25/10/2009

Mary E. Hunt

A proposta indecente do Vaticano aos anglicanos: um escândalo teológico

"Roma não muda nem uma vírgula com a chegada dos anglicanos dissidentes. Ela mantém em seu lugar o seu clero celibatário, enquanto acolhe anglicanos casados com gosto." Essa é a opinião da teóloga norte-americana Mary E. Hunt, publicada no sítio Religion Dispatches, 22-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Em setembro deste ano, a teóloga esteve na Unisinos durante a programação do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades, proferindo a conferência "Narrar Deus hoje: uma reflexão a partir da teologia feminista".
Fonte: UNISINOS


O novo esquema do Vaticano para atrair anglicanos conservadores descontentes ao rebanho deve ter pego o arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, desprevenido, mas os católicos não ficam surpresos com nada do que Roma faz para ampliar a sua cota de mercado. O clero conservador, cuja oposição à ordenação de mulheres e aos indivíduos LGBT o motivou a se separar da Comunhão Anglicana, é agora bem-vindo a se mudar para o catolicismo.

Deixemos a história lembrar esse escândalo teológico pelo que ele é. Vendido por Roma como um passo adiante nas relações ecumênicas com uma comunhão-prima, ele é, de fato, a união de dois grupos unidos em sua rejeição às mulheres e aos indivíduos "queer" como indignos para a liderança religiosa.

Uma vindoura Constituição Apostólica irá pronunciar os detalhes: os anglicanos contra a ordenação de mulheres e de pessoas LGBT (como o bispo Gene Robinson, por exemplo) estão em plena comunhão com Roma. Por que se incomodar, então, com requerimentos de conversão individual ou papeladas supérfluas? Esses anglicanos podem até fazer a transição enquanto congregações ou dioceses inteiras, se preferirem. Eles serão católicos, mas, assim como os católicos de rito oriental, eles o farão a seu modo. Eles podem trazer seus próprios incensos e sinos e o seu Livro de Oração Comum, e até seus próprios padres e bispos, que irão presidir os "Ordinariatos Pessoais", que irão funcionar como dioceses. Venham como vocês são, sejam bem-vindos para discriminar contra os conteúdos do seu coração em nome de Deus.

Roma não muda nem uma vírgula com a chegada dos anglicanos dissidentes. Ela mantém em seu lugar o seu clero celibatário, enquanto acolhe anglicanos casados com gosto. Eu prevejo mais do que uma pequena consternação nas fileiras romanas com relação a isso. As políticas atuais permitem que os pastores episcopais e luteranos casados pulem a cerca com sua família a reboque. Porém, os homens católicos romanos que desejam se casar, independentemente das mulheres católicas romanas que poderiam até concordar com o celibato, são proibidos de ser ordenados. Nenhuma autoridade católica romana parece ser capaz de dizer de uma forma franca e direta por que isso é assim. Eles murmuram algo sobre tradição e certas distinções. Mas a retórica se enfraquece crescentemente enquanto eles defendem o indefensável contra a sua própria prática. Isso não é bonito.

Roma mantém sua liturgia e teologia completamente intactas. A educação teológica continua a mesma, com o acréscimo de pequenos grupos de formação para candidatos anglicanos ao sacerdócio, que podem apreciar seu próprio "patrimônio", conseguindo também uma boa dose de pensamento romano. De nenhuma forma o Vaticano se engaja em questões que conduzam à Reforma Inglesa do século XVI. Ao invés, Roma pretende ser flexível e moderna com relação a tudo isso, graciosa e complacente como uma raposa. Quando as lutas por propriedades começarem, eu prevejo que as gentilezas abrirão caminho para algumas sérias disputas, e nós veremos como Roma não consegue ser complacente.

Denominações são negócios, acima de tudo, e, dessa forma, elas prestam tanta atenção aos resultados finais quanto aos seus ensinamentos. Talvez mais aos primeiros. Nesse caso, a oportunidade de mais fácil acesso são os anglicanos britânicos que ainda não descobriram como se reorganizar à luz de suas mudanças de denominação. O grupo norte-americano liderado pelo Rev. Martyn Minns, da Virgínia, disse que eles estão muito bem, obrigado, ajeitando suas próprias estruturas para que não precisem se converter.

Alguém pode se perguntar quanto tempo eles poderão resistir ao charme de Roma. Imaginem as oportunidades imobiliárias, já que as igrejas católicas romanas fecham, e os anglicanos conservadores precisam de prédios. Pensem na solução brilhante para a falta de sacerdotes, com os padres anglicanos garantidamente fiéis às normas substituindo os rapazes romanos, assim que eles morrerem e/ou pensarem por si mesmos. Conjecturem a visão de uma grande massa com uma grande quantidade de ministros do altar e incenso tão abundante, que faz com que os paroquianos até esqueçam que houve uma vez um Vaticano II. Para os mais "católicos" entre os dissidentes anglicanos, é um casamento feito nos céus. Mas os anglicanos conservadores mais evangélicos podem considerar que esse é o seu pior pesadelo.

Como prevenir que outras denominações sigam a linha de Roma? Por exemplo, e se a Comunhão Anglicana estabelecer uma ala católica, em que aqueles católicos romanos que acreditam na ordenação de mulheres e de um clero de casais de mesmo sexo podem ser anglicanos de rito católico romano? Os Menonitas podem criar um rito católico para aqueles que os seguem em questões de paz, resultando nos menonitas católicos. Eu duvido disso. É mais provável que Roma decida que alguém nem precisa ser cristão. Essa discriminação contra mulheres e gays é um elo comum suficiente para criar alguns católicos de rito muçulmano, por exemplo. As permutas são infindáveis, mas o resultado é o mesmo: uma perversão de tudo o que o movimento ecumênico representou nos últimos cem anos. Os cristãos ecumênicos tentaram aprender sobre as tradições uns dos outros e encontrar pontos positivos de acordo – não pequenos espaços de preconceito compartilhado.

Eu sinto muito por Rowan Williams se ele não sabia contra o que estava quando se envolveu nas relações bilaterais com Roma, só para estar sujeito à sua traição. Cercado por todos os lados em sua própria comunhão, ele agora preside o potencial êxodo de alguns de seus membros que irão encontrar, na nova dispensa, um lugar confortável para viver suas ideias antiquadas de humanidade.

Eu apenas espero que Williams e companhia se consolem com o fato de que estão em boa companhia entre os colegas ecumênicos que respeitam as tradições uns dos outros, compreendem as dinâmicas das disputas internas e resistem à tentação de lucrar com os problemas dos outros. Roma, por outro lado, está em uma categoria – mesmo que baixa – só dela.
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