um dia o cardeal Daniélou: "os pobres têm lugar num parágrafo de um artigo de um capítulo do tratado sobre a caridade". Os pobres seriam objeto da compaixão dos cristãos porque sofrem muito.
Se essa fosse a opção preferencial pelos pobres, esta seria totalmente inofensiva e irrelevante.
Os pobres não tomam o lugar de Cristo, mas eles têm um lugar especial, fundamental, central em Cristo.Que a teologia da libertação morra ou não, não importa. Mas depois de Medellín a teologia não poderá continuar sendo o que era.
Fonte: ADITAL
Para ler Frei Clodovis M. Boff, OSM, no texto Teologia da Libertação e volta ao fundamento, clicar aqui.