25/12/2008

Dom Gianfranco Ravasi















O clandestino de Belém


No último período da sua vida, Renato Guttuso [1], que também tinha uma casa em Velate, nos arredores de Varese, foi convidado a decorar com afrescos uma das capelas do percurso que subia ao famoso Sacro Monte daquela cidade. Foi-lhe confiada a cena da “Fuga ao Egito”, um topos da iconografia cristológica, e ele decidiu representar Maria, José e o pequeno Jesus como uma família de refugiados palestinos, amedrontados, obrigados a abandonar a sua casa errando no deserto (hoje, se deveria pensar no dramático exílio em pátria que é a situação dos habitantes de Gaza).

O povo hebreu, ao qual Jesus estava ligado segundo a carne e o sangue, se autodefinia na Bíblia como uma comunidade de “forasteiros e peregrinos”. Tanto é verdade que eles codificaram esta extraordinária sobre a qual muitos falsos legisladores cristãos também deveriam refletir: “Haverá uma mesma lei para o natural e o estrangeiro que peregrina entre vós. [...] Se um estrangeiro vier habitar convosco na vossa terra, não o oprimireis, mas esteja ele entre vós como um compatriota, e tu o amarás como a ti mesmo, porque fostes já estrangeiros no Egito” (Êxodo 12, 49; Levítico 19, 33-34).

Ora, se lemos os 48 versículos dos dois primeiros capítulos do Evangelho de Mateus, a tradicional retórica natalícia se desfaz para deixar entrever uma trama profunda: Jesus nasce em uma gruta-estrebaria, é deposto não em um berço, mas em uma manjedoura, enfrenta logo o pesadelo de uma repressão sanguinária (o “massacre dos inocentes”) e a pequena família deve investir pelo caminho da clandestinidade, protegendo-se no fronteiriço Egito. Como fica evidente, não é nada artificiosa a aplicação da atribulada história dos imigrantes, dos nômades, dos clandestinos que ocupam os nossos jornais à história do menino Jesus de Belém. Podemos dizer que a sombra da cruz se projeta já nos primeiros dias de vida desse neo-nascido e não admira que a escola pictórica de Novgorod [2], a partir do século XV, não tenha hesitado em unir esses dois extremos ensangüentados, representado o pequeno Jesus envolto em faixas funerárias e deposto em um berço em forma de sarcófago!

Séculos depois, um poeta cristão chinês, forçado também ele à clandestinidade enquanto perseguido, Ai Qing (1910-1996), celebrava com estes versos o Natal de 1936: Da manjedoura, surgem lamentos que arrancam o coração. Com inumeráveis dedos / a multidão indica a jovem-mãe desprezada como imundície, ninguém se dispõe a levar-lhe um vaso para o sangue”. O pensamento se dirige a certas mães estrangeiras (mas não só...), que dão a luz sozinhas, escondidamente, espalhando o seu sangue por terra e arrancando escassamente o cordão umbilical. Deixemos por agora esses paralelos, que deveriam fazer refletir crentes e agnósticos, e voltemos ao texto de Mateus, que citamos na sua essencialidade, distante mil milhas – como veremos – da ênfase miraculosa dos Evangelhos apócrifos.

Um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse: Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito; fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar. José levantou-se durante a noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito. Ali permaneceu até a morte de Herodes para que se cumprisse o que o Senhor dissera pelo profeta: Eu chamei do Egito meu filho (2,13-15). Essas concisas palavras evangélicas estão mais preocupadas em oferecer uma interpretação teológica dessa fuga do que de documentar e motivar os mais reais componentes históricos (essa é uma característica geral dos Evangelhos e em particular dos chamados “Evangelhos da infância de Jesus”, presentes nos capítulo 1-2 de Mateus e de Lucas). De fato, com a citação final retirada do profeta Oséias (11, 1), Do Egito chamei meu filho – quer-se aludir ao evento capital da história do Israel bíblico que foi o êxodo da opressão faraônica: Cristo percorre emblematicamente suas etapas, encarnando sofrimento e salvação, opressão e libertação, emigração e repatriação. Assim, mais adiante ressoará no Egito o apelo voltado ao pai legal de Jesus, José: Levanta-te, toma o menino e sua mãe e retorna à terra de Israel, porque morreram os que atentavam contra a vida do menino (2, 20).

Sob o pano de fundo torcido, há, também, a figura do famoso rei Herodes, cuja biografia – que pode ser reconstruída por meio do historiador José Flávio – foi bem marcada por grandes sucessos políticos, mas também por um implacável punho de ferro aplacar todo mínimo aceno de oposição. Macrobio, historiador romano do século V, atribuirá a Augusto um ditado que se refere a Herodes: perto dele, tinham mais sorte os porcos (não comestíveis para os judeus) do que os filhos (em grego, as duas palavras tem um som semelhante), porque Herodes havia liquidados filhos, mulheres e parentes suspeitos de tramar às suas costas. O Egito, que faz fronteira com a Palestina, constituía uma terra de exílio ideal: já no século X a.C., o então rebelde (e futuro rei de Israel) Jeroboão protegeu-se lá para fugir das forças de Salomão.

Dito isso, devemos baixar as cortinas sobre o caso desse pequeno fugitivo e da sua família. Mas desde as origens a tentação de se refugiar nos céus dourados do mito, desligando-se do realismo histórico da Encarnação cristã, estava pronta para atacar. E eis o florescimento de uma fantasmagoria de prodígios que circundam com uma auréola gloriosa o que, na realidade, era o amargo e fatigante sobreviver de três clandestinos. Páginas e páginas de tantos Evangelhos apócrifos, fruto de uma constante necessidade de decolar do presente áspero rumo às ilusões de salvações fáceis, teceram narrações mirabolantes que se infiltraram até entre as Suras do Corão. Com esses relatos, podemos até desenhar uma espécie de mapa dessa migração clandestina: os pais de Jesus, descartando o chamado “caminho do mar” que costeava o Mediterrâneo e ultrapassava Gaza – caminho mais curto, mas perigoso por causa dos postos de bloqueio das tropas herodianas antes e egípcias depois – se dirigem rumo ao oriente, atravessando o Jordão e procedendo da atual Jordânia, ao longo de um complexo itinerário. Ainda mais minuciosa é a seqüência das etapas em território egípcio: o atual Cairo (que, entre outras coisas, é sede ainda hoje de esplêndidas igrejas dos cristãos coptas, indígenas do Egito, como diz o seu próprio nome, deformação do grego Aigyptos), Ermopólis, Assiut e assim por diante.

Nós nos contentamos agora em oferecer apenas dois exemplos dessa narrativa apócrifa, em que a ênfase do milagre apaga todo realismo da história. Eis alguns fragmentos do longo relato dos capítulos 18-20 do chamado Evangelho do Pseudo-Mateus (conhecido já no século IV-V):

Chegaram diante de uma gruta para repousar, mas, de repente, saíram muitos dragões. Jesus, então, saiu do colo de sua mãe e ficou de pé sobre seus pés diante dos dragões: eles se colocaram a adorar Jesus e depois foram embora diante deles... Assim também os leões e os leopardos o adoravam e acompanhavam-nos no deserto: em todo o lugar que José e Maria andavam, eles os precediam, mostrando a estrada e curvando a cabeça; serviam fazendo a festa com o rabo e o adoravam com grande reverência... No terceiro dia da viagem, Maria, cansada pelo grande calor do sol e do deserto, vendo uma palmeira disse a José: Repousarei à sombra dessa árvore. Maria olhou a folhagem da palmeira e viu-a cheia de frutos e disse a José: Gostaria de pegar os frutos dessa palmeira. E José: Admiro-me de que tu digas isso vendo a altura dessa palmeira. Eu penso sobretudo na falta de água... Então, o menino Jesus, que sereno repousava no colo de sua mãe, disse à palmeira: Árvore, dobra os teus ramos e restaura com os teus frutos a minha mãe. A essas palavras, a palmeira dobrou rapidamente a folhagem até os pés da beata Maria e permaneceu inclinada esperando a ordem de se levantar por parte de Jesus. Ele lhe disse: Abre com as tuas raízes a veia d’água que está escondida na terra. E logo começou a brotar, das razíes, uma fonte d’água limpíssima, fresca e clara.

O outro exemplo nós o resumimos do capítulo 23 do chamado Evangelho Árabe da Infância, que, em al-Moharraq, próximo da atual Assiut (350 Km ao sul do Cairo), reserva a mais surpreendente aventura egípcia do Jesus menino. Durante a noite, à procura de um refúgio, José e Maria são atacados nessa região infestada de delinqüentes: quem os ataca são dois bandidos, Tito e Dumaco. Tito se comove rapidamente frente a essa pobre família, tocado pela ternura da mãe e do esplendor da criança. Para poder salvá-los da avidez do roubo do sócio, está pronto a oferecer a Dumaco 40 dracmas das suas “economias”, para que deixe a pequena família incólume. Como é fácil imaginar, os dois serão os companheiros de Jesus na crucificação, condenados à morte com ele em Jerusalém, depois de vários episódios, e Tito nada mais é do que o bom ladrão a quem Cristo abre as portas do Paraíso.

Estamos, portanto, bem longes da sobriedade do sucinto relato do Evangelho canônico de Mateus e da realidade dos prófugos de então e de agora. O cristianismo quis certamente apresentar a vida do seu fundador na grandeza do seu mistério, mas também oculto sob as vestes do sofrimento e os trapos da miséria, desde a origem até o trágico desfecho na colina do Gólgota na crucificação. O Cristo real é irmão dos últimos da terra, e é por isso que Bertolt Brecht (sim, justamente o dramaturgo alemão ateu) tinha razão quando, nas suas Poesias (1918-1933), escrevia os versos do seu "Natal dos pobres": Hoje estamos sentados, na vigília de Natal, nós, gente mísera, em uma gélida salinha, o vento corre lá fora, o vento entra. Vem, bom Senhor Jesus, a nós, volta o olhar: porque Tu és verdadeiramente necessário.

Notas:

1. Renato Guttuso (26 de dezembro de 1911 – 18 de janeiro de 1987) foi um dos maiores pintores italianos do século XX. Suas pinturas mais famosas incluem “Flight from Etna” (1938-39), “Crucifixion” (1941) e “La Vucciria” (1974). Guttuso também criou para o teatro, incluindo cenários e figurinos para a peça “Histoire du Soldat” (Rome, 1940) e ilustrou diversos livros, muitos no mundo de língua inglesa. [voltar]

2. Nizhniy Novgorod (em russo, Нижний Новгород) é a capital de uma província da Rússia com o mesmo nome, fundada em 1221. A Escola de Novgorod refere-se à arte dos ícones e dos afrescos, cuja primeira referência foi a arte bizantina. A Escola alcança sua plenitude no final do século XIV e durante o século XV, quando a influência bizantina desaparece e acentua-se o toque nacionalista. Os pintores evitam o simbolismo abstrato e complicado, desenvolvendo temas simples de clara leitura. A paleta contém cores vivas, puras, intensas e vibrantes entre as quais se destaca os tons de vermelho. Clique nos links para ver alguns exemplos de imagens: "A Trindade do Antigo Testamento" e "O Nascimento da Virgem".


Fonte: UNISINOS